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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO III SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP MEXEU COM A MINHA IRMÃ? VOU CHAMAR O PCC. Marleide Lourenço da Silva 1 ([email protected]) Profa. Dra. Sonia Nussenzweig Hotimsky 2 ([email protected]) Resumo: O presente trabalho tem por objetivo buscar compreender as relações de jovens moradores de bairro da periferia da Grande São Paulo, com o PCC. O foco deste trabalho se volta para jovens que, embora não pertençam ao “mundo do crime”, tem certa admiração pelo Comando e seus ideais e circulam com outros jovens que pertencem a este universo. Procuraremos descrever e analisar as implicações desta proximidade com esta organização nos processos identificatórios e de socialização destes jovens. A pesquisa etnográfica, ainda inconclusa, realiza-se em um bairro periférico da Grande São Paulo e tem por base entrevistas semi-estruturadas e a participação observante. Os resultados parciais a serem apresentados são fruto de incursões em campo realizadas no período de dezembro/2013 a agosto/2014. Serão apresentadas a descrição e análise de algumas situações envolvendo um dos sujeitos da pesquisa. Felipe, de 20 anos, trabalhador informal, é um dos jovens do bairro que não fazem parte do “mundo do crime”, mas que mostra maior identificação com o ideário do PCC. Procurarei ilustrar o processo por meio do qual Felipe vem se aproximando do Comando, e em particular dos jovens que atuam no tráfico de drogas local e quais os efeitos que esta aproximação tem gerado em sua interação com seus familiares e circulo de amigos no bairro e destes com o PCC. Esta aproximação tem causado o afastamento de Felipe de seus familiares e amigos mais próximos, porém, ao mesmo tempo, tem aproximado sua família dos ideais e dos membros do Comando. O que nos leva a crer que, no presente caso, as relações travadas por este jovem com membros do PCC, além de implicar diretamente em suas redes sociais, auxiliam a disseminação da ideologia do PCC junto aqueles que não fazem parte da rede social de seus membros. Palavras-chave: PCC; periferia, crime, juventude. 1 Acadêmica do Curso de Sociologia e Política da FESPSP, bolsista PIBIC-FESPSP. 2 Professora do Curso de Sociologia e Política da FESPSP, orientadora da pesquisa. 1

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FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO

III SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP

MEXEU COM A MINHA IRMÃ? VOU CHAMAR O PCC.

Marleide Lourenço da Silva1 ([email protected]) Profa. Dra. Sonia Nussenzweig Hotimsky2 ([email protected])

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo buscar compreender as relações de jovens

moradores de bairro da periferia da Grande São Paulo, com o PCC. O foco deste trabalho

se volta para jovens que, embora não pertençam ao “mundo do crime”, tem certa admiração

pelo Comando e seus ideais e circulam com outros jovens que pertencem a este universo.

Procuraremos descrever e analisar as implicações desta proximidade com esta organização

nos processos identificatórios e de socialização destes jovens. A pesquisa etnográfica, ainda

inconclusa, realiza-se em um bairro periférico da Grande São Paulo e tem por base

entrevistas semi-estruturadas e a participação observante. Os resultados parciais a serem

apresentados são fruto de incursões em campo realizadas no período de

dezembro/2013 a agosto/2014. Serão apresentadas a descrição e análise de

algumas situações envolvendo um dos sujeitos da pesquisa. Felipe, de 20 anos,

trabalhador informal, é um dos jovens do bairro que não fazem parte do “mundo do crime”,

mas que mostra maior identificação com o ideário do PCC. Procurarei ilustrar o processo por

meio do qual Felipe vem se aproximando do Comando, e em particular dos jovens que

atuam no tráfico de drogas local e quais os efeitos que esta aproximação tem gerado em

sua interação com seus familiares e circulo de amigos no bairro e destes com o PCC. Esta

aproximação tem causado o afastamento de Felipe de seus familiares e amigos mais

próximos, porém, ao mesmo tempo, tem aproximado sua família dos ideais e dos membros

do Comando. O que nos leva a crer que, no presente caso, as relações travadas por este

jovem com membros do PCC, além de implicar diretamente em suas redes sociais, auxiliam

a disseminação da ideologia do PCC junto aqueles que não fazem parte da rede social de

seus membros.

Palavras-chave: PCC; periferia, crime, juventude.

1 Acadêmica do Curso de Sociologia e Política da FESPSP, bolsista PIBIC-FESPSP. 2 Professora do Curso de Sociologia e Política da FESPSP, orientadora da pesquisa.

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1. Introdução

Em 2011 ouvi, pela primeira vez, jovens do bairro pesquisado conversando sobre o PCC3 e

suas normas, foi a conversa destes jovens que despertou meu interesse em estudar o

Comando. Assim, em 2013, tendo meu projeto de iniciação científica aprovado, passei a

efetuar pesquisa com os moradores do bairro com o objetivo de apreender como se deu a

inserção do Comando no bairro e quais suas relações com os moradores. Durante meu

trabalho de campo, transitando pelo bairro nos finais de semana, invariavelmente

encontrava grande número de jovens do bairro, fumando narguilé, bebendo e ouvindo funk.

Ao atentar para as letras das músicas que ressoavam dos autofalantes dos carros parados

nas diversas ruas pelas quais transitava era comum ouvir letras como:

Sem neurose, sem caô, muita fé no coração bonde da providencia contenção de rajadão. Não adianta tentar, se brotar vai se fuder, conexão criminosa é CV e PCC Esse é o papo reto só cria braço nervoso Quadrilha de guerrilheiro, chapa quente, quartel criminoso. (Conexão Criminosa, Menor do Chapa) Matar o polícia é a nossa meta Fala pra nóis quem é o poder Mente criminosa, coração bandido Sou fruto de guerras e rebeliões Comecei menor já no 157 Hoje meu vício é roubar, profissão perigo Especialista, formado na faculdade criminosa Armamento pesado, ataque soviético É que esse é o bonde do mk porque Quem manda aqui É o 1 p e 2 c, fala pra nóis quem é o poder. Fala pra nóis quem é o poder (Apologia, MC da Leste) Cinco dias de terror, zona sul parou pra ver, quem manda, quem manda? Quem manda é o PCC. (Quem Manda? MC Keké)

Estes funks fazem parte de um estilo, predominante no Rio de Janeiro e na baixada santista,

chamado “proibidão”; suas mensagens exaltam o “mundo do crime4” e organizações como o

3 Farei referência ao Primeiro Comando da Capital também como “Partido” e “Comando” nomes pelos quais a facção também é denominada por seus integrantes. 4 Utilizo a expressão “mundo do crime” tal como formulada por Feltran (2008, p.31) que designa o conjunto de códigos sociais, sociabilidades, relações objetivas e discursivas que se estabelecem, prioritariamente no âmbito local, em torno dos negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos, assaltos e furtos.

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PCC. Este tipo de música não toca nas rádios, não frequenta os programas de TV, difunde-

se a margem dos instrumentos formais da indústria cultural, principalmente por meio da

internet e bancas de ambulantes que vendem CDs e DVDs piratas. O “proibidão”,

juntamente com o funk “ostentação” – que faz apologia ao consumo de itens de grifes -

embala os encontros dos jovens nas periferias da grande São Paulo. A empolgação com

que os jovens do bairro ouvem e cantam estes funks despertou-me a atenção para as

relações destes jovens com o Comando, uma vez que a maioria não pertence ao “mundo do

crime”.

Ao visitar o perfil do Facebook de um dos jovens do bairro percebi uma mensagem

comentando sobre a prisão de um rapaz que mora no local e ao acessar o perfil do rapaz

que havia sido detido e ler as mensagens deixadas por seus amigos, chamou-me a atenção

o fato de vários adolescentes, que não pertencem ao “mundo do crime”, finalizar suas

mensagens com a hashtag #PazJustiçaLiberdade ou #JPL, que nos remete, quando

acessamos o hiperlink, à páginas do Facebook onde inúmeros jovens deixam mensagens

para colegas que encontram-se presos ou veiculam conteúdos relacionados a prisão e a

ações policiais em diversos bairros. Isso não seria significante se estas hashtags não

fossem uma alusão à parte do lema do PCC: Paz, Justiça, Liberdade e Igualdade.

Não há como não reconhecer, diante achados de pesquisa de projeto de iniciação científica

realizada no período de agosto de 2013 a maio de 2014 e da bibliografia existente, que,

atualmente, o PCC é, de fato, uma instância de regulação de atividades ilícitas e atua como

mediador de conflitos nas periferias urbanas, mesmo daqueles que não dizem respeito ao

“mundo do crime”.

As observações efetuadas em campo relacionadas aos jovens do bairro levantaram indícios

de que, além do regular as atividades ilícitas e mediar conflitos nas periferias, o PCC se

constitui como uma ampla rede social e tem gerado, para uma parcela de jovens da periferia

que não atua no “mundo do crime”, novas formas de relacionamento e identificação.

O objetivo deste trabalho, fruto de pesquisa etnográfica ainda inconclusa, é buscar

compreender as relações de jovens moradores de bairro da periferia da Grande São Paulo

com o PCC que, além de funcionar como mediador de conflitos, constitui uma ampla rede

social nos bairros da periferia da Grande São Paulo. O foco se volta para jovens que,

embora não pertençam ao “mundo do crime”, circulam com outros jovens que pertencem a

este universo e atuam junto ao PCC. Através da trajetória de Felipe, de 20 anos, trabalhador

informal, um dos jovens moradores do bairro que não faz parte do “mundo do crime”, mas

que demonstra maior identificação com o ideário do PCC, procurarei ilustrar o processo por

meio do qual ele tem se aproximado do Comando, em particular dos jovens que atuam no

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tráfico de drogas local e quais efeitos esta aproximação tem gerado em seus familiares e

círculo de amigos no bairro e destes com o PCC.

2. Métodos e Técnicas de Pesquisa

Para desenvolvimento do trabalho utilizei entrevista semi-estruturada e o método

etnográfico, mais especificamente a proposta etnográfica de “participação observante”

utilizada por Wacquant (2002) para demarcar um deslocamento metodológico diante da

clássica “observação participante”, oriunda das pesquisas etnográficas. Wacquant salienta

que a diferença central está no fato de a “participação observante” ter uma maior

intervenção, uma experimentação do pesquisador com a prática cultural que ele está

investigando.

A base deste trabalho são as relações de meus interlocutores e para o

entendimento destas relações, utilizei informações colhidas em entrevista com

Felipe, conversas e observações realizadas em campo no período de dezembro

2013 a agosto de 2014. A fim de manter a confiança estabelecida entre a

pesquisadora e os interlocutores e por respeito a estes, os nomes utilizados são

fictícios.

3. O PCC

Para Biondi (2009) não é possível estabelecer com exatidão quando e como surgiu o PCC.

Embora haja várias versões para sua criação, a que se estabeleceu como verdadeira foi a

registrada por Jozino (2005), segundo a qual o Comando nasceu em agosto de 1993, no

Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, na época era considerado o presídio

de maior segurança do Estado de São Paulo, dirigido por José Ismael Pedrosa que foi

diretor da Casa de Detenção do Carandiru, em 1992, quando ocorreu a chacina que resultou

na morte de 111 presos. Segundo o autor, num jogo de futebol entre o “Comando Caipira”,

equipe formada por internos provenientes de cidades do interior e o “Comando da Capital”,

constituído por presos oriundos do município de São Paulo, ocorreu uma briga entre as

equipes que levou a morte de dois integrantes do Comando Caipira e, temendo represarias

como as ocorridas no Carandiru, a equipe do PCC5 fez um acordo de autoproteção,

pactuando que a punição de um dos membros levaria a reação de toda a equipe.

5 A equipe do PCC era formada por Miza (Mizael Aparecido da Silva), Geleião (José Márcio Felício), Cesinha (César Augusto Roriz da Silva), Cara Gorda (Wander Eduardo Ferreira, Paixão (Antonio Carlos Roberto da Paixão), Esquisito (Isaías Moreira do Nascimento), Dafé (Ademar dos Santos) e Bicho Feio (Antonio Carlos dos Santos), os fundadores do PCC.

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Segundo Jozino (2005) o Anexo da Casa de Custódia possuía um regime disciplinar

extremamente rigoroso. Suas celas eram individuais, os internos ficavam ao ar livre apenas

duas horas por dia; era proibido o uso de rádio e televisão, o acesso a jornais, revistas,

livros e a realização de visitas íntimas. A limpeza dos banheiros das celas só era permitida

quando o ar já era irrespirável, as refeições tinham baratas vivas e, caso alguém

protestasse, era agredido com barras de ferro.

Foi a partir deste ambiente que a ideologia criada pelo grupo difundiu-se pelo sistema

prisional por meio da transferência de seus membros para outras unidades. Geleião,

Cesinha e Miza dirigiram as primeiras ações do PCC e elaboram o estatuto da organização

que ao final afirma: "Conhecemos nossa força e a de nossos inimigos. Eles são poderosos,

mas estamos preparados, unidos; e um povo unido jamais será vencido. Liberdade, justiça e

paz!”6.

Conforme se verifica em autores como Biondi (2009), Marques (2010), Biondi e Marques

(2010) e Dias (2011), no início da década de 2000, o Comando passou por mudanças

profundas. Nesta época, Geleião e Cesinha, únicos fundadores vivos, aumentaram as

diferenças hierárquicas dentro do PCC, se autoproclamaram generais e passaram a usar o

PCC em proveito próprio, ao mesmo tempo em que dominavam os presos por meio de

violência. A liderança era piramidal e só eles davam as ordens e tomavam as decisões.

Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola) encontrava-se preso no Anexo da Casa de

Custódia quando o PCC foi criado, tendo sido batizado como membro do PCC (“irmão”) por

Cesinha (JOZINO, 2005). Após fugir do sistema foi recapturado em 1999 e, ao voltar,

mostrou-se contrário à forma como o PCC estava sendo comandado, questionando a

situação vigente. Em 2002, Marcola insurgiu-se contra a exploração realizada por Geleião e

Cesinha e, segundo suas palavras: eles “[…] foram escorraçados – é a palavra – pelo

sistema penitenciário…” (MARQUES, 2010, p.322). Porém, ainda segundo Marques e

Jozino (2005), o assassinato de sua ex-esposa, a advogada Ana Maria Olivatto,

supostamente, a mando da esposa de Cesinha, teria influenciado sua decisão.

Após expulsão dos antigos líderes, Marcola assumiu a liderança a pedido dos “irmãos” e,

pouco tempo depois, efetuou profunda reformulação no Comando acabando com o sistema

piramidal e dividindo a liderança com todos os “irmãos”, partindo do princípio de que todos

eram iguais e, sendo iguais, não precisavam de um líder. (MARQUES, 2010).

Para Biondi (2009) e Biondi e Marques (2010), o princípio de “igualdade” atrelado ao antigo

lema (paz, justiça e liberdade), além de marcar a diferença entre o período anterior, evita

que a “desigualdade” volte a se desenvolver dentro do Comando. Após esta mudança, o

6 Transcrito de um “Estatuto do PCC” que tive em mãos em pesquisa realizada em 2011.

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PCC imprimiu importantes alterações no interior das unidades prisionais em que está

presente: proibiu o estupro, o uso de palavrões e palavras agressivas entre os presos, o

consumo de crack e o porte de facas. Todas as disputas e conflitos passaram a ser

mediados por “irmãos” do PCC que ocupam a posição de piloto. Para Biondi (2009) e

Marques (2010), piloto é uma posição política ocupada por “irmão” do PCC. Biondi (idem)

destaca que esta posição é ocupada de forma transitória e independe de seus ocupantes.

Para Dias (2009; 2011), piloto e disciplina7 ou palavra são posições de liderança do PCC em

unidades prisionais ou bairros dominados pelo Comando. Para a autora, trata-se de uma

autoridade máxima que tem a função de manter o controle e disciplina local, de acordo com

as regras do PCC.

Segundo Biondi (2009), com a inclusão da igualdade certa tensão passou a atravessar não

apenas a política, mas a própria existência do Partido, podendo ser entendida como

revolução, uma vez que desfez as estruturas hierárquicas existentes e deu início a criação

de um Comando entre iguais. Com a inclusão da igualdade, a legitimidade para o exercício

político do “irmão” passou a ser uma decorrência do respeito dos demais a sua capacidade

de negociação e não de uma posição hierárquica. Assim, pode-se considerar que a maior

mudança ocorrida no PCC foi à inserção do discurso de democratização e a

descentralização do poder que instituiu um processo decisório onde todos, “irmãos” e

companheiros, participam (BIONDI, 2009; BIONDI E MARQUES, 2010). É fato que com a

disciplina8 do Partido e os debates9 mediados por “irmãos”, os conflitos dentro dos presídios

do PCC deixaram de ser letais, contribuindo para a “paz” entre a população carcerária e

diminuição do número de mortes dentro do sistema (MARQUES, 2010; BIONDI, 2009 e

DIAS, 2011).

Dias (2009, 2011) em sua pesquisa acerca do Comando, realizou entrevista com presos de

unidades prisionais sob a disciplina do PCC, com membros excluídos do Partido, com

internos de prisões de oposição – que abrigam detentos que não podem permanecer em

prisões do PCC. Além disso, efetuou extensas conversas com diretores, funcionários e

autoridades como Nagashi Furukawa, que comandou a Secretaria de Administração

Penitenciária por cerca de seis anos e se demitiu após o episódio que ficou conhecido como

“Ataques do PCC10. Para a autora, a hegemonia do PCC no controle da violência física

7 Ao longo do trabalho, ao me referir ao representante do PCC que atua no bairro, utilizarei o termo disciplina, não por concordar com a posição de Dias, mas por ser este o termo utilizado pelos moradores para designar o membro do PCC que atua como representante local dos ideais do Comando. 8 Normas de conduta recomendadas pelo PCC 9 “Debate” é a realização de uma discussão, mediada por membros do PCC com o intuito de resolver um conflito, um litígio. 10 Em maio de 2006, o PCC realizou uma megarrebelião que envolveu 84 instituições penitenciárias e que resultou em 299 ataques a órgãos públicos, 82 ônibus queimados, 17 agências bancárias atacadas e 42 policiais e agentes de segurança mortos e 38 feridos.

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dentro das prisões, aumentou as diferenças de poder entre os presos e as posições sociais

no interior do sistema prisional e a “paz” do Comando é obtida por meio de um consenso

imposto, onde não pode haver divergências ou discussões, o que amplia as diferenças ao

invés de promover a igualdade. Assim, o estatuto da igualdade nada mais é do que uma

ideologia que dissimula o caráter hierarquizado e autoritário do PCC que trocou a

organização piramidal por uma estrutura semelhante ao modelo celular onde há hierarquia

de fato, uma estrutura que conta com uma cúpula no centro e vários níveis intermediários

que dividem o poder nas regiões e respondem aos líderes. Para a autora, o objetivo

principal desta mudança é dificultar as investigações sobre as atividades e recursos da

organização.

Biondi (2009) que fez uma etnografia sobre o PCC no interior do sistema, no papel de

pesquidadora-visita11, aborda a lógica de ação do Partido, seu funcionamento e sua

estrutura, que, segundo a autora, passou por grande transformação, a partir da instauração,

por Marcola, do instituto da igualdade, tornando-se um coletivo com liderança diluída que

permitiu ao Comando tornar-se um grupo não hierárquico, um coletivo sem liderança que

contribuiu decisivamente para a pacificação dos conflitos entre presos no interior das

prisões. Através de Biondi podemos acompanhar o processo de transformação de um preso

em “irmão” nos Centros de Detenção Provisória (CDPs) que funcionam como “faculdades”

onde os novos internos aprendem a ter “proceder”12 e constroem suas reputações.

Para a autora, o princípio de igualdade procura acabar com as diferenças entre os presos,

porém tornar-se “irmão” implica em diferenciação da capacidade e habilidade política do

detento que costuma ser desenvolvida ao longo de seu tempo na prisão. Baseada em

Marques, nos coloca que, na prisão, local de disputas por objetivos públicos, a produção do

PCC é norteada por dúplice projeto: a paz entre os ladrões e a guerra contra o Estado. Para

execução deste projeto, o acaso e o improviso movidos pela vontade (disposição e apetite)

são pontos fundamentais nas estratégias seguidas pelos “irmãos”, o que contradiz a suposta

rigidez e inflexibilidade muitas vezes colocadas como características da disciplina Comando

(DIAS, 2011). Biondi (2009) salienta que as ações desenvolvidas pelos “irmãos” a partir de

sua vontade, só podem ser entendidas por meio da constituição de uma transcendência, de

um PCC como uma força superior. Assim, o Comando teria uma existência independente

aos seus membros, apesar desta ser alimentada pela atuação dos “irmãos”, que se

consideram responsáveis pelo Comando. Biondi (2009) percebe, por meio do PCC

transcendência, que o coletivo pode estar presente mesmo onde não estão seus membros,

11 Biondi efetuou sua pesquisa como visita de seu marido que se encontrava preso aguardando julgamento. 12 De acordo com MARQUES: “ter atitude”, “ser pedreira” “ser cabuloso”, “ser sujeito homem”. Seguir o comportamento esperado pelo mundo do crime, por meio do qual será avaliado.

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pois tudo se passa como se uma força não identificável e não localizável fosse responsável

pela tarefa específica de conduzir o modo de operação ou de exercício dos poderes que

circulam dentro do Comando, onde seus membros e seu território funcionam como meios e

não como fins, pois ao mesmo tempo em que são produzidos, produzem o PCC.

Autores como Feltran (2007, 2008, 2009, 2010, 2012), Hirata (2010) e Telles (2010)

demonstram que o PCC tem ampliado seu domínio nas periferias, aprofundado sua relação

com a população destes locais e que sua ideologia e normas têm sido reconhecidas e

legitimadas por parcela desta população.

Segundo Feltran (2010, 2012) o PCC tem influenciado de forma efetiva na redução de

homicídios no Estado de São Paulo, reduzindo drasticamente, principalmente, a morte de

jovens moradores destes espaços. Atuando, juntamente com o Estado, na gestão da vida da

população nas periferias urbanas.

4. O PCC no bairro pesquisado

Em pesquisa realizada para projeto de iniciação científica no período de agosto de 2013 a

maio de 2014 pude constatar que, de acordo com as informações de meus

interlocutores, a inserção do PCC no bairro se deu de forma gradativa, por meio

de pessoas do local que já pertenciam ao “mundo do crime” e que, nas prisões,

passaram a ser membros do Comando.

Com o surgimento e consolidação do PCC e com a disseminação de seus ideais dentro das

prisões, os moradores da quebrada que se encontravam presos passaram a ter acesso aos

seus ideais e, em que pese que num primeiro momento possam não ter aderido ao

Comando, de alguma forma passaram para seus visitantes ou “camaradas” quando estavam

nas ruas ou durante as visitas, notícias sobre o que acorria dentro das prisões. Assim, aos

poucos, a quebrada passou a conhecer o PCC e sua ideologia através de pessoas do bairro

com as quais mantinham vínculos e, não apenas, por meio dos meios de comunicação em

massa.

Biondi (2009) chama atenção para as relações dos presos nos Centros de Detenção

Provisória (CDPs), chamados por membros do PCC de “faculdades” por serem locais de

formação de novos membros e simpatizantes. Heterogêneos em sua composição, os CDPs

abrigam tanto presos que já estão cumprindo pena há muito tempo quanto aqueles que

estão aguardando julgamento de seu delito em reclusão. Biondi afirma que estas relações

são marcadas por processos de subjetivação que visam formar os novos membros deste

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universo como primo - aquele que corre lado a lado com os membros do PCC e apesar de

não serem batizados seguem sua disciplina, além de ter proceder e respeitar o código de

conduta que orienta o “mundo do crime” - ou como “irmão”, após este ser considerado como

de respeito e de ter ganho o reconhecimento pelos membros do Comando.

Aos poucos, parte dos moradores do bairro ligados ao “mundo do crime” passou a conviver

com a ideologia e se tornou membro do PCC, ocorrendo assim à inserção do Partido na

rotina do bairro.

5. A Transcendência

Como já mencionado, Biondi (2009) ao analisar a atuação do PCC nas prisões elaborou o

conceito de transcendência. Para a autora, a existência do PCC depende das manifestações

individuais de seus membros, porém simultaneamente, ativa processos de

desindividualização em seu interior, separando-se dessas manifestações, assim sua

existência é transferida para um plano transcendente, que a exime de laços territoriais; o

que explica porque o PCC pode estar presente mesmo onde não há “irmãos”. Para a autora,

o PCC, não se restringe à soma de seus membros e sua existência não está vinculada a

territórios específicos. Ele é construído continuamente e operado nas relações

estabelecidas, ao mesmo tempo em que produz relações, intensifica a sua própria

construção.

A existência do PCC no bairro, assim como na prisão, ao longo do tempo, passou a ser

produzida continuamente por “irmãos”, “primos” ou mesmo por moradores que não

pertencem ao “mundo do crime”.

Num episódio ocorrido em campo esta questão ficou muito patente. Em um churrasco no

bairro, encontrei Felipe e sua família. Felipe estava com seu irmão mais velho e com um

amigo de cerca de 20 anos, bastante falante, que se enturmou rapidamente com todos. Por

volta das 18h horas, a mãe de Felipe pediu que eu a acompanhasse até sua residência ao

lado do local onde ocorria o churrasco e ao chegarmos ao local relatou que havia flagrado o

amigo de Felipe furtando um celular e ao questioná-lo e pedir o celular furtado, ele devolveu

um celular dourado, porém o havia visto pegar um celular preto. Após ser pressionado o

amigo de Felipe devolveu também o aparelho celular preto, porém ela afirmou ter certeza

que havia outros aparelhos em poder do rapaz e que estava com receio das pessoas que

estavam no churrasco perceberem o que estava acontecendo e isso gerar confusão.

Informou que estava também bastante chateada, pois o rapaz só havia sido convidado por

estar com seus filhos. Após relatar o ocorrido, ela chamou o marido e explicou o que estava

ocorrendo e este pediu aos filhos que conversassem com o amigo e verificassem se ele

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estava com outros aparelhos. Felipe e seu irmão chamaram o amigo para rua e explicaram

que este havia sido convidado para o churrasco devido a consideração que a dona da casa

tinha por eles; que o amigo estava comendo, bebendo e sendo bem recebido por todos e

“pisou na bola”, então era melhor devolver os aparelhos que havia furtado e isso seria

resolvido sem problemas. O amigo disse que não havia pegado nada, que a mãe dos

garotos desconfiou dele, mas que ele não faria isso. Os jovens insistiram que entregasse os

aparelhos celulares, porém ele insistia em dizer que não havia pegado nada. Os jovens

falaram:

Tudo bem. Vamos ligar para os caras lá de baixo e você se resolve com eles, nós estamos tentando evitar isso, mas você sabe que se chamarmos os “irmãos” vai sujar para o seu lado, porque eles não vão aceitar sua atitude, você não “tá correndo pelo certo”13 e sabe disso. (Felipe, 20 anos) Sabe o que vai acontecer quando contarmos para eles que você foi bem recebido na casa da vizinha e que roubou lá dentro? Você sabe, não? (Júlio, 25 anos)

Ao ouvir os rapazes falarem de chamar os caras da rua de baixo, o amigo ficou incomodado

e começou a mexer nos bolsos da calça bastante larga que estava usando. Visivelmente

nervoso, deixou cair um pino de cocaína. Ainda tentou dizer que não tinha furtado nada e

Felipe fez menção de fazer uma ligação no celular. Ao perceber a intenção de Felipe, o

amigo, imediatamente, entregou mais dois celulares que estavam em seus bolsos. Os

rapazes disseram que não falariam nada para ele naquele momento, pois ele estava “muito

louco”, mas que conversariam depois. Mandaram o amigo embora e ele saiu pedindo

desculpas. Nota-se que a simples menção dos “caras lá de baixo” fez o amigo mudar de

ideia e entregar os celulares.

Isso confirmou minha hipótese de que apesar dos jovens não pertencerem ao “mundo do

crime”, conheciam os mecanismos para acionar os “irmão” e que o Comando é, realmente,

uma instância utilizada pelos moradores para resolver disputas locais. Mas também

confirmou que não há necessidade da presença de um membro para que o PCC funcione

como mediador de conflitos no bairro, pois neste momento, é a transcendência do PCC que

opera.

6. Felipe e a escolha do objeto de pesquisa

Felipe faz parte do grupo de jovens que, em 2011, despertou minha atenção

para a existência e atuação do PCC no bairro. Ouvir conversas esparsas entre Felipe

e outros jovens sobre a proibição de matar sem a realização de um “debate” e sobre

13 Não agir de acordo com o comportamento esperado pelo mundo do crime, por meio do qual será avaliado.

10

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“irmãos”, chamou minha atenção para o que ocorria no local. Em 2013, ao iniciar pesquisa

de iniciação científica sobre a inserção do PCC no bairro e suas relações com os

moradores, considerei interessante entrevistá-lo, pois nestas conversas notei que falava

com certo respeito e admiração do Partido e, embora não participe do “mundo do crime”, ele

e seus irmãos tinham em sua rede de amizades, o filho do casal que é dono da biqueira14

local, cujo pai é o disciplina do PCC no bairro. Na época, considerei que Felipe, sempre

comunicativo e de bom humor, poderia ser um canal de aproximação com este amigo, que é

bastante reservado e desconfiado ao falar com estranhos. Durante a entrevista, Felipe foi

bastante reticente ao falar do Comando, mas conforme podemos observar, considera que

devido a ação do PCC não ocorrem mais mortes como antes no bairro, pois os “irmãos”

colocam “ordem” no local:

Agora você não vê o pessoal matando, né meu? [...] Agora é tudo na

igualdade, quem não respeita vai responder tem que ter responsa. O

Quinze15 não deixa assim não, meu. É isso que mudou aqui, os “irmãos”

põe ordem. Sabe, do que to falando, né?

Apesar de ser bastante discreto ao falar sobre o Comando durante a entrevista,

dias depois, Felipe me presenteou com o livro Cobras e Lagartos do jornalista Josmar

Jozino e disse que o livro me ajudaria a compreender melhor a história do Comando.

Juntamente com outros jovens locais, Felipe foi fundamental para que eu definisse o PCC e

sua atuação nas periferias da Grande São Paulo como meu objeto de pesquisa de iniciação

científica. Após observar Felipe e demais jovens que não atuam no “mundo do crime” e a

forma com que se relacionam com os ideais do Comando, passei a considerar que

apreender estas relações e o impacto que geram na sociabilidade destes jovens pode

auxiliar no entendimento de como uma organização nascida em presídios paulistas passou

a ser, em alguns lugares e para parte da população, uma organização constituinte de

padrões sociais, políticos e de justiça. Este é objetivo de minha atual pesquisa para o

Trabalho de Conclusão de Curso na FESPSP,

7. Afinal, quem é Felipe?

Felipe é um jovem de 20 anos, filho de pais nordestinos que vieram “fazer a vida” em

São Paulo. O pai trabalha em uma empresa de segurança e a mãe realiza

trabalho informal. O casal possui quatro filhos, sendo três homens e uma

14 Local onde se comercializa drogas ilícitas. 15 Nome também utilizado para designar o PCC, faz referência ao “P”, 15ª letra do alfabeto.

11

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mulher. Felipe é o mais novo dos rapazes, sendo Bianca a caçula, com 17 anos.

Nenhum dos filhos do casal pertence ao “mundo do crime”, os mais velhos

possuem emprego formal e cursam faculdade. Felipe trabalha em empregos

informais como ajudante de caminhão, terminou o ensino médio e não pensa em

fazer faculdade. A caçula está cursando o ensino médio. Todos estudaram em

escola pública.

Em conversas informais a mãe de Felipe mencionou que ele sempre foi bastante

popular e que não se preocupa muito com o futuro. Segundo ela, o jovem só

terminou o ensino médio com bastante insistência, sendo reprovado diversas

vezes. Para a mãe, se Felipe não tivesse sido transferido para o “supletivo” 16,

teria abandonado os estudos ou ainda estaria sendo reprovado e ela sendo

chamada ao colégio para ouvir do diretor e dos diversos professores que seu

filho era muito inteligente, um líder nato, porém não se interessava em estudar.

Segundo ela, para o diretor devido sua liderança junto aos colegas, o

comportamento de Felipe prejudicava os demais, pois estes acabavam

reproduzindo sua atitude displicente. Ela conta que, em uma das reuniões de

pais, o diretor decidiu fazer uma fala com todos os pais e estudantes reunidos

antes de dividi-los por turmas, porém enquanto o diretor estava discursando no

palco localizado no pátio, os alunos não paravam de falar e ninguém ouvia o

que ele tinha a dizer, até que Felipe subiu ao palco junto com o diretor e disse:

“ai o cara tá falando, vamo escutar?” e que esta única frase foi o suficiente para

fazer o silêncio reinar no local. Em minha entrevista com Felipe, ao perguntar

sobre a qualidade da educação no bairro, este respondeu:

Oh, a escola é embaçada, tudo quebrado, não tem nada que interessa, né?

Você só vai porque é obrigado, os caras não sabem levar um papo, ver o

que a gente tem em mente. É só mais do mesmo... Nem os professores

queriam tá ali, nem ensina nada, vão ali enrolando. Eu repeti um montão de

vez... Terminei o colégio só porque fiz rapidinho, sabe um ano em seis

meses, senão tava lá até agora. (Felipe, 20 anos)

Felipe costuma se destacar no grupo de jovens do bairro pelo jeito brincalhão,

pelos funks que tenta compor e por ser bastante assediado pelas garotas. Seu

hobby é ouvir funk no volume máximo do aparelho de som, o que já causou

alguns problemas com os vizinhos que consideram as letras das músicas

16 Modalidade de ensino atualmente chamado de Educação de Jovens e Adultos que tem como público alvo jovens com 15 anos completos (Ensino Fundamental) e 18 anos completos (Ensino Médio), adultos e idosos, pessoas com deficiência, apenados e jovens em conflito com a lei, que não tiveram acesso ou continuidade de estudos na idade própria.

12

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inconvenientes. Felipe não liga para as reclamações ou para os apelos de sua

mãe para que ouça suas músicas de forma mais discreta. Nas horas vagas

quando não está ouvindo funk, está fumando narguilé, bebendo com os amigos

ou tentando compor suas próprias músicas que falam sobre a vida na quebrada,

“irmãos”, “novinhas”, drogas e grifes.

Não há muitas opções de atividade no bairro que possam interessar um jovem como Felipe.

O bairro não dispõe de nenhum equipamento público de lazer ou cultura. Seus moradores

necessitam buscar equipamentos nos bairros e cidades vizinhas. Não há cinema, teatro,

clube ou quaisquer locais públicos onde moradores, especialmente os jovens, possam se

reunir e participar de atividades esportivas, culturais ou de lazer. Nos finais de semana, as

ruas estão sempre cheias de jovens conversando em grupos, ouvindo funk em carros

equipados com potentes sistemas de som.

8. Juventude e Periferia

Segundo Léon (2005), os conceitos de adolescência e juventude são construções histórica,

social, cultural e relacional, que em diferentes épocas, processos históricos e contextos

sociais adquiriram denotações e significados diferentes. Para ele a conceituação de

juventude passa por um enquadramento histórico, uma vez que esta categoria é uma

construção que corresponde a condições sociais específicas produzidas pela emergência do

capitalismo. A noção de juventude é socialmente variável e se modifica de sociedade para

sociedade, na mesma sociedade ao longo do tempo e em suas divisões internas. Sendo a

juventude uma condição social, qualidades específicas se manifestam de diferentes

maneiras de acordo com as características históricas e sociais de cada indivíduo. Por isso

se faz necessário reconhecer a heterogeneidade juvenil a partir de diferentes realidades

cotidianas. Assim temos que conhecer tanto a realidade presente dos jovens quanto sua

condição de sujeitos em preparação para o futuro.

O processo de construção de identidades é um elemento característico do período da

juventude. Neste processo, além do jovem buscar o reconhecimento de si, observando e

reconhecendo suas próprias características, ele busca o reconhecimento de si naqueles que

lhe são significativos ou em quem percebam características que desejaria possuir e que

estejam na mesma etapa da vida (identificação geracional). Há ainda, o reconhecimento de

si num coletivo, em um grupo social que define e que determina compartilhar uma situação

comum de vida e convivência, que se refere, necessariamente, ao seu entorno, ao ambiente

e implica em modos de vida, práticas sociais e comportamentos coletivos. Importante

13

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destacar que esta identidade encerra valores e visões de mundo que guia esses

comportamentos (LÉON, 2005)

O reforço de estigmatizações e de estereótipos de segmentos sociais, como os jovens

moradores das periferias, pode dar ensejo a novas redes de sociabilidade e ao

aparecimento de relações de poder que marcam estes territórios. Quando se trata de

jovens, pensar em redes sociais e relações de poder é fundamental para que possamos

compreender seu modo de vida, suas escolhas e processos identificatórios. Para os jovens

que vivem em periferias marcadas pelo controle e violência do Estado, a dificuldade de

circulação por outros espaços pode fortalecer a visão de que seu bairro, sua quebrada

contém as possibilidades e os limites de sua existência e que estas são bastante escassas.

Feltran (2007, 2008. 2011) chama a atenção para o fato das transformações ocorridas nas

relações e no mercado de trabalho terem impactado profundamente os moradores das

periferias e em seus projetos de vida. A exigência de maior qualificação do operário

decorrente do toyotismo levou ao aumento do desemprego e forçou os trabalhadores a

buscar formas alternativas de trabalho. Felipe é um dos que atuam nestas formas

alternativas. Como auxiliar de caminhão, efetua a carga e descarga de produtos a serem

entregues aos clientes. Sua vida economicamente ativa é marcada por trabalho informal e

temporário. Na época da entrevista estava sem trabalhar, devido a grave acidente com o

caminhão em que trabalhava:

Trabalhei 3 meses numa fábrica de colchão, fui mandado embora, porque lá

eles contrata por esse tempo depois manda embora, mô embaçado, sabe?

Ai, comecei a fazer uns bico de entregador só que mô azar, o caminhão

teve um acidente comigo e com o motorista, que era o dono. Não sobrou

nada, PT (perda total) geral. Agora estou novamente em casa.

Recentemente, Felipe voltou a trabalhar com o mesmo vizinho, o dono do

caminhão acidentado que comprou outro veículo com o dinheiro do seguro.

Felipe, com sua dificuldade em encontrar emprego formal, é um dos muitos

jovens do bairro que aprenderam transitar numa zona cinzenta que se amplia e torna

incertas e indefinidas as diferenças entre o trabalho precário, o emprego temporário, saídas

de sobrevivência e atividades ilegais, clandestinas ou delituosas. Aprender a “sobreviver

na adversidade”, a buscar formas de sobrevivência, a caminhar entre as fronteiras que

separam o legal, o informal, define perfeitamente a vida deste jovem do bairro pesquisado

(TELLES E HIRATA, 2007, 2010). Sua rede de relações se restringe aos amigos e

conhecidos da quebrada.

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9. Felipe e Gilson – namoro com irmã e fim de uma amizade

Até pouco mais de dois anos, Felipe estava sempre acompanhado de seu

melhor amigo, Gilson, a quem considerava como irmão. Sua amizade com

Gilson começou na infância, quando este morava no bairro e permaneceu

mesmo depois do amigo mudar-se para um bairro distante. Quando Felipe não

ia passar o final de semana na casa do amigo, o amigo passava o final de

semana em sua casa. Eram bastante ligados e devido a esta amizade as

famílias se aproximaram e os pais também se tornaram amigos.

Assim, quando Gilson pediu aos pais de Felipe para namorar com Bianca, a filha

mais nova do casal, então com quinze anos, eles ponderaram que seria melhor

ela namorar com alguém próximo da família, do que com um desconhecido e

que Gilson era um rapaz trabalhador, que eles conheciam desde a infância.

Apesar de considerarem a filha nova para começar a namorar, permitiram o

relacionamento e colocaram algumas regras. Aparentemente, tudo transcorria

tranquilamente, até que Gilson contou a novidade para Felipe. Este, ao contrário

do que todos esperavam, foi radicalmente contrário ao namoro de sua irmã com

seu melhor amigo e exigiu que este conversasse com Bianca e com seus pais e

terminasse o relacionamento. Gilson se negou a fazê-lo, explicou que nutria um

sentimento verdadeiro por Bianca e que não via razão para esta atitude de

Felipe. A recusa de Gilson levou ao rompimento da amizade de infância.

Uma das condições impostas pelos pais de Felipe para o namoro de Bianca com

Gilson era que estes namorassem em casa. Desta forma, Gilson continuou

frequentando a casa de Felipe, agora não na condição de seu amigo, mas de

namorado de sua irmã e, tão logo este entrava na casa, Felipe passava a

chamá-lo de traíra e a provocá-lo de inúmeras formas. Seus pais e seus irmãos

conversaram com ele diversas vezes, pedindo que deixasse o casal em paz, que

ele sempre havia sido amigo do Gilson e que seu comportamento não fazia

sentido. O jovem sempre respondia que ele conhecia Gilson melhor do que

qualquer um, pois curtiam baladas juntos e que sabia que ele faria com Bianca o

que costumava fazer com outras garotas. Para Felipe, Gilson não valia nada,

pois traiu sua amizade, não merecendo qualquer consideração. Os pais de

Gilson ainda tentaram conversar com Felipe, lembrá-lo da amizade que os unia,

mas este continuou irredutível.

Os finais de semana da família passaram a ser conturbados. Quando Felipe se

deparava com Gilson em sua casa ou no bairro passava a agredi-lo

15

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verbalmente. Seu relacionamento com a irmã também sofreu abalos, ele só lhe

dirigia a palavra de forma agressiva, chegando a insultá-la em alguns

momentos. Por mais que seus pais conversassem, tentassem contemporizar a

situação, Felipe ficava cada dia mais agressivo com Bianca e Gilson, chegando

ao ponto de agredir fisicamente a irmã, o que ensejou uma briga com o pai e

sua saída de casa por dois dias. Em sua opinião só ele percebia que Gilson não

era de confiança, que não respeitaria sua irmã e que seus pais se

arrependeriam de ter permitido o namoro. Os pais mantiveram a decisão já

tomada e Felipe, manteve a postura agressiva, desferindo agressões verbais a

Gilson, a chamá-lo de traidor e talarico” 17, o que não se justificava, pois Bianca

era sua irmã e não sua namorada, conforme o pai um dia lhe chamou a atenção.

Porém Felipe, não desistia. Sua meta era acabar com o namoro da irmã e do ex-

melhor amigo.

A situação do namoro de sua irmã com Gilson não mudou, mas Felipe passou a

ficar cada vez mais distante de sua família e próximo dos jovens que atuam na

biqueira local. Sempre que encontrava com Gilson, indiretas e ofensas eram

lançadas. Passou a ser comum em minhas visitas ao bairro encontrar a mãe de

Felipe e esta narrar o problema que sua não aceitação ao namoro da irmã

estava causando na família e entre seus pais e os pais de Gilson, que temiam

que Felipe o agredisse. A fim de evitar mais complicações os pais passaram a

permitir que Bianca frequentasse a casa de Gilson nos finais de semana.

Acreditavam que se Felipe não o visse ficaria mais tranquilo e acabaria

aceitando a situação.

10. Chamada para debate

Num final de semana em que Gilson trouxe Bianca para casa, depois de ter

passado a tarde em sua residência, Felipe o estava esperando e informou que

como esta situação estava num impasse há quase dois anos, sem que seus pais

percebessem que Gilson era um aproveitador que faria Bianca sofrer e que a

trairia como sempre fez com as demais, ele havia procurado os “irmãos” e

relatado a traição de Gilson. Que em breve seria marcado o dia para o debate e

que esta situação seria definida de uma vez por todas, pois já que entre eles e

as famílias não havia consenso, o debate decidiria quem tinha razão e qual

seria a melhor solução para o caso e que Gilson se preparasse, pois se a

17 Aquele que cobiça ou conquista a mulher do outro.

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decisão fosse que deveria se afastar de Bianca, teria que cumpri-la, caso

contrário, as coisas poderiam ficar complicadas para ele. Gilson ouviu calado o

aviso de Felipe, deixou Bianca em casa e foi embora. Porém, ao chegar em sua

casa, relatou aos pais o ocorrido e estes, imediatamente, entraram em contato

com os pais de Felipe. Para eles, aquilo foi uma ameaça e temiam pelo destino

do filho, assim informaram ao casal de amigos que, caso Felipe não mudasse de

ideia, iriam à delegacia e fariam um boletim de ocorrência de ameaça. Foi

realizada reunião entre as famílias, com a presença de Felipe, que confirmou ter

pedido um debate aos “irmãos” do PCC para solucionar um problema que, em

sua opinião, estava em um impasse, precisando de uma visão externa e

imparcial para chegar a uma solução. O jovem mesmo com todos os argumentos

de seus pais e amigos não mudou de ideia e insistia em realizar o debate com a

presença de seus pais, dos pais do Gilson e de quem mais fosse preciso para

resolução do problema. Seus pais bastante nervosos disseram que isso era um

problema de família, que não conheciam nenhum “irmão” do PCC e que

pretendiam continuar não conhecendo, pois a ideia de Felipe era absurda.

Felipe saiu de casa e não apareceu por dois dias. Seus pais, temendo que

entrasse em contato com pessoas do “mundo do crime” e fizesse algo que

colocasse a vida de Gilson em risco, foram procurar os jovens da biqueira e

através deles, chegaram ao “irmão” do PCC com quem Felipe havia conversado

e solicitado o debate e esclarecerem o caso. Informaram que Gilson havia sido

o melhor amigo de Felipe, mas que não havia ocorrido qualquer traição ou

problema com o namoro, a não ser o fato de Felipe não aceitar o

relacionamento, o “irmão” relatou que havia sido informado por Felipe que

Gilson prejudicara Bianca e que estava “levando os pais da moça no papo”,

dissimulando enquanto prejudicava a filha do casal que sempre o acolhera.

Porém, diante do que dos esclarecimentos percebeu que não era nada disso,

que se tratava apenas de um capricho de Felipe, que se considerava certo e

queria o apoio do Partido para afastar sua irmã do ex-amigo. Ao final o “irmão”

disse que não haveria qualquer debate sobre o assunto e que conversaria

pessoalmente com Felipe para que este deixasse de implicar com o namoro da

irmã, uma vez que seus pais estavam de acordo com o relacionamento e Gilson

não havia feito nada que desabonasse sua conduta. O debate foi suspenso.

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11. Implicações da atitude de Felipe

Embora o debate não tenha se efetivado, a atitude de Felipe foi bastante

criticada por seus irmãos e amigos. Felipe que já ficava pouco em casa, passou

a se afastar ainda mais de sua família e de sua rede de amigos e a se

aproximar cada vez mais dos jovens que atuam no tráfico de drogas. Embora a

família não tenha conhecimento do teor da conversa que o “irmão” teve com

Felipe, pois este nunca comentou o ocorrido, Gilson voltou a frequentar a casa

da família e não ocorreram mais agressões verbais ou indiretas.

Sua mãe relata que após o primeiro contato, o “irmão” a procurou para saber se

a situação estava mais tranquila, se Felipe havia se acalmado. Ela, por sua vez,

informou que Felipe pouco tem ficado em casa, mas que deixou de implicar com

o namoro da irmã, que a casa volta a ter um clima normal, sem discussões e

sem brigas. O que ela não contou ao “irmão” é que Felipe e seus irmãos não

estão se falando após o episódio da chamada para o debate e que seus amigos,

inclusive os mais próximos, não o tem procurado. Mesmo diante desta situação,

ela diz que agradece ao “irmão” por não ter mais brigas dentro de sua casa,

apesar de ainda não saber que atitude tomará com Felipe que, num surto de

sinceridade, informou a ela e ao pai que tem feito uso de maconha.

A permanência de Felipe junto aos jovens da biqueira é algo que a preocupa. Já

solicitou que ele deixe de ficar no local, pois tem medo que algo lhe aconteça

caso ocorra uma batida policial, mas ele insiste em permanecer com os jovens e

diz: “colo lá com os caras, não tem nada demais”. Sua mãe chegou a desconfiar

que estivesse trabalhando na biqueira e, mais uma vez procurou o “irmão” para

saber se Felipe estava atuando no tráfico e, após uma negativa, pediu que o

membro do Comando a informasse caso venha a saber que ele passou a

integrar o grupo de jovens do tráfico local. Ultimamente, Felipe tem frequentado

menos a biqueira, coincidência ou não, após ser visto conversando com o

“irmão”.

A história de Felipe e as preocupações de sua família devido sua aproximação

com o tráfico ainda não terminaram. Seus pais, principalmente sua mãe, a cada

dia que passa mais se aproxima do “irmão”. Ele é a pessoa que socorre cada

vez que Felipe volta a ficar tempo demais na biqueira e a quem, segundo ela,

passou a respeitar, não apenas devido sua atitude perante o ocorrido, mas por

considerar que sua intervenção mostrou que o Comando de fato busca imprimir

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a paz no bairro e que o “irmão” agiu com justiça. Passou também a admirar a

paciência do “irmão” ao lidar com Felipe.

Um dia, conversando com Felipe, perguntei o que o fez mudar de ideia. A

resposta foi: “Nada, o maluco só me disse pra lembrar da igualdade. Deixa

correr, se pisar fora lá na frente, ai é outra história”. Eu somente observo e

acompanho o desenrolar desta história.

12. Considerações Finais

Feltran (2010) ao tratar da expansão do “mundo do crime” nas periferias salienta que

o que está em jogo nesta expansão é que este mundo, antes considerado por todos como o

oposto do “trabalhador”, aos poucos passou a concorrer como ator e instância normativa

nas periferias, a ocupar terrenos mais amplos e a solicitar demarcações mais claras de

fronteiras da legitimidade. Para o autor, essa ampliação gera formas de identificação com o

“crime”, sobretudo entre parcelas minoritárias das camadas mais jovens, uma vez que esta

identificação não implica vinculação a atividades ilegais ou ilícitas, mas se baseiam em

modos habituais de se relacionar com essa nova instância de autoridade efetivamente

presente nos territórios. Para o autor a existência do “mundo do crime” nas periferias é de

difícil compreensão; uma vez que ela desorganiza categorias anteriormente pensadas para

descrever as ações morais e as organizações coletivas nesses territórios.

Creio que a história de Felipe, sua irmã e Gilson demonstra como a existência do “mundo do

crime”, aqui representada pelo PCC, tem alterado a configuração estas categorias, ao ponto

da autoridade do PCC passar a tomar o lugar acima da autoridade dos pais, pois Felipe, não

atendeu aos diversos pedidos de seus genitores e considerou que um problema em família

que não havia chegado ao resultado por ele esperado, poderia ser melhor solucionado com

a intervenção do Comando. De certa forma, os pais também passaram parte de sua

autoridade e responsabilidade sobre o filho ao “irmão” do PCC com quem passaram a ter

contatos constantes e a quem passou a caber o papel de conversar com o jovem sempre

que este encontra-se em situação que desperta a preocupação dos pais, principalmente em

relação a sua entrada no tráfico de drogas. Assim, percebe-se o quanto o PCC tem se

inserido nas relações cotidianas do bairro, passando inclusive, a intermediar, as próprias

relações familiares.

A admiração de Felipe pelos ideais do Comando terminou, até o presente momento, por

fortalecer o papel de mediador de conflitos da organização no bairro, pois sua história foi

amplamente difundida no local e aumentou a rede de contatos do PCC, uma vez que seus

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pais, que nunca haviam tido contato com um membro do Partido, passaram a se relacionar

diretamente com o “irmão”.

Como a pesquisa ainda encontra-se inconclusa, a presente situação pode sofrer alteração,

no entanto, seja qual for o desenrolar da história, as redes de relações tanto de Felipe

quanto se sua família foram alteradas e o Comando saiu fortalecido desta situação, pois

embora não tenha sido realizado o debate proposto por Felipe, definitivamente, a situação

de conflito entre o jovem, o namorado de sua irmã e seus pais, foi arrefecida por intermédio

do PCC.

Nota-se que o ideal da “paz entre os ladrões”, se diversificou, passando a ser visto como a

paz na quebrada e que o princípio de “igualdade” do Comando é reconhecido por Felipe,

sendo o fator utilizado pelo “irmão” para convencê-lo a desistir do conflito e alterar sua forma

de proceder diante do relacionamento de sua irmã e de Gilson. Se os pais de Felipe, até a

ocorrência desta tensão não travavam relações com membros do Comando, a partir deste

episódio não apenas passaram a se relacionar com seus membros, mas também a seu

modo, quando relatam o ocorrido, passaram a disseminar seus o ideais, pois de fato

acreditam que, neste caso, agindo com justiça, o PCC trouxe de volta a paz ao ambiente

doméstico e evitou que algo de maior gravidade viesse a acontecer.

Verifica-se que os marcos discursivos, a autoridade e os ideais do Comando podem se

legitimar socialmente entre os jovens das periferias, mesmo entre aqueles que não praticam

atos ilícitos, principalmente, porque nestes espaços o PCC, mesmo que de modo

transcendente, faz parte de seu cenário social e está presente em seu dia a dia, na igreja,

no “fluxo’18, no samba, no futebol de várzea, no tráfico de droga local e nos debates de

mediações de conflito, seja entre membros do “mundo do crime” seja entre os moradores

locais.

13. Referências Bibliográficas

ABRAMO, H.W, BRANCO, P.P.M (orgs.) Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo, Fundação Perseu Abramo/Instituto Cidadania, 2005, 448 pp. AGAMBEN, G. Homo Sacer: O poder saberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo, Editora UFMG, Belo Horizonte, 2002, pp.79-125 BIONDI, K. Tecendo Tramas do Significado: As Facções Prisionais Enquanto Organizações Fundantes de Padrões Sociais. In Antropologia e direitos humanos 4 /

18 Reunião de grande número de jovens em ruas da periferia, normalmente embalada ao som do funk.

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