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1 | 17 0 SNHCT ANAIS ELETRÔNICOS Cientistas e Expedições na Serra de Baturité – CE: pesquisa e intercâmbio entre o uso e a preservação do território (1799-1897) FRANCISCO LEVI JUCÁ SALES 1 Introdução Para chegar à concepção deste trabalho de pesquisa, o desafio antecedeu, e muito, o encontro com as fontes que o amparam. Conhecer mais da história da Serra de Baturité e suas peculiaridades foi consequência da trajetória que percor- ro nos últimos doze anos de minha vida pessoal e profissional, como professor e historiador em Pacoti, município situado sobre a mesma Serra, onde resido, trabalho e publiquei o primeiro livro sobre a história da cidade, de minha autoria. Em 2007, mobilizamos a criação de um grupo de estudos da história e memória locais, com objetivos de promoção da cultura, defesa e conservação do patrimô- nio histórico da região do Maciço de Baturité que resultou, dentre outros feitos, na implantação do Arquivo Público Municipal. Em 2014, enquanto ministrava aulas de história do Brasil na Escola Estadual de Ensino Médio Menezes Pimentel, idealizei a proposta de uma releitura da Imperial Comissão Científica de Exploração que veio ao Ceará no século XIX, che- fiada pelo médico e botânico Francisco Freire Alemão, que também passou pela Serra de Baturité. Daí nasceu o projeto “Jovem Explorador” pela formação de uma comissão científica composta por estudantes, na qual nos subdividimos a partir das seções como na antiga expedição (botânica, zoológica, geológica, etc.) para investigarmos a paisagem do entorno. Meses depois, nossa proposta de inicia- ção científica passava a dialogar com os campos da museologia social, educação patrimonial e ambiental, levando à materialização do Ecomuseu de Pacoti, com- preendendo o município como um museu à céu aberto, cuja coleção é o patri- mônio existente no território e o seu público é a comunidade local que passou a compartilhar das descobertas do grupo. 1 Doutorando em Educação, PPGE/FACED, Universidade Federal do Ceará – UFC / Linha de pesquisa: História e Educação Comparada / Eixo temático: Instituições, Ciências e Práticas educa- tivas; Mestre em História e Culturas, Universidade Estadual do Ceará – UECE.

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Cientistas e Expedições na Serra de Baturité – CE: pesquisa e intercâmbio entre o uso e a preservação do território (1799-1897)

FRANCISCO LEVI JUCÁ SALES1

IntroduçãoPara chegar à concepção deste trabalho de pesquisa, o desafio antecedeu, e

muito, o encontro com as fontes que o amparam. Conhecer mais da história da Serra de Baturité e suas peculiaridades foi consequência da trajetória que percor-ro nos últimos doze anos de minha vida pessoal e profissional, como professor e historiador em Pacoti, município situado sobre a mesma Serra, onde resido, trabalho e publiquei o primeiro livro sobre a história da cidade, de minha autoria. Em 2007, mobilizamos a criação de um grupo de estudos da história e memória locais, com objetivos de promoção da cultura, defesa e conservação do patrimô-nio histórico da região do Maciço de Baturité que resultou, dentre outros feitos, na implantação do Arquivo Público Municipal.

Em 2014, enquanto ministrava aulas de história do Brasil na Escola Estadual de Ensino Médio Menezes Pimentel, idealizei a proposta de uma releitura da Imperial Comissão Científica de Exploração que veio ao Ceará no século XIX, che-fiada pelo médico e botânico Francisco Freire Alemão, que também passou pela Serra de Baturité. Daí nasceu o projeto “Jovem Explorador” pela formação de uma comissão científica composta por estudantes, na qual nos subdividimos a partir das seções como na antiga expedição (botânica, zoológica, geológica, etc.) para investigarmos a paisagem do entorno. Meses depois, nossa proposta de inicia-ção científica passava a dialogar com os campos da museologia social, educação patrimonial e ambiental, levando à materialização do Ecomuseu de Pacoti, com-preendendo o município como um museu à céu aberto, cuja coleção é o patri-mônio existente no território e o seu público é a comunidade local que passou a compartilhar das descobertas do grupo.

1 Doutorando em Educação, PPGE/FACED, Universidade Federal do Ceará – UFC / Linha de pesquisa: História e Educação Comparada / Eixo temático: Instituições, Ciências e Práticas educa-tivas; Mestre em História e Culturas, Universidade Estadual do Ceará – UECE.

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O conceito de patrimônio integral, ou global (VARINE, 2012), que rompe com a ideia de que natureza e cultura estão dissociadas, como se a experiência huma-na fosse isenta da relação com o meio (WORSTER, 2003), me fez encontrar meu lugar na pesquisa de história da ciência e ambiental, na busca de compreender essa área de exceção em pleno sertão cearense, microclima de mata atlântica de rica biodiversidade e atual fragilidade. Como capítulo à parte da história social e econômica nordestina do litoral e das planícies sertanejas, o uso e ocupação das serras úmidas de difícil acesso e densas matas foram tardios. Se deu ora pela ocorrência das grandes secas que obrigavam a busca dessas zonas de refrigério de vales férteis e nascentes e, definitivamente, pela introdução do café.

O maciço de Baturité, também conhecido como serra de Baturité, é o maior e mais representativo relevo residual cristalino do estado do Ceará. [...] uma área de “relí-quia vegetacional”, pela importância biológica, ou “refúgio do sertanejo”, pelo po-tencial de uso extrativista e agrícola. [...] sendo considerada de grande importância na manutenção da biodiversidade e dos recursos hídricos. (OLIVEIRA, 2007)

Nesse sentido, levando em conta que minha trajetória escolar caminha pa-ralelamente à pesquisa no campo da história da ciência e ambiental, percebi que seria possível desenvolver dois projetos. A primeira escolha seria a de analisar e discutir a metodologia dessa prática educativa de iniciação científica na educa-ção básica que resultou na implantação do Ecomuseu de Pacoti. Contudo, seria uma pesquisa que ficaria limitada às ações do projeto, por não poder avançar no conteúdo da ecologia, da diversidade biológica e da conservação, que também é minha preocupação e atuação. A segunda opção, que escolhi e adiante delimito sua temática e problematização, é a proposta sobre as expedições científicas de campo que visitaram a Serra. Acredito que as descobertas advindas dessa inves-tigação trarão elementos enriquecedores para o Ecomuseu que, com sua meto-dologia própria e inovadora, possam embasar as discussões para avançarmos nas questões já mencionadas, além da educação ambiental e possíveis encaminha-mentos nas políticas públicas e de proteção voltadas para esse ecossistema que resiste diariamente.

O legado das expedições: fontes e possibilidadesA carência bibliográfica e documental justifica inconsistências e inúmeras la-

cunas na historiografia dessa região. Contudo, no levantamento de fontes que venho empreendendo, localizei diversos documentos inéditos provenientes tanto de acervos particulares como daqueles custodiados por instituições de pesquisa nacionais e internacionais, dentre os quais destaco diários, desenhos, relatórios, questionários e demais publicações produzidas por cientistas e expedições que excursionaram pelo Ceará e, em especial, estudaram a Serra de Baturité entre os séculos XIX e XX. Nesse período, a exaltação provocada pelo avanço da ciência moderna era capaz de revolucionar o mundo com uma tecnologia cada vez mais eficaz: “saber é poder”. Esse entusiasmo positivista desembocou no cientificismo,

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visão reducionista segundo a qual a ciência seria o único conhecimento váli-do (ARANHA, 2006, p. 205). No esforço de compreender e dominar a natureza, esses homens e suas instituições não só produziram teorias, descrições e leis sobre áreas geográficas, fenômenos naturais, espécies e costumes, como, para isso, foram necessários intercâmbios iniciados com intelectuais, governantes e habitantes comuns dos lugares explorados, a exemplo do importante auxílio dos mateiros, pouco lembrados, porém fundamentais para o processo de coleta e re-gistro de usos de elementos da natureza, desmistificando o possível fosso entre o senso comum e a ciência.

Partindo do registro de espécimes, observação de paisagens e seus com-ponentes, dentre outras questões de interesse científico, o grande objetivo da ciência era tomar a natureza como simples instrumento da produção econômica, mercantilizando a terra, descobrindo suas riquezas e mapeando suas potencia-lidades. Os fundamentos da clássica oposição entre economia e meio ambiente, são encontrados em construção já nos oitocentos quando também notamos a preocupação de alguns cientistas quanto ao impacto gerado pela destruição das florestas, cujas consequências afetariam o clima, ocasionando a diminuição das precipitações e fazendo desaparecer os mananciais. Freire Alemão registrou em seu diário, sua primeira impressão ao chegar sobre a Serra:

Fiquei surpreendido ao ver o alto da Serra de Baturité, de que eu não fazia ideia exata. É uma vastíssima esplanada, toda eriçada de montes, bem semelhante à nossa grande Serra do Mar. Diz-se que esta [Serra] de Baturité tem cinco léguas de largo sobre oito de comprimento, isto é, 40 léguas quadradas! Tudo coberto de grandes matas, comparáveis com as nossas do Rio; mas que vão sendo destruídas, ou antes já estão em grande parte devastadas; com águas correntes pelas quebradas, ar fresco e saudável, terra excelente para café. (ALEMÃO, 2011, p. 444)

A Serra de Baturité, de inúmeras cabeceiras, riachos perenes e boas matas a se conservar, era também percebida, em termos geomorfológicos, como promis-sora na produção agrícola, principalmente do café que, inviável na caatinga, se adaptava perfeitamente aos solos férteis, clima ameno e pluviosidade favorável da montanha. Das quebradas aos vales, das encostas às croas compondo zona fertilíssima, esse “celeiro do Ceará” que mereceu uma ferrovia que leva seu nome para escoar sua produção ao porto da capital, ainda enfrenta hoje conflitos de in-teresses de uso ou preservação. Esta necessidade de produzir um conhecimento que favorecesse as relações comerciais típicas do capitalismo liberal em expansão em escala mundial foi muito almejada no período (OLIVEIRA, 2017, p.217).

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FONTE: Visão do alto da Serra de Baturité, durante a floração do pau d’arco amarelo, 2016, Gua-ramiranga – CE. Registro e acervo do autor.

O naturalista seria o cientista que, diferente do especialista, estuda a nature-za em seu conjunto (PAIVA, 2002). A ciência daquele período, em formação, ainda admitia esses eruditos que, por essa visão mais larga, aventuravam-se em suas narrativas de viagem a tratar da geografia à etnografia, da zoologia à astronomia, contribuindo para o projeto de elaboração da história nacional de um país jovem em sua soberania e de riquezas a se registrar, apoiados por instituições como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, inaugurado em 1838, que igual-mente buscava inserir a nação no círculo científico internacional (PORTO ALEGRE, 2003). Na conjuntura em que a expansão escolar e a afirmação da ciência se constituíam como pilares fundamentais do progresso, não apenas os naturalistas, mas outros tantos intelectuais participavam dessa produção científica em prol do desenvolvimento econômico e social do país. No Ceará, podemos citar alguns dedicados a essa produção sobre os aspectos locais, e que, também, foram im-portantes interlocutores de sua época junto a cientistas nacionais e estrangeiros, a saber o senador Thomás Pompeu de Souza Brazil (1818-1877), o Dr. Guilherme Chambly Studart (1856-1938) e o Prof. Francisco Dias da Rocha (1869-1960).

Para demonstrar a viabilidade da presente proposta de pesquisa, dispomos de um levantamento inicial dos cientistas que visitaram e produziram sobre a Serra de Baturité entre os anos de 1799 e 1910, o que justifica nosso recorte tem-poral. O registro mais remoto é da chegada ao Ceará do naturalista fluminense João da Silva Feijó (1760-1824), cujo primeiro destino foi a então Vila Real de

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Monte-mor o Novo da América (atual cidade de Baturité), no ano de 1799, pelo interesse na pesquisa de minerais, razão da escolha pela região montanhosa. Depois, a vinda da já citada e mais importante expedição científica a estudar o Ceará oitocentista entre os anos de 1859-1861, concebida pelo IHGB e apoiada pelo governo de Pedro II. Seus membros também estudaram a região do Maciço nos temas de botânica, geologia, mineralogia e zoologia, destacando a passagem dos naturalistas Francisco Freire Alemão de Cisneiros (1797-1874) e seu auxiliar e sobrinho Manoel Freire Alemão de Cisneiros (?-1863), tendo esse último deixado anotações recém descobertas que estou transcrevendo, pelos municípios de Mu-lungu, Guaramiranga e Baturité.

FONTE: Comparação entre as caligrafias de Manoel Freire Alemão (1) e Francisco Freire Alemão (2) a partir de manuscritos avulsos e correspondências sobre a Serra de Baturité, 1861, Ceará.

Fundação Biblioteca Nacional.

Já no final do XIX, outro cientista que passou por Guaramiranga foi o suíço Jacques Huber (1867-1914), que trabalhou no Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, realizando levantamentos botânicos e fotográficos em 1897; seu diário, ainda inédito, foi transcrito e traduzido do alemão através da parceria dos seus herdeiros e o Ecomuseu de Pacoti. Encerrando o ciclo desses cientistas pioneiros, citamos ainda o botânico Adolfo Ducke (1876-1959) de origem austro-húngara e radicado no Brasil, discípulo de Huber, que pesquisou a Serra e os sertões pró-ximos na primeira década do século XX, dando continuidade e aprofundando os estudos iniciados pelo mestre.

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FONTE: ALLEMÃO, Francisco Freire. Carta topográfica da Serra de Baturité e adjacências, Manuscritos da Imperial Comissão Científica de Exploração, 1861, Ceará. Fundação Biblioteca Nacional.

Na perspectiva do determinismo biológico, geográfico e histórico, que em de-corrência do positivismo atribuía ao comportamento humano as mesmas relações invariáveis de causa e efeito das leis da natureza, entre as ciências, a física, a quími-ca e a biologia seriam as mais importantes, prevalecendo interesse pelas questões utilitárias, viabilizadas pelo poder do homem sobre o meio. Assim, os estudiosos das ciências naturais acabam por conquistar maior espaço nesta pesquisa, todavia pretendemos considerar também a atuação de outros intelectuais, acadêmicos e empreendedores que podem ter trabalhado, registrado informações ou até reali-zado intervenções no território em questão, como engenheiros responsáveis pela Estrada de Ferro de Baturité e as vias de rodagem, presidentes de província que excursionaram pessoalmente na Serra de Baturité (Dr. Lafayete Rodrigues, Barão Homem de Mello, etc.), literatos, professores (que fundaram internatos particulares prometendo ares de salubridade à juventude estudantil), clérigos, médicos (que consideravam a Serra um sanatório natural, àqueles que padeciam de tuberculose outras males respiratórios) e agrônomos, representantes de entidades privadas in-ternacionais como Boris Frères & Cia, Michellin e London Brazilian Bank através do fomento de tecnologias e introdução de inovações agrícolas e industriais.

Diante desse panorama mais amplo, são muitas os questionamentos a ser respondidos. Quem foram esses cientistas, seus interesses e apoiadores? Quais foram suas descobertas e o que puderam concluir ao conhecer e comparar as especificidades da região serrana a partir de suas referências socioculturais e aca-dêmicas? De que maneira, desconstruíram o estereótipo de um Ceará pobre e desértico? Quais trocas fizeram, com quem dialogaram? O que defendiam? Que legado deixaram?

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Percursos teóricos entre ciência e educação: rede de colaboradores, intercâmbio e produção de conhecimentoA primeira percepção ao aprofundar os estudos em educação comparada é

a de que a educação vai muito além das paredes de uma sala de aula e da pró-pria escola. O processo educativo, de ensino-aprendizagem, é apenas a ponta do iceberg de contextos políticos, sociais, ideológicos, geográficos, econômicos, culturais, que definem os “modos de ver o mundo”, os métodos, interesses e conflitos presentes nos currículos e seus conteúdos. A comparação em educação tem sentido quando a leitura dos aspectos comuns e das diferenças relativas a uma problemática fornecem informações mais significativas que as resultantes de uma leitura dessa mesma problemática num só contexto, daí a necessidade de outros dados, da compreensão de outros discursos. A colaboração e a parti-cipação de diversos especialistas das ciências sociais têm contribuído fortemente para enriquecer a educação comparada (FERREIRA, 2008).

Trata-se de iluminar um objeto ou situação a partir de outro, mais conhecido, de modo que o espírito que aprofunda essa prática comparativa dispõe-se a fazer ana-logias, a identificar semelhanças e diferenças entre duas realidades, a perceber va-riações de um mesmo modelo. Por vezes, será possível ainda a prática da iluminação recíproca, um pouco mais sofisticada, que se dispõe a confrontar dois objetos ou realidades ainda não conhecidos de modo a que os traços fundamentais de um po-nham em relevo os aspectos do outro... (BARROS, 2014, p. 17)

Assim, a Educação Comparada é múltipla e complexa, acercando-se neces-sariamente de conhecimentos provenientes de outras áreas científicas, nomea-damente da história, da sociologia, da economia, dentre outras especialidades. A utilidade da pluralidade de disciplinas é provavelmente um dos aspectos de maior consenso entre os pesquisadores da Educação Comparada, o que não sig-nifica que, por isso mesmo, não constitua ainda um desafio. Esse diálogo, que passa a ser transdisciplinar, nos interessa sobremaneira quando, no presente, pretendemos discutir sobre a concepção das antigas expedições científicas e aprender com elas não apenas na perspectiva biológica, haja vista que parte de suas teorias científicas já estariam refutadas e obsoletas, mas, como argumenta a história da ciência, a compreender melhor como funcionaram e seguem fun-cionando os diversos caminhos do conhecimento científico, suas controvérsias e resultados, mesmo quando considerados errados, uma vez que o estudo desse passado está em aberto (MARTINS, 2005). A história da ciência, que muito se aproxima das questões levantadas pela história ambiental, tem por objeto o co-nhecimento científico como fenômeno social, econômico e cultural.

Seguindo o modelo humboldtiano, em meados do século XIX, as viagens científicas foram reinventadas como empreendimentos transdisciplinares de coleta de dados e de novos desenhos e conhecimentos e desenvolvimento político e econômico dos estados nacionais. (KURY, 2008, p. 51)

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As investigações em ciências naturais, mesmo que nem sempre lembradas na base da construção do Estado Nacional (Imperial) brasileiro, que mantivesse seu imenso território íntegro e unificado, é um fato que demonstra que longe de um espírito positivista, não se trata aqui de encarar o passado das ciências como um repositório, conforme mencionado, de teorias defasadas, autores esquecidos e experiências ultrapassadas, desfilando nomes, datas e achados. Mas, talvez, por se considerar o contrário, é que se justifiquem as tantas lacunas existentes nas pesquisas das ciências biológicas, no que diz respeito à questão antrópica, a ação do homem sobre o meio, ao longo do tempo. Dados meramente informativos que, na maior parte das vezes, estão resumidos aos parágrafos introdutórios que, com fragilidade, situam os temas desenvolvidos sobre biomas, ecossistemas, ta-xonomia, espécies endêmicas etc., sem levar em conta sua historicidade. Afinal, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja mais sutil esforçarmo-nos por compreender o passado, se nada sabemos do presente” (BLOCH, 1965 p.42).

E a educação participa, atravessa e acontece em todas essas esferas. No que concerne ao intercâmbio, um aspecto a ser discutido é a capacidade de interlo-cução da comunidade de cientistas e profissionais locais, incluindo os quaisquer outros habitantes, “que não reproduzem nem mimetizam, simplesmente, uma ciência ‘de fora’, mas se constituem como produtores e agentes, nós das redes pelos quais a construção do conhecimento teve que, obrigatoriamente, passar” (MAIO, 2010). A passagem das expedições pelo Ceará contribuiu para o reco-nhecimento de paisagens e suas potencialidades, viabilizando novas pesquisas e projetos políticos e econômicos, e em alguma medida, influenciou no campo social através da troca de saberes e práticas.

Desta feita, pesquisar sobre a formação natural e cultural de uma região es-pecífica como a Serra de Baturité, no nordeste brasileiro, aponta para a impor-tância das análises comparadas para a compreensão das singularidades históricas e para a necessidade de elaboração de pesquisas comparativas entre as diversas regiões e localidades, de maneira a matizar entendimentos históricos sobre a ciência, a educação e a produção do conhecimento no Brasil, construídos parti-cularmente pela ótica da investigação na região sudeste, historicamente o centro político e econômico do país.

ReferênciasALEMÃO, Francisco Freire. Diário de viagem. Fortaleza: Fundação Waldemar Al-cântara, 2011. (Projeto Obras Raras)

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. História da Educação e da pedagogia: geral e Brasil. São Paulo: Moderna, 2006.

BARROS, José D’Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014.

BLOCH, Marc. Introdução a História. Lisboa: Publicações Europa – America, 1965.

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FERREIRA, António Gomes. O sentido da Educação Comparada: Uma compre-ensão sobre a construção de uma identidade. Educação. Porto Alegre, v. 31, n. 2, p. 124-138, maio/ago. 2008. Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/2764/2111. Acesso em 22/03/2019.

KURY, Lorelai (Org.). Comissão Científica do Império, 1859-1861. Rio de Janei-ro: Andrea Jakobsson Estúdio, 2009.

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MARTINS, Lilian Al-Chueyr Pereira. História da ciência: objetos, métodos e pro-blemas. Ciência & Educação, v. 11, n. 2, p. 305-317, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v11n2/10.pdf Acesso em: 15/03/2019.

OLIVEIRA, Almir Leal de. O Clima e o Tempo: as Observações Meteorológicas de Thomás Pompeu no Ceará em Meados do Século XIX. In: CAVALCANTE, Ma-ria Juraci Maia Cavalcante; HOLANDA, Patrícia Helena Carvalho e outros (ORG.). História de Corpo, Religião e Educação. Fortaleza: Edições UFC, 2017. (Coleção História da Educação)

OLIVEIRA, Teógenes Senna de. Diversidade e conservação da biota na Serra de Baturité, Ceará. Fortaleza: Edições UFC; COELCE, 2007.

PAIVA, Melquíades Pinto. Os naturalistas e o Ceará. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2002.

PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Comissão das Borboletas: a ciência do império entre o Ceará e a corte. Fortaleza: Museu do Ceará, 2003.

DE VARINE, Hugues. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvol-vimento local. Trad. de Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012.

WORSTER, Donald. Transformações da terra: para uma perspectiva agro-ecológica na história. Ambient. soc., Campinas, v. 5, n. 2, p. 23-44, 2003. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-d=S1414-753X2003000200003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 04/04/2019.