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Fundamentos Da Liberdade HAYEK

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  • OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

    Friedrich A. Hayek

    OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

    Superviso e introduo de Henry Maksoud. Traduo de Anna Maria Capovilla e Jos talo Stelle.

    VISO - 1983 -

  • Ttulo do original: The Constitution of Liberty Traduzido a partir da First Gateway Edition, 1972

    Este livro ou parte dele no pode ser reproduzido por qualquer meio sem

    autorizao escrita do Editor.

    Copyright 1960 by the University of Chicago. Direitos para a lingua portuguesa, para esta edio, adquiridos pela Editora Viso Ltda:, que se reserva

    os direitos exclusivos desta traduo.

    Editora Viso Ltda. Rua Afonso Celso, 243 04119- So Paulo, SP

    Brasil

    Superviso e Introduo de Henry Maksoud. Traduo de An,na Maria Capovla e Jos

    ta/o Stelle. Veooo preliminar: Cannen Ldia Richter Ribeiro

    Mouro, Denis Fontes de Souza Pinto, Denise Vreuls, Jos VICerlte da Silva Les.YJ.

    Ficha catalogrfica preparada pelo Setor de Documentao da Editora Viso:

    Hayek, Friedrich August von, 1899 -H417f Os fundamentos da liberdade; introduo

    de Henry Maksoud; traduo de Anna Maria Capovilla e Jos talo Stelle. So Paulo, Viso, 1983.

    p.

    Ttulo original: The constitution of liberty.

    I. Poltica 2. Liberdade I. Ttulo II. Srie

    CDD- 323.44

    Impresso no Brasil 1983

    OS FUNDAMENTOS DA LIBERDADE

    "Nosso estudo no investiga o que per-feito, pois bem sabemos que a perfeio no se encontra entre os homens; mas busca a forma de organizao humana que contenha o menor nmero de emba-raos, ou os mais perdoveis."

    ALGERNON SIDNEY

    Discourses concerning Government (Londres, 1698), pgina 142, Works (nova edio: Londres, 1772, pgina 151).

  • civilizao descpnhecida que se desenvolve

    nos Estados Unidos da Amrica.

    SUMRIO Uma Introduo s Obras de F. A. Hayek XIII

    Prefcio Edio Brasileira XXIII

    Prefcio Edio Americana XXV

    Introduo da Edio Original XXXI

    PARTE I- O VALOR DA LIBERDADE

    Captulo I - Liberdade e Liberdades 3 Capitulo II - Os Poderes Criativos de uma Civilizao Livre 19 Capitulo III - O Sentido Comum do Progresso 38 Capitulo IV- Liberdade, Razo e Tradio 54 Captulo V- Responsabilidade e Liberdade 76 Captulo VI- Igualdade, Valor e Mrito 92 Captulo VII - O Governo da Maioria 111 Captulo VIII- O Assalariado e o Homem Independente 129

    PARTE II - A LIBERDADE E A LEI

    Captulo IX - A Coero e o Estado Capitulo X- Lei, Ordens e Ordem Capitulo XI- As Origens do Estado de Direito

    145 162 180

    Captulo XII - A Contribui~o Americana: o Constitucionalismo 205 Capitulo XIII - O Liberalismo e a Burocracia: o Rechtsstaat 230

  • Capitulo XIV- As Salvaguardas da Liberdade Individual Capitulo XV- A Poltica Econmica e o Estado de Direito Capitulo XVI - O Declnio do Direito

    PARTE III- A LIBERDADE NO ESTADO PREVIDENCIRIO

    247 267 282

    Capitulo XVII - O Declnio do Socialismo e a Ascenso do 307 Estado Previdencirio

    Capitulo XVIII - Sindicatos Trabalhistas e Emprego Capitulo XIX - A Previdncia Social Capitulo XX - Taxao e Redistribuio Capitulo XXI - A Estrutura Monetria Capitulo XXII - Habitao e Planejamento Urbano Capitulo XXIII - A Agricultura e os Recursos Naturais Capitulo XXIV- Educao e Pesquisa

    POSFCIO: Por Que No Sou Um Conservador ndice de Autores Citados ndice Analtico ndice de Assuntos

    323 345 371 393 410 428 446

    466 487 499 509

    Uma Introduo s Obras de F. A. Hayek

    HENRY MAKSOUD

    Este livro uma daquelas obras notveis que se pode ler comean-do da primeira pgina ou que pode ser compulsada como se faz com um bom dicionrio ou com a prpria Bblia, abrindo-se para l-la em qual-quer parte. O ttulo do original em ingls, "The Constitution of Li-berty", poderia ser literalmente traduzido para o portugus como 'A Constituio da Liberdade' ou ento como 'Os Fundamentos da Liber-dade'. Ao tratar dessa questo com o professor Hayek, recebi dele completa liberdade para escolher o que julgasse melhor pra o caso, le-vando em conta, inClusive, futuras verses de outras obras suas. , pois, de minha inteira responsabilidade a deciso quanto ao ttulo 'Os Fundamentos da Liberdade' para esta edio brasileira. Alis, a edio em espanhol tambm usa a expresso 'Fundamentos' em lugar de 'Constituio' e o prprio Hayek confessa que gostaria de ter podido dar o ttulo "The Constitution of Liberty" ao seu livro mais recente, ''Law, Legislation and Liberty''. Essa deciso, portnto, preserva a pa-lavra 'constituio' para eventual utilizao futura na verso brasileira desse seu outro livro, como gostaria de ter feito o autor no original em ingls. Ademais, a expresso 'constitution' do original em ingls refere-se, nesta obra, essencialmente a 'aspectos caractersticos', 'proprieda-des', 'bases' ou 'fundamentos' da liberdade e no propriamente a 'nor-mas de organizao de um sistema de governo', embora o livro trate amplamente tambm do tema 'Constituio' e 'Constitucionalismo'. J no terceiro volume ("The Politicai Order ofa Free People") do "Law, Legislation and Liberty", Hayek trata do novo sistema de governo que denominou 'Demarquia' e dedica um captulo ao tema "A Model Constitution", onde expe os princpios bsicos da constituio desse novo sistema de governo.

    Friedrich August Hayek nasceu em Viena no dia 8 de maio de 1899 numa famlia de cientistas e professores acadmicos. No incio de sua vida estudantil universitria, esteve indeciso entre seguir a carreira de economista ou a de psiclogo. Escolheu a economi~ e seu trabalho nes-se campo notvel, tendo recebido em 1974 o Prmio Nobel de Econo-mia; prmio que alis h muito merecia - e, conforme insistem muitos analistas, merecia ter recebido sem compartilh-lo com Gunnar Myrdal, cuja)inha de pensamento difere quase diametralmente da c;le Hayek. Hayek poderia ter-se tornado um psiclogo de igual destaque: embora se proclamasse um simples amador no assunto, publicou em

  • XIV Os Fundamentos da Liberdade

    1952 um livr? sob,re a percepo sensorial ("The Sensory Order") que passou a. ser u~clmdo e?tr~ as obras de maior relevo da Psicologia.

    Quando amda mUito JOVem, em Viena, foi socialista,como era da moda: "No propriamente um socialista extremado mas um socialista !~bian?, algo assim como os socialistas americanos, 'que se denominam h.berais n?s Estados Unidos atualmente. Foi com os trabalhos de Lud-

    wig von Mises que, por volta de 1922, vi como estava no caminho erra-do;. m~ convenci de quo falaciosos e equivocados eram os caminhos do

    ~o

  • XVI Os Fundamentos .da Liberdade

    presente livro foi elaborado nessa fase. Ele permaneceu em C!ticago at 1962, quando passou para a quarta fase de sua carreira, voltando aos pases de lngua alem. De 1962 a 1969, ocupou uma ctedra em Freiburg-im-Breisgau, a base acadmica do professor Eucken e seus se-guidores 'neoliberais' que, mais do que nenhuma outra, na Alemanha, condizia com sua posio. A partir de 1969 foi professor na Universida-de de Salzburg, retornando em 1977 a Freiburg, onde ainda reside e Professor Emrito. De acordo com o professor Hayek, a Universidade de Freiburg a nica universidade alem que sempre preservou a tradi-o liberal, mesmo durante o perodo nazista. L ele est agora termi-nando sua mais recente obra, "The Fatal Conceit", que tambm cons-tar de trs volumes, e sem dvida atravessa uma das mais criativas fa-ses de sua longa carreira, aos quase 84 anos de idade. O "Fatal Conceit" dever ser uma sntese de todo o seu pensamento poltico-filo-sfico, culminando com um verdadeiro desafio para debate aos 'socia-listas de todos os partidos'.

    O trabalho acadmico de Hayek (com exceo de sua contribuio para a Psicologia) divide-se em trs partes: a primeira, teoria econmi-ca pura; a segunda, problemas de economia poltica; a terceira, filoso-fia poltica e teoria do direito.

    Suas primeiras obras sobre teoria econmica foram "Monetary Theory and the Trade Cycle", 'A Teoria Monetria e o Ciclo do Co-mrcio' (publicada em alemo em 1929 e em ingls em 1933) e "Prices and Production", 'Preos e Produo', de 1931. Na primeira, ele. apli-cou os estudos do sistema monetrio, desenvolvidos com sucesso em Viena, principalmente por Mises, ao fenmeno das flutuaes econ-micas; e na segunda tentou aplicar ao mesmo fenmeno os conhecidos conceitos austracos do mtodo indireto e das variaes no perodo da produo. ..

    Destas duas obras, a "Monetary Theory" foi provavelmente a de maior sucesso, embora nenhuma das duas obtivesse sucesso pleno, o que compreensvel considerando-se que foram escritas antes da gran~ de exploso da disputa acadmica sobre o ciclo econmico e o proble-ma do desemprego na dcada de 30. O livro "Prices and Production" trazia as marcas da condensao inevitvel em funo das palestras que lhe serviram de base, o que permitiu aos crticos apontar algumas falhas em sua exposio: e naturalmente suas idias foram imediatamente sub-mersas pela onda do keynesianismo.

    Depois de outros trabalhos posteriores j fundamentados na con-ceituao austraca mas com algumas modificaes, Hayek publicou, em 1941, um estudo que merece lugar entre os melhores sobre teoria econmica, que foi "The Pure Theory of Capital", 'A Teoria Pura do Capital'. Trata-se de uma obra-prima de profundidade e amplitude que, embora ainda elogiada pelos especialistas em teoria do capital,

    Uma lnlrodullo s Obras de F. A. Hayek XVII

    nunca conseguiu produzir o impacto pleno a que fazia jus. E~ 1941, e durante as duas dcadas seguintes, Keynes (aps haver publicado em 1936 a sa ''The General Theory of Employment, .lnt~re~t and Money", 'A Teoria Geral do Emprego, d~ ~~ro e do Dmheuo ) con-quistava o mundo acadmico, e quaisquer Ideias de outra fonte passa-ram a atrair pouca ateno.

    John Maynard Keynes morreu em 1946 com pouco mai~ de 60 ano~ de idade. Sua influncia vem dos anos 30, porm pode-se dizer que f?t aps sua morte que o keynesianismo adquiriu mais fora - quando, J defunto, nada mais podia o prprio Keynes fazer para. contr?lar seus discpulos. As idias de Keynes passa~am a abr~nge~ m~uto mais que os aspectos especficos de sua obra tcn~ca e ~ua mfluenc1a trans~e~deu a rea econmica. Nas dcadas postenores a sua morte, seus discipulos converteram em keynesianos quase todos aqueles que de m~a forma ou de outra lidavam com a economia. O pensamento keynes1ano tomou conta dos livros de economia, da imprensa, dos especialista~ asses~ores dos governos, dos servidores pblicos, dos polt~co~, dos .tnbutanstas, enfim de todos aqueles que de forma direta ou mdireta tmham algo a ver ou podiam influenciar a administrao pblica, principahnent7 e~ seus aspectos econmicos. Quem analisa hoje criticamente todo o sigm-ficado da influncia keynesiana pode chegar conclus_o ~e que Lo~d Keynes - se vivo estivesse e se tivesse aderido ao keynesmmsmo - sena hoje o sumo pontfice do inflacionismo ..

    Hayek foi seu contemporneo e amigo pe~soal, em~~ra desde os anos 30 tenha sido um dos nicos e talvez o ma1s forte cnuco dos con-ceitos de Keynes: sempre disse com todas as letras que a generaliza~o da teoria de Keynes somente levaria inflao desenfreada e ao prpno desemprego. A influncia do keynesianismo foi, entretanto, to. pene-trante agressiva que a economia keynesiana se converteu na l~nguagem comum -num verdadeiro 'sentido comum': de todas as anlises de polticas econmicas, de modo que toda voz dis~ordante p~ss?u a s~r punida no meio intelectual, pelo menos com o boicote do sdenc~o. Arti-go recente, aparecido em uma publicao ingl~sa, assim se refe_nu a Ha-yek e ao keynesianismo: "Muitos d?s mais Impetuosos se~mdores de Keynes cumularam Hayek com impiedosos ataque~ p~ssoa1s,_ a ~onto de caracteriz-lo nos anos 40 e 50 (quando o keynesiamsmo atmgm seu clmax) como um pria intelectual. Sua reabilitao comeou nos anos 60 e foi fortemente acelerada pela inflao do inicio dos anos 70, a qual deixou toda uma gerao desiludida com o keynesianismo".

    Hayek sempre destacou que o legado da teoria keynesiana -o diag-nstico equivocado do desemprego, o temor em r~la.o poul?ana e a injustificada f na interveno governamen:a~ - mflum n~gatlvamente nas idias bsicas dos elaboradores de politicas econm1cas durante mais de uma gerao. Entretanto, Hayek tambm destacou em seu tra-

  • XVIII Os Fundamentos da Liberdade

    balho que muitos dos exageros e defeitos fatdicos do keynesianismo se devem mais ao dos discpulos de Lord Keynes posteriormente ao seu falecimento. No seu ensaio intitulado "The Campaign Against Key-nesian lnflation", publicado no captulo 13 de seu livro "New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas" (Lon-dres, 1978), F. A. Hayek escreveu as seguintes coisas: "A principal cau-sa de nossos atuais problemas monetrios , certamente, a sano de autoridade cientfica dada por Lord Keynes e seus discpulos velha su-perstio de que aumentando o agregado dos gastos monetrios se po-der assegurar a prosperidade duradoura e o pleno emprego. uma su-perstio contra a qual os economistas antes de Keynes lutaram com al-gum sucesso durante pelo menos dois sculos ... Foi John Maynard Keynes, um homem de grande intelecto porm de limitados conheci-mentos sobre a teoria econmica, quem afinal conseguiu reabilitar ave-lha manivela enrustida com a qual ele abertamente simpatizava ... De urna certa forma, porm, algo injusto culpar demais Lord Keynes por tudo que decorreu aps sua morte. Estou seguro de que ele seria - no obstante tudo o que disse anteriormente - um lder na luta contra a in-flao ... Espero que algum, algum dia, escreva a histria do inflacio-nismo de John Law a John Keynes. Essa histria h de mostrar como a aceitao sem crtica da crena de que a simples relao entre a deman-da agregada e o emprego causou com tanta freqncia, nos ltimos 150 anos, tanto desperdcio de esforo intelectual engenhoso".

    Durante o mesmo perodo de atuao na rea da teoria econmica, Hayek preocupou-!>;; tambm com problemas de economia poltica, em-bora evidentemente sua obra terica estivesse sempre relacionada com poltica. Esse contnuo entrelaamento interdisciplinar , alis, uma das caractersticas mais relevantes de toda a obra de Hayek. Ele produziu poucas obras de maior flego no campo da economia poltica, mas sua contribuio corno editor, para o livro "Cpllectivist Economic Plan-ning", 'Planejamento Econmico Coletivista', de 1935, foi notvel. Esta obra desenvolveu a demonstrao pioneira de Mises do problema do clculo, com o qual se defronta toda economia planificada, que ne-nhum planejador oficial ou economista terico jamais resolveu. "Mo-netary Nationalisrn and lnternational Stability", 'Nacionalismo Mone-trio e Estabilidade Internacional' (1937), tambm se revelou uma ad-vertncia contra as graves conseqncias do rompimento da ordem mo-netria internacional que comeou em 1931.

    O terceiro grupo de trabalhos, referente filosofia poltica, se ini-cia com o ensaio "Scientism and the Study of Society", 'Cientismo e o Estudo da Sociedade' (publicado em 1942-44, na Revista Econmica, posteriormente publicado, em 1955, em "The Counter Revolution of Science", 'A Contra-revoluo da Cincia'), prosseguindo com "The Road to Serfdom" (1944) ou 'O Caminho da Servido', tambm dispo-

    Uma Introduo s Obras de F. A. Hayek XIX

    nvel em portugus, "Individualism and Economic Order" . 'Individua-lismo e Ordem Econmica' (1948), "The Constitution of Liberty", 'Os Fundamentos da Liberdade' (1960), alm de diversas outras obras sub-sidirias, para culminar com os trs volumes de "Law, Legislation and Liberty", 'Direito, Legislao e Liberdade' (Volume I, 1973, Volume II, 1976, e Volume III, 1979).

    No mesmo perodo, Hayek editou e contribuiu para os famosos ensaios (inspirados em trabalhos apresentados numa reuni da 'Socie-dade Mont Pelerin', que ele criou com um grupo de filsofos polticos em 1947) reunidos no livro "Capitalism and the Historians", 'Capita-lismo e os Historiadores' (1954). Esses ensaios refutam pacientemente os erros dos romancistas, jornalistas e historiadores preconceituados que propagaram a idia de que a primeira fase do capitalismo reduziu o trabalhador misr.ia. O fato de essa idia ainda no ter sido superada mostra quo poderoso pode tornar-se um mito na mente do pblico.

    'Cientismo e o Estudo da Sociedade' constitui uma anlise soberba dos erros decorrentes da tentativa de aplicar os conceitos e mtodos das cincias naturais s cincias sociais. 'O Caminho da Servido' o famo-so ensaio que adverte o mundo de que o planejamento centralizado da economia inevitavelmente levar ao fim da sociedade livre, que foi a maior realizao social da Europa e principalmente da humanidade. Embora uma publicao destinada ao leitor em geral, trata-se, no en-tanto, de obra acadmica na verdadeira acepo, como destacaram cer-tos especialistas que com ela no concordaram, como, por exemplo, o professor Joseph Schumpeter. Num certo sentido, o mundo ocidental, ao qual se destinava, passou por cima de suas advertncias. Ela previa que o resultado especfico do planejamento centralizado da economia levaria escravido e, se o mundo ocidental se obstinasse na adoo deste tipo de planejamento, to caro aos 'intelectuais' da poca em que Hayek escrevia, quase certamente agora teramos chegado ao fim da. es-trada. Em lugar de tomar abertamente o caminho da servido, adota-mos o caminho keynesiano da inflao, da libertinagem governamental e da interveno desordenada do governo no mercado; e isto nos leva para a servido que Hayek previu, quase to certamente quanto o pla-nejamento centralizado, embora, quem sabe, mais lentamente. Na rea-lidade, como a interveno desordenada do governo s poder levar ao caos, ela far com que o tipo original socialista de planejamento centra-lizado passe a ser reivindicado, conduzindo-nos portanto servido pe-lo caminho original de Hayek, a no ser que possa este tipo ou qualquer outro tipo de planejamento estatal ser impedido por uma reeducao do pblico e dos polticos.

    Hayek produziu at agora cerca de 200 obras importantes. Um de seus ltimos trabalhos de grande impacto inovador foi o "Denationilli-sation of Money", 'Desestatizao do dinheiro', 1976~ 78, ensaio que

  • XX Os Fundamentos da Liberdade

    trata do problema da estatiza,o do dinheiro e sua repercusso nos campos poltico e econmico. -Para dar uma idia de sua importncia, basta reproduzir os seguintes aspectos de um sumrio de concluses desse trabalho: -

    1. O monoplio governamental do dinheiro deve ser abolido para sustar os ataques recorrentes de inflao aguda e de deflao que se acentuaram durante os ltimos 60 anos.

    2. Essa abolio tambm a cura para a mais enraizada molstia, atribuda ao 'capitalismo', das ondas recorrentes de depresso e desemprego.

    3. O monoplio do dinheiro liberou o governo da necessidade de manter seus gastos abaixo de suas receitas, e em conseqncia precipi-tou o aumento espetacular dos gastos governamentais observado nos ltimos 30 anos.

    4. A abolio do monoplio estatal do dinheiro tornaria cada vez mais impossvel aos governos impedir o movimento internacional das pessoas, do dinheiro e do capital, movimento esse que constitui uma salvaguarda da capacidade de os dissidentes escaparem opresso.

    5. Os quatro defeitos- inflao, instabilidade, gastos governamen-tais sem nenhuma disciplina e nacionalismo econmico - possuem uma origem comum mas tambm possuem uma cura em comum: a 'desesta-tizao do dinheiro'.

    6. O dinheiro no precisa ser uma moeda legal 'criada' pelo gover-no: como a lei, a linguagem e a moral, pode emergir espontaneamente. Um tal dinheiro 'privado' j foi muitas vezes preferido em relao ao dinheiro governamen~al, mas o governo sempre tratou de suprimi-lo.

    7. Enquanto o dinheiro for gerido pelo governo, um padro ouro, a despeito de suas imperfeies, o nico sistema seguro; mas sempre me-lhor retirar o dinheiro completamente fora do controle governamental.

    8. A proposta da desestatizao do dinheiro no uma questo de tecnicidade financeira de secundria importncia; trata-se de uma re-forma- crucial que poder decidir sobre o destino da civilizao livre.

    As obras de Hayek, principalmente as que se referem filosofia poltica, constituem essencialmente um s bloco de grande coerncia conceituai. Elas apresentam, de forma honesta, bem temperada, pene-trante e abrangente, quatro propostas bsicas.

    Em primeiro lugar, que as instituies que constituem a base da so-ciedade brotam da ao humana, mas no dos planos ou da ao deli-berada dos homens; e portanto as tentativas de planejamento ou 'orga-nizao' da sociedade so fatais para seu sucesso.

    Em segundo lugar, que numa sociedade livre a lei fundamental-mente natural, no fabricada; de modo que, normalmente, ela no constitui a projeo da simples vontade dos governantes, sejam eles reis ou maiorias democrticas. A lei uma norma geral de conduta, igual

    Uma Introduo s Obras de F. A. Hayek XXI

    para todos e aplicvel a nmero desconhecido de casos futuros, abstra-dos, portanto, de quaisquer circunstncias especficas de tempo e de lu-gar e referindo-se apenas a condies que possam ocorrer em qualquer lugar ou a qualquer tempo.

    Em terceiro lugar, que o Estado de Direito no somente constitui o primeiro e mais importante princpio da sociedadelivre, mas tambm depende das duas condies acima citadas. O Estado de Direito no s um 'estado de legalidade', mas, muito mais que isso, pressupe o princpio da liberdade individual e exige que a lei possua esses atributos de norma geral, igual para todos, abstrata e prospectiva.

    Em quarto lugar, que o Estado de Direito exige que os homens se-jam tratados com igualdade, mas o Estado de Direito, alm de no exi-gir que os homens sejam igualados, tambm ser minado por qualquer tentativa neste sentido.

    Poucos homens, se que h algum, contriburam tanto qu_anto Hayek para as cincias relacionadas com a vida do homem em.socieda-de. Seguramente nenhum, neste sculo, colocou de forma to f1rme, ca-tegrica e convincente a filosofia da liberdade do homem, da liberdade do homem como indivduo, em contraposio filosofia da liberdade coletiva em que o indivduo mero adesista a despeito da fachada hu-manstica e democrtica da filosofia coletivista.

    So Paulo, fevereiro de 1983

    HENRY MAKSOUD

  • Prefcio Edio Americana

    O objetivo desta obra acha-se explicado na Introduo, e meus agradecimentos esto registrados nos pargrafos que precedem as No-tas. Tudo que me resta aqui fazer uma advertncia e uma ressalva.

    Este livro no trata essencialmente do que a cincia nos ensina. Embora eu no pudesse escrev-lo se no tivesse dedicado a maior parte de minha vida ao estudo da economia e, mais recentemente, no me ti-vesse esforado para me familiarizar com as concluses de vrias outras cincias sociais, no trato aqui exclusivamente de fatos, nem me limito a questes de causa e efeito. Meu objetivo retratar um ideal, mostrar como possvel realiz-lo e explicar o que sua realizao significaria na prtica. Para tanto, a discusso cientfica ,um meio, no um. fim. Acredito ter utilizado honestamente o meu conhecimento do mundo em que vivemos. Ao leitor cabe decidir se deseja aceitar os valores a servio dos quais empreguei esse conhecimento.

    A ressalva diz respeito ao resultado do meu trabalho, que decidi submeter ao leitor. inevitvel, talvez, que, quanto mais ~mbicios o trabalho, mais inadequada seja sua execuo. Tratando-se de um as-sunto to amplo como o deste livro, adequar a qualidade da obra ca-pacidade do autor una tarefa que nunca terminar enquanto ele pu-der usar suas faculdades mentais. Logo, sem dvida, chegarei conclu-so de que deveria ter dito certas coisas de modo mais apropriado, que cometi erros que eu mesmo poderia ter corrigido se tivesse dedicado mais tempo a este trabalho. O respeito pelo leitor certamente exige que o autor apresente um produto .razoavelmente acabado. Mas isto no quer dizer que ele s. deva faz-lo quando no tiver mais nenhuma espe-rana de melhor-lo. Pelo menos quando se trate de problemas seme-lhantes queles que venham sendo intensamente estudados por muitas outras pessoas, poderia at estar exagerando sua prpria importncia se retardasse a publicao at o momento em que tivesse {;ertez de no poder aprimorar mais sua obr.a. Se algum conseguiu - espero que, seja o meu caso - levar a anlise um passo adiante, provavelmente seu tra~ balho posterior ter retornos cada vez menores. Outros estaro .. talvez mais bem preparados para colocar a prxima fileira de tijolos do edif-

  • XXVI Os Fundamentos da Liberdade

    cio para cuja construo estou tentando contribuir. Posso dizer apenas que me esforcei at concluir que no saberia apresentar a tese principal deste livro de maneira mais sinttica.

    Talvez o leitor deva saber tambm que, embora eu esteja escreven-do nos Estados Unidos, onde resido h quase dez anos, no escrevo co-mo um americano. Minha formao intelectual se deu na minha juven-tude, na ustria, onde nasci, e na minha maturidade, durante as duas dcadas em que vivi na Gr-Bretanha, pas do qual me tornei e conti-nuo sendo cidado. Talvez o conhecimento desses fatos sobre minha pessoa ajude o leitor, pois, em grande parte, o livro produto dessa formao. AGRADECIMENTOS E NOTAS: A maior parte do que procurei dizer neste livro j se disse de uma maneira que eu no posso melhorar' em-bora de forma fragmentada, ou em obras que o leitor moderno talvez no conhea; por isto, pareceu-me desejvel transformar as notas deste livro numa espcie de antologia do pensamento liberal individualista. As citaes tm o objetivo de mostrar que muitas idias que atualmente podem parecer estranhas ou pouco familiares j constituram a herana comum de nossa civilizao, mas tambm que, embora estivssemos aprimorando esta tradio, ainda era preciso unificar tais idias num pensamento coerente que pudesse ser diretamente aplicado nossa po-ca. Deixei que as notas se alongassem bastante, a fim de mostrar os ele-mentos com os quais tentei construir um novo edifcio. Contudo, no constituem uma bibliografia completa sobre o assunto. Uma til e rele-vante bibliografia pode ser encontrada em The Free Man's Library, de H. Hazlitt (Nova Iorque, 1956).

    Por outro lado, estas notas esto longe de ser um agradecimento adequado para exprimir minha dvida de gratido. O processo de for-mao das idias expressas neste livro necessariamente antecedeu a de-ciso de apresent-las da maneira como o fiz. Tomada a resoluo, pouco li do trabalho de autores com os quais tenho afinidades, pois j havia aprendido muito com eles no passado. Em minhas leituras, pro-curei sobretudo descobrir as objees que precisaria enfrentar, os argu-mentos que teria de debater, bem como as formas em que essas idias foram expressas no passado. Por isto, os nomes dos que mais contribu-ram para a formao de minhas idias, seja como mestres ou como companheiros de luta, raramente aparecem nestas pginas. Se eu me ti-vesse proposto agradecer a todos aqueles para com os quais tenho uma grande dvida de gratido, estas notas teriam inmeras referncias obra de Ludwig von Mises, Frank H. Knight e Edwin Cannan; Walter Eucken e Henry C. Simons; Wilhelm Rpke e Lionel Robbins; Karl R. Popper, Michael Polanyi e Bertrand de Jouvenel. Na verdade, se eu no quisesse exprimir meu objetivo, mas minha gratido na dedicatria deste livro, teria sido mais correto dedic-lo aos membros da Sociedade

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    Prefcio Edio Brasileira

    para mim um grande prazer desejar bom xito ao importante passo que representa a divulgao das idias contidas em 'Os Funda-mentos da Liberdade'. Ao ser publicado pela primeira vez, em 1960, o livro foi muito bem recebido, tornando-se aos poucos amplamente co-nhecido, enquanto, nos ltimos tempos, o ritmo de sua difuso se ace-lerou significativamente em outras partes do mundo. Nele pretendia apresentar uma viso moderna daquele liberalismo clssico que, inst~lando-se lentamente na Gr-Bretanha durante os sculos XVll e XVIII, parecia destinado a conquistar o mundo no sculo XIX, quando encon-trou sua exposio mais perfeita nas obras de Tocqueville, Lord Acton e dos jurisconsultos ingleses, e na ao poltica dos estadistas William Gladstone e John Bright. Mas, a partir de ento, para grave prejuzo mundial, sua influncia foi diminuindo sob os ataques violentos das falsas promessas do socialismo.

    Neste livro, teutei reformular o liberalismo clssico na linguagem do nosso tempo e em relao aos seus problemas. Ele constitui um es-foro no sentido de sistematizar aquilo em que me empenhei a elaborar gradualmente nos trinta anos anteriores sua publicao. Os tpicos nele discutidos continuam representando meu ponto de vista atual. No entanto, no posso deixar de dizer que, aps a publicao deste livro, adquiri uma conscincia mais profunda de certas falhas da doutrina clssica e dos problemas surgidos mais recentemente. Assim, da em diante, tratei de discutir esses novos problemas em outro trabalho de igual porte, dividido porm em trs pequenos volumes, "Law, Legisla-tion and Liberty" (1973-79). Espero que aqueles que no se sentirem plenamente satisfeitos com o contedo deste trabalho, agora em verso brasileira, busquem a leitura daquele. Mas, ainda assim, fao votos pa-ra que a maioria leia em primeiro lugar 'Os Fundamentos da Liberda-de'. Nele se encontram as bases da filosofia que deve merecer nossa aceitao antes de tratarmos de problemas mais difceis, gerados pela complexidade da sociedade moderna.

    Freiburg-im-Breisgau, maio de 1980

    F. A. HAYEK

  • Prefcio Edio Americana XXVII

    Mont Plerin, especialmente a seus dois lderes intelectuais, Ludwig von Mises e Frank H. Knight.

    Entretanto, agradecimentos mais especficos dev,em ser feitos. E. Banfield, C. I. Barnard, W. H. Book, John Davenport, P. F. Goo-drich, W. Frhlich, David Grene, F. A. Harper, D. G. Hutton, A. Kemp, F. H. Knight, William L. e Shirley Letwin, Fritz Machlup, L. W. Martin, L. von Mises, A. Morin, F. Morley, S. Petro, J. H. Reiss, G. Stourzh, Ralph Turvey, C. Y. Wang e R. Ware leram diversos tre-chos de uma primeira verso deste livro e auxiliaram:'tne com seus co-mentrios. Muitos deles, juntamente com A. Director, V. Ehrenberg, D. Forbes, M. Friedman, M. Ginsberg, C. W. Guillebaud, B. Leoni, J. U. Nef, Margaret G. Reid, M. Rheinstein, H. Rothfels, H. Schoeck, Irene Shils, T. F. T. Plucknett e Jacob Viner, ofereceram-me importan-tes referncias ou fatos, embora eu hesite em citar seus nomes, pois quase certo que me esquecerei de muitas pessoas que contriburam ao meu trabalho desta fonila.

    Nos estgios finais de preparao do livro tive a preciosa assistn- cia do Sr. Edwin McClellan. Graas simptica coiaborao dele e da Sra. McClellan no sentido de simplificar meu estilo, este livro se tornou mais legvel. Para tanto colaborou tambm um amigo, Henry Hazlitt, que teve a bondade de ler e comentar parte do texto final. Devo agrade-cer tambm Sra. Lois Fern pela verificao de todas as citaes conti-das nas notas e Srta. Vernelia Crawford pela elaborao do ndice de assuntos.

    Embora o livro no seja produto do esforo coletivo que est mui-to em voga atualmente- no cheguei a ter nem a ajuda de um pesqui-sador assistente -, foi consideravelmente enriquecido pelas oportuni-dades e contribuies prestadas por vrias fundaes e instituies. Nesse sentido, devo agradecer s seguintes fundaes: Volker, Guggen-heim, Earhart e Rehil. Conferncias proferidas no Cairo, Zurique, Ci-dade do Mxico, Buenos Aires e Rio de Janeiro, bem como em diversas universidades e faculdades americanas, deram-me o ensejo no apenas de testar algumas das idias expostas neste livro junto ao pblico, mas tambm de adquirir experincia relevante para a elaborao do traba-lho. As publicaes em que foram divulgadas as verses iniciais de al-guns dos captulos so mencionadas nas notas, e agradeo aos diversos organizadores e editores a autorizao para reproduzi-las. Gostaria tambm de agradecer a contribuio da biblioteca da Universidade de Chicago, que utilizei quase exclusivamente durante a elaborao do li-vro e cujo Servio de Emprstimo entre Bibliotecas me propiciou tudo de que necessitei; agradeo ainda Comisso de Pesquisa de Cincias Sociais e ao servio de datilografia do Departamento de Cincias So-ciais da Universidade de Chicago, que me ofereceram os fundos e pres-taram o servio de datilografia nas sucessivas verses deste livro.

  • XXVIII Os Fundamentos da Liberdade

    Entretanto, minha maior dvida para com a Comisso para o Pensamento Social da Universidade de Chicago e seu presidente, o pro-fessor John U. Nef, que me permitiram dar prioridade concluso des-te livro, tarefa que me foi facilitada- e no prejudicada -por minhas outras funes perante a Comisso.

    Chicago, 8 de maio de 1959 F. A. HAYEK

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    A seguinte relao de abreviaes de alguns ttulos recorrentes inclui ape-nas as obras cujos ttulos so demasiado extensos:

    Acton, Hist. Essays: Historical Essays and Studies, .de John E. E. Dalberg-Acton, First Baron Acton. Editado por J. N. Figgis e R. V. Laurence, Londres, 1907.

    Acton, Hist. of Freedom: The History of Freedom and Other Essays, de John E. E. Dalberg-Acton, First Baron Acton. Editado por J. N. Figgis e R. V. Laurence, Londres, 1907.

    A. E. R.: American Economic Review. Bagehot, Works: The Works and Life of Walter Bagehot, editado pela Sra.

    Russell Barrington, 10 vols., Londres, 1910. Burke, Works: The Works of the Right Honourable Edmund Burke, nova

    edio, 14 vols., Londres: Rivington, 1814. Dicey, Constitution: Jntroduction to the Study ofthe Law ofthe Constitu-

    tion, de A. V. Dicey, 9~ edio, Londres, 1939. Dicey, Law and Opinion: Lectures on the Relation between Law and Pu-

    blic Opinion in England during the Nineteenth Century, 2~ edio, Londres, 1914.

    E. J.: Economic Journal, Londres. E. S. S.: Encyclopaedia of the Social Sciences, 15 vols., Nova Iorque,

    1930-35. Hume, Essays: Essays Moral, Politicai and Literary, de David Hume. Edi-

    tado por T. H. Green e T. H. Grose, 2vols., Londres, 1875. O Vol. II contm, inter alia, as obras Enquiry concerning Human Understanding e Enquiry con-cerning the Principies of Morais.

    Hume, Treatise: A Treatise of Human Nature, de David Hume, editado por T. H. Green e T. H. Grose, 2 vols., Londres, 1890.

    Locke, Second Treatise: The Second Treatise of Civil Government andA Letter concerning Toleration, de John Locke, editado por J. W. Gough, Ox-ford, 1946.

    J. P. E.: Journal of Politicai Economy, Chicago. Lloyds B. R.: Lloyds Bank Review, Londres. Menger, Untersuchungen: Untersuchungen ber die Methode der Sozial-

    wissenschaften und der politischen Okonomie insbesondere, de Carl Menger, Leipzig, 1883.

    J. S. Mills, Principies: Principies of Politicai Economy, with Some of Their Applications to Social Philosophy, de John Stuart Mill, editado por W. J. Ash-ley, Londres, 1909.

  • XXX Os Fundamentos da Liberdade

    Montesquieu, Spirit oj the Laws: The Spirit oj the Laws, do Baron de Montesquieu, traduo de T. Nugent, editado por F. Neumann ("Hafner Li-brary of Classics"), 2 volumes em 1, Nova Iorque, 1949.

    Proc. Arist. Soe.: Proceedings oj the Aristotelian Society, Londres. R. E. & S.: Review oj Economics and Statistics, Cambridge, Mass. Smith, W. o. N.: An Inquiry into the Nature and Causes oj the Wealth of

    Nations, de Adam Smith, editado por E. Cannan, 2 volumes, Londres, 1904. Tocqueville, Democracy: Democracy i11America, de Alexis de Tocqueville,

    traduo de Henry Reeve, editado por Phillips Bradley, 2 volumes, Nova Ior-que, 1945.

    U. S.: United States Reports: Cases Adjudged in the Supreme Court, Wash-ington: Government Printing Office. (Segundo o mtodo legal americ3;I10, as referncias aos relatrios de casos federais como "Dallas", "Cranch", "Whea-ton" e "Wallace", bem como axelatrios de casos de tribunais estaduais, so precedidas pelo nmero do volume e seguidas pelo nmero da pgina onde co-mea o relatrio do caso, e, sempre que necessrio, pelo nmero da pgina qual se faz referncia.)

    (Referncias do tipo op. cit., toe. cit., ou ibid. sempre indicam uma obra do mesmo autor citada numa nota anterior no mesmo captulo.)

    (*lA citao do frontispcio foi extrada das obras Discourses concerning Govern-ment, de Algernon Sidney (Londres, 1698), pgina 1.42, e Works (nova edio, Londres, 1772), pgina 151.

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  • Introduo

    "Qual foi o caminho pelo qual chegamos nossa atual posio, qual a forma de governo sob a qual nossa grandeza cresceu, quais os costumes nacionais dos quais ela surgiu? ( ... )Se analisarmos as leis, veremos que elas concedem a todos igual jus-tia, apesar das diferenas individuais; ( ... )A liberdade que desfrutamos em nosso sistema de governo estende-se tambm nossa vida cotidiana. ( ... )Mas toda essa in-formalidade em nossas relaes no nos torna cidados sem lei. Nossa principal sal-vaguarda tem por objetivo eliminar este temor, ensinando-nos a obedecer aos magis-trados e s leis, especialmente quelas que dizem respeito proteo dos injusti.a-dos, estejam elas contidas nos estatutos legais ou pertenam flO cdigo que, embora no escrito, no pode ser infringido sem se incorrer em flagrante desgraa." (*)

    PRICLES

    Para que as antigas verdades continuem governando a mente hu-mana, elas precisam ser reafirmadas na linguagem e nos conceitos de sucessivas geraes. A forma que, em determinada poca, exprime mais eficazmente essas verdades torna-se gradualmente to desgastada pelo uso, que deixa de ter um significado definido. As idias subjacentes po-dem continuar to vlidas como nunca, mas as palavras, at quando se referem a problemas do nosso tempo, no transmitem mais as mesmas idias; as teses no esto colocadas num contexto que nos familiar; e raramente nos do respostas diretas s questes que formulamos. Talvez isso seja inevitvel, porque a expresso de um ideal capaz de in-fluenciar as mentes humanas jamais ser completa: ela deve ser adapta-da a determinado clima de opinio, pressupor quase tudo o que aceito pelas pessoas daquela poca e ilustrar princpios gerais em termos dos problemas que as tocam diretamente.

    Muito tempo se passou desde que os ideais da liberdade que inspi-

    () A epgrafe foi extrada da Orao Fnebre de Pricles, segundo a verso de Tuc-dides, The Peloponnesian War, II, 37-39, traduo de R. Crawley (Ed. "Modern Li-brary", pgina 104).

    1 H frases que entram no domnio popular porque expressam um contedo que, em tempos passados, correspondia a uma importante verdade; continuam a ser utilizadas mesmo quando esta verdade j conhecida de todos e ainda quando, em funo do uso inconsciente, j deixaram de ter um significado distinto. Finalmente, caem em desuso por no evocar nenhum significado. Em certo momento so redescobertas e podem ento ser utilizadas com uma nova fora para expressar um conceito semelhante ao original, en-trando novamente no mesmo ciclo.

  • XXXII Os Fundamentos da Liberdade

    raram a moderna civilizao oidental e cuja realizao parcial tornou possveis os feitos dessa civilizao foram eficazmente reafirmados. Na verdade, h quase um sculo os princpios bsicos sobre os quais fo-ram lanados os fundamentos desta civilizao vm sendo cada vez me-nos respeitados e, gradativamente, esto caindo no esquecimento. Os homens tm-se preocupado muito mais em procurar ordens sociais al-ternativas do que em aperfeioar sua compreenso ou uso dos princ-pios subjacentes nossa civilizao. Somente quando, nas ltimas dcadas, nos defrontamos com um sistema totalmente diferente que descobrimos que perdemos a concepo clara de nossos objetivos e que no temos princpios firmes que possamos levantar contra a ideologia dogmtica de nossos adversrios.

    Na luta pelo apoio moral dos povos do mundo, a falta de uma sli-da filosofia deixa o Ocidente em grande desvantagem. H muito que o estado de esprito de seus lderes intelectuais se vem caracterizando pela desiluso com seus princpios, pelo desprezo por suas realizaes e pela preocupao exclusiva com a criao de "mundos melhores". No com esse estado de esprito que se pode esperar ganhar adeptos. Se qui-sermos vencer a grande luta que se est travando no campo das idias, devemos, antes de mais nada, saber em que acreditamos. Devemos tam-bm ter idia clara daquilo que desejamos preservar, se no quisermos perder o rumo. No menos necessria uma afirmao explcita de nos-sos ideais em nossas relaes com outros povos. Atualmente, a poltica externa muito IllJlis uma questo do triunfo de uma ou de outra filoso-fia poltica; e nossa prpria sobrevivncia pode depender de nossa ca-pacidade de congregar uma parte suficientemente significativa do mun-do em torno de um ideal comum.

    Teremos de fazer isto em condies muito desfavorveis. Conside-rvel parcela do mundo absorveu as idias da civilizao ocidental e adotou seus ideais numa poca em que o Ocidente havia perdido a con-fiana em si mesmo e, em boa parte, a f nas tradies que constituem a base de sua grandeza. Foi uma poca em que os intelectuais ocidentais j haviam at certo ponto abandonado a prpria f na liberdade, a qual, ao permitir ao Ocidente utilizar plenamente as foras respons-

    2 A ltima tentativa de reafirmar de maneira abrangente os princpios de uma socie-dade livre, cujo contedo j estava sensivelmente diludo e sob a forma comedida que se . espera de um texto acadmico, a obra The Elements of Politics, de H. Sidgwick (Lon-dres, 1891). Embora seja um trabalho admirvel em muitos aspectos, poucci representa-tivo da tradio liberal britnica e consideravelmente influenciado pelos elementos da-quele utilitarismo racionalista que levou ao socialismo.

    3 Na Inglaterra, onde a tradio da liberdade persistiu mais longamente que em ou-tros pases europeus, j em 1885, um autor cuja obra era amplamente difundida entre os liberais afirmava que, para estes, "a tarefa mais premente a reconstruo da sociedade, e no a libertao do indivduo" (F. C. Montague, The Limits of Individual Liberty [Londres, 1885], pgina 16).

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    Introduo da Edio Original XXXIII

    veis pela evoluo de toda civilizao, tornara possvel a rapidez sem precedentes de seu crescimento. Conseqentemente, a educao ociden-tal recebida pelos cidados das naes menos desenvolvidas que se tor-naram divulgadores de idias para seu prprio povo no enfatizava tan-to o modo como a civilizao ocidental havia evoludo, mas principal-mente os sonhos de alternativas que o prprio sucesso dessa civilizao havia gerado.

    Isto particularmente trgico porque, se de um lado os princpios, com os quais esses discpulos do Ocidente pautam seu comportamento, pode permitir que seus pases imitem mais rapidamente algumas das realizaes do mundo ocidental, por outro impediro que esses pases prestem sua prpria contribuio. Nem tudo que fruto do desenvolvi-mento histrico do Ocidente pode ou deve ser transplantado para ou-tras culturas; e, qualquer que seja a civilizao que venha a surgir nas naes influenciadas pelo Ocidente, assumir uma feio prpria mais depressa, se puder desenvolver-se livremente, do que se uma forma lhe for imposta de cima para baixo. Se verdade, como se objeta s vezes, que a condio necessria para uma evoluo espontnea - o esprito de iniciativa individual - est ausente, com certeza, sem este esprito no se poder desenvolver nenhuma civilizao vivel, onde quer que seja. Se esse esprito estiver mesmo ausente, a primeira tarefa deve ser despert-lo; e isso poder ser feito por um regime de liberdade, mas no por um sistema de arregimentao.

    Quanto ao Ocidente, devemos esperar que, aqui, ainda exista um amplo consenso com respeito a certos valores fundamentais. Mas este consenso j no mais explcito; e, para que tais valores voltem a pre-dominar, h urgente necessidade de sua reafirmao e defesa. Aparen-temente, no existe nenhuma obra que apresente um quadro completo da filosofia na qual uma teoria liberal coerente se possa fundamentar -nenhuma obra qual uma pessoa qUe desejecompreender seus ideais possa recorrer. Existem vrias obras histricas admirveis que descre-vem a evoluo das "Tradies Polticas do Ocidente". Mas, embora tais obras mostrem que "o objetivo da maioria dos pensadores ociden-tais tem sido estabelecer uma sociedade na qual todo indivduo, com um grau mnimo de dependncia da autoridade discricionria de seus governantes, gozaria dos privilgios e da responsabilidade de determi-nar sua prpria conduta, com base numa estrutura de deveres e direitos previamente definida'', no conheo nenhuma obra que explique o que isto significa em funo dos problemas concretos de nossa poca ou em que se fundamenta a justificativa ltima desta idia.

    Nos ltimos anos, foram feitos importantes esforos para dissipar equvocos que prevaleceram por longo tempo com respeito aos princ-

    4 Frederick Watkins, The Politicai Tradition of the West (Cambridge: Harvard Uni-versity Press, 1948), pgina 10.

  • XXXIV Os Fundamentos da Liberdade

    pios da politica econmica de uma sociedade livre. No desejo subesti mar o que foi feito para esclarecer esses princpios. Contudo, embora eu ainda me considere principalmente um economista, cada vez mais acredito que as respostas a muitos problemas sociais prementes de nos sa poca se encontram, em ltima anlise, no reconhecimento de princ-pios externos ao aspecto tcnico da economia ou a qualquer outra disci-plina isolada. Embora eu tenha iniciado esta obra a partir de uma preo-cupao original com problemas de poltica econmica, aos poucos fui levado ambiciosa e talvez presunosa tarefa de abordlos mediante uma reformulao abrangente dos princpios bsicos de uma filosofia da liberdade.

    Entretanto, no tento desculpar-me por terme aventurado muito alm do campo cujos detalhes tcnicos presumo dominar. Para reto-marmos uma concepo coerente de nossos objetivos, ser preciso em-preender com maior freqncia tentativas semelhantes. Na verdade, uma lio que aprendi com a preparao deste livro que nossa liberda-de se encontra ameaada em muitos campos porque estamos demasiado propensos a deixar que os especialistas decidam por ns ou a aceitar de forma excessivamente passiva e no-crtica a opinio de especialistas sobre problemas dos quais eles conhecem profundamente apenas um pequeno aspecto. Mas, j que o problema do eterno conflito entre o economista e os outros especialistas aparecer freqentemente neste li-vro, quero deixar bem claro que o economista no se pode arrogar um conhecimento especial segundo o qual poderia coordenar os esforos de todos os outros especialistas. Ele pode, isto sim, afirmar que, como sua preocupao profissional com os principais objetivos conflitantes, ele, mais do que outros especialistas, sabe que a mente humana no consegue apreender todo o conhecimento que orienta as aes da socie dade e est consciente, portanto, daconseqente necessidade de um mecanismo impessoal, independente de julgamentos humanos indivi-duais, que coordene os esforos de cada um. sua preocupao com os processos impessoais da sociedade, em que se utiliza mais conhecimen-to do que qualquer indivduo ou grupo organizado de indivduos pode ter, que coloca os economistas em constante antagonismo com as ambi-es de outros especialistas que exigem poderes de controle porque acham que seu conhecimento particular no levado em conta na sua. devida proporo.

    De certa maneira, este livro , ao mesmo tempo, mais e menos am-bicioso do que o leitor poderia esperar. No se preocupa basicmente com os problemas de um pais em especial, ou de um perodo determina-do, mas, pelo menos nos captulos iniciais, com princpios que preten-dem ter validade universal. A concepo e o plano do livro devem-se convico de que as mesmas correntes intelectuais, sob diferentes no-mes e disfarces, minaram a crena na liberdade no mundo inteiro. Para

    lntrodu{o da Edio Original XXXV

    que possamos combater essas tendncias de f?rma eficiente, devem~s entender os elementos comuns que esto na raiz de todas as suas mam-festaes. Tambm devemos lembrar que a tradio de liberdade no criao exclusiva de nenhum pas e que nenhuma nao detm de rorma . exclusiva o segredo de como promov-la, mesmo nos nossos dias. O principal objeto de meu estudo no so as instituies ou os pr~gr~~as politicos dos Estados Unidos ou da Gr-Bretanha, mas os ~rmctpiOS que estes pases elaboraram baseados nos fundamentos oferecidos pelos gregos antigos, pelos italianos dq comeo da Re~ascena e pelos h~la~deses e aos quais franceses e alemes prestaram Importantes cont~IbUIes. Alm disso, meu objetivo no ser ap:e~entar ~~ I?ormenonzad.o programa de poltica de governo, mas defm!r os cntenos. pelos quais determinadas medidas devem ser julgadas a fim de que se ajustem a um regime de liberdade. Se me considerasse capaz deylanejar um pro~:ama abrangente de poltica de governo, eu me estana opondo ao esptnto do livro. Tal programa, afinal, deve surgir da aplicao de uma ftloso- ,, fia comum aos problemas cotidianos. . ~

    Embora no seja possvel definir adequadamente um Ideal sem contrap-lo constantemente a outros, meu objetivo no fundamental-mente crtico. (S) Minha inteno abrir portas para a evoluo futura ao invs de fechar outras, ou melhor, impedir que alguma dessas portas se feche, como invariavelmente acontece quando o Estado assume ? controle exclusivo de certas reas. Chamo a ateno para a tarefa posi-tiva de aperfeioar nossas instituies; e, mesmo que eu possa apena~ indicar rumos recomendveis para a evoluo, pelo menos procurei preocupar-me no tanto com os acidentes que devem ser aplainados co-mo com os caminhos que precisam ser abertos.

    Como afirmao de princpios gerais, o livro necessariamente tra~a das questes bsicas de filosofia politica, mas aborda ~roble~~ mais concretos medda que avana. Das trs partes de que e constitmdo, a primeira procura mostrar por que desejamos a .liberdade e o~ que ela traz. Isto implica o exame dos fatores que determmam a evolua? de t~das as civilizaes. Nesta parte, a discusso ser sobretudo tenca e fi-losfica, se que esta palavra a mais adequa~a para definir o campo em que a teoria poltica, a tica e a antropologia co~vergem. ~ ela se-gue-se uma anlise das instituies que o homem ocidental cnou para

    s Espero tambm no me tornar alvo do lembrete de S. T. Coleridge a ~dmund B~:ke, que assume especial importncia hoje: que "no ~bio re~rese~tar um sistema politi-co como um sistema que s agrada a ladres e assassmos, CUJa origem natural s se ~ncontra nos crebros de tolos ou loucos, quando a experincia prova que o grande ~~1go do sistema est naquela fascinao peculiar que se im~gina deva exerce~ sobr~ os espmtos nobres e criativos sobre todos aqueles que, sob os efe1tos da agradvel mtOXICao da be-nevolncia do es~irito jovem, tendem a confundir suas prprias virtudes e raros poderes. com as qualidades e atributos comuns do homem". (The Polit~ca/ Thought of Samuel - 1->r Coleridge, editado por R. J. White (Londres, 1938], pgma 235).

  • XXXVI Os Fundamentos

    garantir a liberdade individual. Entramos, ento, no campo da juris-prudncia e abordaremos seus problemas do ponto de vista histrico. Entretanto, a ptica principal desta evoluo no ser a do direito, nem a da histria. Estudaremos o surgimento de um ideal, na maioria das vezes percebido apenas de forma vaga e imperfeita, e que ainda necessi-ta de esclarecimento para que possa servir de base para a soluo dos problemas de nosso tempo.

    Na terceira parte do livro, esses princpios sero testados mediante sua aplicao a algumas das questes econmicas e sociais mais crticas da atualidade. Os tpicos que selecionei pertencem s reas nas quais uma escolha errada das possibilidades que se oferecem ter maior pro-babilidade de pr em perigo a liberdade. Sua anlise tem a finalidade de mostrar quantas vezes a buscados mesmos objetivos por mtodos dife" rentes pode aperfeioar ou destruir a liberdade. Trata-se, na maioria, de tpicos a respeito dos quais a economia em seu sentido mais tcnico no nos oferece elementos suficientes de orientao para formular uma poltica e que s podem ser analisados adequadamente no mbito de uma estrutura mais ampla. Mas as questes complexas que cada um de-les levanta no podem, evidentemente, ser enfocadas de maneira exaus-tiva neste volume. Sua anlise serve principalmente como exemplo do que seja o principal objetivo deste livro, isto , o entrelaamento da fi-losofia da liberdade, da jurisprudncia e da economia da liberdade de que ainda necessitamos.

    Este livro procura auxiliar a compreenso, no aguar o entusias-mo, Embora, quando se escreve sobre liberdade, seja quase irresistvel a tentao de apelar para a emoo, procurei conduzir a anlise com um esprito to sbrio quanto possvel. E, ainda que sentimentos ex-pressos em termos como "dignidade do homem" e "beleza da liberda-de" sejam nobres e louvveis, so descabidos numa tentativa de persua-so racional. Tenho conscincia dos perigos de uma abordagem to fria e puramente intelectual de um ideal que tem sido um sentimento sagra-do para muitos e corajosamente defendido por muitas pessoas para as quais ele nunca constituiu um problema intelectual. No acredito que a causa da liberdade venha um dia a prevalecer, a no ser que nossos sen-timentos estejam envolvidos. Mas, embora os fortes instintos dos quais a luta pela liberdade sempre se nutriu representem seu apoio indispen-svel, no constituem orientao segura ou proteo infalvel contra o erro. Os mesmos sentimentos nobres foram mobilizados para objetivos extremamente pervertidos. E, o que ainda mais importante, como as idias que minaram a liberdade pertencem principalmente esfera inte-lectual, devemos contest-las nessa mesma esfera.

    Talvez alguns leitores tenham a incmoda sensao de que eu no considero o valor da liberdade individual um pressuposto tico indiscu-tvel e de que, ao tentar demonstrar seu valor, possivelmente a defenda

    lnrroduo da Edio D_rignal XXXVII

    por motivos prticos. Seria.um equvoco. Por outro lado, se quisermos convencer aqueles que ainda no compartilham de nossos pressupostos morais, no podemos simplesmente dar como certa sua validade. Deve-mos mostrar que a liberdade no meramente um valor especfico, mas que a fonte e condio essencial da maioria dos valores morais.

  • XXXVIII Os Fundamentos da Liberdade

    o no ser precisa enquanto no analisarmos outros termos quase to vagos, como "coero", "arbitrariedade" e "lei", indispensveis nu-ma discusso sobre liberdade. Contudo, a anlise destes conceitos foi transferida para o incio da Parte II, a fim de que a aridez da explicao no nos impedisse de abordar questes mais substanciais.

    Nesta tentativa de reafirmar uma filosofia de vida do homem em sociedade, que se desenvolveu gradualmente durante mais de 2 mil anos, fui encorajado pelo fato de que ela freqentemente ressurgiu da adversidade com renovada fora. Nas ltimas geraes ela passou por um de seus perodos de decadncia. Se, para alguns, especialmente os europeus, este livro parecer uma forma de investigao sobre a base ra-cional de um sistema que no mais existe, devo esclarecer que, para que nossa civilizao no entre em decadncia, precisamos reavivar este sis-tema. Sua filosofia tornou-se estacionria no momento de sua maior in-fluncia, assim como freqentemente progrediu quando se encontrava na defensiva. De fato, nos ltimos cem anos progrediu muito pouco, e, atualmente, est na defensiva. Entretanto, as prprias crticas a tal sis-tema nos tm mostrado seus pontos vulnerveis, em sua forma tradicio-nal. No preciso ser mais sbio que os grandes pensadores do passado para poder compreender melhor as condies essenciais liberdade indi-vidual. A experincia dos ltimos cem anos ensinou-nos muitas coisas que Madison ou Mill, Tocqueville ou Humboldt no puderam perceber.

    O momento propcio de reavivar esta tradio depender no s do xito que alcanarmos em melhor-la, mas tambm do estofo moral de nossa gerao. Essa tradio foi rejeitada numa poca em que os ho-mns no viam limites sua ambio, porque um credo modesto e at humilde, baseado numa considervel falta de confiana na sabedoria e capacidade humanas e na conscincia de que, nos limites dentro dos quais podemos planejar, nem a melhor das sociedades conseguir satis-fazer todos os nossos desejos. Ela est to distante do perfeccionismo como da pressa e impacincia do reformador apaixonado, cuja indigna-o diante de determinados males freqentemente o impede de perceber o prejuzo e a injustia que a concretizao de seus planos tender a produzir. A ambio, a impacincia e a pressa so, s vezes, admirveis nos indivduos; so porm perniciosas quando orientam o poder de coero e quando o aperfeioamento depende daqueles que, ao lhes ser conferida a autoridade, supem que ela encerra sabedoria superior, e, portanto, o direito de impor suas idias aos outros. Espero que nossa gerao tenha aprendido que foi o perfeccionismo, de um tipo ou de outro, que freqentemente destruiu qualquer grau de decncia que as sociedades j chegaram a alcanar. Com objetivos mais limitados,

    9 David Hume, que ser nosso constante companheiro e sbio guia ao longo das p-ginas seguintes, j em 1742 (Essays, II, pgina 371), se referia a "este perigoso esforo fi-

    Introduo da Edio Original XXXIX

    mais pacincia e mais humildade poderemos, na verdade, fazer progres-sos maiores e mais rpidos do que fizemos quando orientados por "uma confiana orgulhosa e extremamente presunosa na sabedoria transcendente e na clarividncia desta poca".

    losfico em busca da perfeio, que, sob o pretexto de corrigir preconceitos e erros, con-traria os mais caros sentimentos do corao e as mais teis opinies e tendncias que go-vernam a criatura humana", e nos advertia (pgina 373) para que "no nos afastssemos demais das mximas decomportamento e conduta recebidas, em prol de uma fascinante busca da felicidade ou perfeio".

    lO W. Wordsworth, The Excursion (Londres, 1814), Parte II.

  • PARTE I

    O Valor da Liberdade

    "Ao longo da histria, oradores e poetas tm exaltado a liberdade, mas nin-gum ainda nos ensinou por que a liberdade to importante. A viso da civilizao como algo esttico ou como algo em evoluo deveria determinar nossa atitude diante destas questes. ( ... )Numa sociedade em evoluo, qualquer restrio liber-dade limita o nmero de experincias possveis, Ieduzindo, dessa forma, o ritmo do progresso. Em tal sociedade, a liberdade de ao no assegurada ao indivduo por-que isso lhe d maior satisfao, mas porque, se lhe for permitido escolher seu pr-prio caminho, poder, de modo geral, servir-nos melhor do que se obedecesse s nossas ordens." (*)

    H. B. PHILLIPS

    (*)A epgrafe da Parte I foi extrada de H. B. Phillips, "On the Nature of Progress", American Scientist, XXXIII (1945), 255.

  • CAPTULO I

    Liberdade e Liberdades

    "Nunca houve uma boa definio da palavra liberdade e, neste momento, o po-vo americano tem necessidade urgente de uma definio. Todos nos proclamamos a favor da liberdade: mas, embora usemos. a mesma palavra, no lhe atribumos o mesmo significado ... Eis duas coisas no s diferentes, mas incompatveis, que tm o mesmo nome, liberdade." (')

    ABRAHAM .LINCOLN

    1. Liberdade como Ausncia de Coero

    Neste livro pretendemos analisar aquela condio do ser humano na qual a coero que alguns exercem sobre outros se encontra reduzi-da, tanto quanto possvel, no mbito da sociedade. Ao longo deste tra-balho, descreveremos este estado como um estado de liberdade. Essa palavra ('"*)tem sido usada tambm para descrever muitos outros aspec-

    (*lA epigrafe deste capitulo foi extrada de The Writings oj Abraham Lincoln, ed. A. B. Lapsley (Nova Iorque, 1906), VIl, pgina 121. Cf. com sem.elhante observao de Montesquieu, Spirit oj the Laws, XI, 2 (I, 149): ''No existe palavra que admita significa-es mais variadas e que tenha produzido impresses mais diversas na mente humana do que a palavra liberdade. Alguns a tomam como um meio de depor uma pessoa qual con-feriram uma autoridade tirnica; outros, como o poder de escolher um superior ao qual esto obrigados a obedecer; outros, como o direito de se armar e, assim, poder empregar a violncia; outros, finalmente, como o privilgio de ser governados por um cidado de seu prprio pais ou por suas prprias leis".

    (**) N. T. c Apalavra liberdade. expressa de duas formas na lngua inglesa: 'freedom' e 'liberty'. Como isto no ocorre em portugus, vamos manter 'liberdade' para ambas as formas.

    I No existe; aparentemente, uma distino comum no signifiado das palavras freedom e liberty e ns as usaremos indistintamente. Embora pessoalmente prefira a pri-meira acepo, liberty parece ser menos passivei de ser usada incorretamente. Ela no po-deria ter sido usada naquele "nobre jogo de palavras" (Joan Robinson, Private Enterpri-se or Public Control [Londres, 1943]) de Franklin D. Roosevelt quando incluiu a expres-so "estar livre de toda necessidade" (jreedomfrom want) em seu conceiw de liberdade.

  • 4 Os Fundamentos da Liberdade

    tos agradveis da vida. Por isso, no seria muito proveitoso comear por questionar o que ela realmente significa.

  • 6 Os Fundamentos da Liberdade

    doms to"), em nosso sentido a "liberdade" uma s, variando em grau mas no em tipo.

    Neste sentido, "liberdade" refere-se exclusivamente a uma relao do homem para com seu semelhante, que s infringida pela coero do homem. pelo homem. Isso significa, especificamente, que a gama de possibilidades fsicas entre as quais uma pessoa pode escolher em dado momento no tem relao direta com a liberdade. O alpinista que se en-contra em uma posio perigosa e v apenas um caminho para se salvar indiscutivelmente um homem livre, embora dificilmente possamos afirmar que ele tenha alguma escolha. A maioria das pessoas ainda per-ceber o significado original da palavra "livre" e compreender que, se esse mesmo alpinista casse em uma fenda e no pudesse sair, ainda as-sim apenas em sentido figurado poderia ser considerado "no livre", e referir-se a ele como "privado de sua liberdade" ou como "prisioneiro" equivaleria a usar estes termos em um sentido diferente daquele no qual so aplicados no relacionamento social.

    As possibilidades de ao de uma pessoa constituem, naturalmen-te, uma questo muito importante; diferente, entretanto, daquela em que se trata de estabelecer at que ponto, no momento de agir, essa pes-soa pode seguir seus prprios planos e intenes, at que ponto o pa-dro de sua conduta fruto de uma inteno individual, voltada para fins que vinha persistentemente buscando, e no para necessidades cria-das por outros de modo a lev-la a fazer o que querem. A liberdade ou a falta de liberdade dos indivduos no depende da gama de escolhas, mas da possibilidade de determinar sua conduta de acordo com suas pretenses correntes, ou da existncia de algum cujo poder lhe permite manipular as condies de modo a impor queles a sua vontade. Assim, liberdade pressupe que o indivduo tenha assegurada uma esfera pri-vada, que exista certo conjunto de circunstncias no qual outros no possam interferir.

    6 Cf. T. H. Green, Lectures on the Principies of Politica/ Obligation (nova edio; Londres, 1911), pgina 3: "Quanto ao sentido de 'liberdade', devemos evidentemente ad-mitir que todo uso do termo para expressar outra coisa que no uma relao social e pol-tica de um homem com outros envolve uma metfora. Mesmo no seu emprego original, seu sentido no absolutamente consagrado. Sempre implica, de fato, certo grau de isen-o de compulso por outrem, embora o grau e as condies desta iseno, que o 'cida-do livre' desfruta em diferentes estados da sociedade, variem bastante. Na medida em que o termo 'liberdade' passa a ser empregado em todos os outros sentidos alm daquele em que significa uma relao fixa aceita entre um indivduo e outros indivduos, seu signi-ficado se torna muito mais vago". Tambm L. von Mises, Socialism (nova edio; New Haven: Yale University Press, 1951), pgina 191: "Liberdade um conceito sociolgico. No faz sentido aplic-lo a certas condies externas ao contexto social"; e pgina 194: "Esta, pois, a liberdade do homem no que concerne sua vida exterior -o fato de ser in-dependente do poder arbitrrio de seussemelhantes".

    7 Cf. F. H. Knight, "Discussion: The Meaning of Freedom", Ethics, LII (1941-42), pgina 93: "Se Crusoe casse em um buraco ou ficasse preso no emaranhado da floresta,

    l \

    Liberdade e Liberdades 7

    Esse conceito de liberdade somente poder ser definido de maneira mais precisa depois de havermos examinado o conceito de coero, a ele relacionado. Faremos isso sistematicamente aps considerarmos por que essa liberdade to importante. Mas, mesmo antes de tentarmos faz-lo, vamos procurar delinear de modo mais preciso o carter de nosso conceito, contrapondo-o a outros sentidos que a palavra liberda-de adquiriu. Tais sentidos tm em comum com o significado original o fato de que tambm definem estados que a maioria dos homens consi-dera desejveis; e existem outras relaes, entre esses diferentes senti~ dos, que explicam por que a mesma palavra usada com todos esses significados. Nossa tarefa imediata, no entanto, deve ser ressaltar as diferenas, tanto quanto possvel. 2. Em Contraposio a Liberdade Poltica

    O primeiro significado de "liberdade" ao qual devemos contrapor nosso prprio uso do termo aquele cujo sentido reconhecidamente d_istinto. o que geralmente se denomina "liberdade poltica", a parti-cipao dos homens na escolha de seu governo, no processo legislativo e no controle da administrao. Deriva da aplicao de nosso conceito a grupos de homens considerados como um todo, conferindo-lhes uma espcie de liberdade coletiva. No entanto, um povo livre, neste sentido,

    ~~ , necessariame?te um povo de homens livres, e no preciso que o Individuo compartilhe dessa liberdade coletiva para ser livre. No se pode afirmar que os habitantes do Distrito de Colmbia ou os estran-geiros que residem nos Estados Unidos, ou os jovens que ~inda no tm direito de voto, no desfrutam plena liberdade pessoal, simplesmente por no partilhar da liberdade poltica.

    seria certamente correto dizer que, livrando-se dessa situao, teria reconquistado a liber-dade- e isto se aplicaria tambm a um animal". possvel que se trate de um emprego da p,ala~ra agora consagrado, mas refere-se a uma concepo de liberdade que no a de au-sencia de coero que o professor Knight defende.

    8 A causa lingstica da aplicao da palavrafree (livre) e dos correspondentes subs-tantivos a vrias acepes parece ter sido a inexistncia, na lngua inglesa (e aparentemen-te em todas as lnguas germnicas e no romance), de um adjetivo que pudesse ser utilizado em geral para indicar que algo est ausente. Devoid (destitudo de) ou /acking (ausente) so geralmente adjetivbs empregados apenas para expressar a ausncia de algo que dese-jvel ou est normalmente presente. No existe um adjetivo correspondente (alm de "free of') para indicar a ausncia de algo indesejvel ou estranho a um objeto. Em geral, dizemos que algo est isento de (free oj) vermes, de impurezas ou do vcio e, portanto, li-berdade (freedom) passou a significar a ausncia de .tudo o que indesejvel. Do mesmo modo, sempre que queremos dizer que um organismo age por si mesmo, sem determina-o ou influncia de fatores externos, dizemos que est livre de influncias que no se acham normalmente relacionadas a ele. Na cinCia, falamos mesmo em "graus de liber-dade" quando existem diversas possibilidades que no so influenciadas por fatores de-terminantes conhecidos ou pressupostos (cf. Cranston, op. cit., pgina 5).

    9 Todas estas pessoas seriam consideradas no livres por H. J. Laski, o qual afirma-va (Liberty in the Modem State [nova edio; Londres, 1948], pgina 6) que "o direito ...

  • 8 Os Fundamentos da Liberdade

    Tambm seria absurdo dizer que os jovens que ingressam na vida ativa so livres porque concordam com a ordem social em que nasce-ram - uma ordem social para a qual provavelmente no conhecem alter-nativa e que mesmo toda uma nova gerao, que pensasse de maneira diferente da dos pais, somente poderia modificar aps ter atingido a idade madura. Mas este fato no os torna, ou no os torna necessaria-mente, no livres. A relao freqentemente buscada entre essa concor-dncia com a ordem poltica e a liberdade individual uma das causas da atual confuso acerca de seu significado. claro que qualquer um pode "identificar a liberdade ... com o processo de participao ativa no poder pblico e na elaborao de leis pblicas". Mas deve ficar claro que, se algum estabelece essa identificao, se est referindo a um outro estado que no aquele no qual estamos interessados em nosso estudo, e que o emprego da mesma palavra para definir diferentes con-dies no significa que, em qualquer hiptese, uma equivale a outra ou a substitui.

    No caso, o perigo de confuso decorre do fato de que esse uso da palavra no deixa claro que uma pessoa pode escolher por meio do voto ou optar, por meio de contrato, por sua prpria escravido, renuncian-do assim liberdade no sentido original. No se poderia dizer, por exemplo, que um homem que por vontade prpria, porm irrevogavel-mente, vendeu seus servios por anos e anos a uma organizao militar, como a Legio Estrangeira, a partir da continuaria livre, na acepo que damos liberdade; ou que o jesuta que vive de acordo com os ideais do fundador de sua ordem e se considera "um cadver, sem inte-ligncia nem vontade", poderia ser chamado livre. Talvez pelo fato de havermos visto milhes de pessoas votar a favor de sua completa ser-

    de voto essencial liberdade; e um cidado excludo desta condio no livre". Defi-nindo de forma semelhante a liberdade, H. Kelsen ("Foundations of Democracy", Ethics, LXVI, N? I, Pt. 2 [1955], 94) chega a concluir, de maneira triunfante, que "as tentativas de mostrar uma relao essencial entre liberdade e propriedade ... fracassaram", embora todos os que afirmaram a existncia desta relao falassem em li-berdade individual e no em liberdade poltica.

    10 E. Mims, Jr., The Majority of the People (Nova Iorque, 1941), pgina 170. 11 Cf. Montesquieu, Spirit of the Laws, XI, 2 (1, 150): "Concluindo, como nas de-

    mocracias as pessoas parecem agir quase de acordo com a prpria vontade, acredita-se que esta forma de governo seja a que permite maior liberdade, confundindo-se assim o poder das pessoas com sua liberdade". Tambm J. L. De Lolme, The Constitution of England (nova edio; Londres, 1800), pgina 240: "Contribuir, com o prprio sufrgio, para a elaborao de leis participar, em algum grau, do poder: viver em um Estado em que as leis so aplicveis igualmente a todos e sero com certeza aplicadas ... ser livre". Cf. tambm os trechos citados nas notas 2 e 5 do.Cap. VII.

    12 A descrio do esprito do jesuta, citada por William James de uma das cartas de Igncio de Loyola (Varieties of Religious Experience [Nova Iorque e Londres, 1902], p-gina 314), a seguinte: "Nas mos do meu superior, devo ser como dctil cera, uma coisa da qual ele pode exigir tudo que desejar, seja escrever ou receber cartas, falar ou no a es-ta ou quela pessoa, e coisas semelhantes; e devo colocar todo o meu fervor na execuo

    Liberdade e Liberdades 9

    vido a um tirano, nossa gerao tenha concludo que escolher seu pr-prio governo no significa, necessariamente, assegurar a liberdade. Alm do mais, no teria sentido discutir o valor da liberdade se um regi-me aprovado pelo povo fosse, por definio, um regime de liberdade.

    A aplicao do conceito de liberdade a uma coletividade, e no a indivduos, torna-se clara quando falamos do desejo de um povo de se libertar do domnio estrangeiro e de determinar seu prprio destino. Neste caso, a palavra "liberdade" tem o sentido de ausncia de coero de um povo .como um todo. Os partidrios da liberdade individual em geral simpatizaram com tais aspiraes de liberdade nacional, o que le-vou a uma constante porm incmoda aliana entre os movimentos li-berais e nacionais durante o sculo XIX. Mas, embora o conceito de li-berdade nacional seja anlogo ao de liberdade individual, no o mes-mo, e a luta pela primeira nem sempre contribuiu para ampliar a segun-da. Algumas vezes, isto levou as pessoas a preferir um dspota de sua prpria raa a um governo liberal de uma maioria estrangeira e, fre-qentemente, deu pretexto para violentas restries liberdade indivi-dual dos membros das minorias. Conquanto o desejo de liberdade do indivduo e o desejo de liberdade do grupo ao qual o indivduo pertence possam basear-se em sentimentos e opinies semelhantes, ainda neces-srio distinguir claramente os dois conceitos.

    . ' 3. Em Contraposio a "Liberdade Interior"

    Outro significado diferente da palavra "liberdade" o de liberda-de "interior" ou "metafsica" (s vezes, tambm, "subjetiva") (!3l, tal-vez mais relacionado com a liberdade individual, sendo por isso mais facilmente confundido com ela. Refere-se posdbilidade de uma pes-soa pautar-se em suas aes por sua prpria vontade e conscincia, por sua razo ou firme convico e no por circunstncias ou impulsos mo-mentneos. Entretanto, o oposto de "liberdade interior" no a coer-o exercida por outrem, mas a influncia de emoes temporrias, ou a fraqueza moral ou intelectual. Se algum no consegue fazer o que

    solcita e perfeita das coisas que me foram ordenadas. Devo considerar a mi~ ~?esmo um cadver, desprovido de inteligncia ou vontade; ser como um~ massa de mat~na que sem resistncia se deixa colocar onde aprouver a quem quer que seja; como um cajado na mo de um velho que o usa de acordo com suas necessidades e o pe onde lhe convm. Assim devo eu ser ~as mos da Ordem, para servi-la da maneira que julgar mais til"

    13 A diferena entre este conceito de "liberdade interior" e liberdade no sentido de ausncia de coero foi claramente percebida pelos escolsticos da Idade Mdia, que esta-beleciam uma distino ntida entre libertas a necessitare e libertas a coactione.

  • 10 Os Fundamentos da Liberdade

    decidiu aps serena reflexo, e se suas intenes ou foras o abando-nam no momento decisivo e ele deixa de realizar aquilo que, de alguma maneira, ainda deseja, podemos dizer que ele "no livre", que '.'es-cravo de suas paixes". Ocasionalmente, tambm usamos esses termos quando dizemos que a ignorncia ou a superstio impedem que as pes-soas faam aquilo que fariam se tivessem melhor informao e procla-mamos que "o conhecimento liberta".

    A possibilidade de uma pessoa ser ou no capaz de uma escolha in-teligente entre alternativas, ou de agir em conformidade com a resolu-o por ela tomada, distinta d~ possibilidade de outras pessoas lhe im-porem ou no seus desejos. Evidentemente, os dois casos esto relacio-nados. As mesmas condies que constituem coero para alguns se-ro, para outros, meras dificuldades normais a superar, dependendo da fora de vontade de cada um. Neste caso, "liberdade interior" e "liber-dade" no sentido de ausncia de coero determinaro, juntas, at que ponto uma pessoa pode fazer uso de seu conhecimento das oportunida-des. A razo pela qual ainda to importante distinguir nitidamente as duas a relao entre o conceito de "liberdade interior" e a confuso filosfica criada em torno do chamado "livre-arbtrio" ("freedom oj the wi/1"). Poucas idias contriburam mis para o descrdito do ideal de liberdade do que aquela, errnea, de que o determinismo cientfico destruiu as bases da responsabilidade individual. Voltaremos, poste-riormente (no Captulo V), a tratar desse assunto. Agora, queremos apenas alertar o leitor para essa confuso em particular e para o sofis-ma segundo o qual s estamos livres quando fazemos, de alguma for-ma, o que devemos fazer.

    4. Em Contraposio a Liberdade enquanto Poder

    No h equvoco mais perigoso, no que diz respeitoao conceito de liberdade individual, do que aquele em que se costuma incorrer ao se atribuir palavra "liberdade" outro significado ao qual j nos referi-mos rapidamente: "liberdade" no sentido de possibilidade fsica "de fazer o que eu quero", o poder de satisfazer nossos desejos, ou o grau de escolha de alternativs que se oferecem. Esta espcie de "liber-dade" aparece nos sonhos de muitas pessoas sob a forma da iluso de que podem voar, de que no esto sujeitas gravidade e podem movi-

    14 Barbara Wootton, Freedom Under Planning (Londres, 1945), pgina 10. O pri-meiro uso explcito da palavra liberdade no sentido de poder aparece, na minha opinio, em Voltaire, Le Philosophe ignorant, XIII, citado por B. de J ouvenel, De la souverainet (Paris, 1955), pgina 315: "tre vritablement libre, c'est pouvoir. Quand je peux faire ce que je veux, voil ma libert''. Parece que a partir de ento ficou associado intimamente quilo que depois (Cap. IV) teremos de distinguir como a tradio "racionalista'' de li-berdade, ou a tradio francesa.

    Liberdade e Liberdades 11

    mentar-se "livres como um pssaro" para qualquer lugar, ou ainda de que tm o poder de modificar seu meio ambiente de acordo com sua vontade.

    Este uso metafrico da palavra foi comum no passado mas, at re-lativamente pouco tempo atrs, poucas pessoas confundiam realmente a "liberdade" no sentido de "ausncia de obstculos", a liberdade que significa onipotncia, com a liberdade individual que pode ser assegura-da por qualquer tipo de ordem social. Tal equvoco s se tornou perigo-so depois de ter sido deliberadamente atrelado ao iderio socialista. Uma vez admitida essa identificao de liberdade com poder, no h li-mites para os sofismas pelos quais os atrativos da palavra "liberdade" podem ser usados para fundamentar medidas que destroem a liberdade individual. So infindveis os subterfgios pelos quais possvel le-var as pessoas a abrir mo de sua prpria liberdade em nome da liber-dade. Foi este equvoco que permitiu que a idia de liberdade individual fosse substituda pela idia de poder coletivo sobre as circunstncias e que, em Estados totalitrios, a liberdade fosse suprimida em nome da prpria liberdade.

    A transio do conceito de liberdade individual para o de liberdade enquanto poder foi facilitada pela tradio filosfica que, ao definir li-berdade, utiliza a palavra "restrio" em lugar do que, neste estudo, denominamos "coero". Talvez "restrio" fosse uma palavra mais adequada em certos aspectos, desde que se tivesse sempre em mente que, em seu sentido estrito, pressupe a ao de um agente humano res-tritivo. Neste sentido, til lembrar que restrio da liberdade impli-ca, em grande parte, impedir que as pessoas faam determinadas coi-sas, enquanto "coero" d nfase idia de compelir as pessoas a fa-zer determinadas coisas. Ambos os aspectos so igualmente importan-tes: para sermos precisos, provavelmente deveramos definir liberdade

    15 Cf. P. Drucker, The End of Economic Man (Londres, 1939), pgina 74: "Quanto menos liberdade existe, mais se fala em 'nova liberdade'. No entanto, esta nova liberdade uma simples palavra que abrange a exata contradio de t\)do aquilo que a Europa sem-pre entendeu por liberdade. ( ... )A nova liberdade que pregada na Europa, entretanto, significa o direito da maioria contra o indivduo". Woodrow Wilson demonstra que esta "nova liberdade" foi pregada tambm nos Estados Unidos, em The New Freedom (Nova Iorque, 1913); ver especialmente pgina 26: Exemplo mais recente disto um artigo escri-to por A. G. Gruchy, "The Economics ofthe National Resources Committee", A. E. R.,

    XXI~ (1939), pgina 70, na qual o autor, concordando, observa que, "para os economis-tas da Comisso Nacional de Recursos, a liberdade econmica no uma questo de au-sncia de restries s atividades individuais; ao contrrio, um problema de restries e medidas coletivas impostas a indivduos e grupos com o objetivo de se alcanar a seguran-a individual".

    16 Seria, portanto, aceitvel uma definio em termos de ausncia de restries, na qual este sentido enfatizado, como a de E. S. Corwin, Liberty Against Government (Ba-ton Rouge: Louisiana State University Press, 1948), pgina 7: "Liberdade significa au-snci de restries impostas por outras pessoas nossa liberdade de escolher e de agir".

  • 12 Os Fundamentos da Liberdade

    como a ausncia de restrio e coer~. Infelizmente, ambos os ter-mos tambm foram usados para indicar agentes no humanos que in-fluem sobre aes humanas; torna-se assim extremamente fcil deixar de definir liberdade como a ausncia de restrio para defini-la como "ausncia de obstculos realizao de nossos desejos" ou, de ma-neira ainda mais geral, como "ausncia de impedimento externo". Isto equivale a interpret-la como poder efetivo de fazer qualquer coisa que se queira.

    Esta reinterpretao da liberdade particularmente perigosa, pois influenciou profundamente seu emprego em certos pases nos quais, de fato, a liberdade individual ainda , de modo geral, preservada. Nos Estados Unidos ela se tornou amplamente aceita como fundamento de uma filosofia poltica dominante nos crculos "liberais". Famosos lde-res intelectuais "progressistas", como 1. R. Commons e John De-wey, difundiram uma ideologia na qual "liberdade poder, poder efeti-vo de fazer coisas especficas" e "exigir liberdade exigir poder", ao passo que a ausncia de coero meramente "o lado negativo da li-berdade" e "deve ser apreciada somente como um meio para a Liber-dade, que poder".

    17 The Shorter Oxford English Dictionary (Oxford, 1933) d como primeira acepo de "coerce" (coero): "To constrain, or restrain by force, or by authority resting on for-ce" (compelir ou restringir, pela fora;ou por autoridade baseada na fora).

    18 B. Russell, "Freedom and Government", em Freedom, Jts Meaning, ed. por R. N. Anshen (Nova Iorque, 1940), pgina 251.

    19 T. Hobbes, Leviathan, ed. por M. Oakeshott (Oxford, 1946), pgina 84. 20 J. R. Commons, The Legal Foundations of Capitalism (Nova Iorque, 1924), es-

    pecialmente captulos II-IV. 21 J. Dewey, "Liberty and Social Control", Social Frontier, novembro de 1935, p-

    gina 41. Cf. tambm seu artigo "Force and Coercion", Ethics, XXVI (1916), pgina 362: "Se [o uso da fora] justificvel ou no ... , em essncia, uma questo de eficincia (in-clusive economia) de meios na consecuo dos fins"; e pgina 364: "O critrio de valor est na eficincia e economia relativas do dispndio de fora como meio em vista de um fim". Dewey escamoteou o conceito de liberdade de maneira to espantosa que a crtica de D. Fosdick, What is Liberty? (Nova Iorque, 193.9), pgina 91, soa completamente jus-ta: "No entanto, a cena est inteiramente preparada para esta [identificao da liberdade com algum princpio, como o da igualdade] somente quando as definies de liberdade e de igualdade foram to escamoteadas que ambas se referem aproximadamente mesma condio de atividade. Um exemplo extremo desta prestidigitao semntica nos apre-sentado por John Dewey, quando afirma: 'Se liberdade se combina com uma dose razo-vel de igualdade, e segurana for tomada no sentido de segurana cultural e moral e tam- bm segurana material, no acho que a segurana seja compatvel com qualquer outra coisa que no a liberdade'. Depois de definir novamente dois conceitos de forma que sig-nifiquem mais ou menos a mesma condio de atividade, ele nos garante que os dois so compatveis. No h limite para esse tipo de trapaa".

    22 J. Dewey, Experience and Education (Nova Iorque, 1938), pgina 74; cf. tambm W. Sombart, Der moderne Kapitalismus, II (Leipzig, 1902), pgina 43, onde explica que "Technik" "die Entwicklung zur Freiheit". A idia desenvolvida mais completamente em E. Zschimmer, Philosophie der Technik (Jena, 1914), pginas 86-91.

    Liberdade e Liberdades 13

    5. Esses Conceitos so Incomensurveis Essa confuso do conceito de liberdade enquanto poder com o de

    liberdade no seu sentido original conduz inevitavelmente identifica-o de liberdade com riqueza; e isto permite explorar todo o conte-do atraente da palavra "liberdade" para reforar uma exigncia de re-distribuio compulsria de riqueza. Entretanto, embora a liberdade e a riqueza constituam bens, desejados pela maioria das pessoas, e sejam necessrias obteno do que desejamos, ainda assim so coisas dife-rentes. Poder decidir a respeito de minha pessoa agindo de acordo com minha prpria escolha e o fato de as possibilidades entre as quais eu es-colho serem muitas ou poucas so questes inteiramente diferentes. O corteso que vive no luxo, mas est sujeito vontade de seu prncipe, pode ser muito menos livre do que o campons pobre ou o arteso e me-nos capaz de viver sua prpria vida e de escolher as prprias oportuni-dades de sentir-se til. Do mesmo modo, o general que comanda um exrcito ou o dirigente de um grande projeto de construo podem exer-cer enorme poder, em alguns aspectos at incontrolvel, mas ainda as-sim podem ter menor margem de ao, estar mais merc de mudanas em suas intenes ou planos a uma simples palavra de um superior, ter menos liberdade de alterar suas prprias vidas ou de decidir o que para eles mais importante, do que o mais pobre lavrador ou pastor.

    Para que possamos analisar o conceito de liberdade com alguma clareza, sua definio no deve levar em conta se as pessoas consideram a liberdade algo que querem para si. Provavelmente, algumas pessoas no do valor liberdade que constitui objeto deste estudo ou no per-cebem que ela lhes permite usufruir benefcios, pessoas que estaro prontas para troc-la por outras vantagens. possvel at que elas con-siderem a necessidade de agir de acordo com seus prprios planos e de-cises mais um entrave do que uma vantagem. No entanto, a liberdade pode ser desejvel, mesmo que nem todas as pessoas faam uso dela. Teremos de verificar se os benefcios que a maioria aufere da liberdade dependem do uso que ela faz das oportunidades que a liberdade lhe ofe-rece e se a justificativa filosfica da liberdade se baseia realmente no fa-to de que a maioria das pessoas a deseja para si. Pode ocorrer que os benefcios de uma situao em que h liberdade para todos no decor-ram daquilo que grande parte das pessoas supe serem seus efeitos. Po-de at ocorrer que a liberdade exera seus efeitos benficos tanto pela disciplina que ela prpria nos impe quanto pelas oportunidades mais bvias que oferece.

    23 Cf. R. B. Perry em Freedom: Its Meaning, ed. por R. Anshen (Nova Iorque, 1940), pgina 269: "A distino entre 'bem-estar' e liberdade sucumbe totalmente, pois a liberdade efetiva do homem proporcional aos seus recursos". Isto levou outros a afir-mar que, "se mais pessoas esto comprando automveis e saindo de frias, existe mais li-berdade" (ver Cap. XVI, N? 72).

  • 14 Os Fundamentos da Liberdade

    Acima de tudo, devemos reconhecer, no entanto, que podemos ser livres e, mesmo assim, infelizes. Liberdade no implica a posse de todos os bens ou a ausncia de dificuldades. certo que ser livre pode sig-nificar liberdade de morrer de fome, de cometer erros que redundaro em perdas ou, ainda, de correr riscos mor'tais. No sentido em que em-pregamos a palavra, o mendigo sem vintm que leva uma vida precria, baseada na constante improvisao, , realmente, mais livre que o cons-crito com toda sua segurana e relativo conforto. Mas, se a liberdade, portanto, nem sempre pode parecer o melhor de todos os outros bens, ainda assim se trata de um bem distinto, que necessita de um nome dis-tinto. E, embora "liberdade poltica" e "liberdade interior" consti-tuam acepes alternativas do termo, h muito tempo usadas, que, com um pouco de cuidado, podem ser empregadas sem causar confuso, no se pode tolerar a utilizao da palavra "liberdades" no sentido de "poder". .

    De qualquer maneira, porm, no h razo para se supor que, co-mo empregamos a mesma palavra, essas "liberdades" sejam espcies diferentes do mesmo gnero. Isto gera perigosas tolices, uma armadilha verbal que leva s concluses mais absurdas.

  • 16 Os Fundamentos da Liberdade

    antiga. Os numerosos decretos de libertao dos escravos que foram en-contrados do-nos um quadro bem claro dos conceitos fundamentais. A aquisio da liberdade normalmente conferia quatro direitos. Os de-cretos para a emancipao dos escravos davam a estes, primeiro, "si-tuao legal como membro protegido da comunidade"; segundo, "imunidade contra priso arbitrria"; terceiro, "o direito de se dedicar ao trabalho desejado"; e quarto, "o direito de ir e vir de acordo com sua prpria escolha". (27)

    Nessa lista est a maioria das condies que, nos sculos XVIII e XIX, eram consideradas essenciais liberdade. Ela omite o direito propriedade somente porque at o escravo podia usufru-lo. Com a incluso desse direito, a lista contm todos os elementos necessrios pa-ra proteger um indivduo da coero; porm nada menciona a respeito das outras liberdades j citadas, sem falar em todas as "novas liberda-des" que ultimamente vm sendo apresentadas em substituio liber-dade. Evidentemente, um escravo no se tornar livre pela mera obten-o do direito de voto; e no ser, tampouco, um grau qualquer de "li-berdade interior" que far dele algo mais do que um escravo - embora muitos filsofos idealistas tenham tentado convencer-nos do contrrio. Do mesmo modo, nenhum luxo ou conforto, nem qualquer grau de po-der que ele possa exercer sobre outros homens ou sobre os recursos na-turais, ir alterar sua dependncia da vontade arbitrria de seu senhor. Mas, se ele estiver sujeito apenas s mesmas leis s quais esto sujeitos todos os seus concidados, se for imune ao confinamento arbitrrio e livre na escolha de sua atividade, e se ti