O CANGACEIRO, O CINEASTA E O IMAGINÁRIO

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  • 1UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA

    DEPARTAMENTO DE CINCIAS HUMANAS CAMPUS V

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA REGIONAL ELOCAL

    CAROLINE LIMA SANTOS

    O CANGACEIRO, O CINEASTA E O IMAGINRIO:

    A produo de representaes do cangao no cinema brasileiro (1950-1964)

    SANTO ANTONIO DE JESUS-BAHIA

    SETEMBRO

    2010

  • 2CAROLINE LIMA SANTOS

    O CANGACEIRO, O CINEASTA E O IMAGINRIO:

    A produo de representaes do cangao no cinema brasileiro (1950-1964)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduaoem Histria, da Universidade do Estado da Bahia,Departamento de Cincias Humanas Campus V, comorequisito parcial para obteno do grau de Mestre emHistria Regional e Local, sob a orientao do Prof. Dr.Raimundo Nonato Pereira Moreira.Santo Antonio de Jesus, Bahia, 17 de setembro de 2010.

    Banca Examinadora:

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira (orientador)

    Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

    ________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Santos Silva

    Universidade do Estado da Bahia (UNEB)

    _________________________________________________

    Prof. Dr. Marcelo Ddimo Vieira

    Universidade Federal do Cear (UFC)

    SANTO ANTONIO DE JESUS-BAHIA

    SETEMBRO

    2010

  • 3_________________________________________________________

    S237 Santos, Caroline Lima.O Cangaceiro o cineasta e o imaginrio: a produo de

    representaes do cangao no cinema brasileiro (1950-1964). /Caroline Lima Santos - 2010. 164 f.: il Orientador: Prof. Dr. Raimundo Nonato Pereira Moreira.

    Dissertao (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia,Programa de ps-graduao em Histria Regional e Local, 2010.1. Cinema Brasileiro. 2. Cinema. I. Moreira, Raimundo NonatoPereira. II. Universidade do Estado da Bahia, programa de ps-graduao em Histria Regional e Local.

    CDD: 791.437________________________________________________________

    Elaborao: Biblioteca Campus V/ UNEB Bibliotecria: Juliana Braga CRB-5/1396.

  • 4A Guiomar, a Josefa e a Marisa, as matriarcas que me ensinaram a ser forte.

    A Atos e a Ester, os filhos que me ensinaram a ensinar e a aprender.

  • 5AGRADECIMENTOS:

    Essa dissertao fruto de um esforo iniciado em 2004, quando fiz a matrcula no

    curso de histria e, desde ento, passei a dedicar-me aos ofcios dos (as) historiadores (as).

    Para dedicar-me a tal profisso e na construo de um projeto de pesquisa, tive o apoio

    fundamental da minha famlia e amigas (os), e para desenvolver a pesquisa recebi da

    Fundao de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia e da sua Comisso Cientfica os

    recursos necessrios para hoje apresentar os resultados de 24 meses de trabalho. Por conta

    disso, um muito obrigado FAPESB. Agradeo atriz Vanja Orico e ao cineasta Roque

    Arajo pelas entrevistas e pela ateno dispensada. Quero agradecer a banca examinadora,

    que aceitou com muito carinho o meu convite, a Prof. Dr. Marcelo Vieira Ddimo, Prof. Dr.

    Paulo Santos Silva, aos suplentes Prof. Antonio Mauricio Brito e Prof. Dr. Antnio

    Cmara, obrigada.

    Gostaria de agradecer ao meu pai, Anivaldo Mendes de Lima (in memoriam), que,

    no momento da minha entrada na faculdade, em 2004, deixou de pagar as contas e me

    emprestou o dinheiro da matrcula e por todo apoio. Agradeo com enorme carinho

    Marisa de Arajo Lima, minha me, assessora e defensora, que, enquanto estive ausente

    por conta da pesquisa e da escrita da dissertao, cuidou e criou os meus dois filhos. Sou

    eternamente grata s duas criaturinhas mais fofas do universo:meus filhos, Atos e Ester

    Lima Santos, pela compreenso e carinho. Agradeo tambm aos meus irmos Carlos

    Eduardo e Gabriele de Arajo Lima, que na minha ausncia resolviam o que eu no podia

    resolver; aos queridos tia Silvinha e tio Nilton, que sempre estiveram ao lado da minha

    famlia; e preciso agradecer ao meu querido companheiro e amado Jeremias Ribeiro de

    Souza, que me ajudou nos momentos de ansiedade e de tristeza com o seu jargo: tudo vai

    dar certo, moa!.

    Se a famlia foi importante, os agregados tambm o foram, e existem trs pessoas

    que no inicio das minhas pretenses acadmicas foram fundamentais: Ediane Lopes de

    Santana e Izabel de Ftima Cruz Melo, essas moas sabem tudo de metodologia, e quando

  • 6pensei em desistir, ambas me mostraram que a perseverana faz a diferena; e o rapaz que

    me atura desde a graduao, o Professor Doutor Raimundo Nonato Pereira Moreira, meu

    querido orientador. Esse moo me ensinou a ser pesquisadora e a importncia do trabalho

    da (o) historiadora (o), a ser responsvel, organizada e competente. Obrigada.

    Quero agradecer queles que fizeram essa dissertao possvel, me emprestando

    livros, tempo e ateno. Pessoas que corrigiram meu projeto no perodo da seleo e cujas

    sugestes foram to importante que hoje estou aqui, so elas: a minha querida professora de

    teoria, Iacy Maia; ao professor Eduardo Borges, que me apresentou as primeiras

    bibliografias de histria, cinema e cangao; ao professor Antonio Mauricio Brito e meus

    amigos Igor Gomes e Hilton Coelho, que leram meu projeto ajudando nas correes. A

    vocs, muito obrigada. Quero agradecer tambm aos meus cunhadinhos Guilherme e Jonas

    Ribeiro de Souza, que quando meu computador pifou no meio da dissertao eles cederam

    sua CPU para que eu viesse a terminar esse trabalho, a vocs um obrigada!

    O Mestrado me deu a oportunidade de conhecer novas pessoas e todas elas so

    queridas. As minhas competentes secretarias da Ps-Graduao em Histria Regional e

    Local: Ane Geildes Lobo Vieira Nunes, Consuello Luzia Pereira da Silva e Vilma Braga.

    toda turma de 2008.2, pelos debates em sala de aula e pelas sugestes nas reunies de linha;

    aos professores do mestrado, que contriburam para minha formao. A todos (as) vocs,

    obrigado. Essa dissertao tem um pedacinho de cada uma dessas pessoas e de tantas

    outras.

  • 7LISTA DE ABREVIATURAS

    CPC: Centro Popular de Cultura

    CNC: Conselho Nacional de Cinema

    ESG: Escola Superior de Guerra

    EUA: Estados Unidos da Amrica

    ISEB: Instituto Superior de Estudos Brasileiros

    IBESP: Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Poltica

    IFOCS: Instituto Federal de Obras Contra as Secas

    JK: Juscelino Kubitschek

    PCB: Partido Comunista do Brasil

    PC: Partido Comunista

    SUDENE: Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste

    UDN: Unio Democrtica Nacional

  • 8RESUMO:

    Nos estudos de histria regional e local, depara-se, geralmente, com personagens e fatos

    que ocorreram no serto, espao distante do litoral, tambm chamado de interior. Assim,

    questiona-se, no trabalho ora apresentado, por que personagens como Lampio e Maria

    Bonita esto localizados no espao em questo e como a literatura e a produo

    cinematogrfica, entre os anos de 1950 e 1964, os representou. O objetivo do

    trabalho problematizar os esteretipos e os discursos construdos sobre o serto,

    presentes em determinadas obras literrias e no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto. Essa

    pesquisa utilizou-se de fontes flmicas, jornalsticas, uma fonte oral e fontes bibliogrficas,

    e apresenta um debate terico sobre as interpretaes historiogrficas do movimento do

    cangao e a relao entre histria e cinema, no contexto da insero do Brasil no sistema

    capitalista. Esta anlise ser realizada levando-se em considerao a conjuntura de

    industrializao do pas, que culminou na criao das companhias cinematogrficas. Nosso

    intuito de compreendermos o ciclo de filmes do cangao e os discursos presentes nesses

    filmes, considerando a produo intelectual presente no Instituto Superior de Estudos

    Brasileiros e na Escola Sociolgica Paulista, a qual influenciou diretamente os cineastas. A

    metodologia utilizada para obter os resultados do trabalho partiu do cruzamento das

    anlises do filme O Cangaceiro, de Victor Lima Barreto, da pea teatral Lampio, de

    Rachel de Queiroz e da obra literria Os Sertes, de Euclides da Cunha, notando a presena

    da literatura nos roteiros das pelculas que tratam da temtica sertaneja. A discusso

    proposta compreende que o filme uma fonte possvel na pesquisa histrica, o qual pode

    apontar discursos e representaes. Consideraremos o mesmo como um meio de

    comunicao com a funo de veculo ideolgico, num perodo de consolidao do projeto

    desenvolvimentista pensado nos Institutos e nas Universidades.

    Palavras chaves: Cangao; Representaes; Intelectuais; Cinema; Literatura.

  • 9ABSTRACT

    In the studies of regional and local history, we can often find characters and facts which

    took place in serto a geographic region distant from the coast, also called interior.

    Thus, the present work has questioned why characters like Lampio and Maria Bonita are

    located in the given space and how literature and movie productions between 1950 and

    1964 have represented them. The aim of this work is to problem-pose the stereotypes and

    the discourses built about serto and to present in certain literary works and in the movie O

    Cangaceiro, by Lima Barreto. Besides the bibliography this research has used sources such

    as movies, newspapers, oral testimonials thus presenting theoretical debate about the

    historic interpretations of the cangao movement and the relation between history and

    cinema, in the context of the insertion of Brazil in the capitalism system and its process of

    industrialization which resulted in the foundation of movie companies. , in order to

    understand the cycle of cangao movies and the discourses present in them, considering the

    intellectual production present in the Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Superior

    Institute of Brazilian Studies) and in the Escola Sociolgica Paulista (Sociologic School of

    So Paulo), which has influenced directly the movie makers. The methodology used to

    obtain the results was the crossing of analyses of the movie O Cangaceiro, by Victor Lima

    Barreto, the theater play Lampio by Rachel de Queiroz and the novel Os Sertes by

    Euclides da Cunha, noting the presence of literature in the plots of the movies which talk

    about serto theme. The discussion proposed states that the movie is a possible source in

    historical research, which can point discourses and representations, considering the same as

    a means of communication with the function of a ideological vehicle, in a period of

    consolidation of the development project thought by institutes and universities.

    Key-words: Cangao; Representations; Intellectuals; Cinema; Literature.

  • 10

    SUMRIO:

    Introduo11

    Captulo I - A HISTRIA NO CINEMA E O CANGAO COMOTEMA

    18

    1. Interpretaes sobre o cangao 18

    2. Histria, cinema e representaes 26

    Captulo II - MODERNIZAR, URBANIZAR EINDUSTRIALIZAR: O CINEMA E AS POLTICAS DEDESENVOLVIMENTO

    43

    1. O Brasil e os novos tempos: a dcada de 1950 43

    2. Os anos dourados do cinema brasileiro: A Vera Cruz e aindstria cinematogrfica

    50

    Captulo III - PENSANDO O DESENVOLVIMENTO:INTELECTUAIS, CINEMA E REFORMA AGRRIA

    73

    1. Os intelectuais e a ideologia desenvolvimentista 73

    2. A produo cinematogrfica e a questo da reforma agrria 85

    Captulo IV - O CINEASTA EM BUSCA DA BRASILIDADEPERDIDA: O CINEMA, OS LITERATOS E ASREPRESENTAES DO CANGAO

    99

    1. Victor Lima Barreto e a identidade nacional: O Cangaceiro 99

    2. Um modelo de Serto e de Lampio: As possveis relaes dasobras de Raquel de Queiroz e Victor Lima Barreto

    127

    CONSIDERAES FINAIS 147

    Fontes 150

    Referncias Bibliogrficas 152

  • 11

    INTRODUO:

    H muito tempo se percebeu o potencial do filme, bem como o dafotografia imvel, como fontes histricas.1

    Segundo Burke, o cinema uma fonte possvel para a pesquisa histrica, pois, a

    partir dele, podemos identificar discursos, representaes do passado, analisar as formas

    que determinados fatos histricos so reapresentados no presente. Enfim, as pelculas

    podem dizer muito para o espectador e o historiador.

    Tendo em vista que o sculo XX foi marcado por imagens e por grandes atividades

    culturais, a fotografia, o cinema e a televiso seduziam, e se houve sujeitos que disputaram

    e usaram muito bem o poder da seduo da imagem, de acordo com lise Jasmim2, foram

    os cangaceiros, principalmente os do bando de Lampio. O fenmeno social ganhou grande

    repercusso na imprensa, tanto regional quanto nacional, e os cangaceiros, heris ou

    bandidos a depender da perspectiva e do discurso tornaram-se os principais personagens

    do serto nordestino. No tardou a sarem da literatura para invadir as salas de cinema,

    inserindo o Brasil no mercado internacional cinematogrfico. O serto entrava em cena!

    Nessa perspectiva, o objeto de estudo desta dissertao so as representaes sociais

    do cangao produzidas no cinema brasileiro, a partir da anlise da obra cinematogrfica O

    Cangaceiro (1953), de Victor Lima Barreto (1906-1982), e da produo intelectual

    contempornea ao filme. O objetivo central desse trabalho compreender as representaes

    sociais atribudas aos cangaceiros do Nordeste brasileiro, pelos cineastas pertencentes ao

    espao urbano, num contexto de desenvolvimento do universo cultural do pas,

    precisamente entre 1950 e 1964.

    O problema gerador que orienta essa dissertao : como o cangao foi representado

    no cinema brasileiro, especificamente no filme O Cangaceiro, considerando que essa obra

    foi posterior ao perodo desse fenmeno histrico? Tal questo foi fruto de discusses e

    1 BURKE, Peter. Testemunhas ocular: histria e imagem. Trad. Vera Maria Xavier dos Santos. Bauru- SP:EDUSC, 2001, p. 193.2 JASMIM, lise. Cangaceiros. So Paulo: Terceiro Nome, 2006.

  • 12

    pesquisas realizadas, durante a graduao, no grupo de estudos sobre histria e cinema,

    tornando-se o tema do meu Trabalho de Concluso de Curso, e, conseqentemente,

    resultando num projeto de pesquisa que culminou na dissertao aqui apresentada. A

    problemtica no prope apenas a anlise flmica e sua descrio, mas, principalmente, a

    identificao das representaes na produo intelectual e artstica sobre o cangaceiro e

    outros elementos pertencentes ao serto nordestino, fazendo uma discusso historiogrfica

    do que foi o movimento do cangao e de como o mesmo foi reapresentado no cinema

    brasileiro.

    Este trabalho ressalta a importncia da relao histria e cinema, apontando o filme

    como fonte de pesquisa nos estudos sobre a produo cultural e intelectual do pas entre

    1950 e 1964. A nfase dada a estes elementos torna essa pesquisa importante para a

    historiografia regional, baiana e brasileira, pois traz uma discusso sobre o olhar dos

    homens da cidade sob os pertencentes ao campo neste caso, os residentes na regio

    nordeste, o serto, o interior problematizando como foi caracterizada a identidade do

    povo nordestino3 por um grupo intelectual urbano, presente no universo artstico, nos

    Institutos e nas Universidades. Ressalta-se o tratamento dado ao cangaceiro no cinema

    brasileiro, para dessa forma compreendermos as representaes sociais atribudas aos

    cangaceiros do Nordeste, num contexto de desenvolvimento do universo cultural e

    econmico do pas, no perodo acima citado. Considerando esses elementos, e a dicotomia

    entre o urbano e o rural, compreende-se que o trabalho supracitado pertence linha de

    pesquisa relacionada aos estudos regionais sobre o campo e a cidade. O estudo relevante

    para se compreender que na dcada de 1950, mesmo com as polticas desenvolvimentistas,

    o pas ainda era rural, alm disso, podemos entender como a urgncia de se superar esse

    carter agrcola, campesino, culminou num processo de industrializao e urbanizao no

    Brasil, abrindo espao para uma indstria cinematogrfica que, ao tocar em temas

    originalmente brasileiros, acabou por criar um gnero4 cinematogrfico sobre o

    cangaceirismo.

    3 Cf. ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz de. A Inveno do Nordeste e Outras artes. 3a. ed. SoPaulo\Recife: Cortez\Massangana, 2006.4 Por conta de uma grande produo de obras cinematogrficas envolvendo a temtica do cangaceirismocriou-se uma idia de ciclo de filmes, entretanto, como no houve um perodo definido, no h como

  • 13

    Diante disso, pode-se entender o filme como evidncia, pois ao tratar de fatos

    histricos do passado, a pelcula trar elementos do presente e representaes do passado.

    A relao histria e cinema possibilita criar metodologias para a anlise flmica e de

    imagens, encontrando no conceito de representao novas abordagens para a anlise

    historiogrfica que permite um dilogo profcuo entre o campo e a cidade. Considerando

    que os estudos sobre o movimento do cangao partem geralmente da idia de mito, ou seja,

    de uma narrativa com carter simblico, e das memrias deixadas pelos participantes dos

    bandos, a relao histria e cinema pode apontar como esse fenmeno social foi

    interpretado pelos homens pertencentes ao mundo urbano, e como o uso da imagem foi

    fator estratgico para os cangaceiros e para o Estado. Para tal, ser feita anlise dos

    possveis discursos em obras cinematogrficas, posteriores ao movimento, neste caso, os

    filmes posteriores ao ano de 1940.

    Entretanto, mesmo trabalhando com a relao histria e cinema e com as

    representaes do fenmeno social na pelcula de Victor Lima Barreto, essa pesquisa pauta-

    se no que Erivaldo Neves5 denomina por estudos sobre histria regional e local.

    Apresentando um debate terico referente s suas demandas, suas abordagens e como

    contriburam para uma interpretao histrica, Neves nos aponta uma concepo

    interessante de histria regional e local, que, segundo o autor, consiste

    [...] numa proposta de estatuto de atividades de determinado grupo socialhistoricamente constitudo, conectado numa base territorial com vnculosde afinidades, como manifestaes culturais, organizao comunitria,prticas econmicas, identificando-se suas interaes internas earticulaes exteriores e mantendo-se a perspectiva da totalidade histrica.6

    Trabalha-se aqui com sujeitos que foram constitudos territorialmente com vnculos

    e conectados cultura local. O objetivo do trabalho de compreender quais as

    representaes que foram dadas a esses sujeitos os cangaceiros pelo cinema produzido

    por cineastas pertencentes a outro territrio, o urbano, e como eles se apropriaram da

    determinar um tempo continuo para essas produes, ento no se pode considerar a ideia de ciclo de filmesdo cangao, mas a criao de um gnero.5 NEVES, Erivaldo Fagundes. Histria Regional e Local: fragmentao e recomposio da histria na criseda modernidade. Feira de Santana Ba: UEFS, Salvador: Arcdia, 2002, p. 45-61.6 Idem, p. 45.

  • 14

    imagem do serto. Houve a criao de um serto prprio para o cinema, que partiu de algo

    concreto. O imaginrio desses cineastas partia de criaes e obras que falavam sobre esses

    elementos sertanejos, sobre seus mitos e mazelas.

    O mito em torno do serto nos acompanha desde a chegada dos portugueses. De

    acordo com Janana Amado7, o serto, como categoria regional e cultural, permeou e ainda

    permeia a literatura brasileira como lugar ou lcus onde tudo acontece, at as figuras mais

    fantsticas, como os cangaceiros e os messinicos. Diante disso e do que j foi exposto por

    Neves, estudam-se aqui personagens regionais, pertencentes a uma Histria Regional, pois,

    Quando um historiador se prope a trabalhar dentro do mbito da HistriaRegional, ele mostra-se interessado em estudar diretamente uma regioespecfica. O espao regional, importante destacar, no estarnecessariamente associado a um recorte administrativo ou geogrfico,podendo se referir a um recorte antropolgico, a um recorte cultural ou aqualquer outro recorte proposto pelo historiador de acordo com oproblema histrico que ir examinar. 8

    Portanto, a problemtica dessa pesquisa aponta para o estudo das representaes da

    regio nordeste, a partir das anlises de filmes do gnero de cangao, das relaes sociais

    entre o intelectual urbano e o homem do campo e do sertanejo, focando na representao

    dos camponeses pertencentes ao mundo rural, precisamente aqueles viventes no serto

    nordestino que foi construda no cinema pelos homens urbanos, viventes na cidade.

    importante destacar os estudos regionais, principalmente na rea de histria, pois os estudos

    nacionais ou gerais muitas vezes por sua magnitude acabam ressaltando semelhanas,

    enquanto que os estudos regionais compreendem as diferenas e aspectos que, geralmente,

    nos estudos mais globais, passam despercebidos. Em outras palavras,

    7 AMADO, Janana. Regio, serto, nao. In: Estudos Histricos. Vol. 8, n. 15. Rio de Janeiro, 1995, p.145-151.8 SILVA, Vera Alice Cardoso. Regionalismo: O Enfoque Metodolgico e a Concepo Histrica. In: SILVAMarcos A. da (coord.). Repblica em Migalhas. Histria Regional e Local. So Paulo: Marco Zero,1990, p.93.

  • 15

    [...] o estudo regional oferece novas ticas de anlise do estudo de cunhonacional, podendo apresentar todas as questes fundamentais da Histria(como os movimentos sociais, a ao do Estado, as atividadeseconmicas, a identidade cultural etc.) a partir de um ngulo de viso quefaz aflorar o especifico, o prprio, o particular. A historiografia nacionalressalta as semelhanas, a regional lida com as diferenas, amultiplicidade. A historiografia regional tem ainda a capacidade deapresentar o concreto e o cotidiano, o ser humano historicamentedeterminado, de fazer a ponte entre o individual e o social. [...]. 9

    exatamente essa a proposta deste trabalho: evidenciar as peculiaridades existentes

    em filmes do gnero de cangao. Por isso a anlise do O Cangaceiro, de Victor Lima

    Barreto, permitiu a identificao da construo de uma representao do cangao presa ao

    mito, idia de banditismo, sem fazer qualquer meno aos aspectos sociais que fizeram

    parte do movimento. Busca-se neste trabalho a compreenso, a partir da historiografia

    produzida sobre o cangaceirismo, dos diversos discursos em torno do serto, que vo da

    vitimizao do sertanejo at os esteretipos criados em torno dele.

    Justamente com o objetivo de compreender tais representaes, que resultam na

    criao de esteretipos sobre o serto nordestino e o sertanejo, que os captulos foram

    organizados da seguinte forma: O captulo I, A histria no cinema e o cangao como tema,

    apresenta um debate terico sobre as interpretaes historiogrficas do movimento do

    cangao e a relao histria e cinema, discutindo a idia de banditismo social e os tipos de

    cangao, alm de analisar a cultura local pautada na honra e na violncia; esta anlise foi

    importante para a compreenso da construo mtica do cangao no cinema, debate

    fundamental para o uso do cinema e da literatura como fonte de pesquisa.

    O captulo II, Modernizar, urbanizar e industrializar: o cinema e as polticas de

    desenvolvimento, um captulo de contexto, para situar o (a) leitor (a) sobre o perodo

    estudado. Nele analisou-se a conjuntura econmica, poltica e cultural do pas entre 1950 e

    1964, pois a histria do cinema brasileiro est atrelada s polticas de urbanizao e

    industrializao, fatores que incentivaram a produo de um filme como O Cangaceiro.

    Pensar as polticas de incentivo industrializao e a importncia das Companhias

    9 AMADO, Janana. Histria e regio: reconhecendo e construindo espaos. In: SILVA, Marcos A. (Org.).Repblica em migalhas: histria regional e local. So Paulo: Marco Zero, 1990, p. 12-13.

  • 16

    cinematogrficas so temas presentes neste captulo, um debate necessrio para a

    compreenso da constituio de filmes do gnero de cangao e do discurso

    desenvolvimentista presente no filme.

    Aps um debate terico e contextual, nos captulos III e IV, buscou-se aprofundar a

    temtica proposta no trabalho. O terceiro Pensando o desenvolvimento: intelectuais, cinema

    e reforma agrria, discute os intelectuais e a ideologia desenvolvimentista, a importncia

    dos Institutos como o Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e a Escola Sociolgica

    Paulista, na produo de um discurso prol industrializao e urbanizao. Alm disso,

    aborda-se a importncia dos Movimentos Sociais do campo, das ligas camponesas e o

    impacto dessa insurreio rural no projeto desenvolvimentista que estava em curso,

    analisando a influncia desses elementos na produo de filmes com temticas rurais.

    Por fim, no captulo IV O cineasta em busca da brasilidade perdida: o cinema, os

    literatos e as representaes do cangao, foi feito um debate emprico em torno do cineasta

    Victor Lima Barreto, bem como a anlise flmica de O Cangaceiro. Do cruzamento das

    anlises do filme, da pea teatral Lampio, de Rachel de Queiroz, e da obra literria Os

    Sertes, de Euclides da Cunha, notou-se a influncia da literatura produzida entre o incio e

    a primeira metade do sculo XX na produo cinematogrfica do gnero de cangao,

    contribuindo na construo de representaes do fenmeno social, ou seja, para a

    consolidao mtica do cangaceirismo e para a idia de serto representando o arcaico e a

    barbrie, que deveria, portanto, se civilizar. Neste sentido, o mundo rural deveria ser

    includo no projeto desenvolvimentista idealizado por intelectuais pertencentes s classes

    mdias. Ainda no captulo IV apresentado um debate inicial sobre as contribuies do

    Cinema Novo na constituio de um contraponto ao ciclo nordestern10, iniciado por Victor

    Lima Barreto.

    A pesquisa trouxe contribuies fundamentais para a historiografia, o cinema e a

    literatura como linguagens importante na construo de representaes do passado, e as

    anlises apontam que a literatura e o cinema so mais que termmetros sociais, essas

    10 O termo Nordestern foi criao do pesquisador potiguar-carioca Salvyano Cavalcanti de Paiva (1923 2000), segundo a autora Maria do Rosrio Caetano organizadora do livro sobre o assunto. Tal neologismofora utilizado para identificar filmes com a temtica rural e principalmente sobre o cangao feitos no Brasil.

  • 17

    linguagens trazem consigo vises de mundo, concepes de intelectuais e dos grupos

    sociais a que eles pertencem. O mito e a disputa da imagem mostram outra histria do

    cangao, aquela que falar do mestio e da sua relao com a terra.

  • 18

    I

    A HISTRIA NO CINEMA E O CANGAO COMO TEMA

    O movimento do cangao permeia o imaginrio dos (das) nordestino (as) at os dias

    de hoje. Diante disso, como compreender as representaes do cangao sem estud-lo?

    Apesar de no ser o objetivo central da pesquisa o debate historiogrfico referente ao

    fenmeno do cangao, sua anlise contribuiu para o entendimento das peculiaridades que o

    fizeram tema central de um gnero de filmes brasileiros, tornando importante tambm os

    estudos relacionados histria e o cinema, dando suporte terico para as pesquisas em

    torno das imagens cinematogrficas que representaram a histria do cangao entre 1950 e

    1964. Este captulo apresentar um esquema terico que justifica a necessidade dos estudos

    da representao do passado atravs do cinema brasileiro.

    1. Interpretaes sobre o cangao

    Na pelcula estudada, O Cangaceiro, do cineasta Victor Lima Barreto, identificou-

    se que o cangao foi produzido, na maioria das vezes, a partir da concepo de banditismo

    social, noo discutida teoricamente por autores como Hobsbawm11 e Dria. 12 Segundo os

    autores, o banditismo social oscila entre um fenmeno o universal e uma forma de

    reao popular a um determinado sistema poltico e econmico:

    O banditismo social em geral, membro de uma sociedade rural, e porrazes vrias, encarado como proscrito ou criminoso pelo Estado e pelosgrandes proprietrios. Apesar disso, continua a fazer parte da sociedadecamponesa de que originrio e considerado como heri por sua gente,seja ele um justiceiro, um vingador, ou algum que rouba aos ricos.13

    11 HOBSBAWM, Eric J. Bandidos. So Paulo: Forense, 1972.12 DRIA, Carlos Alberto. O cangao. 2 Ed. So Paulo: Brasiliense, 1981.13 Idem, p. 20.

  • 19

    Entretanto, na historiografia no existe apenas essa concepo do que foi o

    movimento. Tal fenmeno social, ocorrido dos fins do sculo XIX primeira metade do

    sculo XX, segundo a sociloga Maria Isaura P. de Queiroz,14 foi definido como um

    conjunto de homens que viviam fortemente armados na regio da caatinga do serto

    nordestino. Quando a autora define a regio do movimento, o espao geogrfico onde

    ocorreram as aes dos bandos esquece que o termo caatinga est ligado ao bioma, a um

    tipo de vegetao local, que no era a nica. Essas questes importantes, que parecem ser

    do senso comum, tais como os termos usados para definir o homem, a mulher, o espao e as

    questes sociais que envolveram o cangao influenciaram as produes cinematogrficas

    sobre o tema, questes que sero problematizadas no decorrer do trabalho.

    Sobre o movimento as obras de Hobsbawm, Dria e Queiroz possibilitam o

    entendimento de que o movimento do cangao poderia ser avaliado como fruto da

    economia do gado. Suas noes de independncia, leis, justia e suas possveis relaes de

    cumplicidade com o coronelismo, podem ampliar os conhecimentos sobre o perodo que

    marcou a histria do Brasil entre 1920 e 1940.

    Entretanto, existem outras interpretaes sobre o movimento do cangao, que

    certamente influenciaram as produes cinematogrficas do gnero de filmes relacionados

    ao tema. Destas, pode-se destacar as anlises de Rui Fac.15 O autor apresentou, na sua

    obra, a segunda metade do sculo XIX como perodo de transio, marcado por rebelies

    no interior do Brasil, envolvendo moradores do campo, momento de crise econmica,

    ideolgica e de autoridade.

    Segundo Fac foi registrada na histria do Brasil uma historiografia reducionista

    sobre os movimentos do cangao, o colocando como banditismo social e identificando a

    Guerra de Canudos como fanatismo; no se associava esses acontecimentos como parte

    da evoluo do pas. Avalia-se, neste trabalho, que o termo evoluo, usado pelo autor,

    seja problemtico, mas essa foi a forma que o autor interpretou esse perodo. Se o pas

    estava num processo evolutivo, o fanatismo e o cangaceirismo, para o autor, foi fruto

    14 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Histria do Cangao: Histria Popular. 4 edio. So Paulo: Global,1991.15 FAC, Rui. Cangaceiros e Fanticos: gnese e lutas. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1963. p. 15-76.

  • 20

    do monoplio da terra, dos latifndios. Esta diviso injusta de terra, casada ao domnio

    imperialista, so os principais obstculos do desenvolvimento econmico, social, poltico e

    cultural brasileiro. O monoplio da terra, a prtica de monocultura e trabalho escravo,

    distanciou o pas do crescimento das foras produtivas e da tecnologia.

    Alm disso, a diviso regional brasileira estava pautada na economia e no racismo:

    Sul capitalista e Norte atrasado e semi-feudal. De acordo com Fac,

    A valorizao do caf atraa para o Sul a mo-de-obra disponvel noNordeste, tanto de escravos como de trabalhadores livres. Enquanto isso,era o Sul que recebia a totalidade dos imigrantes europeus que, nos fins dosculo, vieram modificar a fisionomia econmica e social da fazendapaulista. 16

    Havia um processo civilizatrio na regio Sul do pas, aumentando as desigualdades

    que estavam pr-estabelecidas desde a diviso social do trabalho entre 1870-1930: senhor

    de engenho e grandes fazendeiros X o homem sem terra, o semi-servo e o escravo. Esses

    fatores contriburam para o processo migratrio dos flagelados nordestinos que fugiam da

    seca para as capitais do Sul, pois as capitais do Norte ainda estavam em ritmo lento de

    desenvolvimento, j que a burguesia urbana dessa regio estava limitada pelo latifndio,

    sem poder para destru-lo, tendo que conviver com ele.

    O momento de transio entre meados do sculo XIX e incio do sculo XX, de

    acordo com Fac, teve, na abolio do trabalho escravo, fator principal para as mudanas

    que estavam em curso. A libertao dos escravos quebrou a classe dos senhores de

    engenho, dando lugar para os emergentes usineiros, os latifundirios e os capitalistas,

    segundo o autor,

    Notvel particularidade do advento das usinas no fim do sculo XIX ogigantismo do latifndio canavieiro. Sua fome de terras no encontralimites. Compra os velhos engenhos bangus e os aposenta. O que lheinteressa a terra. E a usina vai estendendo ilimitadamente seus domnios.17

    16 Idem, p. 17.17 Idem, p. 20.

  • 21

    Mas essas mudanas no alteram a situao dos pobres do campo, que, apesar das

    usinas, permanece a mesma de 1856. Nessa conjuntura, o cangao e o messianismo foram

    alternativas de sadas para aquela situao, e a esperana de uma vida melhor.Alternativa

    de vida, essa seria a motivao para um sertanejo ingressar na vida de cangaceiro ou seguir

    um beato. Mas, nesse mesmo espao aconteciam transformaes, pois, em meio ao

    monoplio e o atraso, a Repblica trouxe consigo o surto da criao da indstria e das

    ferrovias, e o sertanejo tambm poderia se tornar um operrio. Essa poltica industrial

    acordou forosamente a burguesia latifundiria do campo, pois se no se adaptassem ao

    capitalismo, a industrializao seria retardada. Segundo Fac, por conta dessas questes, os

    idelogos da burguesia iniciaram o processo de colocar em questo a necessidade de

    transformar a estrutura agrria do pas.

    Mas esse debate no recente, desde o sculo XVIII os intelectuais abolicionistas e

    liberais defendiam o discurso contra o latifndio e o monoplio, pois os responsabilizavam

    pelo atraso. Para aqueles, os grandes fazendeiros retalhavam o pas e escravizavam os

    trabalhadores, portanto, a propriedade semifeudal estava arrasando com o Brasil. Apesar

    das crticas, a burguesia intelectual no tinha tanta credibilidade, pois o pas era agro-

    exportador, logo, eram os latifundirios que tinham a mola mestra da economia nacional,

    baseada na servido do homem do campo no Nordeste.

    Entretanto, no tardaria o choque entre as populaes do interior e o latifndio. Fac

    explicou que o fenmeno do xodo em massa e migrantes nordestinos para a Amaznia e

    depois para So Paulo, evidenciou a insatisfao do sertanejo s relaes impostas pelo

    latifundirio, ou melhor, pelos coronis. Para o autor, o abandono do serto em busca de

    uma nova vida fora desse espao foi um processo progressista. Enquanto durou a seca e a

    fome o xodo continuou, e, ao chegar aos centros urbanos, esses homens livres tornaram-se

    escravos da borracha e do caf. A migrao representou para o latifndio algo negativo,

    segundo Fac:

    Essa migrao em massa representa na prtica uma ruptura com olatifndio, um srio desfalque para ele. Para sobreviver como latifndiosemifeudal [sic], ele deveria dispor de mo-de-obra semi-servil. E esta lhefugia agora. A sua salvao que as malhas do sistema latifundirio semi-

  • 22

    servil se estendiam a todo Pas, com alguns claros apenas na pequenapropriedade da extremidade meridional, no Rio Grande do Sul, e que nopesava no conjunto. 18

    A migrao foi considerada um golpe aos latifundirios, mas representou tambm

    certo amadurecimento mental entre os sertanejos, pois a emigrao em massa de

    trabalhadores rurais do Nordeste, para os emigrantes, tinha o valor de uma tomada de

    conscincia de sua situao anterior. Viam que podiam livrar-se do punho de ferro do

    latifundirio, do ignominioso regime servil que lhes era imposto. 19 Contudo, tanto na

    Amaznia quanto em So Paulo, encontravam o mesmo regime de trabalho semi-escravo,

    mas mesmo com pouco dinheiro que conseguiam, acreditavam que nesses espaos tinham

    mais liberdade que no Nordeste.

    Para Fac a emigrao, o contato com outras pessoas e com a nova realidade,

    modificava o homem nordestino, que, quando voltavam s suas cidades natais eram outros,

    reagiam com o inconformismo vida de misria e fome; a populao comeou a luta por

    uma vida melhor. De acordo com o autor, o nordestino, para se indignar com o regime

    coronelista, deveria sair daquele espao, conquistar conscincia e retornar para ento

    propor mudanas estruturais no serto. Essa interpretao ser considerada no momento da

    anlise flmica, ao longo da dissertao.

    Seguindo o raciocnio do autor, nesse perodo, existiam as seguintes formas de

    reaes contra a fome e a misria:

    a) a formao de grupos de cangaceiros que lutavam de armas nasmos, assaltando fazendas, saqueando comboios e armazns devveres nas prprias cidades e vilas;

    b) a formao de seitas de msticos fanticos em torno de um beatoou conselheiro, para implorar ddivas aos cus e remir os pecados,que seriam as causas de sua desgraa. 20

    O cangaceirismo e o fanatismo foram alternativas para os sertanejos, pois o mesmo

    no iria permanecer inerte dominao do latifndio por muito tempo. Segundo Fac,

    18 Idem, p. 31.19 Idem, p. 32.20 Idem, p. 36.

  • 23

    Se a terra para ele inacessvel, ou quando possui uma nesga de cho v-se atenazado pelo domnio do latifndio ocenico, devorador de todas assuas energias, monopolizador de todos privilgios, ditador das piorestorpezas, que fazer, seno revoltar-se? Pega em armas, sem objetivosclaros, sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que seu. 21

    Pegar em armas era uma reao explorao e as desigualdades no campo, que no

    serto foram fatores fundamentais para o surgimento do fenmeno do cangao. De acordo

    com as anlises de Fac, para Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, o banditismo estaria

    relacionado mestiagem, e, para acabar com ele, dever-se-ia ter apoio militar, pois, sem

    terra e sofrendo uma explorao brutal ou mnima, estava no sangue do sertanejo, e na sua

    origem racial, o impulso para se revoltar de qualquer forma. Para ambos, a violncia j

    estava implcita neles e s com a fora militar, segundo esses intelectuais do sculo XIX,

    estaria resolvido o problema do banditismo.

    O sertanejo estava numa terra sem leis, j que a justia estava nas mos das elites

    locais. No tinham direito escola ou educao, pois para pegar na enxada s precisavam

    da fora. Esses elementos constituam um perfil violento e de barbrie ao sertanejo,

    contudo

    no s no monoplio da propriedade fundiria que reside a matriz docangao: era em todo o atraso econmico, no isolamento do meio rural, noimobilismo social, na ausncia de iniciativas outras que no fossem as dolatifndio e as deste eram quase nenhuma. 22

    O atraso econmico e a falta de policiamento no interior tambm proporcionou a

    ao dos bandos. O policiamento que chegou conseguiu legitimar o cangao, pois ao

    combater os bandidos e o messianismo, a polcia praticou, contra as populaes rurais,

    crimes mais hediondos do que os cangaceiros mais sanguinrios. A violncia por parte da

    polcia, ou das volantes, foi conseqncia do tratamento dado ao cangao, que era um

    problema social, mas foi considerado criminoso. O autor define o cangaceiro e o fantico

    da seguinte como grupos que,

    21 Idem, p. 38.22 Idem, p. 43.

  • 24

    ... comeavam a adquirir carter social, lutas, portanto, que deveriamdecidir, mais cedo ou mais tarde, de seu prprio destino. No era aindauma luta diretamente pela terra, mas era uma luta em funo da terra uma luta contra o domnio do latifndio semifeudal. 23

    O autor identifica-os como classe potencialmente revolucionria. Entretanto, no

    tinham conscincia de classe, seu inimigo no era percebido claramente no latifndio, mas

    como castigo divino, e as oraes se tornavam necessrias, da a religiosidade dos bandos,

    mas isso prejudicava e limitava a solidariedade coletiva, por isso os bandos agiam de forma

    isolada. O surgimento do cangao foi o primeiro ponto da runa e da decadncia do

    latifndio semi-feudal. Para o autor (...) o cangaceirismo representava um passo frente

    para a emancipao dos pobres do campo. Constitua um exemplo de insubmisso. Era um

    estmulo s lutas. 24

    Fac foi um intelectual da dcada de 1960, e observando suas interpretaes

    relacionadas ao cangao percebe-se uma linguagem marxista e a perspectiva da existncia

    de uma luta de classes no serto, o cangao como alternativa de vida, desconsiderando

    outras motivaes que influenciaram a entrada do sertanejo no movimento, como a de fuga

    ou a profissionalizao do cangao, elementos apontados por autores como Maria Isaura de

    Queiroz25. As anlises de Fac contriburam, possivelmente, na construo mitolgica do

    personagem cangaceiro na arte cinematogrfica.

    Frederico Pernambucano de Mello26 um contraponto a Fac, pois considera outras

    razes para o fenmeno do cangao, pauta-se num maior nmero de fontes documentais

    para apontar aspectos culturais e o ciclo do gado como fatores importantes para

    entendermos esse movimento. A pecuria foi uma alternativa produo agrcola no serto

    seco, o que acaba por desenhar o perfil do homem e da mulher sertaneja.

    Segundo Mello, um perfil violento e individualista do sertanejo foi resultado do seu

    contato com o ciclo do gado. E do isolamento provocado pelo espao geogrfico e por sua

    23 Idem, p. 45.24 Idem, p. 46.25 Queiroz. Op. cit..26 MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do Sol: violncia e banditismo no Nordeste do Brasil.So Paulo: A Girafa, 2004.

  • 25

    economia, distante do litoral. A base social do sertanejo esteve ligada ao compromisso da

    palavra, nas leis consuetudinrias, portanto, a honra e a oralidade valiam mais que uma nota

    promissria. Mello afirma que o sertanejo um retrgrado, pois est rodeado por uma

    estrutura familiar, poltica, econmica, religiosa e arcaica, fruto do seu isolamento.

    Conforme destacou o historiador Pernambucano, a monocultura foi responsvel pela

    normatizao do trabalho no campo. A violncia e o ser agreste eram comuns, pois no seu

    trabalho no havia ningum para intermediar ou controlar, e supervisionar. A atividade

    agrcola ligou o homem terra e a cultura de violncia foi alimentada pela distncia do

    poder pblico e pelo Estado descentralizado. A geografia rstica influenciou na construo

    social e psicolgica do sertanejo. O cangao, diante disso, fora fruto da pecuria, do ciclo

    do gado.

    De acordo com Mello, o cangao no foi apenas uma alternativa de vida, como foi

    defendido por Fac, ele tambm foi um ofcio, uma soluo para os tempos de seca, pois,

    justamente nesses perodos, ocorriam as agitaes polticas e a formao de bandos. Os

    cangaceiros respeitavam a tica sertaneja, o que, segundo Mello, atraia a simpatia dos

    camponeses para com eles. As articulaes polticas no Nordeste, entre os sculos XIX e

    incio do XX, tinha, na fora da bala, meios para depor um governo. Exatamente nessas

    ocasies que os bandos eram utilizados pelos grandes fazendeiros, os coronis, para os

    golpes polticos.

    A Instabilidade poltica e social no serto tornava a vida do sertanejo difcil, e a

    violncia era um mecanismo para garantir a segurana e a honra. De acordo com Lutigarde

    Barros27, a violncia era uma constante nas lutas sociais no serto, para a autora, o elemento

    fora se fazia necessrio na manuteno das relaes sociais nesse espao, fundamentado

    em estruturas desiguais. Nesse clima de violncia e do uso da fora para manter o poder

    poltico, o cangao passou a ser um tipo de profisso, principalmente aps as guerras

    sertanejas. Alm da profissionalizao, o movimento, segundo Mello, acabou contribuindo

    na dinamizao da economia nordestina,

    27 BARROS, Lutigarde Oliveira C. Antropologia da honra: uma anlise das guerras sertanejas. In: Revista deCincias Sociais. Vol. 29, n 1 / 2, 1998, p. 160-168.

  • 26

    A estagnao das atividades econmicas no se fazia completa graas auma preciosa contrapartida. Com os surtos de cangaceirismo, coincidiaquase sempre o envio de nmero avultado de soldados e, at mesmo, apartir de 1923, o alistamento sistemtico na polcia de homens da prpriaregio, implicando tudo isso uma sensvel injeo de recursos.28

    O cangaceirismo e a criao das volantes deram uma dinmica economia

    sertaneja. A caa aos cangaceiros e a ao das volantes intensificaram a violncia, e a

    disputa entre o bando de cangaceiros e o Estado ultrapassou os limites do serto. A

    imprensa era tambm um espao de combate, a imagem do cangao nos jornais e o uso

    desta por Lampio que operou no auge do cangao em 1926, momento que este foi

    convidado para contribuir na luta contra a Coluna Prestes de acordo com Mello, deu fora

    ao movimento. Com o avano da polcia e quando o cerco se fechou ao bando de Lampio,

    este usou sua imagem, a antipatia das volantes e o mito que alimentavam sobre ele, para ser

    diplomtico e assim conseguir aliados importantes na busca de fuga, armas, munio e

    alimentos.

    Essa disputa da imagem e a construo mtica de Lampio e do cangao, tornou o

    tema ambguo, pois em torno de Vrgulino Ferreira da Silva (1898-1938) h a figura do

    heri e do criminoso. O que ficou consolidado na imagem dos cangaceiros foram as

    representaes da violncia, da barbrie e da selvageria, essas caractersticas sero

    trabalhadas nos filmes do gnero de cangao. Justamente por isso a importncia da relao

    histria e cinema para compreenso das representaes do cangaceirismo na produo

    cinematogrfica da dcada de 1950.

    2. Histria, cinema e representaes

    A produo historiogrfica sobre o cangao, analisada neste trabalho, evidencia a

    ambigidade existente em torno do fenmeno, pois, a idia de heri e bandido acabou por

    consolidar a imagem mtica de sujeitos como Lampio e Corisco. Compreendendo que mito

    uma narrativa, um discurso, ou melhor, uma forma das sociedades exprimirem seus

    28 Mello, 2004, p. 184.

  • 27

    paradoxos e suas inquietaes ou seja, uma reflexo sobre a existncia29 - propomos o

    estudo do movimento do cangao a partir da observao dos elementos culturais do espao

    vivido pelos bandos e das representaes destes no cinema. Se as aventuras desses

    cangaceiros trouxeram para o espectador o mito de Lampio, tambm mostrou a imagem de

    um mundo que deveria ser superado, pois o rural e o mestio deveriam ser civilizados e

    encaixados no modelo ideal de Brasil. O cinema nacional tambm era um meio de

    comunicao das ideologias desenvolvimentistas.

    Nota-se a partir da relao histria e cinema novas metodologias para a pesquisa

    histrica, as representaes do passado identificadas nos filmes do gnero de cangao,

    podem evidenciar a existncia de um discurso desenvolvimentista e de um projeto poltico

    civilizatrio que estava em curso no pas nos anos de 1950 e 1964, elementos importantes

    para a historiografia regional. Diante disso, percebe-se a importncia do dilogo entre

    histria e cinema, que foi consequncia dos estudos em torno da Histria Cultural.

    De acordo com Sandra Pesavento30, foi a partir da dcada de 1980, que a produo

    historiogrfica passou a trabalhar com o campo da cultura, de forma mais incisiva. No

    entanto, os sintomas dessas transformaes ocorreram desde maio de 1968, eventos como a

    guerra do Vietn, ascenso do movimento feminista e de novas formas de expresses e

    manifestaes culturais aceleraram esse processo.

    Nesse contexto, houve o esgotamento de modelos historiogrficos, referentes aos

    tipos explicativos globalizantes. Pesavento explica que:

    A dinmica social se tornava mais complexa com a entrada em cena denovos grupos, portadores de novas questes e interesses. Os modeloscorrentes de anlise no davam mais conta, diante da diversidade social,das novas modalidades de fazer poltica, sobretudo, da aparentementeescapada de determinadas instancias da realidade - como a cultura, ou osmeios de comunicao de massa aos marcos racionais e de logicidade. 31

    29 GINZBURG, Carlo. Mito. In: ______________. Olhos de Madeira. Nove reflexes sobre a distncia.Trad. Eduardo Brando. 2 reimpresso. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.30 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autentica, 2005. p. 07a 18.31 Idem, p. 09.

  • 28

    Esses modelos de anlise, os paradigmas explicativos citados pela autora,

    engessavam a construo do conhecimento, a partir da nova lgica cultural. Estes seriam o

    Marxismo e a corrente dos Annales, contudo no significa dizer que houve uma ruptura

    completa com esses paradigmas nas ltimas dcadas do sculo XX. A autora explica que,

    foi ainda de dentro da vertente neomarxista inglesa e da histria francesa dos Annales que

    veio o impulso de renovao, resultando na abertura desta nova corrente historiogrfica a

    que chamamos de Histria Cultural ou mesmo de Nova Histria Cultural.32

    No Brasil, at a dcada de 1980, segundo Pesavento, a historiografia pautava-se na

    corrente marxista, desde as obras de Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodr, o

    materialismo histrico era a proposta e postura terica que melhor dava conta da realidade

    brasileira, tendo principal vertente a Histria Econmica. Entretanto na virada dos anos de

    1980 para os 90, essas concepes de fazer histria passaram a ser questionadas no

    Brasil.33

    Tais questionamentos foram fruto dos acontecimentos da poca, como a queda do

    socialismo, a desfiliao de alguns intelectuais marxistas dos PC dos seus respectivos

    pases, ou seja, ocorria uma crise terica, j que o marxismo no se aplicava realidade do

    perodo. Esse contexto conturbado, possivelmente, contribuiu para a crise desses dois

    paradigmas explicativos. Somado a isso,

    A fixao dos princpios do materialismo histrico em uma espcie demodelo, completo e fechado, para anlise da realidade, a sensaointelectual de que tudo estava explicado, basicamente em termos dedominao e resistncia, levaram muitos intelectuais, alguns delesmarxistas, como o citado Thompson, a afastarem-se de uma matriz tericamuito rgida e a se voltarem para outras questes e temas, quedemandavam tambm novos referenciais de anlise. 34

    Se o marxismo no atendia s expectativas daquele momento, a corrente dos

    Annales, com sua perspectiva globalizante e de uma histria total, construda por Braudel,

    no possibilitava sua continuidade, pois poucas eram as chances de seguidores dessa linha

    32 Idem, p. 10.33 Idem, p. 12.34 Ibidem.

  • 29

    historiogrfica. A histria serial tambm recebeu crticas por se refugiar na narrativa sem

    capacidade de explicar os fenmenos.

    Diante desse declnio terico, uma Nova Histria Cultural ganhou espao, o qual

    percebeu nos estudos culturais uma nova abordagem historiogrfica. De acordo com

    Pesavento, a cultura, nessa perspectiva historiogrfica, no era entendida como integrante

    da Superestrutura, ou como reflexo da infra-estrutura, ou como manifestao, ou como

    pertencente elite, ou como deleite para fruio do esprito, e sim, como um lugar para a

    histria.

    Pesavento, tendo como referencial o conceito de Lyn Hunt, explicou que a Nova

    Histria Cultural antes de tudo, pensa a cultura como um conjunto de significados

    partilhados e construdos pelos homens para explicar o mundo. 35 E completa que,

    a cultura ainda uma forma de expresso e traduo da realidade que sefaz de forma simblica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos spalavras, s coisas, s aes e aos atores sociais se apresentam de formacifrada, portanto j um significado e uma apreciao valorativa. 36

    Nessa perspectiva, o estudo da Histria Cultural nos faz pensar e resgatar os

    sentidos conferidos ao mundo, que pode se manifestar em palavras, discursos, imagens,

    coisas, prticas, enfim, traduzir o mundo por um vis cultural. Os estudos culturais apontam

    para as possibilidades do uso da imagem na pesquisa histrica. Compreendendo essa

    conjuntura, Napolitano37 chama ateno para o fato de que hoje se vive um perodo

    dominado por imagens e sons, os meios de comunicao trazem imagens da realidade,

    causando impactos e influenciando o espectador. Por conta disso, os (as) historiadores (as)

    tm no cinema, na msica, na literatura e nas imagens, como fontes primrias, uma nova

    possibilidade na pesquisa histrica.

    35 Idem, p. 15.36 Ibidem.37 NAPOLITANO, Marcos. A histria depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). FontesHistricas. So Paulo: Contexto. 2005. p.115-202.

  • 30

    O papel do historiador no descrever o filme ou os eventos relatados nele, mas

    perceber as fontes audiovisuais e musicais em suas estruturas internas de linguagem e seus

    mecanismos de representao da realidade, a partir de seus cdigos internos.38 O filme no

    evidencia a realidade, mas as representaes de um tempo passado, ou do presente.

    O mais importante entender o porqu das adaptaes, omisses,falsificaes que so apresentadas num filme. Obviamente, semprelouvvel quando um filme consegue ser fiel ao passado representado,mas esse aspecto no pode ser tomado como absoluto na anlise histricade um filme.39

    No momento que o (a) historiador (a) decide utilizar o filme e/ou outra linguagem

    como fonte e/ou objeto, ele (a) deve se propor a fazer leituras que o (a) faa compreender o

    funcionamento tcnico-esttico da linguagem, sobre as representaes sociais ou da

    realidade histrica.

    Pensando a relao histria e cinema, o historiador Marc Ferro foi considerado o

    pioneiro nesses estudos, para aqueles (as) interessados (as) nessa relao, a leitura das obras

    de Ferro sobre o assunto so importantes. Entretanto, hoje, existem outros historiadores (as)

    que foram alm de Ferro em pesquisas que consideram a relao histria e cinema, dentre

    estes, podemos destacar o pesquisador Eduardo Morettin. 40

    Para Ferro, o cinema intervm na Histria tanto no plano do faz-la como tambm

    no plano de sua compreenso. Primeiro, como agente da histria, apesar de aparecer

    inicialmente como evidncia do progresso cientfico de acordo com Ferro, o cinema

    conservou consigo esse aspecto. Entretanto, ao tornar-se arte, os primeiros a us-lo para

    interferir na histria com filmes e documentrios a retrataram a partir de representaes do

    real, e assim doutrinavam ou edificavam acontecimentos e fatos. Ou seja, para Eduardo

    Morettin, Ferro compartilha a idia de que o filme teria valor de testemunho indireto ou

    involuntrio de um evento ou processo histrico.

    38 Idem, p. 236.39 Idem, p. 237.40 Eduardo Morettin. O cinema como fonte histrica na obra de Ferro. In: CAPELATO, Maria Helena;MORETTIN, Eduardo; NAPOLITANO, Marcos; SALIBA, Elias Thom (org.). Histria e Cinema:dimenses histricas do audiovisual. So Paulo: Alameda, 2007.

  • 31

    A apropriao do cinema ocorreu no momento que este comeou a influenciar na

    tomada de conscincia da humanidade, segundo Ferro:

    desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a funo que ocinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e p-lo a seuservio: em relao a isso, as diferenas se situam ao nvel da tomada deconscincia, e no ao nvel das ideologias (...). 41

    Nesse sentido, Ferro afirma que os cineastas, de forma inconsciente ou no,

    estariam cada um a servio da sua ideologia. Entretanto, o cinema e o cineasta podem estar

    independente das correntes ideolgicas instaladas. Exemplo comum disso, segundo o autor,

    seriam os filmes militantes, j que:

    [...] o cinema pode tornar-se ainda mais ativo como agente de uma tomadada conscincia social, com a condio de que a sociedade no sejasomente um objeto de anlise a mais, objeto que pode ser filmadobrincando de bom selvagem para o beneficio de um novo colonizador, omilitante-cameraman. Outrora objeto para uma vanguarda, asociedade pode de agora em diante encarregar-se de si mesma. Essepoderia ser o sentido de uma passagem dos filmes de militantes para osfilmes militantes. 42

    Ou seja, o cineasta teria o poder de revelar zonas ideolgicas e sociais na medida em

    que coloca e defende uma idia, esta apresentada como ideal para a sociedade. O filme

    pode transmitir mensagens, ele um texto a ser lido; para Ferro, a linguagem

    cinematogrfica no inocente, contudo pode configurar-se numa expresso literria. Um

    livro que conta estrias e histrias, expressam culturas e refletem uma sociedade, e a

    mesma tambm pode, alm de produzir, receber as mensagens ali colocadas pelos

    cineastas.

    41 FERRO, Marc. Cinema e Histria. Traduo: Flvia Nascimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 13-14.42 Idem, p. 15.

  • 32

    Contudo, a historiografia contempornea brasileira e estrangeira faz algumas crticas

    a Ferro, mesmo considerando o cinema uma arte e compreendendo que o cineasta no tem a

    obrigao e nem o compromisso com a verdade histrica, pois ele no um historiador.

    Dever-se-ia atentar para o carter de manipulao intrnseco linguagem cinematogrfica,

    focando as escolhas dos realizadores manifestadas no enquadramento, nos dilogos e na

    edio.

    Marc Ferro props uma metodologia que avaliasse a veracidade do documento

    flmico, ou seja, o valor do filme como documento histrico. Contudo, isso acabaria

    esbarrando no momento de separar, no filme, o que manipulao e adulterao dos

    cdigos narrativos bsicos que estruturam a imagem flmica. Diante disso, a nova

    historiografia trabalha da seguinte forma: considerando o filme como documento histrico,

    deve-se buscar elementos narrativos que poderiam ser sintetizados na dupla pergunta: o

    que um filme diz e como ele diz?. 43 O cinema uma fonte e veculo de disseminao de

    uma cultura histrica, com todas as implicaes ideolgicas e culturais que isso represente.

    Considerando as contribuies desses autores, deve-se analisar o filme a partir de

    sua decodificao, no caso desse trabalho analisa-se a de natureza representacional,

    observando quais eventos, personagens e processos histricos foram representados na

    pelcula. Pensando a relao histria e cinema estuda-se a histria no cinema, ou seja, o

    cinema ser abordado como produtor de discurso histrico e como interprete do

    passado. Portanto, a proposta discutir as representaes do fenmeno cangao no filme

    O Cangaceiro, de Victor Lima Barreto, identificando o discurso nacionalista do cineasta, a

    ideologia da boa vida americana, as motivaes para um gnero de filmes de aventura

    estilo western no Brasil, analisando a industrializao cinematogrfica e o projeto poltico

    defendido pela burguesia paulista.

    Como foi colocado anteriormente, a Histria Cultural possibilitou os estudos da

    imagem na pesquisa histrica, atravs do uso de novos objetos, abordagens e domnios.

    Diante disso, torna-se necessrio debruar-se sobre o conceito de representao na

    historiografia, pois a partir dela que se far a discusso sobre os filmes de cangao e os

    43 Marcos Napolitano, 2005, p. 245.

  • 33

    discursos embutidos nessas obras cinematogrficas. Sobre o assunto, Francisco Falcon44

    acredita ser pertinente compreender as relaes entre histria e representao, para ento

    chegar a uma concepo, j que representao um conceito-chave do discurso histrico,

    segundo o autor. Representao seria ento tornar presente algum ou alguma coisa

    ausente, ou simplesmente re-apresentar o ausente, a partir de smbolos.

    Ginzburg45, em ensaio sobre as relaes entre histria e representao, evidencia a

    existncia de certa ambigidade em torno das concepes do conceito. Se por um lado, ele

    pode representar a realidade, evocando a ausncia, por outro, torna a realidade representada

    visvel, sugerindo sua presena, o que, segundo o autor, tratar-se-ia de um jogo de espelhos.

    Assim, concordando com a compreenso de Ginzburg, no iremos nos aprofundar nesse

    jogo de espelhos, mas tratar a concepo da palavra representao, qual a sua idia e

    como podemos estudar a produo de filmes do gnero cangao a coisa a partir dela.

    Dentro da idia de oscilao entre substituio e evocao mimtica, temos nas pelculas

    do cangao uma espcie de kolossos, ou seja, uma relquia que pode substituir o real, um

    portador de significados, deste modo, o personagem cangaceiro seria, de acordo com o

    autor, um portador de significados.

    Ao tratar das cerimnias funerrias em torno da morte dos imperadores e reis, em

    diferentes momentos e espaos da histria, Ginzburg problematiza como o mesmo rito se

    repete em sociedades diferentes. A representao aqui discute dois elementos: a idia do

    real ausente, no qual, pode minimizar traumas como a morte, atravs de um rito eternizador

    da figura do monarca e/ou imperador; e como esse rito pode ser tambm um espao de

    carter poltico, podendo ento diminuir os problemas na mudana do poder entre o morto,

    que ainda est presente, para o vivo que continuar.

    Para a representao contemplar esses elementos, precisaria contar com o poder da

    imagem e da imaginao. Nesse sentido, torna-se interessante partir do debate sobre esse

    44 FALCON, Francisco J. Calazans. Histria e Representao. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA,Jurandir (org.). Representaes: contribuies a um debate transdisciplinar. Campinas-SP: Papirus, 2000.45 Carlo Ginzburg. Representao. A palavra, a idia, a coisa. In: ______________. Olhos de Madeira. Novereflexes sobre a distncia. Trad. Eduardo Brando. 2 reimpresso. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

  • 34

    domnio, tomando como referncia Roger Chartier46, autor importante no que se refere a

    Histria Cultural e Histria das Representaes. Para Chartier, as representaes sociais so

    estratgias de pensar a realidade e constru-la,

    no so de forma alguma discursos neutros: produzem estratgias eprticas (sociais, escolares, polticas) que tendem a impor uma autoridade custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projetoreformador ou a justificar, para os prprios indivduos, as suas escolhas econdutas. 47

    Conforme nos adverte Chartier, as representaes supem um campo de

    concorrncias e de competies, as lutas de representaes tm tanta importncia como s

    lutas econmicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impe, ou tenta

    impor, a sua concepo do mundo social, os valores que so os seus, e o seu domnio. 48 A

    histria das representaes tendeu a se firmar como complemento e nova orientao da

    histria cultural, uma vez que significou, para os herdeiros da tradio dos Annales, a

    possibilidade de integrao dos atores individuais ao social e ao histrico.

    Sobre a integrao dos indivduos ao social e ao histrico, para Pedrinho Guareshi e

    Sandra Jovchelovitch,49 o papel da teoria das representaes o de conferir racionalidade

    da crena coletiva e sua significao, portanto, s ideologias, aos saberes populares e ao

    senso comum. Para os autores:

    [...] a teoria das representaes sociais estabelece uma sntese tericaentre fenmenos que, em nvel da realidade, esto profundamente ligados.A dimenso cognitiva, afetiva e social esto presentes na prpria noo derepresentaes sociais. O fenmeno das representaes sociais, a teoriaque se ergue para explic-lo, diz respeito construo de saberes sociaise, nessa medida, ele envolve a cognio. O carter simblico eimaginativo desses saberes traz tona a dimenso dos afetos, porque,quando os sujeitos sociais empenham-se em entender e dar sentido aomundo, eles tambm o fazem com emoo, com sentimentos e com

    46 CHARTIER, Roger. A Histria Cultural: entre prticas e representaes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,1990.47 Idem, p. 17.48 Ibidem.49 GUARESCHI, Pedrinho A; JOVCHELOVITCH, Sandra. (org). Textos em representaes sociais. 2 Ed.Petrpolis-RJ: Vozes, 1995.

  • 35

    paixo. A construo da significao simblica , simultaneamente, umato de conhecimento e um ato afetivo.50

    A cognio, o afeto e a imaginao encontram sua base na realidade social,

    identificaremos as representaes do fenmeno do cangao exatamente nas experincias

    dos cineastas, pois nelas encontram-se as emoes e a idia do senso comum. Guareschi e

    Jovchelovitc, em suas anlises da sociedade ocidental, encontraram nos meios de

    comunicao de massa, a exemplo do cinema e da televiso, representaes e smbolos se

    tornando a prpria substncia que define as aes, ou melhor, essas representaes

    encontram nesses meios de comunicaes uma forma de exercer ou no uma forma de

    poder. De forma inconsciente ou no, o cineasta Victor Lima Barreto apresentou em seus

    filmes uma representao do passado. A idia de um western estava presente na obra, mas

    outros elementos tambm o estavam, o filme transparecia numa histria de um passado

    distante o discurso modernizador do presente, atravs do poder da imagem.

    Mas da mesma forma que as comunicaes cotidianas exercem alguma dominao,

    elas tambm podem trazer formas de se questionar a sociedade que vivemos. No momento

    que se codificam a pobreza, a fome e a misria, por exemplo, ajudam a repensar a forma

    que nossa sociedade est se consolidando e apontando configuraes de resistncia a essa

    ordem social. No campo dos smbolos e dos signos, imagens da fome e da misria, de

    acordo com Guareschi e Jovchelovitc, tm um valor poderoso na nossa percepo.

    Por conta disso, um breve debate terico sobre o conceito de representaes

    importante para se compreender o valor simblico dela, sob a percepo do homem e da

    mulher ocidental. Referente ao assunto, Maria Minayo51 explica que representao social

    um termo filosfico que significa a reproduo de uma percepo retida na lembrana ou

    do contedo do pensamento. A concepo de Representao Social e seu uso na

    investigao cientfica, dentro das Cincias Humanas, no so recentes. Durkheim, dentro

    da Sociologia, foi o pioneiro nos trabalhos em torno do conceito de representaes sociais.

    50 Idem, p. 20.51 MINAYO, Maria Ceclia de Souza. O conceito de representaes sociais dentro da sociologia clssica. In:GUARESCHI, Pedrinho A; JOVCHELOVITCH, Sandra. (org). Textos em representaes sociais. 2 Ed.Petrpolis-RJ: Vozes, 1995.

  • 36

    Contudo, sua viso objetiva e positivista recebeu duras crticas, ao pensar as representaes

    da seguinte forma:

    As Representaes Coletivas traduzem a maneira como o grupo se pensanas suas relaes com os objetos que o afetam. Para compreender como asociedade se representa a si prpria e ao mundo que a rodeia, precisamosconsiderar a natureza e no a dos indivduos.52

    Ou seja, no existem representaes falsas, como analisou Minayo, bem como no

    existe essa objetividade nos estudos sociolgicos, sem considerar as ideologias, analisando

    apenas o fato. O acontecimento recebeu crticas principalmente no que dizia respeito ao

    poder de coero, que, de acordo com Durkheim, foi atribudo sociedade sob os

    indivduos, o que para os marxistas eliminava o pluralismo fundamental da realidade que

    era os antagonismos de classes.

    Entretanto, as contribuies de Durkheim foram importantes para o avano das

    pesquisas em torno das representaes sociais, do poder simblico da linguagem e de como

    a prtica social e suas experincias tanto do indivduo como do coletivo nos permitiu

    compreender o processo histrico e sociolgico a partir das emoes e do imaginrio social.

    A partir do conceito de Viso de Mundo discutida na obra A tica Protestante e o

    Esprito do Capitalismo53, onde explica que para a existncia da sociedade necessrio

    uma concepo de mundo e estas so construdas pelos grupos dominantes Weber

    entende que as representaes sociais estariam associadas ao estudo das idias, a partir da

    realidade social. Compreende-se que as representaes partem do real e das experincias

    sociais, a partir dela, no campo das idias, as vises de mundo construdas podem constituir

    um senso comum e um bom senso. Nessa perspectiva, foi feita a opo de discutir as

    representaes do movimento do cangao no filme de Victor Lima Barreto, na tica da

    hegemonia cultural.

    52 DURKHEIM, E. As regras do mtodo sociolgico. In: Pensadores. So Paulo: Abril, 1978, p. 79.53 WEBER, M. A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. So Paulo: Pioneira, 1985.

  • 37

    O debate em torno das representaes sociais numa perspectiva dialtica no

    marxismo, segundo autoras como Minayo54, surgiu na obra A Ideologia Alem de Marx e

    Engels55. Mas, o debate em torno da conscincia e da prtica social para a anlise

    flmica proposta no caberia aqui, diante disso trabalharemos com as contribuies de

    Gramsci e Lukcs. O conceito de hegemonia cultural cabe nas anlises propostas nesse

    trabalho, pois como foi bem colocado por Raymond Williams,56 este compreenderia o

    estudo das relaes entre elementos no modo de vida como um todo. Nesta discusso

    cabe um dilogo com os manuscritos de Gramsci, quando o autor destaca que as classes

    dominantes exercem o poder no apenas pela fora e a ameaa da fora, mas porque seus

    ideais passam a ser aceitos pelas classes subalternas, atravs do convencimento, e a imagem

    tem o poder de convencer e formar opinies.

    Formar opinies poderia ser entendido tambm com a formao da idia de senso

    comum. 57 Justamente esse senso comum, que influenciou na construo das

    representaes, que tele-transportou o fenmeno do cangao para o cinema, atravs da ideia

    do bandido sanguinrio, das aventuras e do serto seco. Essa concepo do que seria

    o cangaceiro e o seu habitat para o homem urbano, foi cinematografado e vendido pela

    companhia Vera Cruz. Considerando as contribuies tericas de Gramsci, entende-se que

    essas ideias relacionadas ao serto e ao movimento do cangao no cinema seria o uso

    concreto do senso comum, sob a ignorncia das massas, numa perspectiva ilusria; como a

    personificao de um mito que se encontrava no imaginrio e passa a ser concreto no

    cinema, essa concepo de mundo, ou melhor, essa representao de um mundo presente no

    pas, mas que foi retratado com algo que estava distante.

    Para Lukcks58 viso de mundo seria um conjunto de aspiraes, de sentimentos e

    de idias que rene os membros de um grupo [mais freqentemente, de uma classe social] e

    as opem aos outros grupos. O que pode ser visto nos filmes do gnero de cangao so,

    justamente, vises de mundo, idias que partiram da construo imagtica para consolidar o

    54 Minayo, 1995.55 ENGELS, Friedrich, MARX, Karl. A Ideologia Alem. So Paulo: Hucitec, 1999.56 WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.57 Cf.: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histrico. Traduo de Angelina Peralva. Rio de Janeiro:Paz e Terra, 1977.58 LUCKCS, G. Existencialismo ou marxismo? So Paulo: Senzala, 1967, p. 70.

  • 38

    discurso de um projeto poltico modernizador, elemento notado na anlise flmica. Nesse

    sentido, a palavra seria a mediadora entre essas concepes de mundo e suas

    representaes. Para Bourdieu, a palavra o modo mais puro e sensvel de relao social,

    a palavra a arena.59 Segundo o autor, atravs da comunicao verbal que as pessoas

    refletem e refratam conflitos e contradies prprios do sistema de dominao, onde a

    resistncia est dialeticamente relacionada com a submisso.

    Diante disso, Minayo faz a seguinte anlise:

    [...] a Escola Marxista coloca como denominador comum da ideologia,das idias, dos pensamentos, da conscincia, portanto, das representaessociais a base material. Mas introduz na sua anlise outro elementoimportante que a contradio da classe: enquanto a classe dominantetem suas idias elaboradas em sistemas ideologia, moral, filosofia,metafsica e religio as classes dominadas tambm possuem idias erepresentaes que refletem seus interesses, mas numa condio desubordinao. So idias marcadas pelas contradies entre seu lugar naproduo e sua condio social. 60

    Portanto, entende-se que as representaes sociais se manifestam em palavras,

    sentimentos e condutas, se institucionalizando, logo podem e devem ser analisadas a partir

    da compreenso das estruturas e dos comportamentos sociais. Nessa perspectiva, a

    linguagem a mediadora, pois ela toma forma de conhecimento e de interao social.

    Tendo em vista o poder da linguagem e a representao como mecanismo na disputa das

    concepes de mundo, se compreende que a linguagem cinematogrfica pode evidenciar

    representaes sociais do passado, a partir da construo imagtica de um determinado

    acontecimento histrico por parte do cineasta. O cineasta pode no ser um historiador, mas

    pertence a um determinado grupo social e se prope a falar por ele, aceitando o desafio de

    cinematografar o passado histrico, e esse produto o filme trar elementos ideolgicos,

    polticos e at mesmo projetos defendidos pelo grupo ao qual ele pertence. Diante disso,

    entende-se que a viso de mundo no homognea, pois expressa as contradies e

    conflitos diversos. O senso comum e o bom senso so sistemas de representaes sociais

    59 BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas lingsticas: o que falar quer dizer. 2 edio. So Paulo:EDUSP, 1998, p. 81-126.60 Minayo, 1995, p, 105.

  • 39

    empricos e observveis, capazes de revelar a natureza contraditria da organizao em que

    os atores sociais esto inseridos.

    E as linguagens podem evidenciar essas contradies, pois o filme, como a

    literatura, um produto cultural repleto de histrias e relaes pessoais. No conjunto da

    obra, percebe-se seu valor artstico, empreendedor e poltico, pois foi fruto do

    desenvolvimento industrial e dos meios de comunicaes, passando, ento, a influenciar a

    conscincia e o inconsciente, o imaginrio no campo das representaes do real.

    O filme um produto, arte e poltica. O cinema pode provocar emoes e aes,

    como tambm pode exercer a funo de agente da histria fazendo perceber representaes

    do passado e at mesmo projetos polticos pensados e estruturados para o futuro. Nesse

    sentido, considerando os domnios da Histria, suas abordagens e dimenses, temos no

    cinema um objeto de estudo possvel e tambm uma fonte documental para estudar as

    representaes do passado, do presente e assim termos uma nova perspectiva de escrita da

    histria. Logo, a interdisciplinaridade entre a Histria com a Antropologia, a Sociologia, a

    Psicologia, dentre outras cincias humanas, segundo Peter Burke61 e Lynn Hunt62, foram

    conseqncia dos estudos em torno de objetos ligados a uma Histria Cultural. Nesse

    sentido, localizamos as pesquisas em torno da imagem na perspectiva da Nova Histria

    Cultural. Por qu? Quando se prope a estudar e produzir conhecimento histrico, a partir

    do estudo da imagem, seja no cinema, na fotografia e at mesmo a Televiso, temos que

    considerar algumas dimenses da histria importantes, como o imaginrio e o cultural, pois

    trabalharemos no domnio da Histria das Representaes.

    Ao tratar das pelculas do gnero de cangao no cinema brasileiro, pode-se

    identificar a construo imagtica do espao nordestino, pois, no se est apenas lidando

    com representaes, mas tambm com o imaginrio, pois a partir dele que os cineastas

    construram as aventuras dos cangaceiros. Diante disso, a Histria do Imaginrio pode

    contribuir no estudo das representaes sociais, no momento que se considera o cinema e

    os filmes histricos 63 como arte e um possvel veculo ideolgico. Para Franois

    61 BURKE, Peter. O que histria Cultural? Trad. Srgio Ges de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.62 HUN,T Lynh. A Nova Histria Cultural. Trad. Jefferson Luis Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 1992,p. 01-29.63 Marc Ferro. Op. Cit.

  • 40

    Laplatine e Liana Trindade,64 a imaginao, na atualidade, configura-se um caminho

    possvel, permitindo atingir o real, como tambm vislumbra as coisas que possam se tornar

    realidade. Frisam o uso da imagem como forma de comunicao social, uma caracterstica

    da sociedade ocidental, logo as anlises sobre imaginrio, ideologia e smbolo partem dessa

    sociedade.

    Nesse sentido, na parte ocidental do planeta, os meios de comunicaes de massas

    como a TV, o cinema e at mesmo a fotografia, tornaram o imaginrio presente nas

    fantasias, nos projetos, em tipos de idealizaes individuais e outras expresses simblicas.

    Entretanto, Laplatine e Trindade destacam que ao falar de ideologia e smbolo, estariam

    analisando categorias diferentes.

    Para compreender essas diferenas, os autores definem imagem da seguinte forma:

    Imagens so construes baseadas nas informaes obtidas pelas experincias visuais

    anteriores. Ns produzimos imagens porque as informaes envolvidas em nosso

    pensamento so sempre de natureza perceptiva 65.

    Ou seja, imagens so coisas concretas, mas so criadas como parte do ato de

    pensar, diante disso entende-se que a imagem que temos de um objeto no o prprio

    objeto, mas uma faceta do que ns sabemos sobre esse objeto externo 66. Deve-se atentar,

    nessa perspectiva, que as imagens no so coisas passivas, se transformam, mudam, pois

    so criaes dos pensamentos humanos e estes mudam a todo momento quando se

    aproximam de outros conhecimentos. Conseqentemente, as imagens externas

    acompanharo cada nova informao.

    Portanto, a existncia do real, daquilo chamado de material configura-se em algo a

    ser percebido e interpretado, segundo Laplatine e Trindade. Nesse caso, o real seria a

    interpretao que os homens atribuem realidade. O real existe a partir das idias, dos

    signos e dos smbolos que so atribudos realidade percebida 67.

    64 LAPLATINE, Franois; TRINDADE, Liana. O que Imaginrio. So Paulo: Brasiliense, 2003.65 Idem, p. 10.66 Ibidem.67 Idem, p. 12.

  • 41

    Para melhor compreenso da realidade posta pelos autores, estes nos apresentam o

    seguinte conceito de idia:

    As idias so representaes mentais de coisas concretas ou abstratas.Essas representaes nem sempre so smbolos, pois as imagens podemser apenas sinais ou signos de referncia, as representaes aparecemreferidas aos dados concretos da realidade percebida 68.

    Justamente ser esse o ponto que diferenciar a imagem do smbolo, pois a imagem

    parte de um objeto concreto, enquanto o smbolo poder partir de uma representao, dando

    um carter sincrtico e polissemntico, funcionando com o movimento cultural dos

    indivduos sobre a mesma figura sinttica. Nesse caso o smbolo,

    [...] prevalece sobre a imagem, medida que, enquanto a imagem estmais diretamente identificada ao seu objeto referente embora no seja asua reproduo, mas a representao do objeto -, o smbolo ultrapassa oseu referente e contm, atravs de seus estmulos afetivos, meios paraagir, mobilizar os homens e atuar segundo suas prprias regras normativas(relacional ou de substituio). 69

    Podemos, ento, afirmar que tanto o smbolo quanto a imagem constituem-se em

    representaes. Entretanto, como o smbolo est diretamente ligado s sensaes e

    estmulos afetivos, segundo Laplatine e Trindade, este, portanto, estaria ligado a um

    sistema que, apesar de no substituir o sentido, pode certamente conter uma pluralidade de

    interpretaes.

    Possivelmente as representaes e os significados que sero dados a certo objeto ou

    a uma idia, depender da forma que ser identificado, melhor dizendo, da intencionalidade

    dos atores em uma dada situao onde as imagens esto operando.

    Entendemos aqui que a fora do simblico na vida social so reais, pois sua

    mobilidade promove experincias cotidianas desde os sentimentos de cura das doenas

    mentais e fsicas provocando sentimentos de raiva, alegria, de violncia e benevolncia.

    68 Ibidem.69 Idem, p. 13.

  • 42

    Dessa maneira, a imaginao no estaria profundamente ligada ao subjetivo, partiria de

    algo real, sendo eficaz para solucionar de forma fantasiosa as contradies reais, assim o

    imaginrio passa a ter poder material e poltico legitimando instituies e smbolos sociais.

    Se o cineasta pode no ser historiador, mas configura-se num intelectual e pertence

    a um grupo social, os smbolos e signos partem de algo real, logo seus roteiros flmicos tm

    como base as experincias desses sujeitos. As representaes do cangao partiram do mito

    construdo em torno das figuras de Lampio, Maria Bonita, Corisco e Dad, dentre outros.

    O que temos nos filmes de cangao so imagens construdas por homens urbanos a partir de

    suas interpretaes. Logo, deve-se compreender o campo mental daqueles que criaram uma

    srie de filmes relacionado ao cangaceirismo, nesse caso os intelectuais.

    O cineasta e o literato so intelectuais. 70 Portanto, entende-se que esse intelectual

    contribuiu para se pensar a produo cultural no Brasil, na dcada de 1950, quando cultura

    e poltica caminhavam lado a lado. Anterior aos anos cinqenta, no plano cultural,

    prevalecia o que vinha de fora. No caso do cinema, o padro hollywoodiano era visto como

    ideal, o cosmopolitismo estava em alta. Victor Lima Barreto, com o seu filme O

    Cangaceiro, trouxe um discurso diferente do que estava posto, pois precisava falar de um

    Brasil original, pois os intelectuais pertencentes as capitais do Rio de janeiro e So Paulo,

    segundo Barreto, esqueceram das coisas do Brasil e apenas reproduziam a cultura

    estadunidense, se tornaram aliengenas. Logo, se falar de um Brasil original, era tocar em

    temas nacionais e personagens caractersticos, para tal, ele elegeu o mestio cangaceiro

    como sumo da brasilidade. Diante disso, o estudo dos smbolos e das representaes so

    importantes para interpretarmos as concepes de mundo defendidas pelo cineasta na

    pelcula supracitada.

    70 No sentido gramsciano, intelectual todo aquele que cumpre uma funo organizadora na sociedade e elaborado por uma classe em seu desenvolvimento histrico. Podem-se dividir os intelectuais em dois grupos:os tradicionais e os orgnicos. Os intelectuais tradicionais podem ser membros do clero ou da academia, porseu turno, podem tanto se vincular s classes dominadas quanto s dominantes, adquirindo uma autonomia emrelao aos interesses imediatos das classes sociais. O chamado intelectual orgnico entendido como aqueleque se mistura massa levando a essa conscientizao poltica, ele age em meio ao povo, nas ruas, nospartidos e sindicatos. No caso da pesquisa, entendemos que o cineasta Victor Lima Barreto seria umintelectual tradicional. In: PORTELLI, Hugues. Gramsci e o bloco Histrico. Traduo de AngelinaPeralva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

  • 43

    II

    MODERNIZAR, URBANIZAR E INDUSTRIALIZAR: O CINEMA E AS POLTICASDE DESENVOLVIMENTO

    A produo em srie de filmes do gnero cangao surge no momento de intensa

    industrializao no pas. Neste perodo, no tardou a criao das grandes Companhias de

    Cinema, portanto, diante disso, no se pode estudar a obra de Victor Lima Barreto sem

    fazer uma anlise do contexto histrico a que ele pertenceu. O captulo ora apresentado faz

    um desenho da conjuntura econmica, poltica e cultural do pas entre 1950 e 1964, pois a

    histria do cinema brasileiro est atrelada s polticas de urbanizao e industrializao,

    elementos que impulsionaram a produo de O Cangaceiro. Pensar tais polticas

    desenvolvimentistas analisar as motivaes que deram sustentabilidade indstria

    cinematogrfica, s polticas de fomento cultura e como essa conjuntura influenciou na

    criao do primeiro longa-metragem com a temtica do cangao no cinema nacional.

    1. O Brasil e os novos tempos: a dcada de 1950

    A histria do cinema brasileiro est atrelada s polticas de urbanizao e

    industrializao pensadas para o pas. Diante disso, deve-se primeiro entender o contexto

    histrico e os elementos que influenciaram a industrializao cinematogrfica, para ento

    entendermos os fatores que incentivaram a produo de um filme como O Cangaceiro.

    Logo, faz-se necessrio analisarmos os aspectos polticos e econmicos que inseriram o

    Brasil no sistema capitalista.

    Partindo das anlises de Snia Mendona,71 o processo do capitalismo na histria

    recente do pas teve no Estado seu grande articulador. De acordo com essa autora,

    71 MENDONA, Snia Regina de. As bases do desenvolvimento capitalista dependente: a industrializaorestringida internacionalizao. In: LINHARES, Maria Yedda. Histria Geral do Brasil. 9 Ed. Rio deJaneiro: Elsevier, 1990.

  • 44

    Sem dvida alguma a industrializao brasileira teve seu arranco apartir das transformaes ocorridas ao longo da dcada de 1930.Estabeleceram-se ento os contornos iniciais da implantao de um ncleode indstrias de base, assim como a definio de um novo papel do Estadoem matria econmica, voltado para a afirmao do plo urbano-industrial enquanto eixo dinmico da economia. 72

    Contudo, apesar de uma grande produo historiogrfica sobre o assunto, que

    fundamenta a afirmao da autora em torno da existncia de polticas estatais que

    incentivaram a industrializao a partir da dcada de 1930 existem anlises

    historiogrficas divergentes, pois nessa mesma conjuntura permanecia uma estrutura

    econmica de carter continusta das prticas econmicas oligrquicas, de acordo com

    Mendona.

    Dentre essas anlises divergentes podem-se destacar crticas que enfatizam as

    polticas monetrias e cambiais, e colocam esse primeiro perodo de 1930 a 1945 como

    economicamente conservadores, com um governo contecionista, antiemissionista e

    antiinflacionrio, de carter antiindustrializante. Essas reflexes dificultam pensar

    hegemonicamente no perodo como esta fase de pura industrializao. Tendo em vista tais

    posies, autores como Joo Manuel Cardoso de Mello73 trouxeram contribuies

    importantes sobres tais divergncias. De acordo com Mendona, h outras anlises que

    valorizam a eficcia de mecanismos anticrises executados pelo Estado, ressaltando a

    dinamizao da industrializao. Entretanto, h perspectivas que destacam o carter

    beneficirio da burguesia industrial. Mesmo que houvera fraes oligrquicas presentes no

    Estado, isso no significava desprovimento com qualquer carter burgus. O empresariado

    industrial poderia no deter a hegemonia do processo, mesmo assim foi o ator estratgico

    nas alianas polticas do novo regime.

    Mas, ao analisar as polticas de fomento cultura entre 1930 e 1960, houve uma

    compreenso da interveno do Estado como importante para a criao de uma indstria

    cinematogrfica, assunto que ser tratado mais a frente.

    72 Mendona, 1990, p. 327.73 Cf.: MELLO, Joo Manuel Cardoso de. O Capitalismo tardio. So Paulo: Brasiliense, 1982.

  • 45

    Retornando ao estudo do contexto histrico entre 1930-1945, o Estado Brasileiro

    avanou seu processo de constituio enquanto Estado Nacional e Capitalista criando

    rgos e instituies e metamorfoseando os interesses sociais em nacionais. A ditadura

    estado-novista de 1937 neutralizou os regionalismos polticos, alterando as prticas de

    concesso de recursos e benefcios, compondo rgos com representantes de segmentos

    sociais distintos.

    Nessa conjuntura foram adotadas medidas para o desenvolvimento industrial, dentre

    elas, polticas de proteo fundiria, que rebaixou os juros e aboliu os impostos

    interestaduais. Outra atitu