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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 23-53, jan-abr. 2007 23 Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ ronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ ronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ ronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ ronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM) em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM) em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM) em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM) em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM) Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’ Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’ Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’ Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’ Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’ in São Gabriel da Cachoeira (upper Negro river in São Gabriel da Cachoeira (upper Negro river in São Gabriel da Cachoeira (upper Negro river in São Gabriel da Cachoeira (upper Negro river in São Gabriel da Cachoeira (upper Negro river, AM) , AM) , AM) , AM) , AM) Líliam Cristina da Silva Barros I Antônio Maria de Souza Santos II Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar os mecanismos através dos quais índios em situação de contato, na zona urbana de São Gabriel da Cachoeira, manifestam sua pertença étnica. Em meio ao contexto das festas de santo, repertórios musicais evidenciam as fronteiras étnicas valendo-se da língua como principal sinal diacrítico de identidade. Palavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave alavras-chave: Música. Identidade. Etnicidade. Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract: This paper aims to explicit the ways thru what indigenous people in contact situation, actually living in the urban zone of São Gabriel da Cachoeira, explicit their ethnical identity. In the context of “festas de santo” (saint festivals), musical repertories manifests the ethnical frontiers using the language as principal signal of identity. Keywords eywords eywords eywords eywords: Music. Identity. Ethnicity. I Universidade Federal do Pará. Departamento de Artes/Música. Professora Titular. Belém, Pará, Brasil ([email protected]). II Museu Paraense Emílio Goeldi. Pesquisador. Universidade Estadual do Pará. Professor Aposentado. Belém, Pará, Brasil (sanctus@museu- goeldi.br).

Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de ... · desmembramento do município de Barcelos. Em l938 a sede municipal adquiriu foro de cidade. ... à localidade

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Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 23-53, jan-abr. 2007

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Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’Ethnical frontiers in the music of ‘festas de santo’in São Gabriel da Cachoeira (upper Negro riverin São Gabriel da Cachoeira (upper Negro riverin São Gabriel da Cachoeira (upper Negro riverin São Gabriel da Cachoeira (upper Negro riverin São Gabriel da Cachoeira (upper Negro river, AM), AM), AM), AM), AM)

Líliam Cristina da Silva Barros I

Antônio Maria de Souza Santos II

ResumoResumoResumoResumoResumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar os mecanismos através dos quais índios em situação de contato, na zonaurbana de São Gabriel da Cachoeira, manifestam sua pertença étnica. Em meio ao contexto das festas de santo,repertórios musicais evidenciam as fronteiras étnicas valendo-se da língua como principal sinal diacrítico de identidade.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: Música. Identidade. Etnicidade.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This paper aims to explicit the ways thru what indigenous people in contact situation, actually living in the urban zoneof São Gabriel da Cachoeira, explicit their ethnical identity. In the context of “festas de santo” (saint festivals), musicalrepertories manifests the ethnical frontiers using the language as principal signal of identity.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: Music. Identity. Ethnicity.

I Universidade Federal do Pará. Departamento de Artes/Música. Professora Titular. Belém, Pará, Brasil ([email protected]).I I Museu Paraense Emílio Goeldi. Pesquisador. Universidade Estadual do Pará. Professor Aposentado. Belém, Pará, Brasil (sanctus@museu-

goeldi.br).

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Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM)

INTRODUÇÃO

Banida ou exaltada, sempre foi a música um desafioà reflexão. E hoje, no período crítico da modernidade,ela representa, a par de uma fronteira estética móvelque dá acesso a territórios em vias de exploração,um dos extremos limites da cultura, revelando,através da possibilidade da técnica, um novo confrontodo homem com a natureza exterior e com o seupróprio espírito.

Benedito Nunes.

Sou um tupi tangendo um alaúde.Mário de Andrade.

No âmbito dos estudos sobre música indígena naAmazônia têm-se destacado as culturas isoladas ouem contato apenas periódico com a sociedadenacional (BASTOS, 1999; SEEGER, 1980). Estetrabalho diferencia-se de outros que abordam ascomunidades indígenas da região Nordeste (J. P.OLIVEIRA, 1999a) e destaca os aspectos em que amúsica constitui mecanismo de fortalecimento e/ou manutenção da identidade indígena. O vale dorio Negro, situado na região noroeste da Amazônia,possibilita a interação de ambos os aspectos acimareferidos em relação à música indígena abordada.

Nesse contexto, o objetivo deste artigo édemonstrar a identidade indígena que emerge a partirdos repertórios das festas de santo que ocorrem nobairro da Praia, em São Gabriel da Cachoeira, altorio Negro (Amazonas). Para tanto, foi consideradode vital importância o relacionamento entre trêsparâmetros que dão o suporte à pesquisa: música,língua e etnia.

Desde a viagem de Pedro Teixeira (1637-39), aodescer o rio Solimões/Amazonas do Peru até sua fozem Belém do Pará, o rio Negro despertou curiosidadee cobiça pelas muitas povoações indígenas que sesucediam ao longo de suas corredeiras1 rio acima atéa cabeceira na Colômbia, onde se chama Guainía.

Durante o século XVII, com o estabelecimento demissões jesuítas no baixo rio Negro e as constantesguerras justas e tropas de resgate, a população indígenafoi submetida a diversas frentes colonizadoras. Mesmodepois do período pombalino, o rio Negro continuousendo ponto estratégico em função de sua situaçãode fronteira entre os territórios de Portugal e Espanha.Em 1763 foram construídas as fortalezas de SãoGabriel da Cachoeira, no interfluxo entre os riosUaupés e Içana (ambos tributários do rio Negro), e ade São José de Marabitanas. No século XIX, marcadopela expansão da borracha na Amazônia, testemunhou-se o processo de exploração e escravização dos índiosdo rio Negro nos seringais e piaçabais. Em l898 foicriado o município de São Gabriel, resultado de umdesmembramento do município de Barcelos. Eml938 a sede municipal adquiriu foro de cidade. A partirde 1914, a Congregação Salesiana passou aadministrar a Prefeitura Apostólica do Rio Negro que,posteriormente, em 1925, seria elevada à Prelazia efinalmente à Diocese, em l981.

A atuação da Congregação Salesiana no vale do rioNegro levou a um processo sistemático de aculturaçãodos povos indígenas, tornando-se, assim, a instituiçãode maior influência na região, a ponto de Silverwood-Cope (1975) julgar indispensável e inevitável tomarem consideração extensa a Missão Salesiana para aabordagem de qualquer assunto de natureza social,econômica ou política referente àquela área indígena.Nos centros missionários foram criados grandescolégios de alvenaria, que ao longo do tempo vêmfuncionando como internatos e externatos (masculinoe feminino). A educação formal nestes centros e nasescolinhas dos povoados constitui o principal veículoda ação salesiana no vale. Ao lado da educação, asaúde também ocuparia seu espaço na atuação dosmissionários, com a construção de hospitais e osserviços prestados por determinados religiosos (padrese freiras) e agentes de saúde, que muitas vezes são os

1 Termo regional para trechos encachoeirados do rio.

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mesmos professores e catequistas, coexistindo, é claro,com a marcante presença das medicinas tradicionaisindígenas, representadas pelo xamanismo, herbalismo,cultos dos santos e, sobretudo, pelos rezadores(versão mais urbana dos xamãs indígenas) (SOUZASANTOS et al., 2005).

A trajetória de São Gabriel tem nos anos de 1970um marco relevante e crucial, quando estapequena sede municipal passou a servir de baseoperacional para a implantação de programasoficiais de desenvolvimento, cujo carro-chefe erao plano rodoviário. Parte do traçado da RodoviaPerimetral Norte (BR-210) part ir ia de SãoGabriel, fato que levou para o alto rio Negro todauma mobilização que costuma ocorrer nessasnovas frentes de trabalho.

Com efeito, a partir de l974 começava a aberturadessa rodovia e que, posteriormente, cruzaria aRodovia Manaus-Caracaraí (BR-174). Um outrotrecho (BR-307) foi planejado para ligar São Gabrielà localidade de Cucuí, na fronteira com a Venezuelae, finalmente, um terceiro trecho começava a serconstruído desde São Felipe (um pequeno povoadoa montante de São Gabriel) até a fronteira com aColômbia, como ponto final da BR-210. Oplanejamento dessas estradas pode ser visualizadono mapa do alto rio Negro (Figura 1).

Na década acima referida, duas grandes empresas,Queiroz Galvão e Empresa Industrial Técnica (EIT),além do Batalhão de Engenharia de Construção(1º BEC) instalaram-se em São Gabriel, aumentandoconsideravelmente, em razão disso, a população dacidade. Surgiram novas ruas, houve um maiorincremento do comércio, várias instituições ali seinstalaram e vários serviços de infra-estrutura, comoampliação da pista de pouso, luz elétrica permanente,água encanada, telefone, bancos etc., foramimplementados. São Gabriel passou a receber nãosó trabalhadores (peões), principalmente doNordeste brasileiro, como indígenas do interior domunicípio. Em l976 sentia-se, em São Gabriel, um

clima de cidade pioneira e em todo o alto rio Negrofalava-se nesta cidade com grande ênfase eexpectativa (SOUZA SANTOS et al., l976).

Todavia, por razões de mudanças de diretrizesde políticas nacionais, esse quadro alterar-se-ialogo em seguida. Os trabalhos de construção dasestradas, em grande parte, pararam dentro depouco tempo, logo a partir do segundo semestrede l976. No ano seguinte, as duas f i rmasempreiteiras retiraram-se, permanecendo apenaso BEC. De todas as estradas iniciadas, apenas aSão Gabriel-Cucuí foi concluída. Não obstanteesse contingenciamento, o processo de mudançadeflagrado continuou através do tempo. A partirdos anos de 1990, a cidade passou por umabrusca expansão urbana e dinamização do setorterciário, despontando como mais uma cidadelatino-americana emergente. Desde então, amesma cresce em extensão e em número dehabitantes (com uma estimativa de 15.000habitantes em 2006); todavia, apesar da intensamigração de pessoas de outras regiões e anumerosa presença de militares, continua sendomajoritariamente indígena.

Do contato destas populações com as diversasfrentes colonizadoras ao longo dos séculos XVIaté os dias atuais, surgiram novas culturas emgrupos com diferentes fases de contato com asociedade nacional. Neste contexto, a cidade deSão Gabriel da Cachoeira sempre destacou-secomo área de capital importância geopolítica porestar localizada em região fronteiriça com aVenezuela e Colômbia, tendo servido no passadocomo forte militar, reduto missionário, entrepostocomercial e, a partir da metade do século XX,principal ponto estratégico de vigilância dasfronteiras amazônicas (OLIVEIRA, 1975, 1979).

No invólucro do processo de ocupação e colonizaçãodesta parte da Amazônia, a área etnográfica do rioNegro sempre se caracterizou como uma região emque conviviam sociedades indígenas de diferentes

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etnias, ligadas por uma rede de relacionamentosculturais que permeia todos os campos decomunicação, envolvendo os aspectos cosmológicos,cosmogônicos e todo o corpo mitológico e ritual(GALVÃO, 1970). Tais características persistem econstituem valores culturais de extrema importâncianos dias atuais, cujos ecos se fazem ouvir nosintertextos que florescem a partir das novas práticasincorporadas, especialmente em áreas urbanas, ondeo contato entre a população indígena e os agentesexternos acontece de maneira mais intensa, comoem São Gabriel da Cachoeira.

No vale do rio Negro, 23 povos indígenas de váriasetnias ocupam 10,6 milhões de hectares de terrasdemarcadas. Desde l987, o movimento indígena dorio Negro é representado pela Federação dasOrganizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), comsede em São Gabriel da Cachoeira. Esta Federaçãocongrega 42 outras organizações comunitárias das etniasespalhadas pelas calhas dos vários rios da região (Negro,Uaupés, Içana, Tiquié, Papuri etc.). Neste cenário deideologias identitárias, tensões se verificam, sobretudopela contradição presente numa visão política que buscafortalecer um estilo de vida indígena e, ao mesmotempo, reivindica o amparo do Estado e a inserçãodesta população na contemporaneidade da sociedadenacional. Esta visão, pleiteada por organizações indígenaslocais, é bem diferente da antiga atuação missionáriasalesiana que buscava, através da educação formal, oavanço da civilização e a integração indígena na sociedademaior. Esta visão estava compartilhada com as idéiaspositivistas do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI)e do Marechal Rondon.

A proximidade da fronteira com a Colômbia eVenezuela adensa ainda mais a complexidade dasituação. Trabalho recente de Lopez Garcés (2003)sobre as organizações supralocais dos Ticuna naregião de fronteira entre Brasil, Colômbia e Perutece interessante análise sobre situação similar àdo rio Negro.

O mapa do alto rio Negro, a seguir, permite umavisão panorâmica da região (Figura 1).

As identidades étnicasAs identidades étnicasAs identidades étnicasAs identidades étnicasAs identidades étnicasEm meio a este contexto urbano, um emaranhadoétnico faz-se presente na faixa populacional indígena,bem como nos demais segmentos que compõem ototal de habitantes da cidade, em que surgemmecanismos de manutenção e/ou fortalecimento deidentidade étnica. Verificam-se, assim, ideaçõescoletivas engendrando uma cultura do contato expressapelos agentes sociais.

É através das identidades étnicas que apreendemos asclassificações utilizadas como forma de orientação noespaço social por vários indivíduos e os grupos sociais.Este espaço é o contexto social comum onde se operauma forma de interação entre vários grupos, ou seja,onde se verifica a ‘etnicidade’ (COHEN, l974). Nestequadro crítico, os grupos étnicos diferenciadosprocuram estabelecer suas fronteiras e seus domínios.A presente concepção está em consonância com ade grupo étnico na condição de organizational typeproposta por Frederick Barth (l969). Os gruposorganizacionais têm na identificação étnica uma formade classificação, interação e manutenção.

O processo de identificação étnica será melhordiscernido se associado à noção de “identidadecontrastiva” que “parece se constituir na essência daidentidade étnica, i. e., à base da qual esta se define.Implica a afirmação do nós diante dos outros”(OLIVEIRA, l976, p. 5).

As identidades étnicas em São Gabriel da Cachoeirapodem ser discernidas de maneira clara através dofluxograma da Figura 2, onde se verificam ascategorias de identidades: nacionais, regionais,étnicas e estigmatizadas.

Este desenho do mapa identitário continua atual(2006), com um maior acirramento.

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No bairro em que foi realizada a pesquisa aqui enfocada– o bairro da Praia – o extrato populacional indígena éconstituído principalmente pelas etnias Tukano,Dessana, Wanana, Warekena, Tuyuka, Baniwa e Baré.Atualmente novos bairros vêm se formando na cidadeem função dos freqüentes descimentos de índios dascabeceiras dos rios e igarapés, muitas vezes sendo aetnia um critério definidor para a formação de bairros(PAULA, 2002). O bairro da Praia, no entanto, foi umdos primeiros bairros a ser formados na cidade. Situadoà margem do rio Negro, serve como cartão postal domunicípio e seus habitantes indígenas estabeleceram-se no bairro há pelo menos três décadas.

Neste contexto de espaço e tempo procuramosdemonstrar a identidade indígena decorrente dosrepertórios das festas de santo celebradas naquelebairro. Como já mencionado anteriormente,consideramos de vital importância o relacionamentoentre três aspectos: música, língua e etnia

A partir desta tríade foi possível traçar parâmetrosanalíticos que comportassem as articulaçõessócioculturais e seus reflexos sobre as estruturasinternas dos repertórios de santo. Assim, a categoria‘língua’ demonstra dois aspectos: os relacionamentosidentitários no locus sóciocultural e o de delimitaras fronteiras entre os sistemas musicais representadospelas músicas em latim, português e nheengatu nosrepertórios de santo. Dada a relevância histórica queteve a língua geral (nheengatu) no Brasil e em especialna Amazônia e no vale do rio Negro, apresentamosmaiores detalhes sobre esta no Apêndice 1.

O estabelecimento dos parâmetros analíticos aquiverificados deu-se após uma compreensão dadinâmica das identidades étnicas presentes no bairroda Praia, vislumbradas após três etapas de trabalhode campo entre os anos de 2001 e 2005. A primeiraetapa esteve circunscrita ao contexto da cidade de

Manaus, objetivando o contato com as organizaçõesindígenas sediadas nesta cidade, bem como com adocumentação bibliográfica e de fontes primárias nasinstituições locais.

As etapas subseqüentes ocorreram na cidade de SãoGabriel da Cachoeira e tiveram como objetivo, alémdo registro e da documentação dos repertórios, aparticipação nos eventos das festas e vida dacomunidade. Em período anterior, estudos sobre etniae urbanização nesta cidade foram realizados por SouzaSantos (l984), que visitou a região pela primeira vezem l976, como representante do Museu ParaenseEmílio Goeldi (MPEG), integrando uma equipe da antigaSuperintendência para o Desenvolvimento da Amazônia(SUDAM), quando foi realizada uma avaliação da atuaçãodas Missões Salesianas no rio Negro. Os integrantesda equipe conheceram todas as sedes missionárias(colégios) e 47 povoados indígenas da região. Asobservações feitas estão registradas em um relatório(l976). Ao longo dos últimos 30 anos, o citadopesquisador continuou desenvolvendo vários projetosde pesquisa no vale do rio Negro e os autores, nosúltimos 6 anos, mantêm permanente interação napresente pesquisa, através de projetos e ações culturais.

As festas de santo:As festas de santo:As festas de santo:As festas de santo:As festas de santo:repertórios e simbologiasrepertórios e simbologiasrepertórios e simbologiasrepertórios e simbologiasrepertórios e simbologiasAo longo do caminho percorrido pelas missões jesuítasna Amazônia, especificamente pelos rios Amazonas,Negro, Tapajós, Xingu e seus afluentes, foramsemeadas práticas litúrgicas que, em contato com acultura local, fizeram emergir transformados e re-simbolizados os valores culturais mais importantes decada região (BARROS, 2003, 2006). Nunes Pereira(1989) sugere que esta seja a origem do Sahiré2 deSantarém (às margens do Tapajós, no estado do Pará),tanto quanto das festas de santo no rio Negro, que

2 Sahiré, Çairé, Sairé é uma festa originalmente vinculada ao calendário católico (tal como as festas de santo do rio Negro), que nadescrição de Nunes Pereira (1989) constituem-se repertórios e práticas rituais similares às que ocorrem em São Gabriel daCachoeira. Atualmente o Sahiré ocorre dentro do calendário turístico de Santarém, em forma de um grandioso festival folclórico.

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considera resquícios das práticas ligadas ao Sahiré.Ainda que jesuítas tenham permanecido pouco tempono rio Negro, foi possível estabelecer uma estruturade catequese semelhante às já estabelecidas em outrasparagens da Amazônia Ocidental, implementandopráticas litúrgicas que consistiam em instituições deAntônio Vieira (LEITE, 1943a; DANIEL, 1976;BETTENDORF, 1990).

Como resultante dessa implementação, no rioNegro, as festas de santo revelam como valor culturalmaior o ritual do dabokuri, tal como faz mençãoNunes Pereira (1989, p. 54-55):

Os Dabokuris estavam ligados, através dos séculos,à organização social e econômica das tribos quedominavam o vale do Rio Negro e, além disso, à suamística, à figura do seu herói de cultura-Jurupari.

Enquanto - não há por que recusar-se a suposição -podiam se divertir com as danças e as músicas do Sahiré,dando aos catequistas a ilusão de os haver convertidointegralmente, os indígenas e, depois, os caboclos,deixaram de parte as suas tradições por aquela.

Desde que, porém, se foram os catequistas e sesentiram livres para agir quando e como oentendiam, logo as retomaram ou as associaramàquela, até poder aniquilá-la.

O termo dabokuri é de uso corrente nos segmentosda população tradicional do alto rio Negro,significando uma grande festa cerimonial de encontroentre grupos indígenas, quando são oferecidos frutossilvestres, peixes, bebidas fermentadas etc. semprecom muita música e dança. Ocorre tanto nospovoados indígenas quanto na sede do município.Por extensão, pode haver uma forma de dabokuritambém para recepcionar convidados de fora, ouincorporado em eventos, como as festas de santo,conforme será melhor referido adiante.

A imbricação entre a Festa de Santo Alberto e odabokuri forma um núcleo indissociável que expressauma peculiaridade muito rica na manifestaçãoreligiosa aqui tratada. De fato, se por um lado a festade um santo católico remete a um conjunto detradições da Igreja, quer oriundas da hierarquia

eclesiástica, quer diluídas no catolicismo popular, poroutro lado, o dabokuri revela inúmeras expressõesétnicas típicas da região do rio Negro, resguardandoem seu bojo aspectos estéticos, lingüísticos, musicais,lúdicos e culinários ligados a uma ancestralidadeindígena. É necessário discernir entre essescomponentes culturais o significado profundo queestes revelam no contexto das relações sociaisvivenciadas na região.

O historiador francês Serge Gruzinski refere, emrelação ao México, que milhões de índiosparticiparam de um laboratório de mestiçagem deculturas e modos de expressão, fruto do encontrotraumático entre os universos mentais dosconquistadores e dos vencidos (GRUZINSKI,2001). No alto rio Negro, como em outras regiõesbrasileiras, esses encontros e colisões culturaisforam e são ainda verificados, gerando comoresultante aquilo que o autor acima denomina depensamento mestiço. Para uma interpretação maislúcida possível da temática aqui enfocada,entendemos ser oportuna a ponderação de CliffordGeertz (1978, p. 15), quando observa:

O conceito de cultura que eu defendo... éessencialmente ‘semiótico’ (destaque nosso).Acreditando, como Max Weber, que o homem é umanimal amarrado a teias de significados que ele mesmoteceu, assumo a cultura como sendo essas teias e asua análise, portanto, não como uma ciênciaexperimental em busca de leis, mas como uma ciênciainterpretativa, à procura do significado. É justamenteuma explicação que eu procuro, ao construirexpressões enigmáticas na sua superfície. Todavia, essaafirmativa, uma doutrina numa cláusula, requer por simesma uma explicação.

Os repertórios musicais presentes na festa de SantoAlberto, aglutinando elementos das tradicionais festasde santo e do dabokuri, oferecem um leque de signosque, devidamente decodificados e analisados, podemrevelar os possíveis significados neles encerrados.

Nas festas de santo – como em outros eventossemelhantes – o sagrado e o profano estão presentes,

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ora dicotomizados, ora aglutinados. Estes eventostêm merecido a atenção de vários estudiosos, comabordagens diferenciadas. Entre tantas obras,mencionar-se-á aqui algumas que são consideradasrepresentativas para pontuar tais estudos, naperspectiva deste texto.

O trabalho “O Divino, o Santo e a Senhora”,,,,, deCarlos R. Brandão (l978), apresenta uma ricadescrição e análise sobre a Festa do Espírito Santo,na cidade goiana de Pirenópolis, abrangendo ainda afesta do Reinado e do Juizado de N. S. do Rosário eSão Benedito. O material de campo foi coletado aolongo dos anos de 1973, 74 e 75. Conformeinforma o autor, o estudo faz parte de uma trilogiade explicações de como são praticados ereconhecidos rituais de negros católicos no PlanaltoCentral. Completam esta sequência um estudo sobrea Dança dos Congos da cidade de Goiás e um outrosobre a Congada de Catalão.

Voltando-se para a região amazônica, é imprescindívelmencionar o trabalho pioneiro de Galvão (l955),“Santos e Visagens - um estudo da vida religiosa deItá, AM”, fruto de pesquisa de campo realizada napequena cidade de Gurupá (Itá), na região do baixoAmazonas (Pará) em l9483.

Orientado por Charles Wagley, este estudo foipioneiro em vários sentidos, inicialmente porque foia primeira tese de doutorado defendida por umantropólogo brasileiro, nos moldes da pós-graduaçãouniversitária. De outra feita, pelo modelo deabordagem teórico-metodológica adotado pelo autor

para sua investigação. Como salienta no prefácio dapublicação (GALVÃO, 1955, p. 9-10):

Tanto na coleta do material etnográfico como nasua e laboração, procuramos fug ir a umatendência que muito tem prejudicado aabordagem do assunto. A maioria dos estudos eensaios sobre a vida religiosa do caboclo daAmazônia é or ientada por um interesseaparentemente folclórico, e neles se dá atençãoà sobrevivência de velhas crenças, aos aspectosexóticos de algumas práticas ou rituais, e às teoriasque procuram expl icar as or igens dessasmanifestações culturais. Exceto em algunsromances de feição original, de que destacamoso excelente ‘Marajó’, de Dalcidio Jurandir, eensaios, notadamente os de Veríssimo, crenças,instituições e hábitos religiosos do caboclo têmsido descritos sem referência à vida quotidianado povo e sem a necessária análise do meio sociale das relações entre as instituições religiosas e asoutras que compõem o todo cultural. Idéias econceitos são apresentados como elementosespúrios, desligados de sua função dentro dosistema religioso e do papel que realmentedesempenham na vida do caboclo.

Valendo-se – como ele mesmo diz – “dosclássicos métodos da antropologia”, buscou “veraté que ponto a religião do caboclo de Itá écondicionada por fatores sócio-econômicos,peculiares a essa sociedade rural e como ela atuano todo dessa cultura regional” (Idem, ibidem, p.10). Assim, Galvão (1955, p. 10) desenvolveuseu trabalho, trazendo uma contribuição nova nosestudos desta natureza.

3 O trabalho de Galvão foi desenvolvido dentro de um projeto maior coordenado por Charles Wagley, com o patrocínio da UNESCO.Wagley visitou Itá (Gurupá) pela primeira vez em l942, voltando outras vezes, incluindo o ano de 1948, já com a presença de Galvão.No Brasil atuou na implantação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Publicou, em 1953, “Amazon Town – A Study of Manin the Tropics”, depois editado em português (l957). A monografia de Galvão (l952) fez parte de seu doutorado na Universidade deColumbia, publicada depois no Brasil (l955). Os dois antropólogos realizaram ainda outros trabalhos em parceria na área da etnologiaindígena. Eduardo Galvão atuou intensamente no Museu Goeldi, onde teve presença marcante entre l955 e l976, quando veio afalecer no Rio de Janeiro. Em l997 realizou-se em Belém o Encontro “A Presença de Eduardo Galvão na Antropologia Brasileira”.Uma publicação com as contribuições do evento está no prelo (EDUA/MPEG, 2007).

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Em época mais recente, uma outra contribuiçãoimportante foi trazida por Maués, com seu estudo“Padres, Pajés, Santos e Festas: catolicismo populare controle eclesiástico” (l995). A partir deobservações de campo feitas na microrregião doSalgado do estado do Pará (principalmente omunicípio de Vigia, distante 90 km de Belém), oantropólogo identificou a contraposição docatolicismo popular ante o controle da hierarquiaeclesiástica da Igreja. Nesse confronto o autor dáênfase às crenças, representações e práticas religiosas,estudando-as para conceber uma compreensão dofenômeno, ou seja, “uma análise do ethos e da visãode mundo dessas populações, enfatizando osaspectos simbólicos que podem ser detectadosatravés das verbalizações de suas crenças e mitos,assim como da observação de suas práticas e rituais”(MAUÉS, l995, p. 23).

Temos ainda o trabalho de Alves (1980), intitulado“O Carnaval Devoto”, um estudo sobre a festa deNazaré em Belém..... O Círio de Nazaré’, consideradoa maior festa religiosa do Brasil, é analisada do ânguloque leva em conta a sua estrutura, repercussões esignificados de um ritual numa sociedade complexa.O autor interpreta, sob a ótica do simbólico, social epolítico, esse acontecimento popular, apontandocontradições, poderes concorrentes, hierarquiassociais e uma ideologia comunitária que se expressanuma linguagem ritual, num conjunto de eventosprotagonizado pelo dia do Círio, que reúneanualmente cerca de um milhão e meio de pessoas,no segundo domingo de outubro, em Belém do Pará.

Os quatro trabalhos acima mencionados, como járeferido antes, são representativos no sentido deestabelecer parâmetros que possam balizar estudosoutros dentro da mesma temática, como o aquitratado. Neste sentido, considera-se que estetrabalho compartilha de vários pontos comunsencontrados nas publicações supracitadas, comotambém acrescenta outros, em especial oscomponentes ancestrais indígenas e o viésmetodológico musical e linguístico.

No rio Negro, o padre José Maria Gorsony foi oresponsável pela implementação das missões jesuítas(BETTENDORF, 1990) e – tal como descrevem noséculo XVII os cronistas jesuítas padres João FelipeBettendorf e João Daniel (1976) e os historiadoresVicente Salles (1962) e Serafim Leite (1943b) – eraflautista, valendo-se da sua prática musical para acatequese nas missões ao longo dos rios. Ainda quenada conste nas crônicas de missionários e naturalistasque passaram pelo rio Negro acerca de práticasmusicais ligadas à catequese missionária jesuíta, épossível traçar hipóteses a partir das descrições nasaldeias do litoral, principalmente nas missões do Grão-Pará e São Luís do Maranhão, extremamenteminuciosas. Tais práticas faziam parte de um repertóriolitúrgico implementado por Antônio Vieira na épocaem que era diretor do Colégio Santo Alexandre, emBelém do Pará, e gerenciava as práticas missionáriasna Amazônia, como se percebe na referência deBettendorf (1990, p. 85):

Da Terceira se foram à ilha de S. Miguel embarcarem uma fragata de seu irmão. Deixando por ondepassava instituída a devoção do Terço cantado, aqual ele primeiro tinha instituído em o Maranhão.

As outras ordens missionárias que passaram pelaregião – carmelitas, franciscanos e, recentemente,salesianos – encontraram estrutura consolidada pelosjesuítas nas áreas do baixo rio Negro e valeram-sedessa estrutura para estender as missões para omédio e alto rio Negro.

Na cidade de São Gabriel da Cachoeira sãocomemoradas as festas de Santo Antônio, no dia 13de junho; São João, 24 de junho; e São Pedro, 29de junho, no período junino. Em agosto é realizadaa festa de Santo Alberto durante os dias 7 a 10. Taisfestas obedecem ao calendário católico, mas suascelebrações não são vinculadas à Igreja.

Segundo um morador do bairro, tamborineiro erezador durante a festa, essas manifestações foramimplantadas por um grupo de moradores maisantigos, no ano de 1975, por ocasião da festa de

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Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM)

Santo Antônio, tornando necessária a participaçãode grande parte da comunidade do bairro. Quantoà implantação das festas, organizou-se politicamentea comunidade do bairro da Praia, sendo instituídaextra-oficialmente a Associação dos Moradores doBairro da Praia (institucionalizada em 1986), econstruído o “Clube Santo Antônio”, apelidado de“Chibé”, onde todos os eventos relativos àcomunidade do bairro acontecem. Tais moradorestiveram contato com essas festas em suascomunidades de origem, nos arredores de SãoGabriel da Cachoeira ou ao longo dos rios queformam a calha do alto rio Negro. As festas queocorrem nessas comunidades mais afastadas sãotidas, pelos índios de São Gabriel da Cachoeira,como as verdadeiras e originais festas de santo, comum período de duração mais extenso (até quinzedias, como nos dabokuri).

O período de realização das festas está vinculado aocalendário litúrgico cristão, coincidindo com as datasfestivas dos santos católicos, e possui uma duraçãode três a quatro dias numa zona urbana como acidade de São Gabriel da Cachoeira, chegando aquinze dias em povoados mais afastados. Os índiospreparam-se o ano inteiro, arrecadando ofertas epromovendo eventos que angariem fundos, bemcomo preparando as ofertas, em termos de frutas ebebidas fermentadas, na roça. Durante os quatrodias de festa, momentos de reza e momentos lúdicossão alternados, tendo como eixo definidor as horaslitúrgicas de 6h da manhã, 12h, 18h e 00h, horasestas em que se beija as fitas do santo homenageado,sendo os momentos de roda de danças, bebidas ecomidas revezados nos intervalos.

Na cidade de São Gabriel da Cachoeira, as festas desanto acontecem em duas zonas: o bairro da Praia,mais antigo e tradicional; e o bairro Dabaru, maisrecente e distante do centro da cidade4. Esta pesquisa

está circunscrita às festas realizadas no bairro da Praia,onde vivem cerca de 700 pessoas, há cerca de trintaou mais anos. Desta população, a geração maisantiga fala o nheengatu, português e língua natalpertencente a cada etnia, sendo que os que moraramou são oriundos da Colômbia falam também oespanhol. A geração mais jovem fala apenas oportuguês ou, como segunda língua, o nheengatu. Alíngua geral, ou nheengatu, é identificada como alíngua baré pelos indivíduos descendentes desta etnia,que desde o início do processo colonizador esteveenvolvida de maneira mais intensa nos embates comas frentes de expansão, por ter seu território localizadona região do baixo rio Negro. Em São Gabriel, baréé uma identidade apenas residual (remanescente), jáque esse grupo étnico foi extinto ainda nos primeiroscontatos do período colonial. Todavia, nas últimasdécadas, houve uma revitalização dessa identidade aolongo do vale do rio Negro, com a adoção donheengatu. A etnia baré revitaliza-se, sobretudo, comoforça política nos movimentos indígenas.

No contexto do bairro da Praia, a língua funcionacomo sinal diacrítico de identidade (OLIVEIRA,1995), principal instrumento de manutenção étnica,cujos reflexos são percebidos em todas as dimensõesda cultura, tendo sido, por isso, tomada comoprincipal elemento analítico nesta pesquisa.

O repertório das festas de santo está dividido emtrês categorias que definem, por si mesmas, os eixosrituais estruturais do evento: reza, caminho de santoe correrê. O repertório de rezas (Figura 3) éconhecimento específico do rezador, quase sempreo próprio tamborineiro. Ele, o rezador, possui oconhecimento não só da estrutura musical comodo corpo filosófico que envolve o repertório,exercendo liderança religiosa sobre a comunidade.As rezas, também chamadas ladainhas, acontecemdentro do clube Santo Antônio, grande salão

4 Em viagem a campo (outubro de 2003) foi verificado que nos bairros Boa Esperança e Nova Esperança também ocorrem festas desanto, no entanto, não são consideradas como tradicionais.

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construído pelos próprios moradores do bairro paraa realização das festas, conforme mencionadoanteriormente. Plenas de simbolismo e respeito,como feitura ou pagamentos de promessas, as rezasacontecem todos os dias das festas às 20h. Sãoanunciadas pelas batidas do tamborino e, pouco apouco, num ambiente de penumbra, crianças,adultos e idosos vão chegando e acomodando-seem semi-círculo diante de um altar improvisadoonde está Santo Alberto, ao lado de duas imagensde Santo Antônio. O repertório herdado das antigasmissões, cantado em latim e português, constituipagamento de promessa e/ou feitura de promessa,motivo pelo qual não pode haver erro quando dasua execução pelos rezadores. De todo o corpodas rezas, a ladainha5 é a que mais reflete o significadodas promessas, pois, de acordo com o número degraças alcançadas, define-se o número de vezes emque é cantada. Quando da feitura de promessas, asrezas podem ser feitas na casa da família que faz apromessa, para onde se leva a imagem do santo,

cantam-se as ladainhas e, após, serve-se um lanchepara todos os presentes.

As rezas constituem um conjunto de dez músicascantadas em estrutura coro-solista (Quadro 1), quecorresponde à categoria nativa rezador-jaculatórias,e possui uma unidade consolidada por diversosaspectos: estrutura rezador-jaculatória; prosódiacomo referência métrica (em maior ou menor nívelde subordinação); repertório em latim e português;conjunto das partes unido pelo significado da reza,pois as dez músicas são cantadas de uma vez só,constituindo um bloco inseparável; relações demodo e relações tonais. Dos três repertórios, esteé o único em que a comunidade tem participaçãonos cantos, ainda que limitada às respostas ao solista.Na transcrição fornecida no Anexo 1, observam-seas três primeiras músicas desse repertório, cantadasem português e latim. Ressalta-se a subordinaçãorítmica ao texto através de um traço embaixo dasílaba tônica, indicando o acento rítmico.

Figura 3. Rezadores cantam a ladainha em frente ao altar. Em primeiro plano estão os rezadores solistas: seu Legé, Anchieta e seuAnacleto (da esquerda para a direita) e, ao fundo, a comunidade do bairro da Praia respondendo com as jaculatórias. Foto: Líliam Barros.

5 Litaniae Lauretanae no Líber Usualis encontrado na biblioteca do Colégio São Gabriel, dos missionários Salesianos.

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O repertório de caminho de santo (Anexo 2) estávinculado ao itinerário realizado pelo santo no espaçourbano e no ritual de licença em presença do santo.Este itinerário tem caráter permanente porque évinculado à estrutura cronológica da festa e reservadoàs funções que os componentes nela exercem,renovadas todos os anos. O caminho do santorepresenta a sua visita, juntamente com seu cortejocomposto de bandeireiros, tamborineiro ecarregadores de santo, às casas dos componentesda festa (Figura 4). Os visitados, então, saúdam osanto com ofertas para a festa.

O momento do caminho de santo tem sua unidadee identidade consolidada pela própria natureza doevento – a procissão. O espaço geográfico e aestrutura ritual do repertório garante característicasparticulares a ele, aliados a outros aspectos, comoo texto dirigido ao dono da casa a ser visitada, oinstrumental composto pelo tamborino e por umapequena flauta de taboca chamada mimbí, tocadossimultaneamente; estrutura solista cantada pelorezador; referência métrica prosódica com maiorou menor índice de subordinação; músicas cantadasem português ou nheengatu, relações tonais emBaré (categoria nativa relativa à língua indígena)(Quadro 2). O Anexo 2 traz as transcrições dasmúsicas “Itutinga” e “Licença para sair”. Na transcriçãode Itutinga, observa-se a existência de um pequenomotivo que aparece variado e subordinado ao texto

Quadro 1. Análise do repertório de Rezas segundo as categorias referência métrica, língua e centro tonal.

Orientação temporal Língua Centro Tonal

Introdução Prosódica Latim Ré dórico

Pai-Nosso e Ave-Maria Prosódica Português Ré M

Glória Prosódica Latim Ré dórico

Ladainha Prosódica Latim Ré dórico

Salve Rainha Menor subordinação à prosódia Português Si M

Oferecimento Menor subordinação à prosódia Português Si M

Virgem Soberana Menor subordinação à prosódia Português Si M

Bendito Prosódica Português Ré dórico e Ré m

Despedida Prosódica Português Ré m

Figura 4. Caminho de santo: rezadores e tamborineirosencabeçam a fila dos festeiros que trazem suas ofertas. Ao centro,o rezador-tamborineiro segue cantando ‘Itutinga’ ao lado dosbandeireiros. Ao fundo, o mastro está no chão e, ao seu lado, asfrutas que irão enfeitá-lo. Foto: Líliam Barros.

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rítmica e melodicamente, cantado em nheengatú6.Na música “Licença para sair”, cantada em português,a métrica está mais vinculada à métrica ocidental.

O repertório do caminho de santo é constituído demúsicas em português (em sua maioria retratam osanto pedindo licença para entrar na casa doscomponentes) e em nheengatú, dita Baré pelos índios(estas mais vinculadas a temáticas de animais).Anteriormente havia uma parte do repertório tocadana flauta mimbí, acompanhada pelo tamborino(ambos tocados pelo tamborineiro), no entanto, essaprática está em desuso, pois o senhor que tocavamimbí faleceu.

Essa formação instrumental possivelmente foiintroduzida pelos missionários jesuítas, possuindoduas fontes de naturezas distintas para suacomprovação: a documentação jesuíta sobre aspráticas musicais em missões em outros rios, e ahistória oral dos índios, que assegura as andançasdos padres de casa em casa tocando o tamborino ea flautinha de manhã cedo, em busca de esmolaspara a igreja. De fato, Pe. João Maria Gorsony édescrito como exímio tocador de gaita e utilizador

dessa prática na conversão dos índios Guajajara, noMaranhão (BETTENDORF, 1990, p. 270):

O Padre João Maria os ensinou a tocarem gaitinha eassim affeiçoadissimos a este gênero de instrumentosos fez, e estão tocando noites e dias, estandodesoccupados; não há duvida que um dos meios paraentretê-los e afeiçoá-los a ficar e estar com os Padres,é ensiná-los a tocar algum instrumento para suas foliasem dias de suas festas em que fazem suas procissõese danças, levando deante de si imagem da VirgemSenhora Nossa, cantando alternativamente: Tupã cyangaturana, Santa Maria Christo Yára.

No entanto, o que se verifica nas festas de santo deSão Gabriel da Cachoeira é uma negociação, noplano simbólico, em torno da questão dopertencimento, pois, apesar de essas práticas teremsido implementadas pelos jesuítas, seguem comotradição indígena, em contrapartida à liturgia oficialda Igreja Católica, e adquiriram o nível decategorização de pertencimento como da região,sendo referidos de fora só quando se requer umaexplicação histórica acerca da sua introdução entreos índios. Um fato que evidencia essa negociação éa transferência de parte do repertório para o nível

Quadro 2. Análise do repertório de caminho de Santo segundo as categorias referência métrica, língua e centro tonal.

Música Língua Orientação temporal Centro tonal

Chegada do santo Português Menor subordinação à prosódia TonalLevada para o clube Português Menor subordinação à prosódia TonalLicença para entrar na casa Português Menor subordinação à prosódia TonalLicença para sair da casa Português Menor subordinação à prosódia TonalItutinga Nheengatu Prosódica BaréChegada dos componentes Português Menor subordinação à prosódia TonalCastelo Português Menor subordinação à prosódia TonalChegada no Porto Português Menor subordinação à prosódia TonalSaída do Porto Português Menor subordinação à prosódia TonalQuando a festa acaba Português Menor subordinação à prosódia Tonal

6 As transcrições em nheengatú são de caráter transitório; posteriormente, serão realizadas transcrições das músicas nas diversaslínguas indígenas presentes no município, dentro do projeto maior.

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de identificação étnica, a ponto de ocorrer aequivalência da língua nheengatu com a língua daetnia Baré, uma vez que ocorre, também, aequivalência entre música e língua. A negociaçãosimbólica em torno das festas de santo fica aindamais patente no período do Festribal7, quando aimagem do índio do rio Negro é ressaltada e dançascaracterísticas dos momentos de Correrê sãoapresentadas para demonstrar característica indígena.

Em função das características peculiares, o repertóriode caminho de santo proporciona níveis sonorosdiferenciados e que coadunam com significadostambém distintos. Desta maneira, a estrutura solistaque confere ao rezador/tamborineiro prioridade naexecução das músicas, exclui os demais participantesda experiência sonora, ainda que se tenhaconhecimento que músicas estão sendo cantadas emhonra ao santo. Ao longe, porém, ouvem-se asbatidas firmes do tamborino, anunciando a passagemdo santo, irradiando sua presença ao longo do espaçofísico audível do bairro.

O momento do Correrê ou roda de bebidas constituium dos rituais fixos que se estabelecem na ordemcronológica das festas de santo. Pode sercompreendido como um ato de troca ritualizada epossuindo algo da partilha que permeia todo oacontecimento das festas de santo. Este é um dosmomentos em que fica patente a representatividadedo ritual do dabokuri dentro da estrutura e dosignificado das festas de santo, sendo possível fazerum paralelo entre ambos os acontecimentos a partirdos seguintes referenciais: ingestão de bebidas,danças/coreografia e repertórios (Figura 5). O ritualdo dabokuri é extensivo a todo o vale do rio Negro,adquirindo colorações específicas a depender do

contexto em que se apresenta, se urbano ou rural.Consiste num sistema de troca ritualizada, em queocorre a permuta de bens, cuja confecção é exclusivaa cada etnia, justificando a realização do ritual. Odabokuri é uma das matrizes que identificam o valedo rio Negro como área etnográfica, porquefunciona como canal de comunicação entre asdiversas etnias que residem ao longo do rio,conforme mencionado anteriormente. No bairroda Praia, este ritual pode ser realizado de forma aexplicitar ou ratificar a pertença indígena em situaçõesque o exijam, tal como a chegada de um visitante,ou, de maneira menos consciente, servindo comofundamento sóciocultural regulador de práticasnovas, como nas festas de santo. Através deobservações em campo e participação direta emeventos organizados pelas próprias comunidadesindígenas e pela prefeitura, como o Festribal, foipossível perceber que a partir do ritual do dabokurisão construídas diversas imagens que denotam aosujeito (seja ele a cidade, seus habitantes, umindivíduo) uma característica eminentementeindígena e autóctone. Dessa forma, o dabokuri étido como valor distintivo tanto pelos moradoresindígenas quanto pelos agentes externos, ainda quesob olhares diferenciados, como ritual, como umtipo de música, coisa de índio, dança.

O repertório de correrê (Quadro 3) possui algumascaracterísticas que o justificam na condição de repertórioe lhe conferem unidade e identidade, como o fato deser cantado integralmente em nheengatu, com dançase coreografias miméticas que revelam o texto sobreanimais, e por serem as músicas organizadas segundouma célula motívica, identificada como Baré e emreferência métrica prosódica. A transcrição de Wakará,

7 Evento de caráter grandioso, que acontece anualmente na cidade de São Gabriel da Cachoeira, promovido pela prefeitura, nos moldesdo Boi de Parintins, divulgado como um grande festival cultural dos grupos indígenas do rio Negro. O Festribal oferece uma gama derepertórios musicais organizados segundo critérios de classificação próprios do evento. Tais critérios perpassam por aspectos turísticos,conduzindo à construção de uma identidade regional a ser conferida ao evento. Nesse contexto, categorias como ‘cultural’ e ‘da região’são re-significadas, manipulando os diversos repertórios musicais existentes na cidade. O evento possibilita, ainda, o aparecimento de umrepertório novo, dito ‘regional’ a partir de matrizes culturais indígenas mescladas com elementos da música ocidental.

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cantada em nheengatú, favorece a observação domesmo motivo musical existente em “Itutinga” eidentificado como Baré (Anexo 3).

Quadro 3. Análise do repertório de Correrê segundo as categoriasreferência métrica, língua e centro tonal.

Músicas Língua Orientação Referência temporal tonal

Wakará Nheengatu Prosódica BaréBorboleta Nheengatu Prosódica Baré

A percepção da identidade indígena manifesta norepertório de santo das festas do bairro da Praia requerum conhecimento dos enclaves étnicos que compõemo cenário do bairro, onde índios de origens e etniasdistintas, em contato com as frentes ideológicasocidentais, estão articulados segundo uma lógica própriade relacionamentos interétnicos, cujos tentáculosperpassam os diversos repertórios que fazem parte doconhecimento musical dos moradores.

Passando os olhos sobre o mosaico musical do bairroda Praia, verificar-se-á um leque de negociações emtorno de práticas categorizadas entre culturais, defora e da região.

Dentre as práticas culturais, pode-se registrar todosos repertórios que fazem parte do sistema musicalrio-negrino e que permanecem no conhecimentodas pessoas mais velhas ou recentemente descidas8;dele fazem parte o próprio dabokuri, música de cariço(Figura 6), japurutú (Figura 7) e kapiwayá (Figura 8).

Note-se que cada repertório varia segundo a línguade origem do morador, por exemplo, música decariço em Tukano, em Dessana etc. Dentre osrepertórios de fora entram, além das músicasveiculadas nas rádios locais, como o brega, forró eoutros rítmos latinos, as músicas das festas de santo.Os repertórios considerados da região sãointegrados, também, pelos repertórios de santo,

Figura 5. Correrê, rezadores e tamborineiros encabeçam a fila da roda de bebidas. Ao fundo, a fila fixa e, à sua frente, a fila móvel,promovem a dinâmica da distribuição de bebidas. Foto: Líliam Barros.

8 Índios que migraram recentemente das cabeceiras dos rios e igarapés mais afastados de São Gabriel da Cachoeira.

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Figura 6. Cariço: aerofone feito de tubos de taboca, no formato de flauta de pã, e tocado aos pares. Constitui um repertório específico.Desenho de Artur Dias.

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Figura 7. Japurutú: aerofone feito da palmeira de jupati, tocado aos pares. Desenho de Artur Dias.

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Figura 8. Kapiwayá: repertório musical especificamente masculino, dançado. Por analogia, o bastão ôco usado percutindo ao chãorecebe a mesma denominação. Desenho de Artur Dias.

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benzedores (variável urbana dos pajés), emnheengatu (considerado novo), Baré e uma leva decantores e compositores regionais que produzemre-leituras de músicas tradicionais e/ou se valem dosdistintivos étnicos/culturais para evocar a imagemindígena (como o uso de língua indígena nas letras).Importante notar que a distribuição espacial doconhecimento musical também ocorre de maneiranão homogênea, estabelecendo-se certaspolaridades, uma vez que bairros mais recentes,como Dabaru e Areial, servem como fonte demúsicos tradicionais que toquem cariço, japurutúetc., e por estarem há pouco tempo na cidade, sãovistos como pessoas que sabem melhor essasmúsicas, enquanto a Praia já se revela muito maispropiciadora de repertórios da região, ou compessoas de idade avançada que ainda guardamconhecimentos musicais culturais.

Tendo diante dos olhos uma visão abrangente dadinâmica dos sistemas musicais em trânsito do bairroda Praia, pode-se pensar em um processo deconvivência entre essas frentes musicais.

Música e identidade indígenaMúsica e identidade indígenaMúsica e identidade indígenaMúsica e identidade indígenaMúsica e identidade indígenana festa de Santo Albertona festa de Santo Albertona festa de Santo Albertona festa de Santo Albertona festa de Santo AlbertoO bairro da Praia oferece um mosaico étnico quepermite estabelecer um quadro analítico sinalizadordos enclaves étnicos que perpassam todas asdimensões sócioculturais (Quadro 4). A noção defricção interétnica de OLIVEIRA (1976) permitevislumbrar a dinâmica das orientações simbólicas quepermeiam as práticas dos habitantes do bairro, pondoem contraste e conflito os conceitos de modernidadee primitivismo, segundo a concepção êmicaequivalente à cultura ocidental e à tradicional indígena.Tais categorias são pertinentes ao contexto do bairroda Praia e têm seus desdobramentos sobre os

repertórios das festas de santo. Diferentemente doque ocorre com as comunidades indígenas dos altosrios Negro, Uaupés e Içana, a população indígenade São Gabriel da Cachoeira ainda reluta em afirmar-se como índio tão logo lhes seja solicitado, sendoesse pertencimento exposto apenas em situaçõespropícias e ocasiões reveladoras, como rituais debenzimentos, festas de santo ou no cotidianolingüístico entre os pares. De qualquer maneira,contextos propiciadores, como as festas de santo,fazem emergir tais contradições da situação depertencimento9.

Quadro 4. Enclaves étnicos em São Gabriel da Cachoeira ecategorias nativas na análise das festas de santo.

Identidades em São Gabriel da Cachoeira

Enclaves étnicos Fricção Interétnica

Diversas etnias Sociedade nacionalCaboclo/Maku X”Da região” Modelo tradicional”De fora”

Eixos Identitários

Dabokuri Língua

OfertaDança Baré x nheengatúBebida

Categorias Nativas

‘Cultural’ ‘De fora’

Dabokuri Festa de santoRepertórios tradicionais RezaLínguas indígenas Português/latim

Para uma compreensão da identidade indígenamanifesta nestes repertórios é necessário sublinharalguns aspectos estruturais analíticos: ao consideraras festas de santo como uma manifestação calcadaem duas matrizes culturais – a litúrgica católica e o

9 Com o atual crescimento de políticas indigenistas e fortalecimento das organizações indígenas da região, a população indígena localvai, paulatinamente, sendo inserida nos diálogos e atividades desse movimento.

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ritual do dabokuri –, eixos identitários emergemcomo agentes aglutinadores de referenciaissimbólicos de identidade étnica, sendo possívelcategorizá-los como o ritual do dabokuri e a língua.

Sob o modelo litúrgico católico, o ritual do dabokuriemerge como orientação simbólica, em que práticase significados das festas de santo encontram paralelose contradições nos rituais de bebida, danças comcoreografia e oferta/troca ritualizada. A língua,principal mecanismo de identificação étnica,estabelece fronteiras socioculturais no locus urbano,tanto quanto na estrutura interna das festas de santoe de seus repertórios. A língua também serve comoimportante mecanismo de aprendizagem musical pordois motivos: a partir do conhecimento do texto, aestrutura rítmica vai se desdobrando em função docaráter prosódico e da repetição do motivomelódico; e existe um corpo filosófico envolvendomúsica, santo e, principalmente, ladainhas, dos quaisse verifica que qualquer erro no texto ou melodiatorna o rezador/tamborineiro, tanto quanto aprópria comunidade, passível de castigo do santo.Verifica-se que, tendo a língua como categoriaanalítica-eixo, torna-se possível vislumbrar asfronteiras entre os sistemas musicais representadospelas músicas dos três repertórios, bem como suasignificância étnica, dada a equivalência da língua Barécom o nheengatu.

A categoria língua fornece subsídios para percebero feixe de luz que se estende a partir do prismaidentidade étnica no bairro da Praia, evidenciandoo contraste entre os conceitos cunhados porOliveira (1976) de caboclismo e identidadecontrastiva. Tal contraste dá-se na medida em queos repertórios permitem, através da língua,identificar a noção generalizante das festas de santocomo categoria que engloba todas as etnias,transfigurando-as em coisa de índio ou coisa decaboclo, anulando a diversidade étnica, emcontraposição à proeminência da etnia Baré que,através da equivalência das línguas baré e nheengatu,fortalece e mantém o sinal de alteridade.

As categorias nativas, porém, deixam bem claro duascolunas estruturais: de um lado, o cultural, referenteàs práticas tradicionais indígenas em que estãoinclusos o ritual do dabokuri, as línguas indígenas eos repertórios tradicionais; e, do outro lado, o defora, em que as festas de santo estão inseridas,juntamente com as rezas e as línguas português elatim. Uma outra categoria nativa, porém, englobaambas as colunas num termo generalizante - daregião - em que pese a temporalidade e espacialidadedo evento festa de santo, presente em todo o valedo rio Negro e realizado por grande parte dapopulação indígena.

A percepção da identidade étnica acontece a partirda situação histórica e hereditariedade, das quaisse desdobra o pertencimento lingüístico e, numplano simbólico atual, a referência às comunidadesindígenas de cima, que vivem na zona rural.Considerando a assertiva tomada por Oliveira(1999b) quanto à linha do tempo, é possívelobservar que a historicidade à qual se remete oprocesso de identificação étnica está muito maisnum plano de herança familiar, portanto, umpassado muito próximo, diferentemente do queocorre em situações outras em que a imagem doíndio dos tempos da colonização é tomada comofonte de resgate identitário. Nas gerações maisjovens, o sentido de pertencimento étnico vemsendo pautado muito mais nos caminhos dahereditariedade do que na fluência na língua daetnia, uma vez que o uso e a transmissão destanão encontra mais contexto propiciatório e,também, em função do movimento crescente donheengatu como disciplina obrigatória na escola eaté mesmo como língua oficial da cidade, juntamentecom o português, Tukano e Baniwa. Atendendo auma reivindicação da FOIRN, a Câmara Municipalde São Gabriel da Cachoeira, em 22 de novembrode 2002, aprovou o projeto do vereador índioKamico Baniwa, declarando o nheengatu língua co-oficial de São Gabriel, juntamente com as duas outraslínguas referidas acima.

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Apesar de serem constituídas por duas matrizesculturais – a indígena e a católica – as festas de santonão se revelam um amálgama e, sim, como pontode encontro de dois referenciais simbólicos entre osquais a linha divisora é muito tênue. Utilizando aimagem evocada por Oliveira (1999b), o fio de umanavalha. No plano das negociações simbólicas, as festasde santo constituem, ao mesmo tempo, mecanismode contato direto com o santo (as músicas pedemlicença ao santo, dirigem-se a ele em relação àcomunidade) e potencial de negociação com o santoatravés de promessas e pagamento destas, aceitandosua interferência no destino da comunidade.

O fato de as festas de santo estarem enquadradasna categoria nativa da região alude às fronteirasétnicas de pertencimento, evidência de que estassão perfeitamente identificadas na manifestaçãocomo um todo pelos próprios moradoresindígenas do bairro. A incorporação das práticasmusicais das festas de santo ao leque de repertóriosculturais manifestados no Festribal é uma evidênciade que a imagem do índio rio-negrino reveste-sede uma abrangência tal que aglutina, inclusive,negociações desse tipo. No entanto, entre ospróprios participantes da festa, a interpretaçãoacerca dessas fronteiras de pertencimento é feitade modo bem mais nítido através da afirmaçãoétnica Baré e das práticas ligadas ao Dabokuri re-simbolizadas, constituindo, isso tudo, um fenômenocultural da região.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho procurou demonstrar comoos vários grupos indígenas urbanizados em SãoGabriel da Cachoeira representam suas identidadesétnicas e culturais e manifestam sua pertença étnicanos eventos conhecidos como festas de santo, quetambém incorporam elementos da tradiçãoindígena ancestral. Nossa abordagem contempla osrepertórios musicais como elementos aglutinadoresda identidade e da etnicidade.

Apresentou-se inicialmente um breve histórico doprocesso de ocupação da região e as diversas frentesde mudança que contribuíram para a urbanização.Em seguida, foi realizada uma descrição doemaranhado cultural presente na zona urbana domunicípio e as várias identidades que emergemnaquele contexto. A descrição das festas de santoocorreu precedida de um breve histórico dessamanifestação na Amazônia e no rio Negro, buscandoevidenciar a existência de um modelo que se mantémdesde o período colonial e a partir do qual emergemos valores culturais de cada sociedade em que foiaplicado. Nesse contexto, a descrição e análise dosrepertórios musicais buscou evidenciar os jogos deidentidades presentes nas práticas musicais ligadas àsfestas de santo no bairro da Praia.

O bairro da Praia oferece um leque de práticasmusicais que não estão circunscritas às festas desanto e, sim, emergem através destas na medidaem que possuem como fundamento o ritual dodabokuri, fonte da qual jorram os repertórios ditostradicionais. O conhecimento musical destesdiversos repertórios estratifica-se segundo as faixasetárias e dimensão cultural a que estão vinculadas,tal como acontece com as músicas específicas debenzimento, por exemplo. Conclui-se, então, queas festas de santo funcionam como um portal quetransporta a um valor cultural bastantepronunciado - o dabokuri.

As festas de santo que ocorrem no bairro da Praiaconstituem exemplo de re-leituras e revalidaçõesde práticas inovadoras em que o substrato culturalindígena manifesta-se de forma significativa,explicitando a identidade indígena em várias faces.Tais festas, possivelmente implementadas pormissionários jesuítas desde o processo colonizadordo século XVII, constituíam um modelo litúrgico quedeveria ser interiorizado em cada comunidadevisitada pelos missionários, ainda que propício aaberturas e frestas que escapassem à vigilância dospadres, nem sempre presentes no cotidiano das

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Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM)

mesmas. Considerando o lapso histórico, verifica-se que, sob tais modelos litúrgicos, emergiam osvalores culturais maiores, a partir dos quais as festasde santo passariam a adquirir colorações ecaracterísticas próprias, constituindo um fato novoincorporado às práticas tradicionais.

O trabalho evidencia, mais uma vez, o simbolismo eo significado que tem a música como expressão dasraízes étnicas e culturais de um povo, bem comoenquanto sínteses e novas elaborações sociomusicais.A música, como se sabe, entre outros poderes, écapaz de falar diretamente aos corações e mentesdas pessoas, motivar a coesão comunitária, mobilizarmultidões, curar males do corpo e da alma, levarguerreiros para a batalha e até fazer uma criançadormir com uma canção de ninar.

Como demonstram as elaborações aqui realizadas,os contornos das identidades em São Gabriel ganhamrealce, força, transparência e maior visibilidadeatravés dos repertórios musicais das festas de santo/dabokuri, aliás, consoante com a assertiva do PapaPio XII, quando afirmava: “quem canta reza duasvezes”. Não é de estranhar, pois, que todos os povosantigos desenvolveram mitologias que atribuem umaorigem divina à música, o que condiz com o fato deque a música está no universo cósmico, na natureza.A vida tem ritmo.

Ressalta-se, por fim, que as pesquisas emetnomusicologia realizadas em São Gabriel daCachoeira possibilitaram os registros (fonográficos,visuais, textuais...) dos repertórios musicais indígenas.A equipe da Reserva Técnica da Área de Linguísiticado Museu Goeldi apoiou esse trabalho com adigitalização, catalogação e edição do materialcoletado em campo, bem como processou váriasreproduções deste para distribuição na comunidadedo bairro da Praia. Tais registros contribuem paraperpetuar a memória desses povos, outorgando aosmesmos uma notável visibilidade de sua identidadeancestral e hodierna.

AGRADECIMENTOS

Queremos agradecer em primeiro lugar aosmoradores do bairro da Praia, em São Gabriel, porsua receptividade a este trabalho. Agradecemos, ainda,à Área de Lingüística do Museu Goeldi e à Secretariade Inclusão Social (SECIS) do Ministério da Ciência eTecnologia, pelo apoio ao desenvolvimento de nossosobjetivos. A Maria Cândida D. M. Barros (MPEG),por informações valiosas sobre a ‘língua geral’. ADaniele Moreira Gomes (bolsista de IniciaçãoCientífica do PIBIC-MPEG), por sua participação nasatividades do projeto rio Negro. A Artur Dias, doCIMI-Pa, pelos desenhos dos instrumentos musicais.A Daniel H. de Carvalho Vieira, pelo ensejo demotivação de idéias, através de seu trabalho sobre asfolias de santo em Óbidos, Pará.

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Recebido: 07/06/2006Aprovado: 13/03/2007

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Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM)

Apêndice 1.

Nheengatu

De origem tupi, nheengatu significa língua bela, línguaboa; é também conhecido como língua geral, ouapenas geral. É resultante de uma contingência históricae sócio-linguística da política colonial do padroadoportuguês (vinculação entre Igreja e Estado). Osjesuítas, no intuito de resolver o problema dacomunicação verbal com as numerosas populaçõesnativas na América Portuguesa e Hispânica, adotarama política de língua geral, entre os séculos XVI e XVII.Para isso era selecionada a língua mais difundida daregião: tupi (Brasil), quéchua (Peru-Andes), guarani(Paraguai-região platina), náuatl (México). No casobrasileiro, a partir do tupinambá falado no litoral, osreferidos missionários sistematizaram – com forteinfluência da arte da gramática latina – essa língua epassaram a ensiná-la e difundí-la ao longo de mais dedois séculos, chegando a receber as denominaçõesde língua geral, língua brasílica, do Brasil, dos Brasis,grego da terra e nheengatu. Com a expansão colonialpara o Norte, esse tupi jesuítico é incorporado aoMaranhão, Grão Pará e Amazonas, tornando-se alíngua geral amazônica (supraétnica) amplamentefalada em todos os rincões da região, abrangendo oscentros urbanos, até meados do século XIX. Este fatochamou a atenção do naturalista Henry W. Bates, quena década de 1850 viajou pelo vale do rio Amazonase relata em sua obra (1864) o amplo uso da línguageral em toda a extensão do grande rio. Foi ainda

uma língua vigente durante a Revolução Cabana, maisconhecida como Cabanagem (l834-1840). O declínioda língua geral começa a partir de 1750 com aimplementação de uma nova política do Estadoportuguês no Brasil, comandada por Marquês dePombal. Entre outras medidas há a expulsão dosjesuítas, a proibição do ensino do nheengatu nasescolas e a imposição da língua portuguesa. Em quepesem as vicissitudes experimentadas, o geral faz partedo presente cenário histórico, onde permanece comuma densa herança na cultura brasileira. Essa línguachegou a constituir uma cátedra nas antigas faculdadesde filosofia, ciências e letras, a partir dos anos de 1930.Um dos tupinólogos pioneiros foi Plínio Ayrosa (1895-l961), professor do idioma na Universidade de SãoPaulo (USP) durante muitos anos e autor de inúmerasobras sobre o tupi. É possível mencionar ainda aherança na literatura (indianismo) e no léxico doportuguês falado entre nós, com cerca de cinco milvocábulos. O nheengatu é ainda hoje uma línguavigente em todo o vale do rio Negro, Amazonas,abrangendo os municípios de Novo Airão, Barcelos,Tapuruquara (Santa Isabel) e em especial São Gabrielda Cachoeira, convivendo com as inúmeras línguasindígenas ali faladas, além do português. Para maioresdetalhes sobre o aparecimento, prestígio, hegemonia,declínio e controvérsias acerca do “geral” e suacontextualização, ver, em especial, Maria Cândida D.M. Barros (1982), Luiz C. Borges (l991; 1994);Maria Cândida D. M. Barros, Luiz C. Borges e MárcioMeira (1996); José R. B. Freire (2004); José R. B.Freire e Maria C. Rosa (2003).

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 23-53, jan-abr. 2007

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Anexo 1. Festas de santo, repertório de Rezas. Transcrição musical: Líliam Cristina da Silva Barros.

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Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM)

Anexo 2. Festas de santo, repertório de Caminho de Santo. Transcrição musical: Líliam Cristina da Silva Barros.

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 23-53, jan-abr. 2007

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Anexo 3. Festas de santo, repertório de Correrê. Transcrição musical: Líliam Cristina da Silva Barros.

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Fronteiras étnicas nos repertórios musicais das ‘festas de santo’ em São Gabriel da Cachoeira (alto rio Negro, AM)

Anexo 4. Festribal, trecho de recriação a partir de matriz tradicional. Transcrição musical: Líliam Cristina daSilva Barros.

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Ciências Humanas, Belém, v. 2, n. 1, p. 23-53, jan-abr. 2007

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Anexo 4. Continuação.