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IMAGINÁRIO: SÉC. XV-XVII

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J O S É R O B E R T O T E I X E I R A L E I T E

VIAJANTES DOIMAGINÁRIO:A AMÉRICAVISTA DA EUROPA,SÉC. XV-XVII

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A maneira mais adequada de seaquilatar em suas dimensões exa-tas a importância das realizações artístico-científicas de Albert

Eckhout, Frans Post, Gerg Margraf e dosdemais artistas de Maurício de Nassau, e opapel inovador que lhes coube no que respei-ta ao rigor documental de suas imagens e àfidelidade com que se dedicaram a fixar ha-bitantes, animais, plantas, cenários e demaiscoisas do Novo Mundo, no qual trabalharamde 1637 a 1644, será decerto compará-las como que até então, e por cerca de século e meio,vinha sendo feito por alguns poucoscartógrafos, desenhistas e pintores europeus,o mais das vezes operando a distância (e por-tanto pintando “de ouvido”), guiados pordesenfreada imaginação e enganados por todotipo de superstição e preconceito – uma he-rança da Antigüidade clássica ou dos temposmedievais –, sem perceberem onde começa arealidade e termina a lenda.

A última década do séc. XV e as primeirasdo séc. XVI presenciaram, a par de uma revo-lução sem precedentes no campo dos conhe-cimentos geográficos, da navegação maríti-ma e da cartografia, o primeiro e mais durávelcontato com a ampla escala entre os europeuse os habitantes de regiões remotas da Ásia,África e América; ao mesmo tempo em queisso se passava, profundas mudançasconceituais ocorriam na arte da pintura, quedeixava de ser dócil instrumento a serviço dopapa ou do rei para, sob o influxo doHumanismo, voltar-se para a inquirição danatureza – como o exemplifica, de modo in-superável, a obra de Leonardo da Vinci. Nãoobstante tais desenvolvimentos, ainda pormuito tempo continuaria prevalecendo naEuropa, com relação ao Novo Mundo (e nãosó entre o povo miúdo mas também entrehomens de ciência), certa visão fantasiosa que,para muito além do que os olhos podiam verou a razão admitir, alimentava-se de narrati-vas extravagantes de viagens imaginárias ousobrenaturais, como as descritas na NavegatioSancti Brendani Abbatis, nas CoisasInacreditáveis para além de Tule, naCosmographia de Ético, na Ymago Mundi dePierre D´Ailly ou nas Viagens de JohnMandeville – entre tantas outras obras do

gênero, todas populares na época dos Gran-des Descobrimentos (1). Nessas regiões ma-ravilhosas para além de Tule ora estaria situ-ado o Paraíso Terrestre, com seus camposfertilíssimos, um clima de perene primavera,a Fonte da Juventude, a Árvore do Bem e doMal e o grande rio dividido em quatro braços,ora a terra inóspita, despovoada ou, pior,habitada por seres disformes ou monstruo-sos – arimastos dotados de um só olho natesta, artabaritos sem boca, ciápodos de umaúnica perna bifurcada em dois pés (2), blêmiossem cabeça com olhos nas espáduas, e maiscinocéfalos, andróginos, pigmeus, grifos,antropófagos e, numa palavra, toda uma hor-ripilante fauna subumana à qual se referem,em descrições que se pretendem realistas,escritores de autoridade e seriedadeindubitáveis, como Heródoto, Plínio, o Anti-go, Santo Agostinho, Solino e Isidoro deSevilha entre tantos outros (3). Não admiraassim que Colombo, na carta em que davacontas do que pudera observar em sua pri-meira viagem, esclarecesse, não sem alívio:“Não encontrei os monstros humanos quemuitas pessoas esperavam que eu encontras-se. Pelo contrário, toda a população é muitobem feita de corpo. Não são negros como naGuiné, e seu cabelo é liso”.

Monstros existiram, porém (como lhehaviam informado), no interior de Cuba, ho-mens de um único olho ou cinocéfalos que sealimentavam de carne humana, iguais talvezàqueles que na década de 1530 Jacques Cartiersustentava viverem na cidade fantástica deSaguenay, na América do Norte, ou aos ho-mens de olhos nos ombros que, em 1596,Walter Raleigh assegurava habitarem certaregião da atual Venezuela. Um desseshominídeos acéfalos, ao lado de toda umavasta série de outros derivados das ilustra-ções das Etymologiae de Isidoro de Sevilha,do séc. VII, foi “retratado” em 1493 na Crô-nica de Neremberg pelo mestre de Dürer,Michael Wohlgemut, e quase dois séculos emeio mais tarde ainda servia para exemplificaros habitantes da América Central, numa ilus-tração do Moeurs des Sauvages AmériquainsComparées aux Maoeurs des Premiers Temps(1724), do jesuíta Joseph-François Lafitau.Cinocéfalos antropófagos, um deles

A

1 Consulte-se, acerca de nar-rativas fantásticas, e entretantos outros estudos, osde: Alexis Chassang,Historia de la Novela y desus relaciones con laAntiguedad Griega y Lati-na , Buenos Aires,Poseidon, 1948; HowardRollin Patch, El Otro Mun-do en la Literatura Medie-val, México, Fondo de Cul-tura Económico, 1956;Guilhermo Giucci, Viajan-tes do Maravilhoso. O NovoMundo, São Paulo, Compa-nhia das Letras, 1992.

2 Descendente temporão detodos os ciápodos parece-nos ser – quem diria! – oAbaporu que Tarsila doAmaral pintou em janeiro de1928 para presentearOswald de Andrade, o qualde imediato identificou-ocomo “um selvagem, umacoisa do mato”. É significati-vo o nome que a artista deua seu estranho personagem,colhido no Tesoro de laLengua Guarani, do padreAntonio Ruiz de Montoya,publicado em 1639: abaporuquer dizer antropófago,comedor de gente.

Em função do espaço, nestetexto as notas não cor-respondem necessariamenteàs páginas das remissões.

JOSÉ ROBERTOTEIXEIRA LEITE éprofessor de Históriada Arte do Instituto deArtes da Unicamp evice-presidente daAssociação Brasileirade Críticos de Arte. Éautor de, entre outros,Dicionário Crítico daPintura no Brasil.

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encarapitado no que parece ser uma lhama,ocorrem por outro lado numa velhaxilogravura germânica do Underweisung undUszlegung Der Cartha Marina de Fiers, pu-blicado em 1530.

De todos os hábitos dos naturais do NovoMundo, nenhum causaria decerto maior es-panto entre os europeus que a antropofagia,causa aliás de constantes discussões filosófi-co-religiosas acerca da verdadeira índoledesses gentios, descendentes de Adão e Evapara alguns, mas para outros pouco mais doque bestas-feras – o que de resto propiciavaum bom pretexto de escravizá-los. Seria ne-cessário que em 1537 uma bula papal reco-nhecesse explicitamente a natureza humanados americanos (e, por conseguinte, suafiliação a Adão e Eva, como todos os demaisseres humanos) para que se calassem os que,como Paracelso em 1520, punham em dúvidatal genealogia, admitindo, quando muito, quedescendessem de algum outro Adão. Pode-seimaginar a conturbação dos teólogos ante essapossibilidade de existência de mais de umAdão, e bem assim a aflição com que recebe-ram a notícia da descoberta de um quartocontinente, em total desacordo com o queestipulavam os antigos!

Em face da enorme comoção que os cani-bais despertaram entre os primeiros europeusque deles tiveram notícia, era previsível queas mais antigas figurações dos habitantes doNovo Mundo mostrassem antropófagos, comcocares de penas à cabeça e saiotes tambémde penas que lhes atenuavam a nudez. Assimocorre numa xilogravura de artista alemãoilustrando o Novus Mundus de Vespúcio (de1505), na qual pode-se ver, à beira-mar, onzecanibais entre os quais mulheres e crianças,tendo ao longe duas caravelas fundeadas. Naedição germânica impressa em Angsburg porJohann Froschauer, tal gravura é acompanha-da de curto texto-legenda, equivalente à épo-ca a praticamente quanto se sabia e pensavaacerca dos americanos:

“Essa imagem nos mostra o povo e a ilhadescobertos pelo Rei Cristão de Portugalou por seus súditos. Essas pessoas andamnuas, são bonitas e têm uma cor de peleacastanhada, sendo bem construídas de

corpo. Cabeças, pescoços, braços, vergo-nhas e pés, tanto de homens quanto demulheres, são enfeitados com penas. Oshomens têm também no rosto e no peitomuitas pedras preciosas. Ninguém é pos-suidor de coisa alguma, pois a proprieda-de é de todos. Os homens tomam pormulher a que mais lhes agrade, podendoser sua mãe, irmã ou amiga, já fazem dis-tinção. Guerreiam entre si e devoram unsaos outros, inclusive os que matam emcombate, cujos corpos penduram paraassar sobre fogueiras. Vivem 150 anos. Enão possuem governo”.

A beleza física dos canibais, a contrariara noção até então prevalecente de sua mons-truosidade, o andarem despidos, sualongevidade, o não possuírem propriedadeprivada ou qualquer forma de governo, tudoisso (que mais tarde seria reduzido às devidasproporções) parecia aproximar os nativos daAmérica daquela perdida Idade Áurea da raçahumana à qual se reportam Virgílio e Ovídio,e que motivara ao pintor Piero di Cosimoimportante ciclo de pinturas (4); Ronsard, numpoema dedicado a Villegaignon, não hesitaem afirmar, dos indígenas do Brasil, que “[...]ils vivent maintenant en leur âge doré”.

Derivam dessa visão nostálgica e irrealistados ameríndios aproximados a povos antigoscertas representações em que assumem apa-rência hercúlea ou apolínea, de corpos bemproporcionados como os de deuses gregos:não lhes surpreendera mesmo um viajanteitaliano, Verazzano, certa “[...] aria dolce esoave imitando molto l´Antico” (5)? Entre taisimagens de naturais da América assemelhan-do-se, pela anatomia e até pela postura, abiotipos clássicos, mediterrâneos, citemos asdevidas a dois célebres artistas alemães,Albrecht Dürer e Hans Burgkmair. Às mar-gens da página 411 de um Livro de Horasfeito para Maximiliano, ilustrando um salmoe com data de 1515, Dürer desenhou umamericano de corpo atlético e rosto quasefeminino, empunhando um tacape e tendo àcabeça cocar tupinambá, além de sustentar namão esquerda um escudo circular. Não se sabeonde ou quando o grande artista conseguiuver de perto artefatos de índios brasileiros,

4 Cf. Erwin Panofsky, “LesOrigines de l´HistoireHumaine”, in Essaisd´Iconologie. Les ThèmesHumanistes dans l´Art dela Renaissance, Paris,NRF/ Gallimard, 1967, pp.53-103.

5 Cf. H. Honour, op. cit., p.270. Tal aproximação dosnaturais do Novo Mundo àEuropa Clássica pode terporém correspondido a umestratagema no sentido deneutralizar ou amenizar odesconcerto gerado pelodescobrimento de umaquarta parte do mundo,não mencionada nas Es-crituras. Pelo mesmo mo-tivo houve quem quisesseidentificar, nos índios ame-ricanos, os descendentesdas dez tribos perdidas emIsrael, como sustentavamo autor dos Diálogos dasGrandezas do Brasil(Ambrósio FernandesBrandão? C. 1618) e DiegoAndrés Rocha (TratadoUnico y Singular del Orígende los Indios, Lima, 1681).

3 A respeito de monstros con-sulte-se: Rudolf Wittkower,“Marvels of the East: aStudy in the History ofMonsters”, in Journal of theWarburg Institute, V, 1942,pp. 159-96; JurgisBaltrusaitis, Le Moyen AgeFantastique , Paris,Armand Colin, 1955. Comoescreveu Hugh Honour, nocapítulo “Science andExotism” da coletâneaJohan Maurits van Nassau-Siegen 1604-1679 (Haia,The Johan Maurits vanNassau Stichting, 1979, p.270), “monstros como es-ses” (referindo-se aos des-critos por Mandeville) “ti-nham já uma longa histó-ria“. Referências a eles fo-ram feitas na Antigüidadepor Plínio, PomponiusMela e Solinus; a crençaem sua existência adquiriuautoridade eclesiásticacom Santo Agostinho; etudo isso foi transmitido àIdade Média, junto commuitas outras tradiçõesclássicas, através dasEtymologiae de SantoIsidoro de Sevilha, de co-meços do séc. VII. Foramtambém ilustrados em ma-nuscritos desse estranhocompêndio de informaçãoe desinformação que ser-viu como obra de referên-cia enciclopédica ao longode todo o mundo medieval.

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mas parece não haver dúvidas de que os viu,tal a veracidade com que os representou (6).Por sua vez, Burgkmair representou, no Tri-unfo de Maximiliano (só impresso em 1526,porém executado em data bem anterior), umindígena americano com cocar, colar, ombrei-ras e saiote de penas, sustentando na mãodireita uma clava e erguendo ao alto, com aesquerda, um escudete do qual pendem pe-nas. Tanto quanto Dürer, Burgkmair nuncaviu de perto um americano, mas pode ter-sedeparado com armas e trajes trazidos do NovoMundo por viajantes. Tanto nesse seu dese-nho quanto em outro do Triunfo deMaximiliano, também mostrando umameríndio, observa-se uma mescla de elemen-tos brasileiros e mexicanos, sendo tupinambáso cocar e a coleira de penas visíveis no pri-meiro desenho, e provavelmente astecas oescudo e a clava. No mais, cumpre salientarque os ameríndios de Burgkmair mais se as-semelham a africanos, e que um deles exibeuma inadmissível barbicha, isso sem falar nosaiote de penas que pudicamente esconde asvergonhas do pretenso índio do Brasil.

Dürer e Burgkmair, repetimos, jamaisviram um nativo americano; americanos,porém, começaram desde muito cedo a che-gar à Europa, levados por colonizadores emarinheiros. Assim é que habitantes da TerraNova foram levados para Portugal em 1501 epara a Inglaterra em 1502; astecas visitaram

6 Cf. Jean Michel Massing,“Early European Images ofAmerica: The EthnographicApproach”, in Circa 1492.Art in the Age ofExploration, Washington D.C., Jay A. Levenson, Edi-tor. Nacional Gallery of Art,New Haven e Londres, YaleUniversity Press, 1991, p.516: “O tacape por ele de-senhado é quase idênticoa um espécime hoje noMusée de l’Homme emParis, o qual talvez seja oque pertenceu ao chefetupinambá Quoniambec,uma arma trazida do Brasilpor André Thevet em 1555ou 1556. Dürer evidente-mente não tinha a menoridéia da função desse tipode maça, e transformou-anuma lança. Isso prova queele certamente nunca viuum guerreiro tupinambá,mas que estava familiariza-do com a arma”.

7 Christoph Weiditz (1500-59),pintor, medalhista e dese-nhista nascido emStrasbourg, fixou-se em1529 na Espanha, ondeproduziu o Trachtenbuch,coletânea de desenhos re-tratando a sociedade espa-nhola da época, inclusiveonze astecas, que Cortéstrouxera em 1528 para acorte. Weiditz ficou conhe-cido como o primeiro artis-ta europeu a fixar a aparên-cia de indígenas mexica-nos, observados do natu-ral.

8 Jean Paulmier de Gonneville,a bordo do Espoir, por duasvezes entre 1503 e 1505tocou terras do Brasil (San-ta Catarina e Bahia), em-bora pensasse ter chega-do a África do Sul. Aoretornar à Europa levou umjovem nativo a quem bati-zou com o nome deEssomeric e a quemperfilhou, fazendo-o maistarde casar-se com umaparenta. Descendentesdesse Essomeric ainda vi-viam em Lisieux no séc.XVII. Cf. Rubens Borba deMoraes, BibliographiaBrasiliana, Amsterdã e Riode Janeiro, Colibris, 1958,I, pp. 305-6.

9 Consulte-se, a respeito:Ferdinand Denis, Une FêteBrésil ienne Célebrée àRouen en 1550 etc, Paris,J. Techner, 1850. A Biblio-teca de Rouen conserva ummanuscrito anônimo, ilus-trado com dez miniaturas,com a descrição do que foiessa entrada, vendo-se nasminiaturas os indígenastupinambás que participa-ram das festividades. Al-guns deles, como é sabido,já viviam na cidade desdealguns anos antes, em fun-ção das relações comerci-ais que desde os primeirosanos do séc. XVI uniam ascostas do Brasil àNormandia. Duas importan-tes talhas em madeira decarvalho, uma e outradatáveis de 1530 e conser-vadas no Museu de Rouen,

(à força) a Espanha em 1529, tendo sido en-tão retratados por Christoph Weiditz (7); sabe-se de um índio brasileiro na Inglaterra em1532 e de outro – o célebre Essomeriq – naFrança no mesmo ano (8); hurões foram tra-zidos para esse mesmo país em 1536 e uns 50índios brasileiros participaram, em 1550, daentrada de Henrique II em Rouen (9); semfalar daqueles levados em 1613 à França paraali serem batizados (10). Ignora-se contudose Colombo ou Cabral traziam a bordo ame-ricanos, ao regressarem de suas viagens de1492 e 1500 respectivamente a Espanha e aPortugal. Por isso mesmo é que se torna tãoenigmática uma notável pintura do MuseuGrão Vasco em Vizeu, representando umaAdoração dos Reis Magos e atribuída ao pró-prio Vasco Fernandes (1475?-1541?). A pe-culiaridade maior dessa obra é que retrataBaltasar não sob a aparência tradicional deum negro ou mouro, mas sim como um autên-tico tupinambá. O quadro dataria dosprimeiríssimos anos do séc. XVI, 1501-06, eparece estar estreitamente ligado à descobertado Brasil pelo almirante Pedro Álvares Cabral,o qual, de acordo com certos autores talvezdemais imaginosos, teria sido figurado comoo Rei Mago que, de joelhos, adora o MeninoJesus (11). Não havendo indicação de ter Cabraltrazido índios a Portugal, e como evidente-mente Vasco Fernandes ou quem tenha sido oautor da obra jamais esteve no Brasil, forçoso

Louis de Merval, água-forte do livro L’Entrée de Henri II à Rouen (1868), col. José Mindlin

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é concluir que a figura do índio deve ter sidoexecutada a partir de esboços feitos in loco poralguém que observou de perto um desses indí-genas, a ponto de poder dele dar uma versãoetnograficamente convincente.

No grande retábulo do Jardim das Delíci-as de Hyeronimus Bosch (1450?-1516?) –cuja execução situa-se também nos anos ini-ciais do séc. XVI –, detectou Carl Justi, emfins do século passado, certa atmosfera tropi-cal e oceânica, como se o mundo-de-idéiasdo artista “tivesse sido estimulado pela re-cém-descoberta América e por desenhos doseu cenário tropical” (12); mas os animaishíbridos e as rochas compósitas visíveis notríptico do Prado antes se relacionam com aÍndia mítica descrita por Eusébio em sua CartaAlexandre a Aristóteles, e os animais e vege-tais exóticos ali figurados, como o elefante, agirafa e a árvore-dragão, têm como fonte asxilogravuras que ornam a Reise ins HeiligeLand de Breydenbach (1486), nada tendo porconseguinte a ver com o Novo Mundo (13).

Muita tinta já correu também a respeitode outra importante pintura quinhentistaflamenga: a Paisagem das Índias Ocidentaisde Jan Mostaert (1475-1556), que em 1604Carel van Mander descreveu no Schilderboekcomo “[...] uma paisagem das Índias Ociden-tais, como pessoas nuas, uma rocha fendida euma estranha construção de casas e chocas”,dizendo-a obra inacabada, e atribuindo-aàquele mestre. Identificado em 1909 nos de-pósitos do Museu van Stolk de Haarlem eexposto vinte anos mais tarde em Londressob o título bem mais sedutor de A Conquistada América, o quadro causou sensação, divi-dindo desde então os especialistas, uns vendonele (como Leo van Puyvelde) não mais queuma paisagem imaginária, outros (entre osquais E. Weiss, Edouard Michel e mais re-centemente Erik Larsen) acreditando tratar-se de um episódio real da luta entre conquis-tadores europeus e aborígines americanos.Michel julgou ver os europeus como espa-nhóis, após ter identificado a Cruz de SantoAndré no pavilhão que um dos soldados car-rega (14); quanto ao sítio em que a cena trans-corre seria algum lugar do México. O mesmohistoriador vincula a pintura aos tesourosastecas que Cortés enviou a Carlos V: a obra

dataria de entre 1523 e 1525 e reconstituiriaao pintar um combate narrado por antigo par-ticipante (15).

Tanto ou até mais fantasiosa é a teoria deLarsen, segundo a qual os europeus retrata-dos são portugueses e não espanhóis, o cená-rio não é mexicano porém brasileiro e os in-dígenas são tupinambás, nunca astecas; a obraseria contemporânea das festas que marca-ram a entrada de Henrique II em Rouen (daqual, como se disse, participaram váriosíndios brasileiros), e também do aparecimentodo livro em que Hans narrava seu cativeiroentre os tupinambás, ou seja, teria sido pinta-da entre 1550 e 1556 (16), nos derradeirosanos da vida de Mostaert. Em nossa opiniãoa Paisagem em questão é obviamente imagi-nária, aparentando-se vaga e remotamente aoutras representações de cenários exóticos ouprimitivos, como os que aparecem nasxilogravuras que adornam o Trattato diArchitettura de Filarete ou o De Architetturade Vitrúvio, as diversas pinturas de Piero diCosimo (1461-1521) dedicadas ao tema doprimorum hominum vita (17) ou mesmo numapintura como Os Primórdios da Civilizaçãode Cornelis van Dalen (Bussum, Países Bai-xos, Coleção Dr. D.P.R.A. Bouvy) (18). Nes-se ponto cumpre ceder a palavra a H. Honour:

“O modo de vida pastoral, correspondenteà Idade de Ouro dos indígenas, contrastacom a Idade de Ferro dos espanhóis, sim-bolizada pela presença de homens arma-dos que avançam em meio a uma paisagempacífica. A pintura tem sido com freqüên-cia descrita como um exemplo de exotismo,mas na verdade os únicos elementos exó-ticos que contém limitam-se a um macacoe um papagaio. Seu cenário assemelha-seao da Expulsão do Paraíso (Clark Institute,Williamstown, Mass.) do mesmo artista,do qual seria em verdade uma contrapartemoderna. Embora algumas tentativas te-nham procurado identificar a cena com umepisódio específico da crônica da Conquis-ta, aparentemente Mostaert buscou ilustrarem termos genéricos a lenda negra da cru-eldade espanhola, com o pensamento vol-tado tanto para a Europa quanto para a Amé-rica” (19).

focalizam as atividades decorte, embarque e trans-porte do pau-brasil, obrasde autor francês não iden-tificado e de excelente qua-lidade.

10 A história desses indíge-nas, trazidos a Paris porFrançois de Razilly “pourestre baptizes er conuertitza la foy de Jesus Christ etpresentez a sa Ma. te enlannee presente 1613” foicontada por Yves d´Evreuxna Suite de l´Histoire deschoses plus memorablesadvenuës en Maragnan, èsannées 1613 & 1614Second Traité (Paris,1615).

11 Cf. José Teixeira, em textopublicado em Circa 1492etc. (pp. 152-3): “Quemquer que tenha encomen-dado essa imagem deve tertido conexões especiaiscom o Brasil, e na verdadeacredita-se que o Rei Magoajoelhado no primeiro pla-no seja um retrato ao natu-ral de Pedro Álvares Cabral(1468-1519), que em 1500comandava a primeira fro-ta portuguesa que atingiuo Brasil. [...] Ao tempo emque a Adoração foi pinta-da, Cabral teria uns 35anos. Sua história pessoalpode explicar sua aparên-cia mais idosa no quadro.[...] Embora não existamregistros históricos da par-ticipação de Cabral na en-comenda do retábulo, sa-bemos, por um documen-to datado de 22 de setem-bro de 1500, que DomFernando Gonçalves deMiranda, Bispo de Viseuentre 1487 e 1491, preo-cupado com os custos dapintura que ainda não ti-nham sido cobertos, esta-va procurando apoio finan-ceiro de alguns patronosdas artes. Por esse tempo,pouco após seu regressoda viagem ao Brasil, diz-se que Álvares Cabral pas-sou algum tempo na cida-de de Viseu ou na aldeiavizinha de Azurara da Bei-ra (atualmente Mangual-de), onde parentes seuspossuíam propriedades.Seus ancestrais tinhamsido enterrados na Sé deViseu, e seu avô fora umrespeitado proprietárionessa cidade”. Como sepode constatar são apenashipóteses sem possibilida-de de confirmação. Quan-to a Adorações, em que umdos Reis Magos, mais es-pecificamente Baltasar,viu-se representado sob aaparência de um índigenabrasileiro, o Museu Histó-rico e Diplomático do Mi-nistério das Relações Ex-teriores possui uma cópiaou réplica da de VascoFernandes, e pessoalmen-te nos recordamos de tervisto outra composição emigreja de Salvador, em1960, e uma quarta em lei-lão realizado no Rio deJaneiro nos anos 1970.

12 Apud Eilhelm Fraenger,

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Que nem sempre os indígenas brasileirosforam vistos como vítimas – e sim como ter-ríveis algozes – comprova-o anônima pinturade 1550 no Museu Nacional de Arte Antigade Lisboa: trata-se de um Inferno à maneirade Jan Mandyn ou de outro qualquer imitadorde Bosch, no qual o grupo de demônios sub-mete condenados à tortura, sob as vistas deum satanás significativamente ostentando àcabeça cocar e vestindo o que pode ser umtraje de penas, não muito diferente aliás dousado por Baltasar na Adoração dos ReisMagos de Vasco Fernandes, há pouco menci-onada. O espaço central da composição éocupado por gigantesco caldeirão ferventesobre uma fogueira, tendo dentro cinco dana-dos, dois deles tonsurados. Embora caldei-rões escaldantes fossem freqüentes nas re-presentações pictóricas do inferno desde finsda Idade Média, não há dúvida de que o con-siderável know-how dos canibais brasileirosem cozinhar seus inimigos foi o que sugeriuao autor da pintura, ou a quem a encomendou(quem sabe um antigo colono no Brasil),emprestar a satanás a aparência de um feroztapuia, mesmo porque como demônios é quenão poucos lusitanos devem ter visto exces-sivamente de perto tais selvagens, mais oumenos pela época em que a obra foi feita.

Das mais belas representações de indíge-nas brasileiras é uma xilogravura de autorignorado, mas de tal qualidade que já houvequem a atribuísse a Jean Cousin, no livro C’estla Deduction du Sumptueux Ordre PlaisantzSpectacles, publicado por Jean le Prest emRouen em 1551. O livro celebra a entradatriunfal de Henrique II e Catarina de Médiciem 1550 em Rouen e descreve as festividadesentão organizadas pelos habitantes dessa ci-dade normanda. O ponto mais elevado dascelebrações foi decerto a construção de umaaldeia indígena junto a uma imitação de flo-resta tropical à qual não faltavam árvores earbustos trazidos do Brasil, ao lado de outrospintados de vermelho para simularem o pau-brasil. Cerca de 50 índios brasileiros, que jáviviam na cidade, foram convocados a parti-cipar da festa, junto com outros 150 mari-nheiros disfarçados de índios, desnudos e comseus corpos pintados. Nessa autêntica insta-lação ou quadro vivo podia-se ter uma idéia

de como viviam os naturais do longínquoBrasil, vendo-se aqui um casal entretendo-senuma rede, ali uma escaramuça, acolá ho-mens caçando ou pescando, e assim por dian-te. A festança acabou com a simulação de umcombate entre dois grupos de guerreiros, fin-do o qual a taba foi incendiada. É essa aldeiabrasileira com seus moradores que axilogravura Figure des Brisilians esplendi-damente retrata (20). Seis anos depois, JeanDugord dava a lume novo relato, agora emversos, das festividades de 1550: Les Pourtreset Figures du Sumptueux Ordre, PlaisantzSpectacles, ilustrada com as xilogravuras daedição anterior, inclusive a Figure desBrisilians, só que numa impressão menosnítida, pelo desgaste da matriz.

Entre os companheiros de Jean de Léry naviagem que fez em 1555 ao Brasil, achava-secerto Jean Gardien, “expert en l’art duportrait”, como a seu respeito escreveu opróprio Léry na Histoire d’un Voyage Faiteen la Terre du Brésil, publicada em LaRochelle em 1578:

“E muitas vezes roguei a certo JeanGardien, de nosso grupo, perito na arte doretrato, que desenhasse aquele [animal] edo mesmo modo vários outros, não apenasraros, como também totalmente desconhe-cidos entre nós. Mas, para meu pesar, JeanGardien não quis jamais fazê-lo”.

Se Jean Gardien não chegou a produzir,por preguiça, birra ou qualquer outro motivo,o bestiário que lhe pedia Léry, quem terá sidoo autor das ilustrações que, passadas para atécnica da xilogravura, adornam a Histoire?Segundo Borba de Moraes, Jean de Léry elepróprio ou alguém trabalhando sob sua orien-tação direta, tal a fidelidade etnográfica deque dão prova (21).

Por nove meses prisioneiro dos tupi-nambás, durante o ano de 1549, o alemão HansStaden, de Hessen, publicou em 1557 o relatode suas aventuras no Brasil – a WarhaftigeHistoria und beschreibung eyner Landtschafftder Wilden, Nacketen, GrimmigenMenschfresser Leuthen, in der NewenweltAmerica gelegen etc., ilustrada por mais de50 xilogravuras, entre mapas, combates,

The Mil lenium ofHyeronimus Bosch. Lon-dres, Faber and Faber,1952, p. 57.

13 “Índia” foi por muito temponome genérico pelo qual seentendeu ou identificoutudo quanto fosse bizarro,estranho, misterioso ouexótico. Outra expressãoque aparece amiúde emtextos antigos, à maneirade Calicut, Calcou, Calcut,tem o mesmo amplo signi-ficado.

14 Essa Cruz de Santo Andréera em verdade um acrés-cimo bem mais tardio, quedesapareceu com facilida-de por ocasião de uma lim-peza a que foi submetida apintura.

15 E. Michel, “Un TableauColonial de Jan Mostaert”,in Revue Belge d´Archéo-logie et d´Histoire de l´Art,I, 1931, pp. 133-41.

16 Erik Larsen, “Once moreJan Mostaert´s West-Indian Landscape”. Sepa-rata de Mélangesd’Archéologie et d’Histoirede l ’Art Offerts auProfesseur JacquesLavalleye, Louvain, 1970,pp. 128-37.

17 Convém ainda recordarque homens selvagens,focalizados isoladamenteou em meio a cenários exó-ticos, aparecem com mui-ta freqüência na obra denumerosos gravadoreseuropeus desde meadosdo séc. XV, como o Mestredas Cartas de Jogar, oMestre da Paixão deNuremberg, o Monogra-mista B. G., MartinSchongauer, Israel vanMeckenen, etc.

18 Leo van Puyvelde, LaPeinture Flamande auSiècle de Bosch etBreughel, Paris, Elsevier,1962, pp. 240-1, nos 128-30. Cornelis van Dalen tor-nou-se mestre em Antuér-pia em 1566, ignorando-sequase tudo o mais a seurespeito.

19 H. Honour, op. cit., p. 282.

20 Indígenas do Brasil, já odissemos, não eram pre-sença incomum em Rouen,em meados do séc. XVI.Montaigne ainda os encon-traria em 1563, e do diálo-go com um deles é quenasceria o célebre ensaio“Dos Canibais” (Essais, I,31). Outro grande escritorfrancês, François Malher-be, manifestaria enormecuriosidade pelos nossosindígenas, referindo-se emdiversas cartas aos seistupinambás trazidos doMaranhão por Rasilly em1613. Alude Malherbe àaparência física dos indí-genas, às suas danças einstrumentos musicais,adiantando que um famo-so alaudista francês domomento, Gautier, compôs

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embarcações, cenas da vida dos índios, fes-tins antropofágicos, cenas do seu cativeiro eaté dois exemplos da fauna local, um tatu eum gambá. De qualidade discretíssima, algu-mas das xilogravuras podem ter sido basea-das em esboços feitos pelo próprio HansStaden após seu regresso à Europa, enquantomuitas outras, que pouco ou nada têm a vercom o texto, foram simplesmente fornecidaspelo editor para de algum modo embelezaremo livro (22).

Também de 1557 é Les Singularitez de laFrance Antarticque, de André Thevet, livroilustrado com 41 estampas xilográficas, setedas quais assinaladas com pequena cruz deLorena – marca talvez de Guillaume Tory,ou, segundo outros, de um ateliê localizadona Lorena –, duas com as iniciais J.C. (docélebre Jean Cousin) e as demais sem assina-tura ou marca de identificação. Cumpre ob-servar que, a quem quer que sejam devidas asestampas, elas se baseiam em “portraits aunaturel faits d’après creon que j´ai rapportéde dessus les lieux”, como esclarece o pró-prio Thevet, ficando em aberto a questão de

se ele mesmo desenhou todas as singularitezou se, como seu rival Jean de Léry, tambémdispunha no Brasil de um “expert en l’art duportrait”. Thevet reaproveitaria muitas ilus-trações do seu livro de 1557 na CosmographieUniversalle publicada em 1575 em Paris, eem outro trabalho, Les vrais Portraits et Viesdes Hommes Illustres Grecs, Latins, et Payensetc., de 1584, incluiria retratos e biografias decinco indígenas americanos: ParaoustiSatovriuna, rei da Flórida, Paracoussy, rei doPrata, Montezuma, Ataliba e Quoniambec,ou Cunhanbebê; o retrato do último teria sidofeito no Rio de Janeiro.

O Recueil de la Diversité des Habits etc.de François Descerpz (Paris, 1562) retrata em129 xilogravuras, cada qual acompanhada deum quarteto em rimas, outros tantos costu-mes dos povos da Europa, Ásia, África e “dasilhas selvagens”, tudo, como esclarece o sub-título, “fait apres le naturel”. As xilogravurasestão dispostas duas a duas em cada página,e seis se relacionam ao Brasil: Le Portugaise La Portugaise, La Femme Sauvage eL´Homme Sauvage e sobretudo Le Brésilien

uma sarabanda sobretema musical tupinambá;esclarece que um dos seistupinambás morreu doisdias depois da chegada, eque outros estavam muitodoentes (“je crois que notreair ne leur est pas sain”);menciona o batismo e aposterior apresentação edespedida dos tupinambásao Rei, o qual lhes deucomo souvenir, antes queretornassem ao Brasil, cru-zes de ouro tendo flores-de-lis incrustradas às qui-nas. Cf. Borba de Moraes,op. cit., I, pp. 6-7.

21 Parece-nos óbvio, porém,que Léry não era desenhis-ta, ou ele mesmo teria de-senhado os animais curio-sos que em vão pediu queJean Gardien desenhasse.

“Figura de

Brasileiros”,

xilogravura que

ilustra o livro C’est

la Déduction du

Sumptueux Ordre...

(Rouen, 1551),

coleção José

Mindlin, São Paulo

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e La Brésilienne. Muito se tem discutido acer-ca da autoria dessas ilustrações, por algunsatribuídas ao próprio Descerpz; ora, ele mes-mo esclarece em seu texto serem as mesmasbaseadas “en quelques desseins du deffunctRoberval , Capitaine pour le Roy, & d’uncertain Portugais ayãt frequenté plusieurs &divers pays”. Não se trata por conseguinte derepresentações imaginárias de indígenas doBrasil, porém de figuras tomadas do natural,se bem que adaptadas ao gosto europeu porquem as transpôs para a técnica da xilogravura,tornadas mais elegantes, de formas mais bemproporcionadas. Uns oitenta anos mais tarde,Albert Eckhout retomaria o expediente derepresentar aos pares os tipos étnicos que lheforam dados a conhecer no Brasil holandês,quem sabe sob a influência desse que já foiconsiderado o primeiro livro de etnografiajamais publicado.

Enquanto tais coisas sucediam no Brasil,em outras regiões americanas, pela mesmaépoca, artistas europeus também se dedica-vam a representar tipos e costumes do NovoMundo. Um desses artistas foi o cartógrafofrancês Jacques Le Moyne, também chama-do De Morgues, enviado em 1564 à Flóridacomo integrante da expedição colonizadorachefiada por Laudonnière. Depois que o FortCaroline, em que se tinham estabelecido, viu-se destruído pelos espanhóis, Le Moyne (dospoucos que escaparam com vida) radicou-seem Londres como empregado de Sir WalterRaleigh, para aquela cidade levando desenhose aquarelas que produzira na América. Apóssua morte em 1588, seu diário de viagem e asilustrações correspondentes foram adquiridospor Theodor de Bry, que passou boa parte domaterial para a técnica da gravura em metal,publicando em 1591 a Brevis Narratio eorumquae in Florida Americae provincia Gallisacciderunt. Uma das mais antigas pinturas deassunto norte-americano, datada de 1564 edevida a Jacques Le Moyne De Morgues, foivendida em 1967 pela Sotheby’s de Londres:representa indígenas garimpando ouro nasfaldas dos Montes Apalaches e, a despeito daexecução pesada e algo desgraciosa, é docu-mento palpitante de vida. A composição des-sa pintura a óleo é idêntica à que se vê naPrancha 41 das Viagens de De Bry, o que nos

leva a crer ter De Morgues trabalhado no es-boço (que mais tarde passaria à propriedadede De Bry) para dele fazer uma pintura, aoque parece quando já residia na Inglaterra.

Na Historia da Provincia Sãcta Cruz aque Vulgarmente Chamamos Brasil, de Perode Magalhães Gandavo (Lisboa, 1576), po-dem ser vistas duas ilustrações xilográficasassinadas por certo Jerônimo Luiz, uma re-tratando a execução de um prisioneiro por umgrupo de indígenas, e a outra umaestranhíssima criatura marinha que apareceuem 1564 em São Vicente – o Ipuiara, certa-mente um inocente leão-marinho, afinal aba-tido a golpes de espada e flechaços. A ilustra-ção do Ipuiara deve ter causado sensação naEuropa, dela existindo pelo menos mais duasversões, uma alemã, italiana a outra, acom-panhadas de curtos textos explicativos sobrea aparição do monstrengo (Newe Zeytung voneinen seltzamen Meerwunder etc., Frankfurt,sem nome de editor ou data, e Nel Bresil diSan Vicenzo nella Citta di Santos etc., im-presso em Veneza em 1565 por Nicolo Nelli).O esboço primitivo, talvez devido ao próprioGandavo, mostraria apenas o monstro, decorpo ovalado, cabeça quase humana, sobrepés de palmípede, dotado de seios mas comórgãos genitais masculinos; possivelmente emversões posteriores foram acrescentados oportuguês que o acomete com a espada e osindígenas que lhe atiram flechas.

Curiosa irrupção temática americana naarte italiana de fins do séc. XVI pode-se verrespectivamente na Galleria Borghese deRoma e na decoração do teto da sala de armasdo Pallazzo degli Uffizi em Florença. A pin-tura na Galleria Borghese é de autoria de JacobZucchi, data de 1580 e deve ter sido motivadapelo Itinerário de Lodovico Varthema, dadoa lume em 1508: representa As Riquezas doMar, também conhecida como Os Pescado-res de Pérolas. Entre os numerosos persona-gens dessa curiosa composição inclui o artis-ta dois de nítida aparência indígena america-na, com seus arcos e flechas e um deles levan-do à mão direita um papagaio. Quanto à pin-tura decorativa do Pallazzo degli Uffizi, é deautoria de Lodovico Butti e data de 1588,mostrando em um dos seus pormenores umafigura ao que parece derivada dos desenhos

22 As 25 xilogravuras de meia-página que adornam aWarhaftige Historia deStaden nas duas ediçõesde Frankfurt de 1557 sãoas mesmas que tinham ser-vido para ilustrar uma edi-ção do I t inerario deLodovico Varthema surgidana mesma cidade em 1548.Cf. Helmut Andrä, “HansStaden e seu Tempo”, inRevista de História, Univer-sidade de São Paulo, no 42,1960.

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de Dürer e Burgkmair aos quais nos referi-mos atrás, ou de qualquer modo relacionadacom as curiosidades mexicanas que Cortésremetera a Carlos V em princípio do século.

Governador da colônia fundada por SirWalter Raleigh em Roaneke, na Virgínia, oinglês John White foi ao mesmo tempo odocumentarista da expedição, tendo produzi-do entre 1584 e 1587 elevado número de aqua-relas e desenhos enfocando motivos da faunae da flora locais, além de tipos étnicos dealgonquins e cenas da vida dos peles-verme-lhas. Sessenta e cinco desses seus trabalhosencontram-se no British Museum, e muitosforam transpostos para a técnica da gravura(como veremos mais adiante), assim contri-buindo para disseminar uma imagem perti-nente do indígena norte-americano. Whitedizia, de suas aquarelas, terem sido“counterfeited according to the truth”, e nãohá dúvidas quanto à acuidade e precisão demuitas delas; mas é também inegável que narepresentação dos seus tipos indígenas en-trou ponderável parcela de estilização, a pon-to de muitos deles, senão todos, apresenta-rem traços europeizados e posturas irreais.

Em 1976, procedendo ao recenseamentodas imagens produzidas até 1590 acerca dosindígenas americanos, William C. Sturtevantchegou a um total de exatas 268, aí incluídasas ilustrações em livros e mapas (23); naque-le ano de 1590, contudo, surgia um novo ca-pítulo na história da iconografia americana,com o início da publicação, em Frankfurt, deuma série de livros enfeixando praticamentetoda a literatura até então produzida por des-cobridores, navegantes e aventureiros acercadas terras exóticas da América, África e Ásia,em textos latino e alemão acompanhados denumerosas ilustrações. Essas NarrationesPeregrinationum, ou Schiffarten, divididasem duas coleções, as Grandes Viagens, deformato um pouco maior e dedicadas à Amé-rica, e as Pequenas Viagens, de formato umpouco menor e consagradas à Ásia e à África,eram uma iniciativa do ourives e gravador emmetal flamengo Theodor de Bry (1528-98),continuada após sua morte pelos dois filhosJohann Israel e sobretudo Johann Theodor(1561-1623) e, com o desaparecimento desseúltimo, pelo genro, o gravador suíçoMatthäeus Meryan (1593-1650). Até 1630

23 Acerca de representaçõesde indígenas das Américasanteriores a 1590, consul-te-se: William C. Sturtevant,“First Visual Images NativeAmerica”, in F. Chiapelli(ed.), First Images ofAmerica, Berkeley/LosAngeles/Londres, 1976, pp.417-54; Hugh Honour, TheNew Golden Land, NewYork/Londres, 1975/76;idem, The European Visionof America, NationalGallery of Art e ClevelandArt Museum, 1975/76 eParis, Grand Palais, 1976(L´Amérique vue parl´Europe); Jay A. Levenson(ed.), Circa 1492. Art. in theAge of Exploration, NewHaven/Londres, YaleUniversity Press, 1991 (es-pecialmente os dois ensai-os de Jean-Michel Massing,I, pp. 115-9, eII, pp.515-20).

Nicolo Nelli, “No

Brasil de São

Vicente...” (1565),

Zentralbibliothek,

Zurique

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nada menos de 25 volumes já tinham sidolançados, compondo uma gigantesca Enci-clopédia do Exotismo fartamente ilustradacom gravuras em metal feitas a partir de ori-ginais dos mais diversos autores, trabalhocoletivo da equipe de gravadores de que dis-punha a casa editora dos De Bry. Integravampor exemplo os três tomos iniciais das Gran-des Viagens as narrativas e imagens sobre aAmérica produzidas por Jacques Le MoyneDe Morgues, John White e Hans Staden, in-tegralmente redesenhadas e por isso mesmoexibindo uma aparência padronizada, índiosda América do Norte e da América do Sulapresentando os mesmos corpos atléticos esó se distinguindo uns dos outros por deta-lhes de vestimenta ou de penteado. Após 1630,ao mesmo tempo em que dava seqüência àpublicação das Narrationes, Meryan inicia-va novo projeto editorial, concretizado umano depois na Historia Antipodum oder NeweWelt etc. Essa obra, coordenada por JohnnLudwig Gottfried, abarcava em mais de 600páginas de grande formato, com 173 gravu-ras e sete mapas, todos os relatos de viagensreferentes à América, inclusive vários dizen-do respeito ao Brasil, como os de Hans Staden,Jean de Léry, Aldenburgh e tantos outros; das173 estampas, 82 referiam-se à América doSul, 37 à Central, 23 à do Norte e 29 nadatinham a ver com as Américas (24).

Só episodicamente relacionadas com oBrasil, porém cheias de interesse por traduzi-rem de modo muito claro a crescente cobiçada Holanda pelas riquezas do Brasil, são pin-turas como O Retorno de Paulus van Caerdendo Brasil, de Hendrik Cornelizs Vroom (1566-1640), Ataque a Salvador a 9 de maio de 1624,de Andries van Eertvelt (1590-1652), ou in-clusive a célebre Reconquista da Bahia, deFrei Juan Bautista Maino (1578-1649), exe-cutada entre 1630 e 1634 e destinada a ador-nar, juntamente com várias outras pinturaspatrióticas (como a Rendição de Breda, deValasquez), o Salon de reinos do novo Palá-cio Buen Retiro, de Felipe IV. Pouco anteriore de maior importância para nosso estudo é aSuite de l’Histoire des Choses plusMemorables Adventuës en Maragnan, èsAnnés 1613 & 1614, do capuchinho Yvesd’Evreux (Paris, 1615), obra ilustrada com

duas gravuras assinadas – P. Firens, ex. –Joachim Duviert pinxit – e datadas de 1613,ambas representando três índios tupinambásem trajes europeus, com tembetás aos lábios,brandindo no ar seus chocalhos ou maracás.Tais indígenas tinham sido levados doMaranhão por Rasilly para serem batizados,e após convertidos à fé cristã, apresentadosaos autores do desenho original e da gravuradele originada, respectivamente o holandêsJoachim Duviert, ativo na França entre 1610e 1614, e o gravador flamengo Pierre Firens,radicado em Paris em 1610 e falecido em 1639em Antuérpia.

Em 1624, antecipando em décadas o quefariam do gênero Zacharias Wagener e CasparSchamalkalden, frei Cristóvão de Lisboa,primeiro Custódio da Ordem Franciscana noMaranhão, dava início a uma coletânea debisonhos desenhos de animais, pássaros, pei-xes e plantas da região, pouco depois partin-do do Brasil, nomeado que fora para o Bispa-do de Angola – que nunca chegaria a assumir,tendo falecido em Évora em 1652. Robert C.Smith, primeiro a divulgar no Brasil esseCódice de frei Cristóvão de Lisboa (conser-vado no Arquivo Histórico Ultramarino lis-boeta, que dele fez em 1968 uma edição fac-similar), assim se refere aos desenhos que ointegram:

“Se essas ilustrações são trabalho do pró-prio Custódio não se sabe. [...] Que essasilustrações se destinavam à publicação,está indicado pela palavra ‘estampa’ queaparece em várias folhas desenhadas docódice. [...] Todos os desenhos são feitosa bico de pena, em papel grosso. São to-dos aproximadamente de duas por trêspolegadas de tamanho, e cada um estáintitulado com seu nome indígena. Numou noutro caso dos motivos se apresen-tam destacados da paisagem indicada omais simplesmente possível e, maisfreqüentemente, são representados semnenhum fundo. Do ponto de vista do esti-lo, não têm grande valor artístico, emborasejam excepcionalmente pitorescos, reve-lam uma observação cuidadosa aplicadaa certos pormenores, como os pés e garrasdos animais. [...] É claramente trabalho

24 Cf. Helmut Andrä e Edgardde Cerqueira Falcão,Americae Praeterita Even-ta, São Paulo, Edusp, 1956,p. 25.

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de um observador acurado da natureza,de talento considerável, mas de muitopouco tirocínio artístico” (25).

É nesse ponto que entra a contribuiçãodos chamados artistas de Nassau – nota-damente Albert Eckhout, Frans Post e GeorgMarcgraf, com suas grandes pinturasetnográficas e naturezas-mortas de frutas evegetais dos Trópicos, o primeiro, os vastoscenários a se perderem de vista, pontilhadosaqui e ali de figurinhas de europeus, índios enegros, entremeados de casas-grandes e ca-pelas, o segundo, e os saborosos detalhes davida dos indígenas ou do fabrico do açúcarque ilustram o esplêndido Qua parte paretBelgis, do terceiro. Não apenas pela elevadaqualidade artística de tais trabalhos, quantopelo agudo senso de observação de que dãoprova, contrastam de tal modo com tudoquanto até então se fizera no que respeita àrepresentação de cenários, seres e coisas doNovo Mundo, em geral, e do Brasil em parti-cular, que verdadeiramente inauguram novocapítulo da iconografia tropical e america-na, representando um divisor de águas no

modo de vê-los e de corretamente fixá-los.As imagens que em seguida elencaremos

são já todas elas posteriores aos óleos e dese-nhos dos pintores de Nassau: as três cenas detema americano pintadas a óleo sobre tela porartista holandês não-identificado por volta de1640-50 (Rijksmuseum, Amsterdã), as car-tas de jogar com ilustrações de Stefano dellaBella, feitas em 1644 para a educação do fu-turo Luís XIV, alguns trabalhos produzidosno Suriname nos últimos anos do séc. XVII eprimeiros do séc. XVIII por Maria SibyllaMeryan e Dirk Valkenborgh, as três nature-zas-mortas ilusionísticas com cestas e frutasdo Museu Flehite e, enfim, já de 1710, asilustrações relativas ao Brasil no álbumHabillements de plusieurs nations,representez au Naturel, en cent trente-septbelles figures, publicado em Leiden por Vander AA. Das três cenas americanas de autoranônimo no Rijksmuseum, uma reproduz aexecução de um cativo por indígenas brasi-leiros, na conhecida composição divulgadana Warhaftige Historia, de Hans Staden,publicada em 1557, enquanto as duas outrassão procissões ou cortejos triunfais em que

25 Robert C. Smith, “O Códicede Frei Cristóvão de Lisboa”,in Revista do Serviço doPatrimônio Histórico e Artís-tico Nacional, no 5, Rio deJaneiro, 1941, pp. 121-6.

Georg Marggraf

e Johanes Blaeus,

“Mapa do Brasil

sob Domínio

Holandês”,

gravura em metal

aquarelada(1647),

coleção Pedro Piva,

São Paulo

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Campen, situada em Randenbrock, próximoa Amersfoort, e hoje propriedade do MuseuFlehite dessa cidade holandesa. Dispostas emnichos para serem observadas desde um pon-to baixo, tais naturezas-mortas deixam verentre seus elementos constitutivos a mesmacesta africana, bakongo, que também apare-ce numa pintura de Eckhout produzida noBrasil em 1641 – a Mulher Negra, do Museude Copenhague –, e por isso hoje há quem aatribua ao próprio Eckhout e não mais ao pro-vável mestre dele, Van Campen (27).

Quatro das belles figures do álbum publica-do por Van der AA sobre os Habillements deplusieurs nations etc. – as de número 12, 49,107 e 108 – representam tipos étnicos do Brasil:respectivamente Femme de Brézil avec leursornements, Tamoyes ou mangeurs d’hommesen Amerique, Lutteurs des Tapuyes qui se battentleurs jours de fête e Guaymures grands destature, et grands mangeurs d’hommes. Taiscenas derivam de fontes mais antigas: Femmede Brézil, por exemplo, originada nitidamenteda há pouco citada Mulher Negra, de Eckhout,só que livremente interpretada.

Fecharemos estas poucas notas com algu-mas observações acerca de representaçõessimbólicas da América, originadas em suamaior parte dos tableaux vivants organizadosquando da entrada de reis e nobres nas gran-des cidades, ou por ocasião da realização deprocissões, desfiles e ommegancks. NoOmmeganck realizado em 1564 em Antuér-pia, por exemplo, quatro moças ricamentevestidas representavam cada qual um doscontinentes – um modismo que então faziasua aparição na arte européia. Como regra,nessas alegorias dos quatro continentes, aEuropa aparece como uma imperatriz, coro-ada, de cetro e orbe às mãos; a Ásia surgeenvolta em pesadas roupas; África é uma negradesnuda, ou quase, tendo a seu lado um solabrasador; ao passo que a América é umaindígena coberta de penas, segurando flechaou arco e acompanhada de um papagaio, tatuou jacaré, por vezes um braço ou perna huma-nos decepados em clara alusão ao canibalis-mo. Em outras ocasiões, porém, a Américapode ser representada como uma jovem rica-mente trajada, tendo à cabeça um cocar depenas e aos ombros mantilha também de pe-

26 Bob Haak, The Golden Age.Dutch Painters of theSeventeenth Century. NovaYork, Harry A. Abrams,1984, p. 59.

27 Leia-se a respeito: R.Joppien, “The Dutch Visionof Brazil”, in E. van denBoogaart, Johan Mauritsvan Nassau-Siegen 1604-1679. The Johan Mauritsvan Nassau Stichting, TheHague, 1979, em especialp. 140. P. J. P. Whitehead eM. Boeseman, em A Portraitof Dutch 17th Century Brazil(Amsterdam/Oxford/NewYork, North Holland Publ.Co., 1989), com alguma he-sitação atribuem as pintu-ras do Museu Flehite aEckhout, “the Bacongobasket being so much a partof Eckhout´s repertoire” (p.175).

aparecem astecas e conquistadores. A fonte detodas três é a America, de Theodor de Bry. Noentanto, o pintor imprimiu aos índios brasilei-ros uma aparência de titãs, dando-lhes massamuscular que os transforma em outros tantosHércules e fazendo-os adotar poses convenci-onais. Quanto às ilustrações de Della Bella nascartas de baralho destinadas à educação doherdeiro do trono francês, então com seis anos,cada uma delas mostra uma alegoria de umpaís ou de um continente, acompanhadas, to-das, de curtas informações geográficas. A querepresenta a América é uma mulheremplumada, sobre um carro tirado por doistatus, e a que simboliza o Brasil, uma índia empé, adornada de penas e sustendo um buquê.

Meia-irmã de Matthäus Mergan II, MariaSibylla Meryan (1647-1717) destacou-se comoexcepcional pintora de flores, insetos e borbo-letas, e já era famosa na Europa quando, em1699, chegou a Paramaribo, atraída pelas be-lezas naturais da América do Sul. Seu livroMetamorphosis Insectorum Surinamesium, de1705, continua sendo referencial para aentomologia sul-americana, do mesmo modoque suas observações acerca das metamorfo-ses das borboletas (Der Raupen wunderbareVerwandlung und sonderbare Blumen-nahrung) ainda hoje mantêm sua atualidade,ambas as obras achando-se ilustradas comdesenhos ao mesmo tempo minuciosos e sen-síveis da fauna americana. Outro artista a tra-balhar no Suriname foi Dirk Valkenburgh(1675-1721), de Amsterdã, aluno entre outrosde Jan Weenix, a quem imitou. Contratado pelofazendeiro Jonas Witsen em 1706 como bi-bliotecário e pintor, devendo, nessa última con-dição, fixar em pintura as plantações, pássarose vegetais raros do país, Valkenburgh execu-tou naturezas-mortas de frutas e vívidas repre-sentações da Guiana, sendo contudo sua obramais importante a de um esplêndido batuquede negros numa clareira de floresta, hoje noMuseu de Copenhague (26).

Atribuídas ora a Jacob van Campen (porseu inegável caravaggismo), ora ao próprioAlbert Eckhout no seu período pós-brasilei-ro, e de qualquer maneira evidenciando al-gum tipo de colaboração entre ambos, são asnaturezas-mortas que outrora adornavam aresidência “Het Hoogerhuis” do próprio Van

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nas, ajoelhada e ofertando um cesto de flores,enquanto um tatu busca entre as dobras desuas vestes, junto a seus pés descalços. Foiassim que a pintou em 1636 o flamengo FransFrancken II, numa alegoria da abdicação deCarlos V, ocorrida quase um século antes.Justificava-se tal representação da Europacomo imperatriz e os demais continentes comoseus súditos, numa época em que piamente seacreditava que a própria Providência assimestabelecera: a Europa, como se pode ler numadas cartas de jogar de Stefano della Bella, era“a menor, porém a mais importante das qua-tro partes do mundo, por sua fertilidade, va-lor, civilização, ciência, notoriedade e diver-sidade dos seus habitantes, e por ser sede daprópria Cristandade”.

É curioso salientar que representações daAmérica como uma das quatro partes domundo ocorrem serodicamente na pinturabrasileira de fins do séc. XVIII e começos doséc. XIX. É de autoria de José Teófilo de Jesus,natural da Bahia e falecido octogenário em

1847, um óleo sobre tela – no Museu de Arteda Bahia –, no qual a América é corporificadapor uma índia sentada, tendo aos pés as rique-zas da terra, trajando saiote de penas e cocar,mas de busto desnudo (28). Sustenta na mãodireita um papagaio, vendo-se ainda próxi-mos a si outros bichos: onça, cobra jacaré,macacos, preguiça, boi, arara, tucano, emas,peru, garça, etc., bem como espécies vege-tais, como a bananeira, o mamoeiro, a jaqueira,o cajueiro, etc. Sofisticada também é a Amé-rica do pintor fluminense Francisco Pedro doAmaral, falecido em 1830: uma índia, comuma arara na mão esquerda e arco e flecha nadireita, contra um fundo de coqueiros e bana-neiras, vendo-se no primeiro plano um arran-jo de frutas tropicais. Integra a decoração dachamada Sala dos Continentes, no Solar daMarquesa de Santos no bairro de São Cristó-vão, Rio de Janeiro, e, tal como a pintura deTeófilo de Jesus, testemunha a permanência,no oitocentismo ocidental, de um tema já entãovelho de centenas de anos.

28 Ingênuas representaçõesjá não da América, porémdo Brasil, como um índioataviado de penasofertando os frutos da ter-ra, contra um fundopaisagístico que inclui umestilizado Pão-de-Açúcarna Baía de Guanabara,ocorrem em alguns poucosleques comemorativosmandados fazer na Chinanas primeiras décadas doséc. XIX para marcar even-tos como a chegada dopríncipe regente em 1808e a elevação a Reino Uni-do em 1818.

José Teófilo de

Jesus, “Alegoria da

América”, óleo sobre

tela(1820c.), Museu

de Arte da Bahia,

Salvador