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MARGEM, SÃO PAULO, N O 16, P. 29-50, DEZ. 2002 Friedrich Nietzsche como um paradigma? YOLANDA GLORIA GAMBOA MUÑOZ Resumo Dentre as diversas utilizaçıes do pen- samento de Nietzsche, o texto trabalha com pensadores atuais que consideram-no um paradigma ou modelo de açªo. Mostra as- sim por intermØdio dos percursos de Michel Foucault, Paul Veyne, Gianni Vattimo e Paul Virilio a maneira como Nietzsche vai sendo introduzido nas ciŒncias humanas. Sªo apresentados os referidos percursos diferenciais destacan- do exemplos que mostrariam de forma pri- vilegiada a reflexªo e operacionalizaçªo de determinados pensamentos nietzscheanos. No decorrer do artigo problematiza-se, espe- cialmente, a categoria de modelo ou paradigma aplicada a Nietzsche, conside- rando as relaçıes que ela guarda com o esquema modelo/cópia platônico, e esbo- ça-se uma possibilidade diferencial de pensar esse modelo a partir de Nietzsche. TambØm se abre uma possibili- dade de se relacionarem os conceitos de uso e de Øtica na atualidade. Palavras-chave: modelo; usos; operado- res; diferenciais; ciŒncias humanas. Abstract Of the diverse uses of the ideas of Nietzsche, this work focuses on the recent thinkers that consider them a paradigm or a model of action. This paper shows, through the courses of the thoughts of Michel Foucault, Paul Veyne, Gianni Vattimo, and Paul Virilio, the manner in which Nietzsche has been introduced into the humanities. The above mentioned courses are presented, emphasising cases that show well, how certain Neitzschean ideas are reflected upon and brought into operation. This work questions in particular the category of model or paradigm as applied to Nietzsche, taking into consideration the relationship

Friedrich Nietzsche como um paradigma? · centelhas materializam-se em diversos pensadores do sØculo XX Š, vemo-nos transportados a uma encruzilhada de odissØias. Elas abrangeriam

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DOSSIÊ: CONSCIÊNCIAS DO MUNDO — FRIEDRICH NIETZSCHE

Friedrich Nietzschecomo um paradigma?

YOLANDA GLORIA GAMBOA MUÑOZ

Resumo

Dentre as diversas utilizações do pen-samento de Nietzsche, o texto trabalha compensadores atuais que consideram-no umparadigma ou modelo de ação. Mostra as-sim � por intermédio dos percursos deMichel Foucault, Paul Veyne, GianniVattimo e Paul Virilio � a maneira comoNietzsche vai sendo introduzido nas�ciências humanas�. São apresentados osreferidos percursos diferenciais destacan-do exemplos que mostrariam de forma pri-vilegiada a reflexão e operacionalização dedeterminados pensamentos nietzscheanos. Nodecorrer do artigo problematiza-se, espe-cialmente, a categoria de modelo ouparadigma aplicada a Nietzsche, conside-rando as relações que ela guarda com oesquema modelo/cópia platônico, e esbo-ça-se uma possibilidade diferencial depensar esse �modelo� a partir deNietzsche. Também se abre uma possibili-

dade de se relacionarem os �conceitos� deuso e de ética na atualidade.

Palavras-chave: modelo; usos; operado-res; diferenciais; ciências humanas.

Abstract

Of the diverse uses of the ideas ofNietzsche, this work focuses on the recentthinkers that consider them a paradigm ora model of action. This paper shows,through the courses of the thoughts ofMichel Foucault, Paul Veyne, GianniVattimo, and Paul Virilio, the manner inwhich Nietzsche has been introduced intothe humanities. The above mentionedcourses are presented, emphasising casesthat show well, how certain Neitzscheanideas are reflected upon and brought intooperation. This work questions inparticular the category of model orparadigm as applied to Nietzsche, takinginto consideration the relationship

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between this category and the Platonicscheme, model/copy. The possibilities ofthinking of the Platonic model afterNietzsche and of relating the concept ofuse and ethics nowadays are alsosuggested.

Key-words: model; uses; operators;differential; humane sciences.

Ao escolher Nietzsche como pen-sador que instaura uma nova referên-cia paradigmática � algumas de cujascentelhas materializam-se em diversospensadores do século XX �, vemo-nostransportados a uma encruzilhada deodisséias. Elas abrangeriam desde apolêmica recepção do pensamento deNietzsche em sua época, acrescida peloseu autoproclamado caráter póstumo,até sua inegável influência no pensa-mento atual. Nas redes deste últimoteríamos que considerar, especialmen-te, sua previsão de nossa atualidadecomo niilista.1 Mas temos também umaspecto menos grandioso: aquele dasdiversas interpretações e, entre elas, oproblema dos usos dos quais o referi-do pensamento tem sido objeto, come-çando pela apropriação de seu pensa-

mento pelo nazismo. Sobre essas utili-zações existem reflexões que abrangemdesde pensadores europeus até a pró-pria recepção de Nietzsche na �cenabrasileira�.2 Bataille, por exemplo, te-ria insistido em �lavar� Nietzsche �damancha nazista�, denunciando certascomédias, �uma delas ligada à própriairmã do filósofo�.3 Nunca é demais re-petir que, no Brasil, a materialidadediscursiva que alertou para a comple-xidade desse pensador, que não pode-ria ser simplesmente descartado, foium artigo do professor AntonioCandido que, em 1946, na mesma épo-ca em que se considerava Nietzsche um�precursor do nazismo�, enfatizou anecessidade de �recuperar Nietzsche�,considerando-o �um dos maioresinspiradores do mundo moderno�, umdaqueles �portadores�,

(...) que podemos ou não encontrar, naexistência cotidiana e nas leituras quesubjugam o espírito. Quando isto se dá,sentimos que eles iluminam brusca-mente os cantos escuros do entendi-mento e, unificando os sentimentosdesaparelhados, revelam possibilida-des de uma existência mais real.4

1. Sobre os diversos aspectos e interpretações doniilismo, temos uma extensa bibliografia. Citemos,neste começo, uma das definições mais simples,mas que nem por isso deixa de dar conta dessasituação na atualidade; na interpretação de PaulVeyne, Nietzsche prevê o niilismo como �os mo-mentos da história em que os pensadores têm osentimento que as verdades são sem verdade esem fundamento� � VEYNE, Paul. (1989)�Foucault et le dépassement (ou achèvement) dunihilisme�. In: Michel Foucault philosophe. RencontreInternationale. Paris, Éd. du Seuil, p. 399.

2. Uma reflexão atual dessa problemática encon-tra-se em MARTON, Scarlett. (2000), �Nietzschee a cena brasileira�. Apêndice em: Extravagâncias.Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, São Paulo, Dis-curso Editorial.3. BATAILLE, G. �Nietzsche y el nacional-socia-lismo�. ECO, Revista de la Cultura de Occidente,Bogotá, tomo XIX, sep, oct, nov l969, p. 582.4. �O portador�, que, como Posfácio, foi repro-duzido no volume Nietzsche, Obras incompletas,das primeiras edições da coleção Os Pensadores,Abril S.A., 1974, pp. 419-424.

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O que infelizmente permanece atualé que ainda testemunhamos diversasreferências impertinentes � algumasvezes misturadas a perigosos precon-ceitos � que circulam a partir e ao re-dor do pensamento de Nietzsche. Po-rém, a problemática dos diversos usosse desenha como muito abrangente, e,por isso, escolheremos só um aspectodela. Pois se há apropriações e inter-pretações indevidas e/ou preconcei-tuosas, existem também aquelas queemergem como tentativas de recupe-rar e até de usar de outra maneira seupensamento. Nesta ocasião, gostaría-mos de destacar � dentro das últimasutilizações5 � algumas daquelas quequerem resgatá-lo como modelo ouparadigma de ação. Mas, para fazê-lo,assinalemos já de início a problemáticaque consideramos enovelada nessa pre-tensão: como um pensador que se dis-tanciou do �modelo� (παραδειγµα),pode ele próprio ser usado como tal?Como nós mesmos poderíamos con-siderá-lo um paradigma que influen-ciou o século XX? Sim, pois quem nãoqueria discípulos e seguidores, nãoqueria �cópias� no sentido platônico.6

Quem escreve um livro de �decisões�como Crepúsculo dos ídolos não se colocacomo um novo ídolo. Em outras pala-vras, Nietzsche, que de diversas formaspõe em prática o distanciamento da con-cepção platônica da relação modelo/cópia, não poderia ser assinalado �sem traí-lo � como um modelo ou para-digma. Nesse sentido, citemos simples-mente, a seguir, dois momentos daHistória de um erro (ou Como o �verdadei-ro mundo� acabou por se tornar em fábula);história que percorre a própria auto-avaliação do pensamento ocidental eque começa com �eu, Platão, sou a ver-dade�. Localizando-nos apenas nosseus dois últimos momentos, recolha-mos as palavras do próprio Nietzsche:

5. O �verdadeiro� mundo � uma Idéiaque não é útil para mais nada, que nãoé mais nem sequer obrigatória � umaidéia que se tornou inútil, supérflua,conseqüentemente uma Idéia refutada:expulsemo-la!(Dia claro; café da manhã; retorno do bonsens e da serenidade; rubor da vergonhaem Platão, alarido dos demônios em todosos espíritos livres.)

5. Termo em sentido abrangente e não reduzidoao �utilitarismo� que, aliás, teria sido considera-do por Nietzsche como �crença� relativa ao �re-banho humano�; crença, imaginação, estupidez�de que um dia sucumbiremos�. Gaia Ciência, §354. (Obras incompletas. Trad. de Rubens RodriguesTorres Filho. 3a ed. São Paulo, Abril Cultural, 1983,col. Os Pensadores, p. 218.) Edição à qual, a se-guir, faremos referência sempre que não existaindicação ao contrário.6. Consideremos que, para Platão, a boa imitaçãoou cópia será aquela �que se regula sobre a Forma,idêntica a si mesma e imutável� � GOLDSCHMIDT,

Victor. (1947), Les dialogues de Platon. Paris, PressesUniversitaires de France, p.15. Deleuze destaca-rá, na relação de semelhança entre cópia e Mode-lo, seu caráter não exterior, pois �ela vai menos deuma coisa a outra do que de uma coisa a umaIdéia, uma vez que é a Idéia que compreende asrelações e proporções constitutivas da essênciainterna�, de modo que �é a identidade superiorda Idéia que funda a boa pretensão das cópias efunda-a sobre uma semelhança interna ou deriva-da�. � DELEUZE, G. (1974), �Platão e o Simu-lacro�. In: Lógica do sentido. Trad. Luiz RobertoSalinas Forte. São Paulo, Perspectiva, p. 262.

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6. O verdadeiro mundo, nós o expul-samos: que mundo resta? o aparente,talvez ? ... Mas não! Com o verdadeiromundo expulsamos também o aparente!(Meio-dia; instante da mais curta sombra;fim do mais longo erro; ponto alto da hu-manidade; INCIPIT ZARATHUSTRA).7

Nesses dois momentos da �histó-ria de um erro�, possível de ser vis-lumbrada como tal, pois constituiriauma visão de distância, temos: um aler-ta para utilidade e inutilidade de cer-tas Idéias, um afastamento daquelagrande criação ocidental que começacom Platão e se auto-elimina como �ver-dade�,8 uma predição do niilismo denossa época quando se expulsam con-juntamente o �mundo verdadeiro� (daLuz, do Bem) e o mundo aparente (dassombras, da caverna), pois o segundoparticipava e dependia do primeiro.Ambos os momentos corresponderiamao que em nossa época vivemos comoexperiência do niilismo (fraco e forte),9

pois entre eles teríamos o cruzamentoda vergonha de Platão (no momentoem que há predomínio do niilismo fra-co) com a irrupção de Zaratustra (nomomento do niilismo forte, em que háum novo começo após ter afundado eter tido forças para a �saída pelo alto�).Já nos fios jogados ao porvir emergeZaratustra, aquele que nos traz a �boanova�, ou seja, que anuncia o raio ou afigura do além-do-homem,10 transfor-mando assim a própria figura do �ho-mem� � tão cara às denominadas ciên-cias humanas11 � numa espécie de pon-te entre o animal e o além-do-homem.

Não por acaso, será nessa inserçãoque o próprio momento da cultura oci-dental inaugurado pelo pensamento deNietzsche será denominado � hoje emdia � de nietzscheísmo, e consideradoo equivalente da Revolução Francesaou da queda do Império Romano, umavez que ele marcaria uma �data milenarna história do pensamento, como Pla-

7. NIETZSCHE, F. (1983) Crepúsculo dos ídolos. In:Obras incompletas, op. cit., pp. 332-333.8. Termo que, nesse momento da fábula, apareceentre aspas, colocadas, talvez, a partir da pers-pectiva utilitária das Idéias.9. Para ater-nos apenas às palavras de Nietzsche,o niilismo se produziria quando retiramos �ascategorias �fim�, �unidade�, �ser�, com as quais tí-nhamos imposto ao mundo um valor�, sendo a�crença nessas categorias da razão� a causa doniilismo em NIETZSCHE, F. (1983), Obras incom-pletas, op. cit., p. 381. Sobre o niilismo fraco e forteoperamos, nesse ponto, fazendo uma extensãointerpretativa da Gaia Ciência §370, em queNietzsche distingue pessimismo romântico e pes-simismo dionisíaco (Ibid. pp. 220-222).

10. Adotamos a tradução de Rubens RodriguesTorres Filho para Übermensch, deixando de lado ade super-homem que tem implicado incom-preensões e mal-entendidos.11. Usaremos, neste artigo, a denominação Ciên-cias Humanas em sentido amplo e indeterminadoe, assim, de forma mais próxima ao pensamentode Gianni Vattimo (a qual referiremos na nota52). Isso se deve a que cada autor aqui citadoemprega matizes e ordenações diferenciais dessadenominação, o que não seria o caso de esclarecerneste artigo. No entanto, assinalaremos em notaalgumas dessas diferenças e limitações quandonecessárias para a compreensão do texto. Emoutro lugar trabalhamos essa temática em rela-ção aos seus �fundamentos ordenadores�: �Pro-blemas de uma teoria das ciências humanas�.Revista Integração, Ensino-Pesquisa-Extensão. SãoPaulo, USJT, ano II, nº 6, agosto, l996, pp. 165-172.

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tão faz vinte e cinco séculos�; para usaruma expressão de quem podemos di-zer que se movimenta, precisamente,na linha de uma �moral nietzscheanaou pós-cristã�.12

No entanto, torna-se preciso mar-car também um aspecto constantementedesconsiderado: Nietzsche, ao contrá-rio do que habitualmente se pensa, nãovaloriza os acontecimentos grandiosos.Zaratustra, por exemplo, introduz o si-lêncio em momentos decisivos13 e nu-ma ocasião dirá:

eu tenho deixado de acreditar em�grandes acontecimentos� quando seapresentam rodeados de muitos alari-dos e muita fumaça.14

Nietzsche dirá que é preciso saber ou-vir corretamente Zaratustra e seu tomda sabedoria, que não é o de um pro-feta, quando diz:

As palavras mais quietas são as quetrazem a tempestade, pensamentos quevêm com pés de pomba dirigem o mun-do.15

E é precisamente essa situação que,numa atualidade de fumaça e ruído,queremos ressaltar. Isso se deve a que

escolhemos um assunto talvez �extem-porâneo�: como16 Nietzsche vai se in-troduzir nas denominadas �ciênciashumanas�? A resposta que salta aosolhos seria: �sem ruído, alaridos, nemfumaça�, tanto que hoje em dia muitosestudiosos na área ainda duvidam daimportância de trabalhar seu pensamen-to. Isso porque, com exceção da psico-logia,17 não tem sido direta nem expli-citamente que essa referida introduçãotem acontecido. Mas, não era necessá-rio que, tratando-se de Nietzsche, as-sim acontecesse? Lembremos nova-mente uma pontualidade textual:

O que são alguns milênios, nos quaiso cristianismo se conservou! Para omais poderoso dos pensamentos é pre-ciso muitos milênios � por muito, mui-to tempo ele tem de ser pequeno e impo-tente.18

Sabe-se que a introdução de Nietzschenas ciências humanas foi acontecendoà medida que novas interpretações co-

12. Referimo-nos a Paul Veyne. A expressão cita-da encontra-se em: VEYNE, P. (1995), Le quotidienet l�intéressant (Entretiens avec Catherine Darbo-Peschanski). Paris, Les Belles Lettres, pp. 162-163.13. Por exemplo, Assim falou Zaratustra, II, �A horamais silenciosa�.14. Idem, �Dos grandes acontecimentos�.15. Ecce Homo, Prólogo, § 4. Em NIETZSCHE, F.(1983), Obras incompletas, op. cit., p. 366.

16. A nosso ver, a distinção entre �que� e �como�supõe um abandono das essências platônicas (que)e, uma assunção do funcionamento das forçasem termos nietzscheanos (como).17. Dela não trataremos nesta ocasião, pois a in-trodução de Nietzsche na psicologia parece-noster sido diferente das demais ciências humanas.As relações que Freud manteve com o pensamen-to nietzscheano ainda fazem parte de constantesdebates e polêmicas. Acrescentemos que, hoje emdia, levar a sério o Nietzsche-psicólogo tornou-seuma prática; como um cuidadoso trabalho queconsidera esse último aspecto: GIACÓIA JUNIOR,Oswaldo, (2001), Nietzsche como psicólogo. SãoLeopoldo, Editora Unisinos.18. NIETZSCHE, F. (1983), Obras incompletas, op.cit., p. 442.

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meçaram a circular como alternativa àutilização de Nietzsche pelo nazismo.Segundo o artigo �A terceira margemda interpretação. Müller-Lauter re-visita Nietzsche�,19 Deleuze ressalta �ocaráter ativo das idéias de Nietzsche�e, assim, volta-se para o futuro, enten-dendo que, sobre o passado e a utili-zação indevida dos escritos de Nietzs-che, �Jean-Wahl, Klossowski e Bataille,já haviam acertado as contas�.20 Em nos-sa �cena� foi �através dos pensadoresfranceses, em particular de Foucault eDeleuze, que, recentemente, no inícioda década de 1980, o autor deZaratustra ganhou outra vez destaqueno Brasil�.21 Inclusive afirma-se, no re-ferido artigo, que seria através da lei-tura desses dois últimos pensadoresfranceses �que Nietzsche adentrou asciências humanas�.22

Interessa-nos acrescentar, nestaocasião, a complexidade que possui arede de pensadores que introduzirãoNietzsche nas ciências humanas e, es-pecialmente, a maneira pela qual issotem acontecido até agora: silenciosa-mente e devagar, ou seja, ao modo deZaratustra, com passos de pomba, semalaridos nem fumaça. Por outra parte,precisam ser marcadas as diversas vias

pelas quais determinados pensamen-tos de Nietzsche vão ser introduzidosnas ciências humanas. Um exemplo ha-bitualmente não citado é Max Weber.Isso se levarmos a sério que este últi-mo pensador constituiria uma espéciede divisor de águas � enquanto�aplicação� de certos pensamentosnietzscheanos23 �, cuja interpretaçãode Nietzsche não coincidiria com aque-las do pensamento francês.24 Mas a ta-refa de desenovelar as relações entreos pensamentos de Nietzsche e Weberdemandaria uma pesquisa rigorosa porquem tenha caminhado não apenas pe-las vias nietzscheanas, mas experimen-tado, independentemente, os trajetosde ambos os pensadores.

Nosso percurso, nesta ocasião, se-rá mais limitado e consistirá em ma-pear, através de alguns exemplos, comodeterminados pensadores � que gos-taríamos de denominar �operadoresdiferenciais de Nietzsche�25 � acaba-ram por introduzi-lo no âmbito dasciências humanas. Introdução que te-ria acontecido não como um projeto a

19. MARTON, Scarlett (2000), Extravagâncias.Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche, op. cit., pp.171-201.20. Ibid., p. 187.21. Ibid., p. 191.22. Idem (2000), �Nietzsche e a cena brasileira�.In: Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia deNietzsche, op. cit., p. 206. Afirmação que conside-ramos pertinente, quando restrita à psicologia.

23. Da mesma maneira que nos estudos reali-zados sobre Nietzsche no Brasil, não existe una-nimidade para traduzir �Wille zur Macht� (�von-tade de potência� ou �vontade de poder�) acon-tece com a expressão �nietzschiano� ou�nietzscheano�. Nesta ocasião utilizaremos essaúltima denominação.24. VEYNE, Paul. (1986), �Le dernier Foucault etsa morale�. Critique, no 471-472, p. 938.25. Para nos distanciar, assim, da não inocenteanálise �do discurso filosófico da modernidade�,feita por Jürgen Habermas ao trabalhar a linhacrítica da racionalidade ocidental que viria deNietzsche e abrangeria pensadores franceses comoBataille, Lacan, Foucault e Derrida.

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ser executado, mas à medida que osreferidos pensadores encontraram elidaram, em seus próprios percursos,com diversas pontualidades temáticasjá apontadas por Nietzsche. Cabe des-tacar que, nessa operacionalização,muitos deles foram modificando es-sas problemáticas em função de deter-minadas resistências práticas, o quepara nós não constitui um empecilhopara estudá-los. Exemplificaremos aseguir com Michel Foucault, PaulVeyne, Gianni Vattimo e Paul Virilio.26

Pensamentos nos quais temos tenta-do vislumbrar algumas �árvores�(Vattimo, Virilio) ou tanto as �árvo-res� como a �floresta� (Foucault,Veyne), mas sempre os acompanhan-do separadamente e em seus própriospercursos e, neste sentido, ao utilizar-mos aqui algumas fotografias dessasviagens, tentaremos evitar o perigo deficar nas simples citações-cascas.27

Trabalharemos pontualmente, por-tanto, com pensadores que, pejorativa-mente,28 têm sido considerados como

aqueles que trabalham com conceitosde Nietzsche ao modo de simples�operadores�. Por isso, e sem fazer se-gredo de nossa própria posição de in-térpretes, digamos que nos afastamosde uma certa tradição filosófica que vêcomo negativa qualquer instrumentali-zação dos pensamentos, que acreditasomente na �fidelidade� ao texto e/ou em suas análises estruturais e querejeita assim aplicações e usos. Dife-rentemente dessa tradição, localizamo-nos mais próximos da série que traba-lha a partir do diagnóstico do presente, e,em função disso, �Nietzsche-instru-mento-de-trabalho� não constitui paranós um sacrilégio. Posição táticaque � no que diz respeito ao diag-nóstico � não faz senão recolher umalinha desenhada por Foucault a partirde Nietzsche. Mas posição que � emnosso caso � quer acrescentar a im-portância de uma reflexão sobre osmeios em nossa atualidade, marcando,ao mesmo tempo, as dificuldades dequalquer operacionalização. Isso porque,a nosso ver, operar com determinadospensamentos não significa renegar apertinência dos clássicos nem a análi-se e revisão constante e cuidadosa dostextos. Aliás, ao destacar meios e ope-radores, procuramos simplesmente se-guir o �velho Aristóteles�, que teria

margem da interpretação� e �Nietzsche e a cenabrasileira� em: Extravagâncias. Ensaios sobre a filo-sofia de Nietzsche, op. cit., pp. 161-208, que se mos-tram esclarecedores e ricos em muitos aspectos,parecem-nos usar a metáfora de �caixa de ferra-mentas� e referir-se à utilização dos conceitos deNietzsche como �operadores� num sentido restri-to e, por isso, pejorativo.

26. A nosso ver, a complexidade da rede nãopoderia ser explicitada num artigo, pois, mesmorestritos, esses nomes encontram-se enoveladosa muitos outros. Apenas para recolher um exem-plo, digamos que os dois primeiros � MichelFoucault e Paul Veyne � dialogam constante-mente em seus escritos com Gilles Deleuze, cujopensamento chega a ser utilizado por eles quasecomo um novo direcionamento que permite seafastar livremente e sem culpa da tradição filosófica.27. Usamos essa denominação como uma manei-ra de distanciar-nos de denominações como inter-no/externo e de suas vinculações a profundidade;conceitos sobre os quais já operou o martelonietzscheano.28. Assim, por exemplo, os artigos de ScarlettMarton: �Foucault leitor de Nietzsche�, �A terceira

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percebido a dificuldade dos �meios�dando igual importância à �vontade dofim� como à �escolha dos meios�. Demaneira que, para ele, não bastaria,por exemplo, �querer para deixar de serinjusto�, ou seja, ele teria insistido emque �a dificuldade da realização émaior do que a da concepção�, sendoque o desprezo pelo meio teria sidopróprio de Platão.29

Comecemos nossa exemplificaçãocom Michel Foucault, uma vez que asproblemáticas de seus diversos escri-tos perpassam cada vez mais o âmbitodas ciências humanas e, nesse aspecto,existe uma espécie de consenso. A nossover, já o seu declarado criar �novasrelações� constitui precisamente umaespécie de encruzilhada entre filosofia,ciências humanas e história;30 sua pro-clamada �morte do homem� procuraquestionar o objeto-sujeito das pró-prias ciências humanas; vias que, aomesmo tempo, não poderiam ser afas-tadas das diretrizes constituídas pela�problematização constante� e pelo�diagnóstico dos perigos�. E será pre-cisamente em relação às problemáticasanteriores que teríamos que retomar o

que costuma ser repetido: Foucault usa-ria Nietzsche como operador. Matizan-do a referida afirmação, poderíamosdizer que os direcionamentos foucaul-tianos estão muitas vezes em cruzamen-to � com seu operar ou não operar �com pensamentos de Nietzsche. Assim,por exemplo, o �diagnóstico da atuali-dade� será relacionado a Nietzschepelo próprio Foucault, pois seriaNietzsche quem teria descoberto o �di-agnosticar� como a atividade peculiarda filosofia, uma vez que filosofar exi-giria um escavar genealógico sob nos-sos pés e consistiria numa série de atose operações em diversos âmbitos.31 Jáas prestigiadas incursões de Foucaultno âmbito institucional estariam opera-cionalizando, em surdina, a separaçãonietzscheana entre origem e finalida-des.32 Tampouco o trabalhar foucaul-tiano na história, até como paródia,poderia ser desvinculado do pensa-mento de Nietzsche, do mesmo modoque a �morte do homem� entendidacomo conseqüência do acontecimento�Deus está morto�. Mas não há segre-do; as apropriações explícitas e até seuoperar implícito com Nietzsche são as-sumidas por Foucault ao afirmar queusa Nietzsche como modelo e que tra-29. Com respeito ao anterior, AUBENQUE, Pierre.

(1986), La prudence chez Aristote. Paris, PUF, pp.133-137; são suas as expressões que conserva-mos entre aspas nas duas últimas afirmações.30. A conhecida ordenação dessas ciências emFoucault encontra-se principalmente no capítuloX de As palavras e as coisas; cabe ressaltar que nelea história será considerada como �a mãe das ciên-cias humanas�, guardando complexas relaçõescom elas. FOUCAULT, M. (1985), As palavras e ascoisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Trad.Salma Tannus Muchail. 3a ed. São Paulo, MartinsFontes, pp. 384-390.

31. �Conversación con Michel Foucault�, em:CARUSO, Paolo. (1969), Conversaciones con Lévi-Strauss, Foucault y Lacan. Trad. F. Serra Cantarell.Barcelona, Ed. Anagrama, pp. 81, 82.32. Operacionalização implícita que será marcadabrilhantemente por VEYNE, Paul. (1982), Como seescreve a história; Foucault revoluciona a história. Trad.de Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. Bra-sília, Ed. Universidade de Brasília, pp. 180 e 198,e que remete à Genealogia da Moral, II, § 12.

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balha com �teses nietzscheanas ouantinietzscheanas (que são tambémnietzscheanas!)�.33 É este aspecto que,nesta oportunidade, gostaríamos dedestacar, pois nos conduz à interroga-ção do começo deste artigo, instigan-do-nos a perguntar: como Foucaultpermite-se usar a palavra modelo refe-rida a Nietzsche? Ele não teria medidoo distanciamento do pensamento deNietzsche com o paradigma platônicoao qual já nos referimos?

Longe de acreditar numa �ingenui-dade foucaultiana�, teríamos que res-ponder que é precisamente a expres-são modelo aplicada a Nietzsche quenos parece constituir uma das cons-tantes �armadilhas do humor foucaul-tianas� destinada a afastar �leitoresperigosos�.34 Não por acaso desde seusprimeiros textos, Nietzsche, juntamen-te com Marx e Freud, irrompiam comobrechas da cultura ocidental, não comoautores, mas como �fundadores de dis-cursividade�.35 Por isso nossa apostade leitura é pensar que, nesse gesto,

Foucault estaria criando um novo dife-rencial � desta vez nietzscheano ouantinietzscheano. Sim, porque a afir-mação de operacionalizar teses tanto�nietzscheanas como antinietzscheanas�não nos parece desligada de uma ou-tra afirmação � desta vez do�Theatrum Philosophicum� �, com aqual divertia-se ao dizer que toda fi-losofia, após Platão, constituía simples-mente um diferencial platônico.36 Demaneira que a filosofia, sob essa de-terminada ótica, começaria propria-mente com Aristóteles:

E se no limite, se definisse como filoso-fia todo empreendimento, qualquer queseja, destinado a reverter o platonismo?[...] Digamos mais bem que a filosofia deum discurso é seu diferencial platônico.

A nosso ver, Foucault sabia muito bemque ao se declarar �nietzscheano ouantinietzscheano� afirmava igualmen-te o referente, portanto, através dessegesto, estaria abandonando um �mo-delo Platão� e colaborando na consti-tuição de um �modelo� Nietzsche,como novo diferencial ao qual de agoraem diante tornar-se-ia necessário fazerreferência.

Mas, o que acontece se inserimosessas utilizações foucaultianas junto aoutros usos de pensamentos nietzschea-nos nas ciências humanas? Ou seja, oque acontece quando notamos usos di-ferentes desse Nietzsche-modelo, ope-rados por outros pensadores? Exempli-ficaremos a continuação com Paul

33. FOUCAULT, M. (1984), �O retorno da mo-ral�. In: O Dossier. Últimas entrevistas. Trad. Ma-ria da Gloria R. da Silva. Rio de Janeiro, Liv.Taurus Ed.34. Em praticamente todos os nossos trabalhossobre Foucault temos insistido nesse aspecto que� a nosso ver � é constantemente desconsideradopor seus diversos leitores e intérpretes.35. Possibilidade que entregam alguns fiosrelacionais de duas conferências: �Qu�est-ce queun auteur?� (em: Dits et écrits. Paris, Gallimard,1994, vol. I, pp. 789-821) e �Nietzsche, Freud etMarx� (em: Nietzsche, Cahiers de Royaumont,Philosophie, tome VI. Paris, Les Éditions de Minuit,1969, pp. 183-200). Existem traduções para o por-tuguês de ambas as conferências.

36. �Theatrum philosophicum�. Em: Critique, nº282, novembre 1970, pp. 885-908.

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Veyne, cuja aposta nas ciências huma-nas direciona boa parte de seu trajeto37

e que se tornou conhecido entre nóspor sua aparentemente simples e ino-cente análise do Império Romano, coma qual começa o primeiro volume da�rapidamente� imitada (até entre nós)História da Vida Privada. Esse historia-dor-filósofo, que como um eficiente�profeta às avessas� costuma se per-guntar: �quem já sabia o que hoje acon-teceria?�, marcará a resposta � no quediz respeito à nossa época � com trêsnomes: Nietzsche, Renan e Flaubert.38

Sim, porque consciente das diversaspossibilidades de caminhos, ele teráum especial cuidado de não usar o no-me de Nietzsche como referência úni-ca. Mas recortemos desta vez � cons-ciente e arbitrariamente � seu trajetoe salientemos somente algumas pontua-lidades de sua relação com o pensamen-to nietzscheano. Veremos, assim, queapesar dos matizes diferenciais, ou dogesto veyniano que faz questão de de-

clarar �eu não me iludo de compreen-der este difícil pensador�, existe umcruzamento entre os caminhos deNietzsche e Veyne. Mas, da mesmamaneira que no caso de Foucault, tam-pouco há segredos; o operacionalizara problemática �nietzscheano-fou-caultiana� da verdade no âmbito dahistória e até das ciências humanas é oque o próprio Veyne declara e salta àvista. Um exemplo será afirmar que sedeve à �confusão historicista moder-na� a própria idéia de atualidade; sempor isso deixar de utilizá-la constante-mente, uma vez que o termo atualidadeguardaria relação com aquela �concep-ção muito nova da filosofia� que sabeque �a verdade clássica está morta�.39

Por outro lado, o abandono da proble-mática do fundamento, que também re-mete a Nietzsche, será operaciona-lizado por Veyne dentro do própriopercurso foucaultiano,40 pois seria pre-ciso �tirar as conseqüências da impos-sibilidade de fundar para se aperceberque é tão inútil quanto impossível�.41

Acrescente-se aos aspectos anterior-mente mencionados um operar, dessavez mais silencioso, com a concepçãonietzscheana do escolher e com uma cer-ta plasticidade que, muitas vezes, seráconsiderada como a própria vontade de

37. Ver, sobretudo, VEYNE, Paul. (1983), Inven-tário das diferenças, aula inaugural no Collège deFrance. Trad. de Sônia Salzstein. São Paulo,Brasiliense. Cabe esclarecer que � ao modo deRaymond Aron �, nesse texto, Veyne consideraráSociologia no sentido abrangente de Max Weber.Já em outros escritos, Max Weber será considera-do um �historiador� e a �sociologia� apareceráem sentido restrito, como, por exemplo, em:�Contestation de la Sociologie� (Diogène, no 75, juillet-septembre, 1971). Muitas das críticas queVeyne fará à sociologia serão incorporadas porPASSERON, Jean-Claude. (1995), O raciocínio so-ciológico. O espaço não-popperiano do raciocínio natu-ral. Trad. de Beatriz Sidou. Petrópolis, Vozes.38. VEYNE, Paul. (1995), Le quotidien et l�intéressant,op. cit., p. 319.

39. Idem. (1986), �Le dernier Foucault et samorale�, op.cit., p. 940.40. Ibid., pp. 938-939.41. Idem. (1989), �Foucault et le dépassement(ou achèvement) du nihilisme�. In: Michel Foucaultphilosophe. Rencontre Internationale. Paris, Éd. duSeuil, p. 152.

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potência;42 ambas as perspectivas, noentanto, são necessárias para entendero trabalho �revolucionário� desse his-toriador. Num outro nível, estaria tam-bém o gosto pela montanha, territóriocomum a ambos os pensadores.43 In-clusive saltando até as vivíssimas, am-bíguas e engraçadas descrições da con-dição humana que percorrem os diver-sos textos de Veyne, teríamos que di-zer que elas também mostram seusenovelamentos com fios nietzscheanos.Isso começando pela própria revalori-zação da alegria e do riso44 e até comoestudo limitado e caricatural que sim-plesmente repete duas ou três caracte-rísticas da condição humana, uma vezque se tem consciência de que a estru-tura desse comportamento permanecedesconhecida.45

Mas, entre aqueles diversos cruza-mentos, escolhamos veynianamenteum detalhe: a expressão �os fatos nãoexistem�. Veyne lembrará que esta cara

e problemática expressão � que se temtornado habitual em historiografia enas ciências humanas � remete aNietzsche e não a Max Weber, como secostuma acreditar. Mostrando toda suacomplexidade, Veyne percorrerá umainterpretação em que �os fatos não exis-tem� constituiria uma afirmação quenão só diz respeito ao plano do conhe-cimento que os interpreta, mas ao pla-no da realidade onde são explorados,46

pois a referida expressão descreveria:

a estrutura da realidade física e huma-na; cada fato (a relação de produção, o�Poder�, a �necessidade religiosa� ouas exigências do social) não joga o mes-mo papel, ou mais bem não é a mesmacoisa, de uma conjuntura a outra; nãohá papel nem identidade senão de cir-cunstância,47

o que, já na linguagem veyniana, seriaconstatar que há somente práticas e con-junturas. Finalmente, e tratando-se dequem aposta na trilha de Nietzsche esabe que �a verdade está morta�, nãopoderíamos nos limitar apenas a análi-ses conceituais gerais. Por isso, para nãotrair esse operador por excelência que éVeyne, citemos pelo menos um exemploque remete a uma prática de �espíritonietzscheano�.48 Trata-se daquele co-

42. Mesmo que Veyne declare que �as palavras�vontade de potência�� são imprecisas e impro-nunciáveis e que, sobre elas, teríamos que �pensarem silêncio� � VEYNE, Paul. (1995), Le quotidienet l�intéressant , op. cit., p. 267.43. Tentamos explicitar as últimas problemáticasatravés do percurso realizado em: GAMBOAMUÑOZ, Yolanda Glória. (2000), Escolher a mon-tanha. Os curiosos percursos de Paul Veyne, tese dedoutorado, USP, 2000.44. Assim, por exemplo, não seria um simplesdetalhe a ser descartado o fato de que em Zaratustramude-se a �coroa de espinhos� pela �coroa derosas� e que, por outra parte, a �grande saúde�seja alegre, cf. A Gaia Ciência, § 382. NIETZSCHE,F. (1983), Obras incompletas, op. cit., p. 222.45. A respeito, Nietzsche, Morgenröte, § 116 eMenschliches Allzumenschliches, § 160.

46. Ibid., p. 241.47. VEYNE, Paul. (1983), Les grecs ont-ils cru àleurs mythes? Essai sur l�imagination constituante.Paris, Éd. du Seuil, p. 49. Existe tradução para oportuguês: idem. (1984), Acreditavam os gregos emseus mitos? Trad. de Horácio González e MiltonMeira do Nascimento. São Paulo, Brasiliense.48. Para adotar pontualmente a expressão com aqual G. Lebrun caracteriza P. Veyne. (Em: �Para

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meço da História da Vida Privada pelosromanos, e não pelos gregos. Semdesconsiderar as �razões históricas�que ali nos são dadas,49 digamos quecomeçar pelos romanos implica tam-bém um abandono do problema do fun-damento e, ao mesmo tempo, afastar ummodelo ou paradigma a ser imitado naorigem; sobretudo um modelo �ideal�em função do qual fundamenta-se acaracterização valorativa da �cópia�como inferior. Nesse caso, toma-se dis-tância de um possível trabalho em ter-mos de �modelo� grego e �cópia� ro-mana. Sim, porque é o platonismo que,na ousadia do gesto veyniano, está sen-do ignorado desde o início. Em outraspalavras, questiona-se um operar comos esquemas de modelo/cópia ou rea-lidades/imagens, já na sua suposta ori-gem grega. Segundo Veyne: �O mundonão é feito de dois tipos de coisas, asrealidades e suas imagens�.50

Sobre os desdobramentos da refle-xão nietzscheana do niilismo na atuali-dade, existe um outro gesto veynianoque merece consideração. No Encon-tro Internacional de 1988 � MichelFoucault philosophe � após ouvir di-versas reflexões sobre o niilismo e suarelação com o pensamento foucaultiano,

Veyne faz a comunicação �Foucault et ledépassement (ou achèvement) du nihilisme�,na qual faz questão de declarar, logode início, que �muitas coisas que diráse devem a Gianni Vattimo�, o que afir-mará �de uma vez por todas e bem for-te�.51 E será esse gesto que nós amplia-remos, nesta ocasião, para nos referir-mos em seguida a Gianni Vattimo. Essefilósofo italiano, que auto-avalia iro-nicamente seu pensamento como �fra-co�, hoje se tornou conhecido pelas con-siderações que ainda tentam dar umsentido à pós-modernidade. Sentidoque ele acredita descobrir em nossasociedade de comunicação generaliza-da ou dos mass media. Ele trabalhará �em conjunto e de maneira relacional �ciências humanas e meios de comuni-cação de massa, vinculando-os constan-temente à problemática do niilismo.Digamos, no entanto, que Vattimo,mesmo mostrando as ilusões de �trans-parência� e de �acesso direto aos acon-tecimentos� criadas pelos meios de co-municação, não deixará de enfatizar,por outro lado, a explosão das multi-plicidades locais (minorias) que acabamhoje constituindo o próprio objeto dasciências humanas. Em suas palavras:

(...) as chamadas �ciências humanas�(um termo que no nosso discurso,como na cultura atual, continua in-completamente determinado em rela-

acabar com a cidade grega�, O Estado de S. Paulo,26.5.1984, Caderno de Programas e Leituras).49. �Introdução�, em História da Vida Privada.Trad. de Hildegard Feist, São Paulo, Cia. das Le-tras, 1989, vol. I. e nossa análise em �A vingançacontra Roma...�, Cadernos Nietzsche, São Paulo,FFLCH-USP, nº 6, 1999, pp. 67-68.50. �A helenização de Roma e a problemática dasaculturações�, Diógenes, Brasília, Ed. Universida-de de Brasília, nª 3, jul./dez., 1982, p. 120.

51. Rencontre Internacionale, op. cit., p. 399. É claroque esse gesto teria que ser relacionado com aatitude de Veyne, que se situa além das preten-sões de originalidade e que tem uma concepçãomuito especial de �influência�, considerando-auma ocasião de �tornar-se si mesmo�.

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ção aos seus limites e ao seu âmbito decompreensão), desde a sociologia à an-tropologia ou à própria psicologia �as quais surgem, de fato, apenas namodernidade �, são condicionadas,para além de uma relação de determi-nação recíproca, pela constituição dasociedade moderna como sociedade decomunicação. As ciências humanassão, ao mesmo tempo, efeito e meio deulterior desenvolvimento da socieda-de de comunicação generalizada.52

Dessa maneira, as ciências huma-nas estariam condicionadas pela socie-dade moderna como sociedade da co-municação, mesmo que elas tenhamreconhecido �o carácter histórico, li-mitado e afinal ideológico, do próprioideal de autotransparência, como dode uma história universal�.53 Pois, su-pondo que as ciências humanas sãoaquelas que �descrevem �positivamen-te� aquilo que o homem faz de si nacultura e na sociedade�, essa descriçãoestaria condicionada pelas análisescomparativas, as que se dariam comoo próprio �desenvolvimento da socie-dade moderna nos seus aspectos co-municativos�.54 E será por essa intensi-ficação dos fenômenos comunicativosque se possibilita, paradoxalmente, onascimento de mil outros centros da

história e a destruição da própria for-ma unitária, em que se tinha pensado,por exemplo, �um projeto de históriaautenticamente mundial�.55

Materialização do pluralismonietzscheano e abandono do sistemahegeliano como unificador,56 podería-mos acrescentar; só que operacionali-zados para refletir sobre as relações en-tre ciências humanas e meios de comu-nicação na atualidade. E será sempretendo presente um certo viés nietzschea-no que as análises de Vattimo sobre aatualidade serão conduzidas. Sua in-terpretação de Nietzsche está materia-lizada e constantemente modificada emlivros e artigos diversos a respeito.57

Já nas análises da atualidade ele operarelacionando Nietzsche e outros pen-sadores ou, como ele mesmo declara,não faz suas reflexões a partir de�enunciados teóricos�, mas de �conclu-sões legitimamente tiradas� dos textosdeles.58 Assim, Vattimo referir-se-á àsimultaneidade (teórica) dos meios de

52. VATTIMO, Gianni. (1992), A sociedade transpa-rente. Trad. Hossein Shooja e Isabel Santos, Lis-boa, Relógio D�Água Editores, pp. 20, 21. É estadenominação de ciências humanas que usamoscomo horizonte deste artigo, mas deixando delado a psicologia, em que a �influência� deNietzsche teria sido direta. (Cf., a respeito, notas:11 e 17.)53. Ibid., p. 31.54. Ibid., p. 21.

55. Ibid., p. 29. Vattimo retoma, nesse ponto,uma afirmação de Nicola Tranfaglia.56. A agregação de todas as diferenças, numatotalidade teórica, mas já se encarnando no Es-tado, seria a responsável pela �imagem de Hegelcomo zelador-filósofo do Estado prussiano, oque talvez não fosse� � VATTIMO, Gianni.(1999), �Estamos perdendo a razão?�. In: CaféPhilo. Trad. Procópio Abreu. Rio de Janeiro, JorgeZahar Editor.57. Por exemplo: VATTIMO, Gianni. (1980), Asaventuras da diferença. Trad. de José Eduardo Rodil.Lisboa, Edições 70; idem. (1989), El sujeto y lamáscara. Trad. de Jorge Binaghi. Barcelona, Penín-sula; idem. (1987), Introducción a Nietzsche. Trad.de Jorge Binaghi. Barcelona, Península.58. Idem. (1988), �L�impossible oubli�. In: Usagesde l�oubli. Paris, Éd. du Seuil, p. 77. Vattimo retirará

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comunicação � por exemplo, a repor-tagem televisiva ao vivo �, dizendoque é ela que definiria a �contempora-neidade� do mundo. No entanto, essaespécie de grande fenomenologia do espí-rito ou presentificação estaria desprovi-da de todo caráter dramático e nos le-varia a nos reencontrar com os mes-mos problemas apontados porNietzsche na Segunda ConsideraçãoExtemporânea. Ou seja, reencontraría-mos a impossibilidade do esquecimen-to, pois, segundo Vattimo, a conclusãodesse ensaio de 1874 seria

(...) que o homem do século XIX sofrede uma doença histórica � que porcausa do excesso de conhecimento ede consciência histórica, ele não é maiscapaz de criar, portanto, de fazer a ver-dadeira história (enquanto res gestae).59

Sendo que, hoje, esses problemas esta-riam �mais acentuados e generaliza-dos�; o que era um fenômeno de elitena época de Nietzsche, hoje já não se-ria mais. Em outras palavras, os massmedia ter-se-iam desenvolvido como�verdadeiros órgãos da historiciza-ção�, e só aparentemente eles seriamcultura a-histórica, pois hoje televisão,imprensa, rádio, etc. se sustentariamcada vez mais pela reprise, �caótica, mastendencialmente omnicompreen-siva�.Tratar-se-ia, assim, de uma tendênciaà �presentificação total [...] do passa-

do de nossa civilização ou inclusive detoda civilização�.60 No entanto, umavez que nós não vivemos mais numacultura do instante (como vivia a obrautópica, por exemplo), será precisa-mente nesse relativo �caos� que resi-dem para Vattimo �as nossas esperan-ças de emancipação�.61 Por isso, consi-derará o Nietzsche de Zaratustra comoo filósofo da modernidade tardia, àmedida que ele �teria visto e vivido adissolução do instante decisivo e dopathos que a acompanhava�.62

Mas era na reflexão sobre o niilismode nossa época que Veyne inscrevia �na porta talvez � o nome de GianniVattimo. Sim, porque aquela temáticapercorre efetivamente os diversos tex-tos desse último pensador, e, sobre ela,torna-se esclarecedor voltar àquelasduas últimas etapas da História de umerro, que citamos no começo deste arti-go. Isso porque, segundo a interpreta-ção de Vattimo, essa fábula resumiriaas etapas da filosofia européia, tal co-mo elas seriam reconstruídas no pen-samento de Nietzsche.63 No ponto cin-co da História de um erro seria evocadauma �filosofia do amanhecer�, em quenos teríamos liberado do �mundo ver-dadeiro�, ou seja, �das estruturas me-tafísicas, de Deus�.64 No passo seguin-

conclusões de Nietzsche e Heidegger nessa oca-sião, mas às vezes será de Marx ou, ainda, deoutros pensadores.59. Ibid.

60. Ibid., p. 80.61. Idem. (1992), A sociedade transparente, op. cit. p. 10.62. Idem. (1988), �L�impossible oubli�, op. cit., p.86, em que Vattimo refere-se ao Portal do Instan-te (nele está escrito Augenblick) do discurso �DaVisão e o Enigma�, em Assim falou Zaratustra III.63. Idem. (1987), Introducción a Nietzsche, op. cit.,pp. 98, 99.64. Ibid, p. 100.

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te, ou seja, no ponto seis, quando sesuprime também o mundo aparente,segundo Vattimo, se fez �meio-dia, ahora sem sombras, a hora em que co-meça o ensino de Zaratustra�. O refe-rido ensino, que corresponderia aopensamento do último Nietzsche, te-ria como conseqüência o pensamento�mais perturbador e abismal de Zara-tustra, a idéia do eterno retorno�. Comisso viria a exigência de levar a cabo�uma sistematização unitária e umaradicalização do niilismo ao que tinhachegado a filosofia do amanhecer�;65

isso porque o eterno retorno seria pre-cisamente �a forma extrema do niilis-mo, o nada (a falta de sentido) eter-no�.66 Na interpretação de Vattimo apa-recerá, a partir desse ponto, uma sériede desenvolvimentos � no mínimopolêmicos �, pois, segundo ele, rela-cionadas ao último momento da fábu-la teríamos a transformação da estru-tura �edípica� do tempo, a fundamen-tação da doutrina do eterno retorno me-diante um conteúdo �cosmológico� e aligação da idéia do retorno a uma deci-são que o homem deve tomar e a partirda qual se transforma. De maneira quetratar-se-ia, especialmente, de vislum-brar o niilismo como �o manifestar-seda mentira na moral. A moral tem in-ventado e proposto valores para a uti-lidade da vida�, mas com isso

tem ocultado desde sempre o sentidomesmo das posições de valor, ou seja,seu enraizamento na vontade de po-der de indivíduos e grupos.

Acontece assim que, �uma vez des-coberto que tudo é vontade de poder,todos se vêem obrigados a tomar par-tido�.67 Polêmica interpretação, portan-to, que relacionará niilismo, eterno re-torno, decisão e vontade de potência.

Mas, explicitando-a como �interpre-tação�, atenhamo-nos sobretudo àque-le constante remeter a Nietzsche emfunção da fábula. Isso porque, segundoVattimo, a sociedade de autotrans-parência avançou para a �fabulação domundo�, de tal maneira que a �realida-de� do mundo constitui-se pelas múlti-plas fabulações: �Realiza-se, talvez, nomundo dos mass media, uma profecia deNietzsche: no fim, o mundo verdadei-ro transforma-se em fábula�.68 E, a par-tir disso, poderá também considerarque as próprias ciências humanas, como debate metodológico que lhes é pró-prio, constituem-se como fábulas, cons-cientes de tal. Daí, por exemplo, as pre-ocupações atuais que elas teriam comnarrações, mitos, sistemas simbólicose com a própria hermenêutica, que con-sideraria o caráter plural das narrações.Por isso, as ciências humanas seriamessas fábulas conscientes que constitui-riam mais seu objeto do que explora-riam um �real� já constituído e orde-nado. A nosso ver, há nessa perspecti-va uma relação com a frase deNietzsche que Vattimo está sempre ci-tando: �Não existem fatos, somenteinterpretações�,69 mas recordando queNietzsche acrescentava, �isto já é in-

65. Ibid., p.103.66. Ibid., p.115.

67. Ibid.68. Idem. (1992), A sociedade transparente, op. cit., p.13.69. Idem. (1987), Introducción a Nietzsche, op.cit., p.117.

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terpretação (Auslegun)�.70 No entanto,atento sempre aos novos começos eemancipações, Vattimo pensará como�uma recuperação hermenêutica da �re-alidade��, uma conclusão extraída, pre-cisamente, do texto de Nietzsche so-bre a fábula:

Que a realidade seja a (nossa) histórianão a faz, por isso, uma fábula; já quese o mundo verdadeiro tornou-se fá-bula, como escreve Nietzsche, dessaforma é também a fábula (o esquemamental que deveria reduzir tudo a si)que foi negada.71

Não queremos deixar de mencio-nar, finalmente, Paul Virilio, arquite-to-filósofo, que também constantemen-te introduz ligações com o pensamen-to de Nietzsche. Isso porque Viriliotem-se tornado um acertado pensadorda técnica e da �guerra pura� que re-siste, portanto, à aplicação da pergun-ta veyniana aos acontecimentos atuaisimediatos.72 Em relação a Virilio pode-mos dizer que ele previu a fumaça e oruído atuais, descartando assim a pos-sibilidade que eles viessem constituiracontecimentos marcados pela �surpre-sa ou algo de inimaginável�.73 Em ou-tras palavras, ele já sabia o que hoje

aconteceria. Devemos isso não somen-te ao artigo �Delírio em Nova Iorque�,no qual analisou em 1993 o atentadodo qual foi alvo o World Trade Centernaquele ano, considerando-o símbolode �uma nova relação de forças� ou�premonição de uma Hiroshima de umnovo tipo�.74 Sim, porque esse pensa-dor, que tem sido considerado comoapocalíptico, tampouco é uma espéciede visionário. Em outras palavras, é umpaciente trabalho anterior, materializa-do em diversos escritos, que possibili-tou esse seu acertado diagnóstico. Tra-balho no qual Virilio abordou, sob di-versos ângulos, os perigos do uso datecnologia como arma (deixando deconsiderá-la só como instrumento) einseparável da velocidade como valor.Tecnologia e velocidade seriam, paraele, um lado desconhecido da política,às quais, no entanto, estaríamos todossubmetidos e, o que é pior, não con-trolamos. Numa entrevista, em 1983,descreverá como até o próprio terro-rista tem que usar o veículo em movi-mento ficando �numa situação tecno-crática; por exemplo, um avião, um car-ro, um trem, um barco�, isso porque,�num veículo em movimento, do qualas pessoas não podem descer, você temuma situação de força�.75 O avião (ouum motor que explode) usado comoarma é um exemplo do que ele consi-dera a militarização da sociedade. Uma

70. Idem. (2001), A tentação do realismo. Trad. deReginaldo Di Piero. Rio de Janeiro, Lacerda ed.Istituto Italiano di Cultura, p. 17.71. Ibid., p. 43.72. Aludimos à pergunta �quem já sabia o quehoje aconteceria?�, referida na nota 38 deste artigo.73. Ver entrevista a El País, reproduzida e tra-duzida na Folha de S. Paulo, Cad. Especial 8,25.9.2001.

74. Ibid.75. VIRILIO, Paul. (1984), Guerra pura. A milita-rização da sociedade. Trad. Elza Mine e LaymertGarcia dos Santos. São Paulo, Editora Brasiliense,p. 106.

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vez que hoje em dia �aquele que tem avelocidade, tem o poder. E tem o po-der porque é capaz de adquirir osmeios, o dinheiro�.76 Hoje, fabrica-sevelocidade. O poder estaria investidona aceleração. Nesse sentido,

(...) o verdadeiro inimigo é menos ex-terno que interno: nosso �próprio� ar-mamento, nosso �próprio� poderio ci-entífico que, de fato, promove o fim denossa própria sociedade.77

Por outro lado, o Estado, a máquinade Estado, desde 1969,78 usaria técni-cas de terrorismo e tornar-se-ia assimterrorista. Começariam assim os atosde guerra sem uma guerra. Nas pala-vras de Virilio:

(...) (há) dificuldades que os regimes po-líticos têm em resistir ao terrorismo porcausa das próprias tecnologias (tele-fones, mísseis, etc.),

por outro lado

(...) há problemas que a comunidadeinternacional tem ao tentar acabar como terrorismo de Estado. É a mesma ló-gica da surpresa absoluta e do não-di-reito, uma lógica, digamos, do �ato gra-tuito�.79

Muitas dessas análises, que se tor-naram altamente pertinentes, estão em

relação com as novas ordenações80 quePaul Virilio introduzirá nas, por eledenominadas, ciências sociais,81 permi-tindo-lhe visualizar novos problemas.Nas referidas ciências destacará cons-tantemente a importância do acidente,pois ele constituiria uma interrupção,ou seja, uma mudança de velocidade,uma queda, mas que �tem algo a nosensinar sobre a natureza de nossos cor-pos e o funcionamento de nossa cons-ciência�.82 O acidente seria, assim, o queantes era o pecado para a natureza hu-mana; uma relação com a morte. Porisso, em 1983 Paul Virilio propõe quecada tecnologia escolha seu acidenteespecífico e o revele, não de maneiramoralista, mas como um produto a serquestionado epistemo-tecnicamente.83

Da mesma maneira que no fim do sé-culo XIX os museus exibiram máquinas,agora se poderiam exibir descarrila-mentos de trens, poluição, desmoro-namentos de edifícios...

Em outro nível, hoje seria necessá-rio repensar conceitos como liberdadee progresso, uma vez que existe a arma

76. Ibid., p. 50.77. Ibid., p. 53.78. Virilio refere-se ao ataque dos pára-quedistasisraelenses ao Aeroporto de Beirute. Ibid., p. 34.79. Ibid., pp. 34, 35.

80. Virilio reconhece trabalhar com o modelo mi-tológico das três funções (sagrada, militar e eco-nômica) estabelecido por Georges Dumézil, umavez que os mitos teriam uma capacidade analíti-ca inegável e poderiam ser utilizados comoanalisadores e como tendências. Ibid., pp. 21, 22.81. Virilio preferirá a denominação ciências sociaise fará referência a elas constantemente; o que nãopoupará à sociologia de suas severas críticas. Ibid.82. Ibid., p. 41.83. Acrescentemos que a importância do acidentecomo interrupção do conhecimento não está des-ligada da crítica nietzscheana do conhecimento.

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nuclear84. Em suas palavras,

(...) desde o século XVIII � desde a Eradas Luzes, para usar a terminologiaconhecida � acreditamos que atecnologia e a razão andavam de mãosdadas em direção ao progresso; ao �fu-turo glorioso�, como eles dizem. Eraponto pacífico que acharíamos a solu-ção � para a doença, a pobreza, a de-sigualdade. Tudo bem, achamos; masela era a solução final, não a melhor.Era a solução do mundo acabando naguerra nuclear, na Guerra Total, noextermínio e no genocídio. Assim, mi-nha intenção é dizer: chega de ilusõesa respeito da tecnologia. Não contro-lamos o que produzimos.85

Por isso, entre seus esboços de solu-ções, estaria a necessidade de �politizara velocidade�,86 controlando tanto avelocidade metabólica quanto atecnológica, uma vez que �nós somosambas�.87

Notemos, porém, que Virilio tri-lha caminhos que dificilmente coinci-dem com as sendas percorridas pelospensadores anteriormente citados, osquais também se diferenciam, entreeles, muito mais do que à primeira vis-ta poderia parecer. De maneira que,para exemplificar, comecemos por di-zer que o próprio perigo da velocida-

de e suas conseqüências para o pensa-mento não escapavam a Nietzsche,88

mas que Virilio levará isso ao extre-mo, indicando, por exemplo, que �omito nietzscheano da grande saúde�89

prolonga-se hoje, na direção de umaespécie de �estimulação perpétua�;

(...) a �grande saúde� não é mais por-tanto um DOM, o dom do silêncio dosórgãos, ela é um HORIZONTE, umaperspectiva a ser atingida graças àsproezas da aceleração das tecnologiasAO VIVO.90

Dessa maneira, Virilio retoma o tipoZaratustra com seu pressuposto fisio-lógico da grande saúde, cuja recompen-sa deveria ser uma terra desconheci-da, um além de todos os cantos, maspara dizer que

(...) esse além radiante se tornou, empouco tempo, um simples aquém detodas as terras, de todas as fronteirasdas regiões do próprio mundo...,91

pois hoje não há mais um pautar-se pordimensões, mas somente por anos-luz.

Já com respeito às diferenciações

84. �O perigo mais grave desta arma final � aarma nuclear � é que ela existe e que por suasimples presença desintegra qualquer debate so-bre a evolução da sociedade.� VIRILIO, P. p. 52.85. Ibid., p. 65.86. Política usada em sentido originário, em rela-ção à polis.87. VIRILIO, Paul, op. cit., p. 37.

88. Por exemplo, nas obras de Nietzsche, Prefácioàs conferências Sobre el porvenir de nuestras escuelas(trad. Carlos Manzano, Barcelona, Tusquets Edi-tores, 1980, pp. 31, 34) e a Segunda ConsideraçãoExtemporânea. Da utilidade e inutilidade dos estudoshistóricos para a vida. (Op. cit., pp. 58-70).89. Sobre a �grande saúde� em Nietzsche, GaiaCiência, § 382. In: NIETZSCHE, F. (1983), Obrasincompletas, op. cit., pp. 222, 223.90. VIRILIO, Paul. (1996), A arte do motor. Trad.Paulo Roberto Pires. São Paulo, Estação Liberda-de, pp. 110,111.91. Ibid., pp. 97, 98.

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com os outros pensadores aqui referi-dos, citemos a não ingênua afirmaçãode Virilio, que diz respeitar mas nãogostar de Michel Foucault (�Eu não gos-to da escritura tipo dois-e-dois-são-quatro.�92) e, precisamente nesse aspec-to, dirá praticar a fragmentaçãonietzscheana da escrita, uma vez queseu cuidado seria com as rupturas eausências. Para ele, �o fato de parar edizer: �vamos para outra parte� é mui-to importante�93

É absurda a pretensão de cercar total-mente uma questão. Você não podemoldá-la. Não se deveria tentar apre-ender tudo em torno de uma questão.Apenas existem perspectivas sucessivas.94

Por outro lado, Virilio afirmará � re-ferindo-se a Foucault � que ante o pri-vilégio do poder/saber, desenvolvidopelos �histoteóricos�, existe um préviopoder/mover, ou promoção, já quepara haver saber, seria preciso haverpromoção (exércitos, Cruzadas, popu-lações em movimento),95 possibilitan-do assim conceituar uma problemáticaque desemboca nos problemas da téc-nica e da velocidade sem limites, pró-prios de nossa época. E uma vez quenossa reflexão pautou-se pelo destaqueàs dificuldades das operacionalizações,digamos que Virilio será um dos pen-

sadores citados que mais enfatizarãouma reflexão sobre os meios em nossaatualidade, marcando, por exemplo, amudança na concepção de guerra,quando são os meios (da artilharia atéos mísseis) que se tornam importantes.96

Após este mapeamento pontual,podemos dizer que, se existe um pon-to comum na linha dos pensadores re-feridos � Foucault, Veyne, Vattimo,Virilio �, é a de constituir precisamen-te uma série diferencial; diversos ca-minhos a partir de uma complexa ma-triz �comum�: Nietzsche. Nesse senti-do, é exemplar o título do livro deVeyne, Foucault revoluciona a história,uma vez que, em nota, dirá que �ométodo�97 de Foucault teria saído deuma meditação sobre o aforismo 12 daGenealogia da moral, o que, levado ao li-mite, seria destacar que o operador �Foucault � estaria contribuindo paraum �Nietzsche revoluciona a história�.Por isso, e voltando aos nossos questio-namentos do início, teríamos que vol-tar a nos perguntar: que significa, en-tão, a expressão modelo referida aNietzsche? A partir dos próprios es-critos de Nietzsche, teríamos que re-petir que esse singular modelo se consti-tui à margem das categorias modelo/cópia platônicas, acrescentando que �como modelo não platônico � abrirá,precisamente, para a batalha desmas-carada das diversas interpretações.

92. Idem. (1984), Guerra pura..., op. cit., p. 45.93. Idem. p. 46. Neste sentido, seu trabalho tambémconstituiria um diferencial em relação a Gilles Deleuze,que em Mille Plateaux progrediria por captações.94. Ibid.95. Idem, p. 59.

96. Neste sentido, a �logística� teria assumido ocontrole hoje em dia. Ibid., pp. 24, 25.97. Foucault révolutionne l�histoire, op. cit., p. 240,nota 11.

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98. Assim, por exemplo, Assim falou Zaratustra III,Do espírito de gravidade.99. O que, na interpretação de Vattimo, não signi-fica que �a mesma teoria que afirma a pluralidadede perspectivas não deva e possa escolher entreelas� � VATTIMO, Gianni. (1987), Introducción aNietzsche, op. cit., p. 118.100. Se analisado a partir do importante apêndi-ce da Lógica do sentido, de Gilles Deleuze: �Platãoe o simulacro� (op. cit., pp. 259-271).101. Assim falou Zaratustra, I, Da virtude dadivosa3. Reproduzimos pontualmente a tradução deMario da Silva, RJ, Ed. Bertrand Brasil, 1994, p. 92.

102. O que pensamos que não se afasta do queNietzsche considerava o trabalho de psicólogo.103. A nosso ver, é esse aspecto de algumas apli-cações que muitas vezes abandonam efetivamen-te o cuidadoso e demorado �ruminar� que de-mandam os textos de Nietzsche, o que tem sidovinculado a um também apressado desprezo pelaoperacionalização.

Neste último aspecto, o paradigmaNietzsche já não assinalará um caminhoverdadeiro e único,98 mas direcionarána procura de possíveis trajetos plurais,perspectivísticos99 e experimentais. Tal-vez estejamos lidando, então, com aconstituição de um modelo/paródia ouum simulacro,100 uma vez que é um mo-delo que não mantém �relações inter-nas� com as cópias e que rejeita todotipo de �seguidores/crentes�. Nas pa-lavras de Zaratustra:

Retribui-se mal um mestre quando sepermanece sempre e somente discípu-lo. E por que não quereis arrancar folhasde minha coroa?.101

Portanto, nietzscheanamente, teríamosque dizer que, ao usar Nietzsche comomodelo, opera-se uma transvaloração doque se entende por paradigma desdePlatão. Nessa perspectiva, a afirmaçãofoucaultiana de Nietzsche enquantomodelo libera-se de sua casca de inge-nuidade e mostra como esse gesto co-loca-nos ante a constituição de um novo�paradigma experimental� ou de um

�novo diferencial� que faz com quetoda conceituação � no âmbito da fi-losofia, das ciências humanas e/ou dahistória � tenha que começar a fazerreferência a Nietzsche, seja na formada adesão ou do afastamento, o queresulta em abandonar a trilha da indi-ferença.

Vislumbrar um �modelo� que di-reciona à pluralidade de interpretaçõese operacionalizações não significaria, noentanto, aceitar qualquer interpretação.Ao contrário, é pertinente um labor se-letivo que permita distinguir constante-mente entre éticas diferenciais de opera-cionalização. Em outras palavras, é pre-ciso diagnosticar e avaliar os diversosoperadores e refletir, em cada caso,sobre o como desses usos.102 Mesmo sa-lientando a importância de certos usosinstrumentais de Nietzsche, estamoslonge de reivindicar as aplicações apres-sadas,103 queremos simplesmente mar-car a pertinência das experimentações.Para usar a metáfora da �caixa de fer-ramentas�, que foi introduzida porGilles Deleuze e a partir daí aplicadamecanicamente, teríamos que assina-lar que junto a um uso de ferramentasé sempre preciso refletir sobre a éticaque está ligada a esse uso. Ética que,entendida como �forma de vida�, não

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se desvincule da categoria de khresisgrega. Em outras palavras, não é qual-quer ferramenta e em qualquer ocasiãoa que pode ser usada... Trata-se, por-tanto, de re-introduzir em outro jogoa própria problemática do kairós, tãocara ao pensamento greco-romano.Sim, porque em nossa atualidade tor-na-se urgente avaliar em que medidacada uso é pertinente em relação àsproblemáticas históricas em que se in-sere e também se, em determinadoscasos, há ou não mestria de uso. Ten-tando traduzir essa problemática emtermos nietzscheanos, poderíamos nosperguntar: Quem ou que forças coman-dam a utilização de um determinadopensamento? Afirmativas? Negativas?Ativas? Reativas? Ressentidas? Pistasou rastros que, para Nietzsche, sãomarcados precisamente no como (wie)de cada utilização. Por isso, e a partirda resistência que constitui o própriotexto, talvez aos poucos se possamapear como algumas dessas aplica-ções foram apressadas demais, comocertos aspectos operacionais deman-dam um novo e paciente ruminar comos textos de Nietzsche e refletir sobrea mestria ou ausência dela em deter-minados usos, mostrando em que pon-tos cada apropriação teria que serrevisitada ou retomada.104 Talvez usan-do uma máscara nietzscheana, caberia

constantemente se perguntar: Em quemãos estão determinadas apropriações?Quais são as forças predominantes ne-las? Reforçam ou enfraquecem a vida?

Nesta oportunidade, quisemos sim-plesmente destacar alguns trajetos plu-rais, perspectivísticos e experimentaisde pensadores que operacionalizamdiversos pensamentos nietzscheanos(ou antinietzscheanos) nas denomina-das ciências humanas. Trilhamos, as-sim, uma via semeada de problemáti-cas ainda por serem estudadas e reto-madas, mas de alguma maneira lida-mos com o que produz efetivamente aaplicação de um �modelo-Nietzsche�:ausência de um modelo a ser copiado,ausência de relação interna entre mo-delo e cópia, e, sobretudo, inversão daprópria hierarquia que ordena consi-derando que o fundamento das �boascópias� é a identidade superior daIdéia (Forma imutável ou Modelo). Emoutras palavras, lidamos com umatransvaloração do que se entende pormodelo ou paradigma de Platão aténossos dias. Nessa trilha, também seefetua uma inversão da categoria deinfluência, que não poderia ser consi-derada como determinação heterô-noma � como algo que lhe adveio deum outro � mas como uma possibili-dade de �tornar-se si mesmo�.105 Nodetalhe � encontramo-nos diante daimpertinência de operar com a �cate-goria moral de fidelidade�, tanto parao paradigma Nietzsche, como para as104. Só para citar um exemplo, muitas das �solu-

ções� para nossa época, esboçadas por Paul Virilio,ou das possibilidades de �novos começos e emanci-pações�, assinaladas por Gianni Vattimo, não poderi-am ser alinhadas facilmente como retomadas de pen-samentos nietzscheanos e sequer antinietzscheanos.

105. O que teria sido operacionalizado por Veyne,como destacamos na nota 51.

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Yolanda Gloria Gamboa Muñoz, professora doDepartamento de Filosofia da PUC-SP e da USJT.E-mail: [email protected]

diversas utilizações plurais de umpretenso modelo que explode e frag-menta-se ao pensá-lo como centro úni-co, caminho verdadeiro e paradigmático.

Recebido em 23/6/2002Aprovado em 30/10/2002