FREIRE, MARCIUS Jean Rouch, Um Antropólogo-cineasta

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    61Somanlu, ano 7, n. especial 2007

    Entrevista com Marcius Freire

    Gustavo Soranz(NAVI) Convidamos voc para falar do cinema do Jean Rouchporque a gente v os antroplogos falando o tempo todo do cinema dele naperspectiva da antropologia, usando seus filmes para discusses na rea daantropologia, e voc tem formao na rea de cinema e estudou o cinema de JeanRouch sob o ponto de vista da cinematografia. Afinal, o que essa coisa de

    antropologia visual: dois campos do saber, duas reas?Marcius Freire Uma definio difcil, mas vamos por partes. Comear pelosfilmes do Jean Rouch, sobre Jean Rouch na verdade, mais do que sobre seus filmes.

    Acho que to importante quanto seus filmes sua prpria postura diante dessecampo. Os filmes so importantes e disso no resta a menor dvida, mas ele temesse trao na sua carreira, que de ter sido ele prprio um incentivador decinematografias, notadamente na frica, e um empreendedor, algum que gostavade enfrentar desafios. Ento, com esse trao da sua personalidade, de criar desafiospara enfrent-los, ou seja, no se tratava apenas de enfrentar os desafios que apareciam,mas criar constantemente novos desafios com os quais se bater, ele envolveu-se com

    experincias as mais variadas. Um bom exemplo disso foi sua iniciativa de fazerfilmes em super-8 na frica, em Moambique, logo depois da independncia, em1975. E foi uma experincia que associou o Ministrio das Relaes Exteriores daFrana e a Universidade de Paris X Nanterre, que se desdobrou em vrios pases,inclusive no Brasil, em associao com a Universidade Federal da Paraba. Souberecentemente que essa iniciativa perdura at hoje em pases como a Colmbia. Hdois ou trs anos, no Festival de Curtas-Metragens de So Paulo, encontrei-me comuma representante desse movimento, algum que era coordenadora do laboratrioem Bogot. Trata-se, ento, da permanncia de uma iniciativa de Jean Rouch, quecomeou h mais de trinta anos.

    Esse trao da sua personalidade levava a que, justamente e essa a segundaparte da sua pergunta , ele considerasse que o cinema antropolgico no era umcampo ou um domnio exclusivo de antroplogos. Tanto que a formao e aqui

    vai tambm mais uma de suas iniciativas que at hoje d frutos que foi a criao, namesma poca da experincia moambicana, do doutorado em cinema naUniversidade de Nanterre. Rouch estava l como o grande patro dessa iniciativa. E

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    por l passaram pessoas que tinham as mais e continuam tendo, inclusive, pois issotambm perdura at hoje , diversas formaes, que inclusive o meu caso: algumque tinha formao em cinema e foi fazer doutorado em cinema antropolgico. Ehavia tambm psiclogos, historiadores, socilogos, antroplogos, enfim, estudantesoriundos dos mais diversos horizontes acadmicos. E por qu? Porque Jean Rouchconsiderava que esse campo um campo multidisciplinar e essa a minha opiniotambm. Esse um campo multidisciplinar, ele vai existir, vai se desenvolver cada

    vez mais se ele tiver a participao de especialistas dos mais diversos campos. Acantonar

    esse campo, esse domnio, junto a uma disciplina qualquer colocar-lhe amarras,num momento em que todas as disciplinas esto soltando suas amarras. Ento, nomeu entender, a antropologia visual um campo multidisciplinar por excelncia.

    Agora, com relao ao intitulado do campo, que a terceira parte da suapergunta: antropologia visual. Quer dizer, antropologia visual, relaes cinema ecincias humanas, cinema e humanidades, existem vrias denominaes para essemesmo campo. Antropologia visual um termo, uma expresso, uma denominaoque, na verdade, vem sofrendo, no apenas questionamentos, mas questionamentosepistemolgicos. No livro a que me referi [no curso], que no to recente assim, poisfoi publicado em 1997, cujo ttulo Rethinking Visual Anthropology, os organizadores,Marcus Banks e Howard Morphy, questionam justamente essa idia de que aantropologia visual seja um campo apenas de estudo da antropologia feita por, - ouque se serve de - instrumentos de registro, instrumentos tcnicos como o vdeo, ocinema, a fotografia, e abre completamente o leque dizendo: no, a antropologia

    visual pertence ao domnio dos estudos das manifestaes visveis, ou seja, praticamentetudo. Literalmente, eles dizem: Antropologia visual, tal como ns a definimos, tornou-se a antropologia dos sistemas visuais ou, mais amplamente, das formas culturais

    visveis. Quer dizer, tudo que do domnio do visvel: a pintura, a escultura, ocinema, a fotografia, no importa, tudo que do domnio do visvel seria, ento,

    parte desse enorme campo de estudos que seria a antropologia visual. Bom,voc pode concordar ou no concordar com essa definio, para mim ela um

    pouco exagerada em termos de abrangncia, mas a rigor, voc pode considerar

    que a antropologia visual uma antropologia que se ocupa daquilo que visvel.

    Por que no?

    Ns temos outra postura que eu considero interessante. No a nica, mas aquela que, para mim, a mais conseqente; isso em relao a esse nosso campo

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    Marcius Freire

    especfico, que foi aquele que ns discutimos aqui durante esses dias todos: o filmeetnogrfico. A ns vamos fazer um recorte muito mais preciso nesse campo to

    vasto, um recorte que leve em conta, mais especificamente, as imagens em movimento,sejam elas produzidas ou tendo como suporte a banda magntica, ou seja, o vdeo,a pelcula ou o suporte digital, no importa, o que importa que so imagens emmovimento na sua relao com o estudo do homem, do ser humano. Segundo essaproposta, existe uma disciplina que tem como foco essas relaes, uma disciplinaque se chama Antropologia Flmica. Deixemos de lado a antropologia visual, estamos

    falando de Antropologia Flmica, que seria, em rpidas palavras, o estudo do homem,o homem visto no mundo histrico, mas esse homem que tambm est presentenuma determinada imagem que foi produzida por algum, at por ele prprio.Ento estamos diante do estudo do homem e da imagem do homem, e a partirdessa relao entre esse homem que est no mundo histrico, homem aqui consideradocomo ser humano, e esse ser humano filmado. a nessas relaes que se situa oobjeto dessa disciplina, que seria a Antropologia Flmica. Eu acho interessante comoproposta, uma proposta feita h muitos anos por Claudine de France, que, estoucerto, tem muita pertinncia e nos ajuda a nos situarmos melhor nesse mundo to

    vasto que a antropologia visual tal como a vimos acima.Gustavo Jean Rouch uma expresso disso, no? Aquela histria: um cineasta? um antroplogo? Algum que propunha uma antropologia compartilhada com ooutro, no s indo registrar, mas ouvindo o ser humano do outro lado, deixando elefalar.Marcius Freire , inclusive ele se ressentia de, muitas vezes, ser consideradoapenas um cineasta e no ser considerado tambm um antroplogo, o antroplogoque ele era, com um doutorado dirigido por Marcel Griaule, que em termoscronolgicos, em termos histricos, um dos primeiros cineastas-antroplogosfranceses. Marcel Griaule, com quem ele estudou os Dogon.

    Mas ele vivia essa dupla vida: antroplogo, cineasta, para alguns mais cineastado que antroplogo. Hoje se descobre que ele deixou tambm, no campo daantropologia, uma contribuio enorme. Muitos j dizem e outros j disseram hmais tempo que ele tem uma contribuio muito efetiva para a antropologiafrancesa, sobretudo a antropologia da frica negra. Ento ele era um homem, comoeu disse l no comeo, que adorava criar desafios, de enfrentar desafios e um homemmultidisciplinar por excelncia. Ele, decididamente, no aceitava essa idia de acantonar

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    Jean Rouch, um antroplogo-cineasta

    o filme antropolgico em um campo determinado. E eu, pessoalmente, acho quefazer isso extremamente redutor e d pouco alcance ao debate.Gustavo E a superao dos desafios por parte dele, como voc esta falando, noera s nos limites entre os campos, mas tambm tem uma coisa com relao forma do filme, no ? Parece-me que ele contribuiu mesmo na formulao dascmeras, do som direto, e na idia de como que aquilo tinha que funcionar,experimentando nos filmes como aquilo podia ser melhorado. Coisas que mudavambasicamente a postura do cineasta em relao ao objeto, mudavam todas as

    possibilidades do filme documentrio.Marcius Freire interessante voc tocar nesse assunto porque justamente napoca em que ele comeou os atelis a que me referi antes, em meados dos anos 70,com a experincia de Moambique, o vdeo ainda no era to desenvolvido; ele jexistia, mas no era de to fcil acesso. A idia ento era fazer filmes com meios maismodestos, pois o 16mm era muito caro. Foi assim que ele comeou essa experinciacom o super-8, e a entra tambm a questo da inovao: ele foi ao Japo para falarcom os fabricantes de equipamentos. Naquela poca, alis, hoje em dia as coisas nomudaram muito, pois as cmeras de vdeo, em sua grande maioria, so japonesas.Como eu dizia, naquela poca os equipamentos super-8 tambm erampredominantemente japoneses: Sankyo, Sanyo, enfim, marcas japonesas. Ele foijustamente propor, tentar motivar os fabricantes a desenvolver um sistema de sommais eficiente, porque o som do super-8 era gravado diretamente na pelcula. Primeirohavia uma defasagem de alguns fotogramas entre a imagem e o som, o que tornavaa montagem um verdadeiro inferno, pois a pessoa falava e o som correspondente sua fala ia estar alguns quadros frente. Tampouco existiam chassis que comportassemmais de dois minutos e meio de pelcula. Ento, ele foi ao Japo para tentar convencer,estimular, enfim, persuadir os fabricantes a fazer um sistema que no fosse to amador.Ele disse que ouviu um nietdos japoneses. Ele diz nietporque, segundo declara, no

    sabe dizer noem japons. Os japoneses teriam lhe dito: Olha, ns no temosinteresse algum nos seus problemas, o nosso negcio fazer cmera para amadores,para pessoas que vo filmar festas de aniversrio, piquenique no parque, no me

    venha com essas suas histrias de profissionais E no deu certo. Mas, com algunsamigos como Beauviala e o fabricante francs Beaulieu, ele chegou a desenvolvertambm equipamentos que, como voc diz, evidentemente influenciaram a posturado cineasta diante daquilo que vai ser objeto de seu registro.

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    Marcius Freire

    Gustavo(sobre a Mostra Amaznica do Filme Etnogrfico) A idia de pensar osolhares sobre a Amaznia, sobre seus povos, essa regio que sempre foi pensada erepresentada sob olhos do estrangeiro, signos de exotismo e essa coisa toda quedestacava essa exuberncia da natureza em detrimento de qualquer idia de populao.Essa idia naturalista que at hoje permeia as estratgias de intervencionismo na

    Amaznia, como se a regio fosse um manto verde de natureza e no existissempessoas, como se no existisse cultura, um lugar aculturado...Marcius Freire Isso verdade, e no s com relao viso do estrangeiro. A

    viso do estrangeiro est presente em boa parte das imagens que se tem do Brasil.Quando no so feitas por ele, so feitas pensando nele. A imagem um poucoessa: vamos preservar a Amaznia, temos de acabar com o desmatamento, com asqueimadas. E essas pessoas que moram por baixo, como voc disse, desse tapete

    verde? Como que elas vivem? Quais so as suas necessidades? Como que elasesto integradas a esse pas chamado Brasil?

    Eu acho que a iniciativa de vocs, no sentido de justamente mostrar essapopulao, fundamental, porque nesses dias que aqui fiquei, eu fiz questo de vertodos os filmes, s vezes voc pode at questionar os filmes, tem filmes que somelhores do que outros, tem filmes que so muito longos, tem filmes que tmproblemas tcnicos, tem filmes que tm problemas de linguagem, de edio, enfim,mil problemas, mas uma coisa comum a todos esses filmes: voc descobre esseoutro que est, para usar a sua expresso, embaixo desse tapete. E quem estdescobrindo isso so brasileiros como eu. Por qu? Porque esses filmes tm, muitas

    vezes, foco em coisas muito precisas. Coisas que s vezes poderiam passardespercebidas em filmes feitos para a televiso ou para exportao. Mas, aqui nessenosso contexto, s vezes temos filmes que se dedicam a questes que so, digamosassim, menores se levarmos em conta os destinatrios a que acabamos de nos referir.Ento, atravs desses filmes, de repente nos aproximamos dessas populaes.

    Comeamos a penetrar nos problemas com os quais elas se deparam no seu dia-a-dia, e com outros que s vezes o filme no mostra, mas que nos so sugeridos apartir dos dados que nos so fornecidos por esses personagens magnficos, que sopessoas que tem uma tradio oral fantstica. Eu vi filmes aqui, filmes que eu consideroruins, filmes que no foram obrigatoriamente feitos por pessoas locais, da regioamaznica, mas que tinham depoimentos incrveis dessas pessoas; e s aquelesdepoimentos valem o filme. Independentemente das suas pretenses que s vezes

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    so apenas pretenses, ou seja, filmes pretensiosos , com uma viso muito externae algo folclrica, como Parteiras da luz, por exemplo, mas os personagens quefazem parte desses filmes, que neles so entrevistados, s vezes de uma forma poucotica ou pouco respeitosa, compensam o mal-estar que o tratamento que lhes dispensao cineasta possa nos causar. A maneira como essas pessoas falam, como elas seexpressam, e o mundo que elas trazem atravs do verbo e das suas expresses, asabedoria natural que revelam, so de uma eloqncia extrema. E esse talvez omais fantstico papel do filme documentrio: trazer at ns esse mundo.

    Mas, existem ainda outros tipos de filmes cujos diretores no so da regio,mas que tm com ela um outro tipo de relao. Seus filmes no so exercciosnarcseos onde o outro serve apenas para colocar em evidncia sua prpria afetao.

    Tal o caso de Jorge Bodanzky, que no daqui, mas trabalha com esta regio ecom seu povo, h quantos anos! Seus filmes so um testemunho da relao afetivaque ele tem com a Amaznia.Gustavo Existe um comprometimento, uma postura dele enquanto realizador,com o tema, com as populaes daqui, com as histrias daqui. No somente chegarcom pretenses e intenes e por aqui passar. Voc v que a recorrncia do tema da

    Amaznia na obra dele mostra isso, uma coerncia, um compromisso em, de algumamaneira, tratar da complexidade da Amaznia.Marcius Freire isso mesmo! E a, j que o nosso tema era Jean Rouch nocomeo dessa conversa, foi o que fez Jean Rouch na frica do oeste. Ele no africano, ele francs, mas conseguiu como ningum retratar aquela populao.

    Mutatis mutantis, um pouco o que faz o Bodanzky com a Amaznia. Outros chegame querem fazer o seu filme, filme que mais um exerccio egocntrico a partir deuma matria-prima que encontrada aqui. Isso tambm acontece na frica e emoutros lugares exticos. Jorge, ao contrrio, como disse acima, mostra a sua relaocom a regio amaznica, assim como Rouch mostrava sua relao com a frica.

    A maior parte dos filmes que vimos aqui nesses dias foi uma verdadeiraimerso nesse mundo to pouco conhecido dos brasileiros que a Amaznia. Amostra de vocs um evento que fazia falta no contexto do filme documentrio noBrasil, notadamente do documentrio etnogrfico. Eu acho que uma iniciativa que

    vocs podem pensar para o futuro fazer esses filmes sarem daqui, circularem. Aspessoas que vm aqui vo v-los, mas importante tambm eles irem ao encontrode pessoas que no vm aqui.

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    Marcius Freire

    Gustavo Uma itinerncia, uma associao com outros festivais.Marcius Freire Exatamente. Se aliar com algumas instituies, de repente a Mostradaqui vai para outros festivais e mostras, como faz o Bilan du film ethnographique. OBilan tem uma parte que itinerante. A organizao faz uma seleo dos filmesparticipantes e cede a instituies, mostras e festivais. Ento isso seria algo a serpensado. Uma maneira de dar a conhecer esse trabalho fantstico que vocs estofazendo aqui em Manaus.