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Práxis Educacional Vitória da Conquista n. 1 p. 233-245 2005 1 O texto baseia-se na revisão de literatura do Projeto de Tese de Júlio Pereira, financiado pela Capes e inscrito no Programa de Doutorado em Educação da Ufba, desenvolvido numa parceria entre a Faculdade de Educação e o Instituto de Saúde Coletiva. * Doutor em Educação. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor de vários artigos e livros sobre trabalho, educação e política. E-mail: [email protected]. ** Doutorando em Educação na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Diplomado em Estudos Avançados de Psicologia pela Universidade Autônoma de Madri. E-mail: [email protected] TRABALHO E EDUCAÇÃO: QUE TRABALHO (DE)FORMA O CIDADÃO? 1 Gaudêncio Frigotto * Júlio César Leal Pereira ** Em janeiro deste ano, o professor Gaudêncio Frigotto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebeu em seu apartamento, na capital do Rio, um pesquisador da Universidade Federal da Bahia (Ufba), professor Júlio César Leal, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Ufba. A relação entre trabalho e educação, tema geral da entrevista – relativamente novo para o segundo e conhecido de longa data pelo primeiro –, norteou o diálogo entre os dois. A entrevista aqui resenhada se deu no contexto da busca por autores e referências acerca da questão da positividade/negatividade do trabalho infanto- juvenil, sobretudo em suas relações com a educação e o processo de escolarização. Gaudêncio é autor de obras importantes na área, tais como ENTREVISTA

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  • Prxis Educacional Vitria da Conquista n. 1 p. 233-245 2005

    1 O texto baseia-se na reviso de literatura do Projeto de Tese de Jlio Pereira, financiado pelaCapes e inscrito no Programa de Doutorado em Educao da Ufba, desenvolvido numa parceriaentre a Faculdade de Educao e o Instituto de Sade Coletiva.* Doutor em Educao. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Autor de vriosartigos e livros sobre trabalho, educao e poltica. E-mail: [email protected].** Doutorando em Educao na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Diplomado em EstudosAvanados de Psicologia pela Universidade Autnoma de Madri. E-mail: [email protected]

    TRABALHO E EDUCAO: QUE TRABALHO(DE)FORMA O CIDADO?1

    Gaudncio Frigotto*

    Jlio Csar Leal Pereira* *

    Em janeiro deste ano, o professor Gaudncio Frigotto, da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro, recebeu em seu apartamento, na capital do Rio,

    um pesquisador da Universidade Federal da Bahia (Ufba), professor JlioCsar Leal, doutorando do Programa de Ps-Graduao em Educao da

    Ufba. A relao entre trabalho e educao, tema geral da entrevista relativamente novo para o segundo e conhecido de longa data pelo primeiro

    , norteou o dilogo entre os dois.A entrevista aqui resenhada se deu no contexto da busca por autores e

    referncias acerca da questo da positividade/negatividade do trabalho infanto-juvenil, sobretudo em suas relaes com a educao e o processo de

    escolarizao. Gaudncio autor de obras importantes na rea, tais como

    ENTREV I S TA

  • Gaudncio Frigotto e Jlio Csar Leal Pereira234

    2 Publicado pela Cortez, em 1996, na cidade de So Paulo.3 Publicado pela Editora Vozes, na cidade do Rio de Janeiro, cuja quarta edio data de 1998.4 Apesar de a linguagem escrita guardar certa diferena, em estilo, da linguagem oral, o entrevistadodeu autorizao expressa para a publicao do presente texto, cuja edio, feita pelo entrevistador,preserva as idias originais que emergiram durante a entrevista.

    Educao e a Crise do Capitalismo Real2 e Educao e Crise do

    Trabalho.3 Doutor em educao, pesquisador e professor universitrio, tem-se dedicado ao estudo de questes polmicas que esto na ordem do dia e

    que vieram tona na conversa adaptada4 para esta publicao; uma conversaao mesmo tempo descontrada e muito sria.

    Como analisar a questo do trabalho infanto-juvenil no contexto daatual reestruturao do mundo produtivo? Como a globalizao e as novas

    tecnologias interferem no trabalho e na configurao da escola? Como ficamas demandas por escolaridade e formao num tempo em que predomina o

    discurso da empregabilidade e das competncias? Que tipo de trabalhomais contribui para a formao ou para a deformao do cidado brasileiro?

    Em que estgio se encontra o debate entre os especialistas acerca da relaotrabalho e educao?

    A atuao de organismos internacionais, tais como a OrganizaoInternacional do Trabalho (OIT), de grande importncia na construo da

    realidade, na abordagem dos problemas emergentes e, mesmo, na polarizaode certas interpretaes dos fenmenos sociais, mais ou menos condizentes

    com os interesses da maioria dos brasileiros.Essas e outras questes so discutidas a seguir, num tom leve e informal

    prprio de uma conversa entre pessoas com certos interesses afins , massem prescindir de uma profunda anlise das implicaes do debate acadmico

    para a elaborao de polticas educativas, sociais e, at, econmicas, para anao brasileira. O debate apenas comeou. Os tericos, as pesquisas, as

    estatsticas, enfim, toda fonte de dados e informao serve para alimentar adiscusso. Mas no se trata apenas de produzir novas investigaes. Trata-se

    de compreender melhor a realidade para poder transform-la. Esse ocompromisso tico dos estudiosos implicados. Mas h ainda os educadores,

    os gestores, os polticos, os empresrios, os comunicadores, os especuladores,as pessoas em geral... Na verdade, o debate apenas comeou.

    Jlio: Bem, eu vou comear a entrevista com o professor Gaudncio Frigotto,da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sobre o tema Relao entre

    trabalho e educao: interferncias do trabalho no processo formativo.

    DanielHighlight

  • 235Entrevista

    5 Ttulo provisrio: Trabalho do Adolescente e seu Impacto sobre a Escolaridade e a Cidadania:possibilidades de (de)formao? Trata-se de um Projeto de Tese inscrito no Programa de Doutoradoem Educao da Universidade Federal da Bahia, desenvolvido numa parceria entre a Faculdade deEducao e o Instituto de Sade Coletiva (ISC).6 O Instituto de Sade Coletiva da Ufba vem estudando, desde 2000, o impacto do trabalho sobrea sade e a educao, temtica acerca da qual j conta com vrias publicaes, incluindo duas tesesde doutorado.

    Gaudncio: Jlio, eu li o seu Projeto de Doutorado5 e vi que o foco o

    trabalho realizado por adolescentes. Voc trata da relao entre trabalho eeducao e questiona se o trabalho ajuda a educao... Parece-me interessante

    a mudana de enfoque que voc faz.Jlio: H algo que me preocupa de maneira especial nesse debate. Eu tenho

    lido muitos trabalhos que abordam a questo da educao sempre com nfaseno aspecto legal. Assim, temos as leis, as leis no so cumpridas, h uma

    distncia entre o real e o ideal, o visto e o prescrito, etc. Ento, fala-se daprecarizao do jovem no trabalho, da infncia roubada, etc., etc. No que

    isso no seja importante, mas, como j h muita coisa produzida nessa rea,eu optei por verificar o outro lado, pouco questionado, ou seja, se o trabalho

    tem algum potencial formador e qual o tipo e que tipo de trabalho tem essepotencial em maior ou menor proporo.

    Temos uma pesquisa6 que aborda esse tema, em Salvador, abrangendobairros de toda a cidade; uma pesquisa de grande envergadura. Trata-se de

    um estudo longitudinal, de coorte. Recentemente decidiram aprofundar umpouco mais a questo da educao e da escolaridade, depois de constatarem

    que o impacto do trabalho sobre a sade dos jovens trabalhadores no togrande quanto se esperava, provavelmente porque os resultados negativos,

    quando se lida com meninos, com jovens, s acontecem anos mais tarde. Osimpactos imediatos so basicamente na formao, na escolaridade. Foi assim

    que surgiu essa chance de estudar um pouco mais a questo, de esmiuarmais... Que impactos so esses? No s verificar a hiptese de que o trabalho

    tem um impacto negativo o menino fica desmotivado, sai da escola, etc.,mas propor tambm a hiptese de que pode talvez haver outros impactos.

    Gaudncio: Primeiro, considero importante a sua preocupao. Como vocmostra na reviso de literatura, trata-se de um campo cheio de armadilhas e

    de polmica. O primeiro ponto que eu acho interessante o seguinte: ascrianas e os jovens que esto trabalhando precocemente no esto fazendo

    isso porque querem nem porque os pais deles so assassinos nem por nada

  • Gaudncio Frigotto e Jlio Csar Leal Pereira236

    disso. Ento, no adianta fazer uma anlise moral da questo. O que seria

    uma anlise moral? A do dever ser, a do no devia trabalhar, no deviaisso, no devia aquilo. Ora! D alternativas ao sujeito e da ele vai para o...

    shopping! [Risos] Bem, esse um ngulo. Claro que o ideal que a infncia e aadolescncia sejam vividas devidamente, que se aproveite o ldico, etc. Agora,

    voc toca em um aspecto importante: em que sentido o trabalho ento umelemento crucial? No me refiro, obviamente, ao trabalho que esfola, que

    explora, etc. No estamos falando disso.Nessa discusso, eu vejo que h uma base terica, no prprio marxismo,

    muito importante. Quando Marx discute o trabalho a explorao dotrabalho ele mostra a negatividade da explorao do trabalho infantil,

    mas ao mesmo tempo a positividade do trabalho que a revoluo burguesatraz, entende? Ele discute o trabalho como valor. Eu vejo que essa a primeira

    crtica que voc faz bem em seu trabalho.Jlio: Como a sociedade brasileira e os organismos internacionais tm reagido

    positividade/negatividade potencial do trabalho infanto-juvenil?Gaudncio: H, por exemplo, toda uma viso, presente na prpria

    Organizao Internacional do Trabalho (OIT), de proibio do trabalhoinfantil. Proibir o trabalho infantil por proibir, se no se criam alternativas de

    vida para essas crianas e jovens, piorar a situao deles. Para eles representaa perda de um trabalho. A vo para a prostituio, vo para o pequeno

    delito; isso porque eles tm que sobreviver! Nesse sentido, encaro a prostituiocomo trabalho. Teramos de encar-la como trabalho, quer dizer, as pessoas

    que vo se prostituir no o fazem porque acham bonito. Quando se trata daclasse mdia, no se diz que prostituio, no ? Ns temos que entender

    por que esses jovens trabalham. Eles trabalham por necessidade.Jlio: Mas o trabalho, tambm, no pode ser, de certa forma, explorador

    ou alienante?Gaudncio: Sim, claro. Penso que aqui cabe, sim, uma crtica explorao do

    trabalho, porm, ao mesmo tempo, preciso ver em que sentido o trabalhopossui elementos educativos. O trabalho surge, assim, como fundamento,

    distinguindo-se como criador de vida, entende? Trata-se do trabalho comoprincpio educativo, conforme aparece nos clssicos. O Manacorda, inclusive,

    discute essa questo no com o argumento de que o indivduo aprende fazendo,de defesa da relao teoria e prtica. Essa uma dimenso evidenciada por

  • 237Entrevista

    Freinet e Pistrak, autores importantes para fundamentar a pedagogia do

    trabalho. Mas, em Marx e Engels, o trabalho princpio educativo por umaspecto fundamental: que o ser humano, qualquer ser humano, s sobrevive

    se ele sai de si e transforma a natureza nos elementos de que necessita.Primeiramente ele tem que produzir aquilo que o seu metabolismo

    precisa. Eu costumo dizer que somos uma espcie de anta evoluda [risos].Portanto, incorporar, desde a infncia, o direito ao trabalho e o dever do

    trabalho um elemento crucial educativo, socializador. Nesse sentido, Marxv um avano da burguesia em relao s sociedades pr-capitalistas, porque

    estas se baseavam numa diviso na qual a aristocracia no trabalhava; isto eraincumbncia do escravo, do servo, etc. Ento, contraditoriamente, a burguesia

    introduz um elemento positivo quanto ao trabalho.Porm, em seguida, ela introduz o trabalho precoce e infantil como

    uma forma de baratear o custo do trabalho. Ento, voc tem que discutiresta contradio. Na verdade, eu diria o seguinte no caso desses jovens, que

    so objeto do seu estudo: vai existir positividade e negatividade ao mesmotempo. No uma coisa ou outra, so as duas coisas. O indivduo que est ali,

    precisando trabalhar, nas relaes sociais em que ns estamos, provavelmenteser explorado, entende?

    Entretanto, no h negatividade somente. Ele se afirma, vai construindo,tecendo saberes, enfim. Penso que voc deve trabalhar o carter contraditrio

    do problema. Se, por um lado, temos que lutar contra o trabalho esfoliador,explorador do jovem e da criana, isto certamente no significa que o trabalho

    no eduque.Jlio: Na prtica, como isso funciona?

    Gaudncio: Por exemplo, por que a criana e o jovem, desde pequenos, nopodem se habituar a determinadas tarefas que eles so capazes de realizar?

    No me refiro a uma atividade com o sentido de explorao, mas decolaborao com a comunidade, com a escola, cooperao em casa. Os

    indivduos das classes populares trabalham desde muito cedo, colaborandoem casa. Nos acampamentos do Movimento dos Sem Terra (MST), as crianas

    e os adolescentes trabalham.Na zona rural, por exemplo, tem havido uma evoluo muito grande.

    O homem do campo muitas vezes duro com os seus filhos, de modo queo lazer fica sempre em ltimo lugar, por causa da luta pela sobrevivncia.

  • Gaudncio Frigotto e Jlio Csar Leal Pereira238

    Mas possvel mediar isso. Tambm possvel pensar o direito ao ldico, o

    direito educao, etc. No MST, a criana tem tarefas no acampamento.Muitos precisam do trabalho do jovem porque fundamental. Ele um

    animal evoludo que precisa ter uma atividade, e isso educativo! Almdisso, nesse processo ele vai aprendendo coisas, no mesmo? E ao mesmo

    tempo luta pelo direito escola, o direito ao lazer, etc.Jlio: Num estudo sobre trabalho e educao envolvendo sujeitos

    adolescentes ou jovens como caso do meu estudo de doutorado, porexemplo , a que aspectos o pesquisador deve estar atento?

    Gaudncio: Uma coisa que eu julgo importante notar a diversidade dejuventudes. A populao a ser estudada uma coisa que voc tem que qualificar

    melhor no seu projeto; definir de que jovens voc est tratando. De certaforma, isto j est delimitado ali: no so jovens de classe mdia nem de elite

    e nem os que ultrapassaram, digamos, o limite do lcito e do no lcito. Umacoisa falar dos jovens do campo, outra coisa falar dos jovens das periferias

    urbanas, e outra coisa falar dos jovens em conflito com a lei, que sofuncionrios do trfico. Enfim, preciso ser cuidadoso, especificar quem

    este seu sujeito.Nesse sentido, existem vrias discusses. Por exemplo, eu acompanhei

    uma tese de uma pesquisadora, que toma bairros pobres de Belo Horizontee, neles, investiga as trilhas seguidas pelos jovens. Alguns se integram na

    sociedade via religio. Eles vo cuidar do coral, vo, enfim, tocar na bandinha,etc. e por a vo criando uma rede. Eles vo arrumando qualquer tipo de

    ocupao e se integram. Desse modo, escapam da excluso, do pequenodelito, etc. e, tambm, de serem presas fceis de coisas mais complicadas.

    Outra alternativa o Sistema S, de formao profissional. O jovementra no Senai, no Senac, etc. E o terceiro meio a sua entrada na fbrica do

    trabalho, aberta por esses mecanismos. O trabalho surge, ento, como elementointegrador. bvio que nos vem a pergunta: mas por que eles tm que entrar

    precocemente? Poderamos ter uma sociedade diferente... Ento por isso euacho, Jlio, que voc tem que trabalhar no fio da navalha, entende? [Risos].

    Mas me parece que a sua provocao muito, muito boa, e h elementos quelhe permitem sustentar isso teoricamente.

    Jlio: Agora, professor, em relao ao modo como o trabalho mudou aolongo do tempo e s caractersticas que o trabalho tem hoje com a globalizao,

  • 239Entrevista

    a reestruturao do mundo produtivo... Qual o impacto que o senhor v que

    o trabalho passa a ter sobre a escola, sobre as maneiras de aprender, sobre aformao do sujeito?

    Gaudncio: Eu acho que um impacto muito contraditrio porque, doponto de vista, digamos, do grande discurso, a idia a de que genericamente

    ns precisaramos aumentar o patamar de escolaridade de todo mundo paraque as pessoas tenham empregabilidade. Mas o que que est acontecendo

    na prtica? Na prtica est acontecendo um fenmeno que se deve a vriosmecanismos. Um deles o desenvolvimento cientfico e tecnolgico. Muitas

    ocupaes esto desaparecendo, outras esto encolhendo brutalmente. Porexemplo, vejamos apenas dois setores: o metalrgico e o bancrio. Eram

    novecentos mil os bancrios na dcada de 70, hoje so menos de duzentosmil! O banco somos ns.

    Na verdade, quase no existem mais funcionrios nos bancos. Existem,sim, aqueles que trabalham com informtica. Mas se olharmos bem, o caixa

    est em qualquer lugar a que voc vai. O historiador Hobsbawm j indica umbanco na Inglaterra que cobra 5 libras para quem consulta o caixa convencional;

    5 libras! Voc induzido a optar pelo caixa eletrnico. Ento voc passa atrabalhar para o banco, pois se obriga a ter carto magntico, a us-lo e a

    pagar por ele.Ento, de um lado, h uma profunda destruio de ocupaes que

    no voltaro e, de outro, um benefcio. Tambm existe um outro processoque esse chamado de globalizao. Nele se d uma profunda regresso das

    relaes sociais, fazendo com que voltemos a um mercado auto-regulado.Assim, de um lado, a cincia e a tecnologia diminuem a necessidade dos

    trabalhadores; de outro, h um mercado que se desfaz dos compromissospblicos sociais e s prefere fil mignon [risos]. Alm disso, o mercado dos

    centros do capitalismo hegemnico que tem os melhores empregos.Com a privatizao no Brasil, empregos de classe mdia, que eram

    importantes, simplesmente sumiram! E aqui, no lugar dos nossos engenheiros,arquitetos, gestores etc., teremos os que vm da Frana, Alemanha, Espanha

    etc., etc. Portanto, o impacto que o trabalho tem sobre a educao e aformao de vrias ordens. Eu acho que um impacto negativo que se

    criou a idia por essa viso da pedagogia das competncias, daempregabilidade de que a falta de emprego porque as pessoas no tm

  • Gaudncio Frigotto e Jlio Csar Leal Pereira240

    boa escolaridade. Ter boa escolaridade bom para tudo, mas no por isso

    que no se tem um bom emprego.Jlio: Ento qual a vantagem, para o sujeito, de investir em sua educao e

    escolaridade?Gaudncio: Eu li recentemente um texto que aborda a questo do trabalho,

    da educao e da empregabilidade. Nele o autor se pergunta: Os pobresso pobres porque tm mais escolaridade ou os pobres tm mais escolaridade

    porque so pobres? Em outras palavras, ter mais escolaridade induz aodesemprego, ou o desemprego e a pobreza que fazem o indivduo lutar

    por sua escolarizao e formao? interessante. Agora, de todo modo euentendo que um dos elementos , sim, a formao. Hoje, quanto mais a

    pessoa dispe de um capital cultural de conhecimento, de base, melhor semove em todos os sentidos: como cidado, na disputa pelo trabalho, na

    tentativa de entender a sociedade, no exerccio de sua cidadania.Portanto, no podemos ignorar a realidade e dizer que as mudanas

    que existem do ponto de vista das comunicaes, do ponto de vista da cincia,da tecnologia, no tenham a ver com a escola. Hoje, se voc abrir o jornal O

    Globo s para acrescentar um dado relacionado sua pergunta h umartigo indicando que o Brasil possui novecentas e poucas mil patentes, quer

    dizer, quase um milho de produtos cuja propriedade intelectual lhe pertence.Os Estados Unidos, s no ano passado, patentearam l, internamente, um

    milho e duzentas mil; s para voc ter uma idia.Agora, claro que isto tem a ver com a nossa situao de dependncia,

    etc., mas tambm tem a ver com a baixa, extremamente baixa escolaridadegeneralizada, entende? Ns no temos nvel mdio bom, e para isto que o

    Arrighi, no livro A Iluso do Desenvolvimento,7 chama a ateno. Ele diz:Olha, os pases subdesenvolvidos realizam atividades neuromusculares e os

    pases desenvolvidos esto desenvolvendo as atividades cerebrais. Ento,um dos impactos importantes para o qual eu chamaria a ateno o de que

    sem elevao da escolaridade uma escolaridade de qualidade no h nemcidadania e nem competitividade, se a gente pensar em termos capitalistas. As

    implicaes, portanto, so de vrias ordens.Agora, a ns temos que separar o joio do trigo; no culpar a vtima

    por ser vtima. Posso eu culpar o jovem trabalhador que tem pouca7 Cf. Giovanni Arrighi e a respectiva obra, publicada em 1998, em Petrpolis, que faz parte dacoleo Zero Esquerda, da Editora Vozes.

  • 241Entrevista

    escolaridade, dizer que ele no empregvel porque tem pouca escolaridade?

    Ele s vezes no tem escolaridade alguma. Mas no ele... No adianta ele terescolaridade, se no h postos de trabalho para lhe oferecer.

    Jlio: Como pensar a relao entre a escola e o mundo produtivo numasociedade sem empregos para oferecer?

    Gaudncio: Com a restrio do mundo do emprego, no significa que aspessoas no precisem de trabalho. A inteno ter emprego e trabalho. Por

    exemplo, na dcada de 80, falava-se no mercado formal e informal. Hoje sefala em economia solidria, economia cooperativa, economia popular,

    economia de sobrevivncia.Eu acabei de prefaciar um livro, publicado h pouco, que tem um

    pequeno texto meu, no final, intitulado: A ideologia da galinha dos ovos deouro. Nele discuto um pouco essa idia de que a escola resolve todos os

    problemas. No; a escola resolve alguns problemas, mas no resolve todos.O mais importante desse livro que mostra as vrias experincias de trabalho

    e no-trabalho e emprego, entende? So todas as formas de trabalho quesurgem hoje em dia e que ns chamamos de trabalho informal.

    As pessoas que ficam desempregadas buscam de alguma formasobreviver. Ento criam pequenos grupos de produo, cooperativas. Hoje

    existe, inclusive no Governo Lula, uma Secretaria de Economia Solidria.Est l, um tanto inativa por falta de recursos, mas existe.

    Jlio: A escola mudou muito nesse contexto de globalizao, de demandapor empregabilidade, desse discurso sobre a competncia? Como que a

    escola tem reagido em relao a isso?Gaudncio: Eu diria que a escola da classe mdia, a escola da classe branca,

    uma escola de tempo lento. uma escola que no muda muito. Os colgiosclssicos, normalmente confessionais, de larga tradio, privados, no mudam

    muito. Por qu? Porque no da natureza da escola ser capaz de acompanharo movimento das mudanas do mundo da produo.

    O debate na dcada de 90, no Brasil, dizia: No! A escola tem queseguir o que o mercado faz. Nenhuma escola faz isso. Uma boa escola d

    elementos para que o sujeito saia dali e possa entender a dinmica de mudana.Para isso, tem que ter uma base: uma base de histria, uma base de geografia,

    uma base de qumica, uma base de fsica, uma base de matemtica. O sujeitoque tem essa base vai ler o mundo, como diria Paulo Freire.

  • Gaudncio Frigotto e Jlio Csar Leal Pereira242

    Agora, um indivduo que s teve treinamento rpido no possui os

    elementos necessrios para fazer essa leitura; ele tem que ser re-treinado otempo todo. Hoje temos um problema srio entre os mecnicos prticos e

    os mecnicos das grandes montadoras, os das oficinas, digamos, autorizadas.Certos profissionais de oficinas autorizadas vo, inclusive, estudar o motor l

    onde ele foi produzido. Se for da Wolks, l na Alemanha; se for da GM, lnos Estados Unidos; se for, enfim, da Peugeout, vo para a Frana. Ento,

    quando voc leva o automvel ao mecnico que tem a base de eletrnica, aomexer num componente, ele sabe que mexe nos outros. No entanto, se voc

    leva o carro para o mecnico que treinado para aprender a fazer no gatilho,ele no tem o saber. No campo da produo fordista, fantstico; criava-se

    conhecimento no gatilho. Hoje, porm, a tecnologia que est a no permiteo gatilho, pois, quando ele troca aqui, estraga l. A primeira coisa, quando

    voc vai a uma oficina dessas sofisticadas, um grampo, porque o mecnicocobra carssimo! [Risos] Eles tm todo um instrumental para identificar onde

    est o problema.Este trabalhador no se acha na oficina artesanal. Ento, na verdade,

    ns temos, como diz o Pedro Lessa (ex-reitor da UFRJ e ex-presidente doBNDS), duas economias: uma economia de sucata e uma economia digital-

    molecular funcionando. Assim, sem dvida nenhuma, o Brasil est perdendoa corrida na cidadania, na violncia, na tecnologia, entre outras coisas, porque

    no tem uma cidadania com instrumentos que permitam ao cidado lutarpor seus direitos e, ao mesmo tempo, incorporar conhecimentos rapidamente,

    criar conhecimentos, etc.Ento, qualquer mudana, e mudana na velocidade que existe, causa

    impacto hoje em dia. Todavia, mais que uma sociedade de mudana veloz ede incertezas, estamos numa sociedade de insegurana, dadas as relaes sociais

    que ela desenvolve.Jlio: O senhor citou alguns autores que tm discutido esses temas, inclusive

    que abordam questes bastante relevantes. Mas, tem algum outro autor,brasileiro ou estrangeiro, que tem trabalhado de modo mais especfico com

    respeito relao entre trabalho e educao?Gaudncio: Sim, sim... Bom, eu vou lhe passar um texto sobre essa relao

    de globalizao e formao do trabalhador, mas, primeiro, sobre globalizao.Na verdade so dois textos: um que fala sobre globalizao e outro que fala

  • 243Entrevista

    8 O entrevistado faz aluso coletnea intitulada Educao e crise do trabalho: perspectivas definal de sculo, organizada por ele, publicada pela Vozes, em Petrpolis, e que j est na 7a edio.

    da crise do trabalho, que do Ramn Pea Castro, um economista espanhol,

    mas que mora aqui no Brasil h muito tempo; est aposentado. um autormuito bom.

    H outro livro organizado por ns que se chama Educao e a crisedo trabalho: perspectivas de final de sculo?8 Deixa ver... Aqui inclusive

    tem um texto do Pablo Gentili muito bom... Tem esse texto aqui tambm,da Maria Ciavatta, que faz uma comparao entre vrios pases. Tem um

    texto da Lia Tiriba que trata exatamente das outras formas de trabalho. Euacho que uma coletnea que d uma viso panormica do debate sobre

    trabalho. H, ainda, outros autores... Temos a Accia Kuenzer, o MiguelArroyo... O Miguel Arroyo faz uma discusso mais voltada para a relao

    pedaggica; um texto muito interessante para voc, considerando o seuobjeto terico.

    Jlio: Como tratar o tema da juventude hoje, havendo tanta diversidade nasabordagens tericas e nas polticas pblicas?

    Gaudncio: Existe uma discusso, nada desprezvel hoje, que sobre o limiteentre os conceitos. Temos hoje vrios conceitos de juventude. Por exemplo, o

    IBGE, ao tratar a questo do jovem, define a juventude como a que vai atos 21 ou 23 anos, mais ou menos. Mas tem literaturas em que a juventude vai

    at os 32 anos. H pases que levam a juventude at um pouco mais tarde.Enfim, juventude no um conceito biunvoco. Portanto, preciso estar

    atento. J adolescncia um conceito muito mais marcado pelo enfoque dapsicologia do desenvolvimento. A adolescncia considerada uma fase mais

    psquica. Juventude, por sua vez, um conceito mais sociolgico. Ento vocprecisa levar isso em conta. Se voc vai trabalhar com adolescentes, voc tem

    a dimenses mais psicossociais do que sociopolticas, digamos. Juventude um conceito mais sociopoltico.

    Jlio: ... agora eu fiquei na encruzilhada! [risos]Gaudncio: . Eu tratei disso num texto, h muito tempo, quando eu estava

    estudando eu tinha acabado a graduao. Dizia que a psicologia daadolescncia uma psicologia do desenvolvimento. Esse um ngulo a que

    voc tem que prestar ateno. O outro exatamente a parte terica: voc vailidar com essa questo do trabalho na sua forma histrica trabalho escravo,

  • Gaudncio Frigotto e Jlio Csar Leal Pereira244

    trabalho capitalista e na sua dimenso ontolgica, na sua dimenso onto-

    criativa. Em qualquer sociedade, o ser humano precisa do trabalho. Ento,falar em fim do trabalho uma besteira!

    Jlio: Tenho mais uma pergunta, para terminar. Como que o senhor v aquesto do trabalho formador e do trabalho deformador esses dois plos:

    negatividade e positividade , no contexto do Brasil?Gaudncio: Eu penso que, no trabalho, tal como o conhecemos hoje, h

    mais negatividade. Mas que isto no limite a importncia de ver seus aspectosde positividade, porque eu concordo com voc que a nfase tem sido s na

    negatividade. Isto tambm uma viso muito restrita. como o MiguelArroyo considera: o trabalho, mesmo dentro do contexto capitalista, tem um

    elemento formador.Ento, sem dvida nenhuma, a nossa luta para que o trabalho seja

    menos deformador, mas isto no significa que achemos positivo formarmamferos de luxo e o Gramsci chama mamfero de luxo exatamente

    aquela pessoa que educada para achar que no precisa trabalhar. Ela nosabe de onde vem o livro, no sabe de onde vem o sapato, no sabe de onde

    vm os culos, no sabe de onde vem o po, no sabe de onde vem agalinha; tem uma viso metafsica, romntica, uma viso... Isto eu acho que

    terrvel! por isso que as classes populares sofrem: porque so expropriadas.

    Mas elas so humanamente mais solidrias; isso no convvio a gente sente. Ea prpria luta pela sobrevivncia as educa; se tornam animais evoludos

    mais sociveis. A classe mdia educada mais para explorar, digamos. menos solidria, menos sensvel.

    O trabalho tem elementos positivos e, mesmo quando voc v umacriana trabalhando... Claro que eu sou contra o trabalho semi-escravo ou o

    trabalho embrutecedor nem voc nem eu queremos isso para os nossosfilhos nem para ningum , mas da eu dizer que probo esse trabalho... Vamos

    proibir o trabalho dos meninos? Claro que tem a tudo misturado, mas pelomenos existe um sinal de que o sujeito vai luta. Ainda existe por trs disso o

    esforo. No mole ficar doze horas ali, e nem gostoso! Claro que no isso. No adianta encararmos o trabalho infanto-juvenil de forma policialesca

    e tirar o menino da rua. Jog-lo onde?Jlio: O flanelinha que limpou o vidro...

  • 245Entrevista

    Gaudncio: , . Jog-lo aonde? Ele vai para onde? Ele vai ter que se virar,

    ele vai ter que sobreviver. Um animal vai luta, no mesmo? Ento o queeu acho muito bom do seu projeto que voc implicitamente se nega a uma

    anlise moral do trabalho. Voc prope: Vamos ver, vamos chegar, vamosver, vamos ouvir... Outra coisa: Se voc vai fazer entrevista com menino,

    preciso ter cuidado, porque a representao que a criana e o jovem tmsobre o seu trabalho no necessariamente o real. Ento cabe a ns, com a

    teoria, interpretar, entende? Ele diz: No, t timo! T aqui. Mas s vezesser timo para ele porque pior seria sem ter isso, entende? Procure trabalhar

    nessa linha. No trabalhar com a antinomia bom ou mau e nem certo ouerrado.

    Texto recebido em: 17/05/2005.Aprovado para publicao em: 01/08/2005.