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XII SEMANA ACADÊMICA DE HISTÓRIA HISTÓRIA E ARTE: LITERATURA, MÚSICA E CINEMA. ANAIS MARECHAL CÂNDIDO RONDON PARANÁ 16 A 18 DE JUNHO DE 2015

Entre a Tradição e o Consumo - Alterações No Imaginário Do Herói No Brasil Do Séc XX

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Artigo que aborda a influencia dos comics na sociedade brasileira

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  • XII SEMANA ACADMICA DE HISTRIA

    HISTRIA E ARTE: LITERATURA, MSICA E CINEMA.

    ANAIS

    MARECHAL CNDIDO RONDON PARAN

    16 A 18 DE JUNHO DE 2015

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    COMISSO ORGANIZADORA:

    Acad. Alex Sander Sanoto; Acad. Alex Sandro Ventura Griebeler; Acad. Heliab Borges da Silva;

    Acad. Julia Gabriela Borelli; Prof. Mtd. Lucas Blank Fano; Prof. Mtd. Lucas Eduardo Gaspar;

    Acad. Luis Henrique Carminati; Acad. Paloma Mariana Caetano; Acad. Paulo Cesar Nunes da

    Silva; Acad. Rgis Gustavo Petri; Acad. Sara Munique Noal e Acad. Victor Antonio Melo Silva.

    Coordenador: Prof. Dr. Antonio de Pdua Bosi

    PROMOO:

    Centro Acadmico de Histria Zumbi dos Palmares Gesto Portas Abertas

    Colegiado do Curso de Histria UNIOESTE campus de Marechal Cndido Rondon

    APOIO:

    Laboratrio de Ensino de Histria LEH;

    Programa Institucional de Bolsas de Incentivo Docncia (PIBID) Histria.

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    SUMRIO

    APRESENTAO........................................................................................................ 5

    ELIMINATION, ELIMINATION, ELIMINATION: O GENOCDIO ARMNIO E O SYSTEM

    OF A DOWN. 7

    LITERATURA E HISTRIA: REFLEXES SOBRE O ENSINO DE

    HISTRIA......................................................................................................................16

    AS REPRESENTAES DO FEMININO NA GRCIA ARCAICA E NA FRANA DO

    SCULO XII.................................................................................................................. 22

    CONCEPES SOBRE A MORTE NA ATENAS DO SC. V A.C., A PARTIR DAS

    TRAGDIAS DE EURPIDES.................................................................................... 28

    LITERATURA MEMORIALSTICA EM PERSPECTIVA: UMA ANLISE DA OBRA

    CASCAVEL, A HISTRIA DE ALCEU SPERANA...................................................37

    DISCUSSO SOBRE OS MALUCOS DE BR, POPULARMENTE CONHECIDOS COMO

    HIPPIES. CONSIDERAES INCIAIS...................................................................49

    TRABALHADORES EM MARECHAL CNDIDO RONDONPR: TRAJETRIAS E

    CAMPOS DE POSSIBILIDADE NA CIDADE........................................................... 53

    UMA INTERRETAO ANTROPOLGICA SOBRE A MULHER NA LRICA

    VINICIANA.................................................................................................................... 60

    CRISTOS E MUULMANOS NO CANTAR DE MIO CID: UM DILOGO COM A

    RECONQUISTA........................................................................................................... 68

    ROMANTISMO E A AUTOCRTICA DA MODERNIDADE: O CASO DE CRIME E

    CASTIGO DE DOSTOIEVSKI....................................................................................... 75

    DE MASTIGADORES DRCULA A FIGURA DO VAMPIRO NOS RELATOS OFICIAS

    E NA LITERATURA....................................................................................................... 81

    ENTRE A TRADIO E O CONSUMO: ALTERAES NO IMAGINRIO DO HERI NO

    BRASIL DO SCULO XX.............................................................................................. 88

    ENTRE A TRADIO E O CONSUMO: ALTERAES NO IMAGINRIO DO HERI NO

    BRASIL DO SCULO XX.............................................................................................. 88

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    ENTRE A TRADIO E O CONSUMO: ALTERAES NO IMAGINRIO DO HERI

    NO BRASIL DO SCULO XX.

    Jeferson Wruck95

    Dr. Fausto Alencar Irschlinger

    Introduo

    Este estudo aborda as alteraes no imaginrio do heri no Brasil do sculo XX

    decorrentes da insero dos comics, histrias em quadrinhos norte-americanas, no mercado

    editorial nacional.

    Aos tipos heroicos constitudos pela amalgamao das mentalidades das etnias que

    formaram a populao brasileira: indgenas, europeus e africanos, denominamos heris

    tradicionais. Para analis-los nos pautamos na classificao da trade heroica do antroplogo

    Roberto Da Matta e nos estudos do folclorista Luiz da Cmara Cascudo.

    Baseados nos estudos de Gonalo Junior, Sonia Bibe Luyten, Diamantino da Silva e

    lvaro de Moya apresentamos o processo de penetrao das histrias em quadrinhos (HQs)

    americanas, tendo incio com a publicao do Suplemento Infantil em 1934, e quais foram as

    reaes da sociedade, o frenesi do pblico leitor infanto-juvenil e a preocupao de pais,

    religiosos e polticos com a influncia dos quadrinhos. Utilizamos a obra Imperialismo Sedutor,

    de Antnio Tota, com o objetivo de compreender a funo dos comics dentro do quadro de

    intenes polticas e econmicas dos Estados Unidos nas Amricas.

    Em Christopher Knowless e Willian Irwin buscamos informaes sobre as origens dos

    comics e as ideologias que orientavam seus autores, estabelecendo um vnculo entre as HQs e a

    literatura popular nos EUA durante as primeiras dcadas do sculo XX.

    Os tericos da Escola de Frankfurt Theodor Adorno e Max Horkheimer, nos proveram

    subsdios para discutir os quadrinhos como produtos da indstria cultural. Recorremos Jean

    Baudrillard e Zygmunt Bauman para compreender como as HQs operam dentro da lgica da

    sociedade de consumo.

    Finalmente, elencamos alguns dados referentes ao consumo de produtos vinculados

    imagem de super-heris como intuito de demonstrar como estes personagens esto presentes no

    95 Acadmico do 2 ano do Curso de Histria da UNIPAR Unidade de Cascavel. E-mail: [email protected] Professor, pesquisador e coordenador do Curso de Histria da UNIPAR Unidade de Cascavel. E-mail: [email protected]

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    cotidiano do brasileiro, desde crianas at adultos, induzindo hbitos e movimentando milhes

    de reais.

    Desenvolvimento

    O Imaginrio um conceito chave para a Histria desde a renovao de Annales.

    Imaginrio pode ser definido como:

    [] o conjunto de imagens guardadas no inconsciente coletivo de uma sociedade ou de um grupo social; o depsito de imagens de memria e imaginao. Ele abarca todas as representaes de uma sociedade, toda a experincia humana, coletiva ou individual: as ideias sobre morte, sobre o futuro, sobre o corpo (SILVA; SILVA, 2009, p.213).

    Das inumerveis imagens que compem o Imaginrio dos povos humanos, uma se

    destaca por sua fora simblica, larga disseminao e obstinada permanncia nas representaes

    das mais variadas civilizaes: o heri.

    Afinal, o que um heri? Para Sal Randazzo (1996, p. 160) heri o generoso defensor

    da verdade e da justia, pronto a morrer por aquilo em que acredita e/ou ao servio daqueles que

    no podem defender a si mesmos. A interpretao etimolgica de Junito Brando parece

    reforar essa viso revelando que a gnese do termo heri, em vrias culturas, est associada

    ideia de guardio, defensor, o que nasceu para servir (BRANDO, 1987, p. 15).

    Para Flvio Kothe, as tenses na conjuntura material participam da construo do heri

    imaginrio. Desse modo, rastrear o percurso e a tipologia do heri procurar as pegadas do

    sistema social (KOTHE, 2000, p. 08).

    O imaginrio do heri brasileiro foi formado por uma trplice unio de culturas.

    Europeus, africanos e indgenas colaboraram com suas lendas e religiosidade a para a criao de

    heris caractersticos do Brasil (CASCUDO, 1983, p.31 33). O antroplogo Roberto DaMatta

    classifica os heris tradicionais do Brasil em trs tipos bsicos: o caxias, o malandro e o

    renunciador.

    O caxias protetor da lei e dos bons costumes. Seu nome uma clara referncia do

    Duque de Caxias, heri brasileiro na Guerra do Paraguai. o campeo da ordem e da religio.

    Modelo da honradez, moralidade, mas tambm de represso e dureza contra os inimigos das

    instituies do poder poltico e da f. O caxias demonstra o poder do uniformizado e regular (...)

    numa sociedade fascinada pela ordem e hierarquia (DAMATTA, 1997, p. 264). O Capito

    Nascimento, da duologia Tropa de Elite, a apario mais recente do caxias no cinema nacional.

    O malandro o tpico adepto do jeitinho brasileiro. o espertalho, sedutor, astucioso

    que aproveita-se ingenuidade alheia para insinuar-se em um universo individualizado nas

    brechas do esqueleto hierarquizante da sociedade (DAMATTA, 1997, p.264). Ganha a vida s

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    custas da dissimulao e do estelionato. Podemos apontar o personagem Didi Moc, do ator

    Renato Arago, como exemplo do malandro.

    O terceiro tipo de heri tradicional o renunciador. Este se distingue dos outros dois por

    ser um reformador social. O caxias o defensor da ordem e o malandro, mesmo que no se

    ajuste ela, depende da manuteno de uma sociedade ordeira, pois as brechas da ordem formam

    seu campo de ao. O renunciador um renegador do status quo. Em busca de uma sociedade

    perfeita, criada aos moldes da lei divina, ele despreza este mundo corrupto de homens pecadores.

    Este tipo heroico teve grande repercusso na histria brasileira. Insurreies como a de Canudos

    e o Contestado foram possveis graa ao apelo popular que guias espirituais como Antnio

    Conselheiro e Jos Maria, renunciadores, exercem sobre o imaginrio. O renunciador um

    descendente direto da reforma monstica medieval e a fora desse heri messinico explica-se

    pela sempre presente combinao de elementos catlicos no Brasil (DAMATTA, 1997, p. 267)

    Com um carter absolutamente agrrio at o incio do sc. XX, a cultura brasileira era,

    embora arcaica, muito integrada, em que um saber operativo se transmitia de pais a filhos e em

    que todos viviam um calendrio civil regido pela Igreja, dentro de padres morais bem

    prescritos (RIBEIRO, 1995, p. 205). Nesse contexto, as histrias ouvidas na infncia

    constituam uma iniciao cultura geral, instruindo os indivduos e os treinando para o jogo da

    sociedade na vida adulta (CASCUDO, 2012, p. 55).

    A primeira publicao peridica significativa voltada para o pblico infantil foi O Tico-

    Tico. Criada em 1905, a revista trazia atividades, contos e histrias em quadrinhos. Embora

    influenciada por publicaes europeias e americanas, os autores faziam releituras introduzindo

    personagens e elementos que davam uma roupagem brasileira aos quadrinhos.

  • 91

    Imagem 01: Histria em quadrinhos da primeira edio da revista O Tico-Tico, datada de 22 de novembro de 1905.

    Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional.

    Como demonstrado pelo historiador estadunidense Robert Darnton em sua obra O

    Grande Massacre de Gatos, os contos tradicionais espelham as condies histricas em que

    surgiram ou foram recontados. As personagens dO Tico-Tico so ecos da populao brasileira

    de sua poca. Ali encontramos a criana travessa, o professor rgido e a escola tradicional, a

    famlia patriarcal, a elite branca, as criadas negras, os meninos de rua negros e mestios...

  • 92

    Imagem 02: Na capa da primeira edio h uma histria cmica, em quatro quadros, de um professor em sala de

    aula. Podemos observar que no h crianas negras entre os alunos. Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional.

    O Tico-Tico foi lder inconteste o mercado editorial de publicaes infantis at a dcada

    de 1930. Fez grande sucesso entre a juventude e conquistou o apreo de pais e mestres, pois alm

    dos quadrinhos trazia atividades, concursos e ensinamentos morais. Mas o ano de 1934 viria para

    desferir um duro golpe sobre a revista e revolucionar definitivamente o imaginrio infantil.

    Diamantino da Silva, estudioso dos quadrinhos que viveu sua infncia na dcada de 1930,

    nos relata que pessoalmente, no ligava muito para O Tico-Tico, o achava muito infantil

    (SILVA, 2003, p.11), mas que sua atitude com os quadrinhos foi alterada ao ter contato com um

    taloide de 12 pginas chamado Suplemento Juvenil, que logo conquistou minha simpatia.

    Diamantino confessa que os heris dessa nova publicao logo tornaram-se nossos dolos e

    ningum queria perder um s captulo de suas histrias (SILVA, 2003, p.12).

  • 93

    A edio de 14 de maro de 1934 do jornal A Nao trazia um suplemento direcionado

    para o pblico infanto-juvenil. As histrias em quadrinhos no eram novidade nos idos de 1930,

    mas o contedo do suplemento era algo jamais visto nas pginas dO Tico-Tico. Enquanto este

    seguia uma linha editorial francesa, com foco em satirizar aspectos da vida diria, o Suplemento

    tornou-se um canal por onde os comics norte-americanos inundaram o Brasil com o american

    way of life.

    Imagem 03: Primeira pgina do Suplemento Infantil no jornal A Nao.

    Fonte: http://blog.flaptrap.com.br/wp-content/uploads/2014/03/ANacaoSuplementoInfantil.jpg

    Em viagem aos Estados Unidos, o jornalista Adolfo Aizen ficou maravilhado com o

    sucesso das histrias em quadrinhos naquele pas. Os quadrinhos norte-americanos, ou comics,

    diferiam muito do gnero de HQs praticado no Brasil. Eram histrias cheias de suspense, terror,

    violncia e fico. Os cenrios eram os mais variados, desde as savanas africanas, com Tarzan,

    at distantes planetas de outros sistemas solares nas aventuras de Flash Gordon. Aizen,

    acreditando que a importao dos comics faria grande sucesso no Brasil, criou em maro de 1934

    o Suplemento Infantil, anexo ao jornal A Nao, e em junho do mesmo ano lanou o Suplemento

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    Juvenil, desvinculado do A Nao e voltado exclusivamente para os quadrinhos. Os resultados

    mostraram que Aizen estava certo. Gonalo Junior relata que a meninada parecia fora de

    controle no hbito de ler gibis. Liam em todos os lugares e horrios: durante o almoo, antes de

    dormir, na sala de aula, na hora de fazer o dever de casa (JUNIOR, 2004, p.295).

    A insero dos quadrinhos americanos no Brasil no foi ignorada pelo governo

    americano. Visando estender sua influncia sobre as Amricas e repelir o comunismo do seu

    quintal, os EUA propunham uma poltica da boa vizinhana com o intuito de criar uma

    imagem de parceiro e protetor das naes americanas. No Brasil, numa estratgia que Antnio

    Pedro Tota classificou como Imperialismo Sedutor, houveram grandes investimentos em rdio,

    cinema, desenhos animados e publicaes, como a revista Em Guarda, as Selees do Readers

    Digest e as histrias em quadrinhos (TOTA, 2000).

    Os heris dos comics nascem diretamente da literatura popular que surgiu nos Estados

    Unidos entre o final do sc. XIX e incio do Sc. XX, ganhando imensa repercusso entre as

    massas. As revistas de pulp fiction, impressas em papel de qualidade inferior feito a partir de

    polpa de celulose, de onde deriva a designao das revistas, e encadernao rstica, eram

    vendidas a preo mdico, sendo muito consumidas pelas classes econmicas inferiores das

    grandes cidades industriais. Os seus autores exploravam, principalmente, temas ligados fico

    cientfica, magia e contos detetivescos. Grande parte dos escritores que publicavam nos pulps

    eram membros de sociedades ocultistas ou interessados em assuntos msticos, paganismo e

    religies orientais (KNOWLESS, 2008). Diamantino da Silva deixa entrever que havia algo

    ideologicamente peculiar nos comics ao comentar que o aparecimento do Suplemento Juvenil

    foi responsvel pela criao de uma exuberante mitologia com vasta aceitao popular (...) que

    s tinha paralelo com as das velhas mitologias orientais e grego-latinas (SILVA, 2003, p.17).

    A primeira apario do Superman, em 1938, marca o nascimento dos super-heris.

    Humanos ou aliengenas dotados de poderes incrveis, fsicos e psquicos, lutavam contra o

    crime, contra os nazistas e fascistas e, posteriormente, contra viles tambm superpoderosos. Por

    esse tempo os quadrinhos viveram o pice de sua era de ouro e era de prata, vendendo milhes de

    revistas.

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    Imagem 04: Primeira apario do Superman, na revista Action Comics n 1, datada de junho de 1938. Fonte:

    http://infinitecomix.com/wp-content/uploads/2014/06/actioncomics1.jpg

    Vale ressaltar um ponto de contraste entre os heris brasileiros tradicionais e os

    heris/super-heris importados dos comics americanos. Enquanto a religiosidade crist

    indissocivel dos heris tradicionais, h poucas menes, na narrativa dos quadrinhos, a um

    Criador, a algum tipo de plano divino para humanidade ou sequer a um espao para f pessoal

    em Deus na vida de qualquer indivduo (MORRIS in IRWIN, 2005, p.56).

    Os quadrinhos estavam destinados a suscitar algum tipo de reao por parte de uma

    sociedade fundamentada no cristianismo. Nos EUA ela veio com o macarthismo96 e recrudesceu

    aps a publicao, em 1954, do controverso livro Seduction of the innocent, do psiquiatra

    Frederic Wertham, que acusava uma relao entre o hbito de ler quadrinhos a delinquncia

    juvenil. No Brasil, enquanto aumentavam nas bancas os ttulos voltados exclusivamente para os

    comics, os quadrinhos tiravam cada vez mais o sono de educadores, padres, pais e polticos

    desde a segunda metade dos anos 40 (JUNIOR, 2004, p. 181). O assunto foi parar na Cmara

    Federal, chegando-se at a propor a reformulao do inciso 5 do artigo 141 da Constituio, que

    dispunha sobre a liberdade de expresso. Os deputados alegavam que em face do clamor

    levantado no pas contra os malefcios da chamada literatura infanto-juvenil por uma multido

    de pais e educadores preocupados com a formao moral e intelectual das crianas e dos

    adolescentes (JUNIOR, 2004, p. 183), fazia-se necessrio censurar a publicao das HQs. Alm

    do conservadorismo e da xenofobia da sociedade poca, esse episdio nos revela o impacto que

    os heris americanos j haviam causado entre a juventude em curto espao de tempo. Pais,

    96 Termo derivado do nome do senador republicano Joseph MacCarthy, usado para classificar um perodo de intensiva perseguio poltica anticomunista nos Estados Unidos, entre o fim da dcada de 1940 e meados de 1950.

  • 96

    educadores e igrejas alarmaram-se pois percebiam que os gibis97 encarregaram-se de povoar o

    mundo mgico das crianas e dos adolescentes (SOARES in LYUTEN, 1989, p. 49).

    Para Klawa e Cohen (in Moya, 1977, p. 108 e 110) necessrio que a histria em

    quadrinhos seja entendida como um produto tpico da cultura de massas e, como tais,

    participam da lgica de mercado da indstria cultural. Diamantino da Silva comenta que a

    popularidade das HQs, aps o Suplemento Juvenil e ainda mais depois dos super-heris, era

    garantida por agir como estimulante evaso compensatria da rotina e das frustaes cotidianas

    sofridas pelo pblico leitor (SILVA, 2003, p.17). Seus enredos, personagens, cores fortes, eram

    pensados para atrair o leitor, vici-lo e induzi-lo a comprar o prximo nmero. De acordo com

    Adorno, esse efeito narcotizante e alienante faz parte do repertrio de mecanismos da Indstria

    Cultural. Ela volta a oferecer como paraso o mesmo cotidiano. Tanto o escape quanto o

    elopement esto de antemo destinados a reconduzir ao ponto de partida (ADORNO;

    HORKHEIMER, 1985, p.117), numa espiral de desejos insaciados que arrasta o indivduo cada

    vez mais fundo numa sociedade de consumo, penhorando sua vida ao crdito (BAUMAN, 2010),

    num sistema que lhe oferece vrias possibilidades de compra, mas que lhe veta a possibilidade de

    no comprar (BAUDRILLARD, 1997, p. 149).

    Adorno, a despeito de seu elitismo intelectual que o impede de reconhecer qualquer coisa como boa na cultura de massa, faz uma anlise pertinente dos efeitos da indstria cultural nos indivduos:

    A indstria cultural continuamente priva seus consumidores do que continuamente promete. O assalto ao prazer que a ao e apresentao emitem indefinidamente prorrogado (...) Ao desejo suscitado por todos os nomes e imagens esplndidos serve-se, em suma, apenas o elogia da oca rotina da qual se queria escapar (ADORNO, 2002, p.37).

    Na mentalidade daqueles que cresceram ouvindo as narrativas do folclore nacional,

    tornar-se com os heris das lendas era uma possibilidade. A ao do sobrenatural parecia-lhes to

    plausvel quanto os fenmenos fsicos. Por outro lado, os leitores dos quadrinhos no ignoravam

    o carter ficcional das histrias que liam. Embora os comics despertassem a vontade de ser como

    os super-heris, no prometiam aos assinantes um encontro com o Batman, muito menos os

    poderes do Superman. Nesse sentido podemos entender por que Adorno chama a indstria

    cultural de pornogrfica e puritana (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 131), uma prostituta

    casta que se insinua mas no pode, e nem deve, se entregar, pois o desejo plenamente saciado

    romperia o ciclo do consumo.

    97 Gibi foi uma revista de histrias em quadrinhos lanada por Roberto Marinho em 1939 para concorrer com a revista Mirim, de Adolfo Aizen. A revista conquistou tamanho sucesso que seu ttulo tornou-se sinnimo de HQs no Brasil.

  • 97

    Consideraes finais

    Teriam os comics afetado o imaginrio do heri no Brasil do sculo XX? Alguns dados

    nos persuadem a dar uma resposta afirmativa. Maria Cristina Von Atzingen nos informa que os

    brinquedos usados pelas crianas brasileiras at a dcada de 1930 no deferiam muito daqueles

    manuseados pelos meninos e meninas nos sculos anteriores: carrinhos de madeira, bonecas de

    pano, estilingue, entre outros (ATZINGEN, 2001). Desde ento, os brinquedos artesanais e as

    brincadeiras tradicionais perderam seu espao para as mercadorias industrializadas, desenhos

    animados e jogos eletrnicos (ALTMAN in DEL PRIORE, 2000, p. 256) e quanto mais os

    brinquedos denotam sua origem yankee e ligao com personagens dos quadrinhos e da TV,

    mais atraentes se tornam (ALVES, 1988, p.131). Mudana nos hbitos e objetos usados pelas

    crianas em suas brincadeiras um indcio significativo pois, de acordo com o psicanalista

    Carlos de Mattos, atravs do brinquedo a criana manipula imagens e significaes simblicas

    que constituem uma parte da impregnao cultural a que est submetida (GUIDALLI et al.,

    2003, p.09).

    Em rpida busca nos sites de compra da internet com as palavras mochila infantil,

    decorao de festa para meninos ou fantasia infantil, por exemplo, entre os primeiros itens

    estaro produtos com os membros da Liga da Justia ou Os Vingadores. Digitando brinquedos

    de heris o usurio ser exposto aos catlogos infindveis de bonecos e outros brinquedos

    relacionados aos heris de comics.

    O mercado de super-heris j no se limita aos produtos infantis. Roupas e acessrios

    adultos que estampam os smbolos dos heris de quadrinhos ganham cada vez mais espao nas

    lojas fsicas e existem vrios sites na web especializados nessa temtica. Alm do vesturio,

    podemos citar o sucesso de canecas personalizadas, jogos eletrnicos e at tatuagens com

    imagens de heris de HQs.

    A Marvel, que ao lado da Detective Comics (DC) formam as duas gigantes mundiais das

    histrias em quadrinhos, tornou-se a maior franquia do cinema no mundo (ACTIONSECOMICS,

    2015). Somente no Brasil, o filme Os Vingadores: Era de Ultron, que estreou nos cinemas em 23

    de abril de 2015, j arrecadou mais de R$ 140 milhes (GUIADASEMANA, 2015),

    constituindo, at o momento da publicao deste estudo, a maior bilheteria os cinemas brasileiros

    em 2015. Enquanto isso, a DC faz planos de super-la nos prximos dez anos.

    As festas de cosplay e eventos para fs de quadrinhos, mangs, e cultura geek98,

    tornaram-se muito comuns no Brasil, como a realizao da Comic Con Experience, megaevento

    que movimenta milhes de reais.

    98 Termo usado para designar fs de tecnologia, jogos eletrnicos e de tabuleiro, quadrinhos, filmes, sries e

    animes.

  • 98

    Sem a pretenso de esgotar o tema, divisamos variados direcionamentos a partir desse

    estudo. Pesquisas posteriores podero apontar os efeitos dos heris dos comics na formao

    psicolgica das crianas, problematizar as influncias dos comics na representao imagtica do

    herosmo nas produes brasileiras e demonstrar os esforos dos quadrinhistas nacionais face a

    hegemonia das HQs americanas. A penetrao dos quadrinhos japoneses, os mangs, outro

    tema que se abre investigao.

  • 99

    Referncias bibliogrficas:

    ACTIONSECOMICS. Marvel se torna a maior franquia de cinema do mundo. Disponvel

    em: http://www.actionsecomics.com.br/2015/05/marvel-se-torna-maior-franquia-

    de.html#.VY1F6UbIeBQ> Acesso em: 06 de junho de 2015.

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    ADORNO, Theodor W. HORKHEIMER, Max. Dialtica do esclarecimento. Fragmentos

    filosficos. So Paulo: Zahar, 1985.

    ALVES, Jlia Falivene. A invaso cultural norte-americana. So Paulo: Moderna, 1988.

    ATZINGEN, Maria Cristina Von. Histria do brinquedo. Para crianas conhecerem e adultos

    lembrarem. 2 ed. So Paulo: Alegro, 2001

    BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. 3 edio. So Paulo: Perspectiva, 1997.

    BAUMAN, Zygmunt. Vida crdito. So Paulo: Zahar, 2010.

    BRANDO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Volume III. Petrpolis: Vozes, 1987

    CASCUDO, Luiz Cmara. Geografia dos mitos brasileiros. So Paulo: Editora da

    Universidade de So Paulo, 1983.

    ____________________. Folclore do Brasil. 3 ed. So Paulo: Global, 2012.

    DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris. Para uma sociologia do dilema

    brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

    DEL PRIORE, Mary (org). Histria das crianas no Brasil. 2 ed. So Paulo: Contexto, 2000.

    GUIADASEMANA. Maiores bilheterias de 2015 at agora.

    http://www.guiadasemana.com.br/cinema/noticia/maiores-bilheterias-de-2015-ate-agora> Acesso

    em: 26 de junho de 2015.

    GUIDALLI, Brbara; RAMOS, Fernanda; GIL, Letcia; CASTRO; Paula de. Os msculos dos

    super-heris e a sensualidade das princesas. In: Revista Ecltica. Ano 8. N 16. PUC: Rio de

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  • 100

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