Fundamentos Rítmicos Africanos Para a Pesquisa Da Música Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina Graeff

Embed Size (px)

Citation preview

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    1/23

    Fundamentos rtmicos africanos para a pesquisa da msica afro-brasileira:

    o exemplo do Samba de Roda

    Nina Graeff

    Resumo

    Muito se fala sobre os ritmos do samba, porm ainda so poucas as fontes que contribuem paradesvendar seus mistrios. Pesquisa etnogrfica e anlise musical baseada em teorias musicolgicasafricanas revelaram diversas facetas das concepes rtmicas do Samba de Roda do Recncavo daBahia. Este artigo prope-se a apresentar tais facetas ao mesmo tempo em que esclarece fundamentosrtmicos africanos ainda pouco explorados no Brasil. A difuso das teorias africanas pode trazer novaluz etnomusicologia brasileira, oferecendo outra viso sobre a estruturao de fenmenos musicaisque no a europeia. A anlise do Samba de Roda demonstrou a presena de conceitos tais como o dos

    pulsos elementares, beats, linhas-rtmicas e frmulas cclicas tanto na execuo dos instrumentos depercusso, como nos de corda dedilhada discutidos em outro artigo , no canto e na dana. Assim

    sendo, princpios africanos revelam-se mais do que mera influncia cultural, agindo comoorganizadores temporais de toda a performance musical e exigindo sua anlise para a compreenso detradies musicais afro-brasileiras.Palavras-chave: samba de roda, ritmo, msica africana, msica afro-brasileira.

    Rhythmic principles for researching Afro-Brazilian music: the Samba de Rodas example

    Abstract

    Although much is said about sambas rhythms, there are still few sources that help disclosing theirmysteries. Ethnographic research and music analysis based on African musicological theories have

    uncovered many facets of rhythmic concepts underlying the samba de roda from Recncavo da Bahia.This paper intends to present such facets while explaining African rhythmic concepts still littleexplored in Brazil. The dissemination of African theories may bring new light into Brazilianethnomusicology, by proposing another view about structuring processes of musical phenomena otherthan the European. The analysis of Samba de Roda showed the presence of rhythmic principles, suchas elementary pulses, beats, time-line-patterns and cyclic forms, in its percussion instruments, pluckedstring instruments already discussed in another paper , as well as in its singing and dance. In thisway, African musical principles prove to be more than mere cultural influences, working as temporalorganizers of the whole musical performance and requiring their analysis for understanding Afro-Brazilian musical traditions.Keywords: samba de roda, rhythm, African music, Afro-Brazilian music.

    Introduo

    Na literatura sobre o samba existem hipteses que tentam elucidar seus fenmenosrtmicos atravs de questes lingusticas, culturais ou histricas, em vez de buscar respostasno prprio contexto e nas prprias estruturas da msica (ver LIMA, 2005) na realizaosonora das estruturas, e no em sua notao musical. Pesquisadores como Gerhard Kubik(1979), Kazadi wa Mukuna (2006), Tiago de Oliveira Pinto (1991, 2001a) e Carlos Sandroni(2001a, 2001b), no entanto, sugeriram e comprovaram a importncia de se buscar umacompreenso do ritmo do samba atravs de concepes musicais africanas. Afinal, as prticasmusicais afro-brasileiras apresentam diversos paralelos com as tradies do centro e da costaocidental da frica.

    Etnografia e anlise musical de gravaes da prpria pesquisa de campo da autora, doarquivo de Tiago de Oliveira Pinto da dcada de 80, de lbuns produzidos localmente pelos

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    2/23

    2

    grupos de Samba de Roda e de gravaes de samba do Rio de Janeiro, evidenciaram a estreitaligao da prtica musical baiana com concepes musicais africanas, especialmenteangolanas. Este artigo pretende explicar algumas concepes rtmicas africanas, a exemplodos resultados da pesquisa sobre o Samba de Roda. Sero apresentados aspectos dosinstrumentos de percusso, canto e dana separadamente, deixando os resultados da anlise da

    relao entre eles para uma publicao futura. Outro grupo de instrumentos que entram emjogo no Samba de Roda o das cordas dedilhadas violo, viola paulista, machete ecavaquinho , que, por j terem sido analisados em outro artigo (GRAEFF & PINTO 2012),no sero observados neste espao.

    Geralmente, quando se fala de ritmo, se pensa em aspectos temporais, horizontais, dedurao e sucesso de eventos sonoros, ignorando-se sua qualidade e diferenciao tmbricas.Um bom exemplo que comprova a importncia deles na configurao de um ritmo aconhecida frmula ternria conhecida na Amrica Latina por tresillo, representado emnotao ocidental da seguinte forma:

    Frmula ternria conhecida como tresillo, em notao europeia:

    Considerando somente seu aspecto temporal, como representado acima, esse ritmopode ser encontrado em diversas partes do mundo, como na msica tradicional da Coria doSul, da Turquia, da Angola e mesmo no Samba de Roda. Porm, ao se levar em conta osinstrumentos que produzem cada nota e sua acentuao, o ritmo torna-se to diverso como astradies em que ocorre. Dessa maneira, para se entender ritmos musicais, necessrioconsiderar vrios aspectos alm de sua configurao temporal tal como representada em uma

    partitura, como seu timbre, sua dinmica, suas variaes, sua microrrtmica, aspectos esses a

    serem elucidados aqui. Finalmente, tais aspectos no se fazem presentes somente eminstrumentos de percusso, mas at no canto e mesmo na dana.

    Princpios rtmicos africanos

    Para os ritmos das tradies de influncia africana, um dos princpios fundamentais justamente a estreita relao entre ritmo e timbre, como Koetting assinala:

    Os padres rtmicos do conjunto de percusso deveriam ser estudados como padres deritmo/sonoridade, no podendo ser realmente equiparados com os padres rtmicos ocidentais, nosquais ns geralmente pensamos sem incluir suas qualidades tonais e tmbricas como elementossignificativos.1(KOETTING, 1970, p. 210, trad. nossa).

    Por conseguinte, no contexto do samba, ritmoocupa ao mesmo tempo uma funo deorganizao temporal e de execuo de configuraes tmbricas que muitos msicoschamam de melodias (PINTO, 2001a, p. 100). A depender da tcnica de execuoempregada, um nico instrumento pode produzir diferentes timbres e frequncias sonoras.

    Tambm chamada de sequncia tmbrica (Timbre-Sequenz, KUBIK, 2004, s. 97),essa caracterstica do ritmo se desenvolve a partir de outro componente fundamental damsica africana: o movimento corporal. A repetio de padres mocionais responsvel pelaformao de padres musicais, como Koetting (1970) esclarece: [Na frica] nem padresnem peas tem sido, como no ocidente, caracteristicamente criadas por compositores e

    1The drum ensemble patterns should be studied as rhythm/sonority patterns and must not be too much equatedwith Western rhythm patterns, which we often think of without including pitch and tone quality as significantelements.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    3/23

    3

    coregrafos atravs de um processo predominantemente mental; em vez disso, eles parecemter sido desenvolvidos, executados e transmitidos dentro de uma tradio scio-culturalatravs da combinao de processos mentais e cinestticos2(p. 119, trad. nossa). A msicaafricana resulta de movimento, no um acontecimento apenas acstico, mas tambmmocional, no qual o movimento tem uma estrutura prpria e autnoma3(KUBIK, 2004, p.

    69). Na performance musical, o ritmo vem a ser o elo entre som e movimento, entre msicae dana, estruturando os eventos sonoros e mocionais atravs de sua repetio e variao. Emtradies africanas e no Samba de Roda a msica concebida ciclicamente, (RYCROFT,1954; KUBIK, 2004) isto , a partir da repetio constante de padres rtmicos.

    precisamente na repetio dos ciclos que surge o espao para a improvisao individual, tantomusical como coreogrfica.

    Notao rtmica: uma reflexo

    Os princpios expostos acima so essenciais para a compreenso e a transcrio de

    ritmos de influncia africana. Uma notao rtmica deve levar em considerao todos essesaspectos, concebendo os ritmos como sequncias tmbricas resultantes de repetio cclica defrmulas acstico-mocionais. Para tal objetivo, a notao musical ocidental mostra-selimitada, tendo sido criada para prescrever, e no descrever, a maneira uma msica deve serexecutada (SEEGER, 1958b). A escrita musical clssica dispe de poucos recursos paraindicar como a msica soa e como seus sons so produzidos. Ela concentra-se

    primordialmente na representao de alturas precisas de notas, de sua dinmica (acentos,forte,piano), e da organizao temporal divisveldos sons. John Miller Chernoff esclarece asdiferenas entre a compreenso ocidental de ritmo divisvel e a africana:

    [Essa] abordagem do ritmo chamada de divisvel porque ns dividimos a msica em unidades de

    tempo normatizadas (...) ritmo algo que ns acompanhamos, sendo em grande parte determinadoem relao melodia ou at mesmo definindo-se como um aspecto da melodia. (...) Na msicaocidental, ento, ritmo tem um papel definitivamente secundrio perante harmonia e melodia, tantoem sua nfase como em sua complexidade. (...) Na msica africana essa sensibilidade quaseinversa.4(CHERNOFF, 1979, p. 41-42, trad. nossa).

    Para superar os limites da notao ocidental e oferecer uma forma de escrita musicalcoerente com as concepes africanas, James Koetting (1970) aplicou pela primeira vez namusicologia o Time Unit Box System TUBS (Sistema de caixas de unidade temporal),desenvolvida por Philip Harland. As linhas de compasso tradicionais so substitudas porquadrados (caixas), dentro dos quais se podem empregar os mais diversos smbolos para

    representar timbres e tcnicas de execuo.Abaixo so ilustradas as diferenas e as desvantagens da escrita musical europeia emrelao ao sistema TUBS, a partir de um exemplo do ritmo bsico do pandeiro no samba.

    Padro rtmico comumente atribudo ao pandeiro do samba:

    2Neither patterns nor pieces have, as in the West, been characteristically created by composers andchoreographers in some predominantly mental process; they seem instead to have developed, performed, and

    passed on within the socio-cultural tradition through a combination of mental and kinesthesic processes.3Ist nicht nur ein akustisches, sondern ebenso motionales Ereignis, wobei der Bewegungsaspekt einstrukturelles Eigenleben zeigt.4

    [This Western] approach to rhythm is called divisive because we divide the music into standard units of time.() Rhythm is something we [Westerns] follow, and it is largely determined in reference to the melody or evenactually defined as an aspect of the melody. () In Western music, then, rhythm is most definitely secondary inemphasis and complexity to harmony and melody. () In African music this sensibility is almost reversed.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    4/23

    4

    Aplicao da transcrio acima no TUBS:

    _ = Batida * = Acento

    Transcrio do padro rtmico do pandeiro mais adequada, com TUBS:

    _ = Batida com o polegar no centro da pele do pandeiro / = Tapa na borda da pele_

    = Leve batida com a ponta dos dedos (se ouvem somente as soalhas)

    As duas primeiras figuras informam somente o nmero de batidas e um nico tipo deacento, do que se supe que o pandeiro executa apenas um tipo de batida, ora mais forte, oramais fraca. J a terceira imagem detalha a execuo do pandeiro rica em timbres quecaracteriza o samba, no apenas identificando trs tipos de batida diferentes, mas informandotambm como elas so executadas e, dessa forma, sugerindo suas diferentes sonoridades.

    Enquanto as linhas de compasso do primeiro exemplo dividem o padro do pandeiroem compassos de 2/4, ou seja, em um tempo forte e um fraco, divididos por quatro notas5, aterceira transcrio apresenta o padro rtmico tal como percebido por msicos de influnciaafricana: sem pontos iniciais e finais expressos pois se trata de um ciclo e sem umadiviso dependente de unidades mtricas maiores. As linhas mais grossas a cada quatroquadrados indicam a posio dos beats6dentro do ciclo, que, no entanto, perceptualmente no dividido por eles.

    A notao europeia no se presta representao de padres rtmicos cclicos, j que

    esses podem ter vrios pontos de partida e de relao com os beats, sem por isso mudar suaorganizao mtrica. Esse o caso da linha-rtmica(PINTO & TUCCI, 1992; PINTO, 2001a;time-line-pattern, NKETIA, 1991) do samba, que metricamente idntica linha-rtmica

    Kachachade Angola (KUBIK, 1979). A representao em crculos de frmulas como a linha-rtmica do samba facilita sua compreenso:

    Linha-rtmica do Samba de Angola com duas formas de representao circulares:

    Ambos os crculos exibem a mesma frmula atravs de duas convenes diferentes: aeuropeia, com semnimas e colcheias e a de Kubik, criada especialmente para ritmosmonotnicos por exemplo, ritmos executados por palmas. Os x representam batidas e os

    pontos pulsos elementares7vazios, isto , no percutidos. No TUBS a mesma frmulaapresenta-se da seguinte maneira:

    5

    A seo sobre beats mostra como essa diviso inadequada.6Os beatsequivalem na msica ocidental aos tempos fortes e fracos, mas sua concepo na msica africana bem diferente. Mais detalhes seguem adiante na seo sobre beats.7O conceito ser esclarecido na seo respectiva.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    5/23

    5

    Linha-rtmica circular do samba representada linearmente com TUBS:

    x = batida .= pulso vazio

    Quando a frmula inicia-se em diferentes pontos, a notao europeia dificulta suaidentificao. Note-se que as trs notaes abaixo representam implicitamente a mesma linha-rtmica do samba iniciando em pontos diversos:

    Linha-rtmica do samba com pontos iniciais diversos, representada em notao ocidental:

    Assim, o TUBS se apresenta como uma opo melhor para a representao dosinstrumentos de percusso do Samba de Roda. Contudo, como transcrever padres rtmico-meldicos que necessitam ainda da indicao de altura das notas? Se o TUBS oferece umaforma de ilustrar os acontecimentos horizontais ao longo da msica, ele no permiterepresentar a dimenso vertical dos eventos sonoros. Para a transcrio de cantos africanos,Gerhard Kubik adaptou o pentagrama europeu, acrescentando linhas verticais para representaros pulsos elementares e sua organizao horizontal. O esquema de transcrio de Kubik

    pareceu apropriado para transcrever as frmulas rtmico-meldicas da viola machete (verGRAEFF & PINTO 2012) do Samba de Roda, chamadas tonsou toques de machete,

    permitindo ainda a adio de linhas verticais mais grossas para a indicao dos beats:

    Toque de machete em l maior, transcrito com a notao meldica de Kubik:

    = Nota sustentada

    A notao de Kubik possibilita uma visualizao multidimensional do padro rtmico-meldico da tcnica do machete, que alterna notas individuais, intervalos e acordes.Entretanto, na tentativa de integrar as transcries do toque-de-machete em l maior e dosinstrumentos de percusso surge uma barreira: as linhas verticais dos pulsos elementares nocoincidem com as linhas dos quadrados do TUBS. A soluo encontrada foi deslocar as

    linhas, que, em vez de perpassarem as notas do pentagrama, ficam entre elas, formandoretngulos paralelos, similares aos quadrados do TUBS:

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    6/23

    6

    Toque de machete em l maioracompanhado pelo pandeiro:

    O esquema de transcrio acima se mostrou como o mais apropriado para as anlisesrtmicas do Samba de Roda que seguem. A dimenso vertical e a horizontal ficam to bemilustradas, que uma comparao direta das transcries com espectrogramas8 musicais viabilizada, contribuindo para a sua exatido:

    Espectrograma e transcrio das partes instrumentais do machete, pandeiro e timbal executando o toque demachete em l maior:

    Organizao sonora e funcional da percusso do Samba de Roda

    O conjunto percussivo do Samba de Roda se compe geralmente de membranofones eidiofones9organizados multilinearmente, como tpico nos conjuntos instrumentais africanos(KAUFFMANN, 1980, p. 398). Tal organizao multilinear reflete os nveis sonoros e aomesmo tempo funcionais dos instrumentos, o que significa que cada campo tmbrico, ou cada

    8Espectrogramas so representaes visuais multidimensionais de sinais de udio, mostrando a concentrao deenergia dos sons no tempo horizontalmente e no seu espectro de freqncias verticalmente.9Para esse tipo de classificao dos instrumentos musicais, ver Hornbostel e Sachs, 1914.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    7/23

    7

    categoria de instrumentos, ocupa uma funo especfica dentro do ensemble. Forma-se umahierarquia sonora e funcional que atua em sentido contrrio da msica ocidental, comoPantaleoni constatou na msica do povo africano Anlo:

    Em todas as danas dos Anlo acompanhadas por tambores, quanto mais agudo o instrumento,

    menos sua parte varia. Percorrendo os sons do mais grave ao mais agudo, percebe-se a mudanagradual de sinais arbitrrios e ornamentao variada at frmulas rtmicas invariveis que provma msica de impulso e timing. Na arte musical da Europa ocidental, do Barroco e posterior, a vozmais grave que mantm o tempo no ensemble, atravs do prprio ritmo meldico e harmnico[no-percussivo] criado por ela; j a voz mais aguda quem prov a ornamentao. Entre os Anloa situao exatamente inversa.10(PANTALEONI, 1972, p. 50, trad. nossa).

    As funes dos instrumentos de percusso do Samba de Roda so distribudas damesma maneira que na msica africana, formando a seguinte hierarquia, do mais agudo aomais grave:

    1. Instrumentos agudos (de som penetrante): execuo de linhas rtmicas invariveispara a orientao temporal do conjunto. Ex.: Tabuinhas, agog, palmas.

    2.

    Instrumentos de frequncia mdia (de som difuso): execuo constante dos pulsoselementares atravs de frmulas rtmico-tmbricas que pouco variam. Ex.:pandeiro11, ganz, reco-reco, maraca.

    3. Instrumentos graves: marcao (acentuao do beats) e improvisao. Ex.:atabaque e timbal.

    4. Instrumento mais grave - surdo: marcao12.De acordo com essa hierarquia, os instrumentos tm mais ou menos liberdade para

    improvisar, sendo ao mesmo tempo responsveis pela execuo dos trs nveis de orientaotemporal do Samba de Roda (PINTO, 1991), que so os mesmos da msica africana (KUBIK,2010): a pulsao elementar, os beats e a linha-rtmica.

    Nveis de orientao temporal

    Pulsao elementarPulsos elementares so as menores unidades subjetivas de tempo da estrutura rtmica

    africana (KUBIK, 2004, p. 87). Cada batida da percusso coincide com um pulso elementar.Richard Waterman (1953, p. 78) foi o primeiro pesquisador e se referir a essa pulsaomnima da msica africana, denominando-a senso metronmico (metronom sense). Sensorelaciona-se com o fato de o msico sentir a pulsao subjetivamente. Em outras palavras,mesmo que ele no a escute, a pulsao atua como uma matriz temporal que vai guiar osacontecimentos sonoros e, como veremos mais adiante, coreogrficos.

    O Samba de Roda se compe de ciclos de 16 pulsos elementares. Esses so sentidostanto subjetivamente, podendo ser observados nos movimentos dos msicos e danarinos,como tambm quase sempre acusticamente. A sonorizao contnua dos pulsos elementaresno trata-se de uma sucesso de batidas iguais: varia de acordo com as frmulas acstico-mocionais que as produzem, gerando sequncias tmbricas especficas. Entre os instrumentosque produzem essas sequncias tmbricas esto o pandeiro, tringulo, chocalho, e o prato-e-faca.

    10In every Anlo dance drumming the higher the pitch of an instrument the more unvarying its part. As onetraverses the range from low to high, one moves from arbitrary signals and varied decoration to invariable

    patterns that provide gait and timing. In Western European art music of the Baroque and later, the lowest voicetimes the flow of the ensemble by its own melodic rhythm and by the rhythm of harmonic change which it

    creates; the highest voice provides the decoration. Among the Anlo the situation is just the reverse.11A funo do pandeiro se diferencia da dos outros instrumentos intermedirios, como explicado mais adiante.12A introduo do surdo pode ter criado essa nova funo, na qual o instrumento grave no pode improvisarlivremente. Mais detalhes na seo sobre beats.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    8/23

    8

    A pulsao elementar na msica africana levanta at hoje controvrsias13. Por um lado,h dificuldades em se comprovar sua existncia por se tratar de um processo subjetivo,inconsciente dos msicos14. No caso do Samba de Roda, a percepo dos pulsos elementaresno apenas subjetiva, mas tambm acstica. Por outro lado, considera-se que a pulsaoelementar deveria ser isocrnica, quer dizer, que as distncias temporais entre as batidas

    deveriam ser exatamente iguais o que praticamente impossvel, inclusive para msicos quetreinam com metrnomo. No entanto, a suposta isocronia no se refere a uma exatidotemporal, mas sim a uma rede flexvel (PINTO, 2001a, p. 103), ou flexibilidade da matriztemporal.

    Tal no-isocronia costuma ser entendida pelas pesquisas microrrtmicas comodiscrepncias participatrias (KEIL, 1987). No entanto, ela um fenmeno natural do serhumano, sendo inerente prtica musical, e no uma discrepncia, um desvio da norma.Bengtsson (1975) percebeu que tais variaes ocorrem em alguns gneros musicais de formasistemtica, caracterizando-os, enquanto Gerischer (2003) identificou o padro de variao dosamba baiano. No caso do samba, tanto baiano como carioca, aquilo que chamaremos depadro microrrtmico claramente visvel em espectrogramas:

    Padro microrrtmico do samba, no Recncavo Baiano e no Rio de Janeiro:

    As batidas 2 de cada beat so curtas, a batida 3 um pouco mais longa, seguida da

    primeira e da quarta batida, a mais longa de todas. As setas demonstram em que sentido asbatidas se desviam de uma pulsao hipoteticamente isocrnica. As linhas mais escuras(pulsos 1 e 4) indicam uma maior intensidade, ou seja, a acentuao dessas batidas. Assim, o

    padro microrrtmico do samba consiste, de acordo com as teorias microrrtmicas emintervalos entre entradas sonoras(IOI Interonsetintervals), isto , distncias temporaisentre as articulaes sonoras, na seguinte ordem: mdio curto mdio longo (MSML

    Medium, Short, Medium, Long), como verificou Christiane Gerischer (2003).

    A partir do exemplo do samba, fica claro que a formao desse padro microrrtmicoresulta diretamente dos movimentos corporais empregados no momento de sua execuo. O

    13

    Ver Pfleiderer (2006, p. 141-142) e Polak (2010, par. 4-5).14Contudo, Kubik (1983b) encontrou variadas expresses africanas que se referem aos pulsos elementares,como, por exemplo, formigas que mordem (p. 334), comprovando a existncia mesmo consciente desseconceito.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    9/23

    9

    primeiro e quarto pulso de cada beat so acentuados devido ao maior movimento da mo oudo brao, o que, consequentemente, atrasa a prxima batida. Assim, esses pulsos soam pormais tempo do que as batidas mais fracas. As batidas mais fracas, muitas vezes quaseimperceptveis, so produzidas por pequenos movimentos corporais. A prxima figura umatentativa de representar a relao entre o padro microrrtmico do samba com os movimentos

    corporais que os produzem, e a frmula bsica do pandeiro:

    Padro microrrtmico do pandeiro em relao com os movimentos que o produzem:

    Esse padro acstico-mocional no exclusivo do pandeiro; ele se aplica a qualquerinstrumento musical ou objeto ganz, reco-reco, tambor, caixa de fsforos, mesa, etc. e,assim, surge de diferentes tcnicas de execuo, podendo ser tocado pelos dedos, braos,mos e assim por diante. Independente disso, o microrritmo, o groove do samba permaneceo mesmo, sendo identificado por qualquer brasileiro como samba.

    O mesmo padro microrrtmico encontrado no leste da Angola, onde recebe o nomede machakili. Kubik (1983b) desenhou os movimentos do brao ao executar essa frmula comum chocalho (p. 382), onde se percebe a mesma relao entre a durao dos sons e osmovimentos que os produzem. As slabas de ma-cha-ki-li imitam os quatro sons emitidos15,comeando antecipadamente: cha acentuado e cai no primeiro pulso; ki e li sofonemas curtos nos pulsos 2 e 3; ma cria o impulso para enfatizar o cha. A comparaoentre espectrogramas de sambas do Recncavo Baiano, do Rio de Janeiro e do machakili de

    Angola comprova seu parentesco, j sugerido por Oliveira Pinto16:

    15Em muitas cultural musicais africanas comum aprender e identificar frmulas rtmicas so aprendidasatravs sequncias silbicas relacionadas aos sons produzidos, ver seo sobre o canto.16Em palestras e aulas.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    10/23

    10

    Padres microrrtmicos idnticos da Bahia, Rio de Janeiro e Angola 17:

    Beats/marcaoBeat s, ou pulsos graves (gross pulses, KOETTING, 1970), agrupam os pulsos

    elementares em unidades maiores e simtricas de tempo, geralmente de trs, quatro ou cincopulsos (KUBIK, 2010). O conceito africano dos beatsse distancia da concepo europeia dospulsos. A teoria musical ocidental os entende como subordinados a uma hierarquia deunidades dominantes e dominadas (JACKENDOFF & LERDAHL, 1983), ou seja, de temposmais fortes, mais importantes, e de tempos fracos. J na msica africana, os beats soconcebidos como uma das unidades mtricas que servem como referncia temporal paramsicos e danarinos (KUBIK, 2010), no sendo percebidos como mais ou menosimportantes.

    No Samba de Roda, os beats podem aparecer, tanto nos sons percussivos mais gravescomo na dana, a cada quatro pulsos elementares, dividindo os ciclos de 16 pulsos em quatro

    partes. So os tambores mais graves e o pandeiro que assumem o papel de marcar, isto , de

    ressaltar os beats, podendo ao mesmo tempo improvisar. Essa funo tampouco implica emuma execuo montona dos respectivos pulsos: os beats so acentuados em meio a frmulasrtmicas, como no seguinte exemplo:

    Padro de marcao bsico do Samba de Roda atual:

    _ = Batida longa no meio da pele _ = Batida abafada no meio da pele_ = Batida curta (interrompida pela prxima batida) no meio da pele . = Pulso vazio

    A ordem dos beats irrelevante em expresses musicais que no funcionam de acordo

    com uma hierarquia de pulsos mais fortes e mais fracos, mas que cclica. Segundo Locke(1988), isso torna a determinao de um ponto inicial de certa forma inapropriada, e de fato

    pesquisas de campo mostraram que as frmulas podem ser introduzidas de diversasmaneiras18(LOCKE, 1988, p. 65, trad. nossa). Sendo assim, no existe um primeiro beat

    propriamente dito, a no ser em relao com as outras frmulas.O surdo exerce o papel de executar exclusivamente a marcao. Ainda que o

    percussionista varie ocasionalmente uma batida ou outra, ele no deve parar de acentuar osbeats para improvisar livremente, como se faz com os outros tambores. A introduo tanto dosurdo como de sua funo de pura marcao apresentam-se como inovaes no Samba de

    17

    Se o padro de Angola parece inexato no espectrograma, deve-se provavelmente ao curioso fato de ser ummenino de apenas 5 anos que o executa. A gravao de Kubik (2010).18[This] makes the designation of a beginning point somewhat inappropriate, and indeed, field research showedthat the pattern may be launched in various ways.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    11/23

    11

    Roda19. Especula-se que o instrumento tenha sido inventado no Rio de Janeiro pela dcada de30 (SANDRONI, 2001a), com a finalidade de adaptar o samba ao carnaval de rua, j que osamba que se tocava at esse momento no era apropriado para andar ou marchar durante ocortejo (SANDRONI, 2001a, p. 137).

    Tal hiptese ganha foras ao compararmos as frmulas atuais de marcao do surdo

    do Rio de Janeiro e do Recncavo Baiano com o padro rtmico dos atabaques/timbais doSamba de Roda da dcada de 80:

    Padro de marcao do surdo no Rio de Janeiro e no Recncavo Baiano:

    Padro do timbal tambor grave no Samba de Roda dos anos 80:

    _: Batida leve com a ponta dos dedos, quase imperceptvel

    A frmula do Rio de Janeiro pode ser executada por diversos surdos20

    e conter aindaoutras batidas, preservando os beats tal como ilustrados. Essa frmula divide claramente ociclo em um e dois, servindo de suporte rtmico para as caminhadas do cortejo. Nasgravaes antigas do Recncavo Baiano, a frmula carioca aparece exclusivamente em outroscontextos musicais que no o do Samba de Roda21, como no ritmo de ijex executado nolindram (Graeff 2013). Na poca, parecia no existir no contexto do Samba de Roda afuno da marcao do Rio de Janeiro, fato que vem a ser coerente com a hierarquia defunes da percusso africana esboada por Pantaleoni, mencionada anteriormente. O padrodo timbal mantinha todos os beats iguais, sem enfatizar nenhum deles. Assim, tudo indica queo surdo trouxe consigo no apenas uma nova sonoridade para o Samba de Roda, comotambm um novo padro rtmico e uma nova funo orientadora do ritmo.

    Linha-rtmicaLinha-rtmica (PINTO & TUCCI, 1992) ou time-line-pattern(NKETIA, 1991) um

    padro rtmico repetido constantemente por um nico som, ao contrrio das demaissequncias tmbricas. A linha-rtmica funciona como o principal nvel de orientao temporalnas culturas africanas que a empregam, tendo que ser executada por um instrumento defrequncia aguda e de som penetrante, a fim de se sobressair e ser distinguida por todos osmsicos do conjunto.

    Linhas-rtmicas possuem uma estrutura interna assimtrica e se estendem no sambasobre ciclos de 8 ou 16 pulsos elementares. Sua estrutura assimtrica significa que um ciclono divisvel pelo nmero de batidas (KUBIK, 2008, p. 381, trad. nossa), ou que a tentativade dividi-lo no resulta em partes simtricas. Assim, por exemplo, as batidas de um ciclo de

    19A sambadeira Nicinha de Santo Amaro explicou que o novo contexto est exigindo o emprego do surdo noSamba de Roda, em funo da amplificao dos instrumentos em apresentaes pblicas (cf. Graeff 2012).Comunicao pessoal, maro de 2010, Santo Amaro da Purificao, 2010.20Ver Pinto e Tucci, 1992, p. 42-43. As duas batidas diferentes, uma longa e uma muda ou surda, sodenominadas pelos sambistas pergunta e resposta, podendo ser executadas respectivamente por surdosdiversos.21Nas canes Fiz a baiana desabafar e Chorinho de criana, gravaes do arquivo de Tiago de OliveiraPinto com particularidades musicais divergentes das do Samba de Roda, distingue-se o padro de marcao

    carioca, executado pelo timbal. Entretanto, como o pesquisador informou pessoalmente em maio de 2011, essacano pertencia a um outro repretrio, como diziam os msicos, um repertrio de msicas de Salvador. interessante como os mesmos msicos que tocavam sambas tradicionais da regio tambm se ocupavam comestilos musicais urbanos, sem deixar que as tcnicas de um repretrio interferissem nas de outro.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    12/23

    12

    16 pulsos elementares o dividem em duas partes de 7 ou 9 pulsos elementares, em vez de duaspartes simtricas de 8. A seguir so ilustradas linhas-rtmicas frequentes no Samba de Roda:

    Linhas-rtmicas comuns no Samba de Roda:

    x = Pulso percutido . = Pulso vazio

    So as palmas, as tabuinhas e o agog que cumprem a funo de manter a linha-rtmica. O agog consiste de dois pequenos sinos de freqencia diferente, que hoje em dia so

    tocados alternadamente, sem que se possa verificar uma regra para essa alternao. J nasgravaes antigas, quando se escuta uma linha-rtmica com mais de uma frequncia, aalternao de sons gera frmulas meldicas especficas. Segundo Guegueu de Santo Amaro22,antigamente no existia o agog; o que se tocava era um instrumento de sino nico, at hojeconhecido no candombl como g. possvel que a introduo do agog represente umamodificao na prtica musical, na qual a linha-rtmica diminui sua importncia comoorientadora temporal do conjunto.

    ImprovisaoA estrutura rtmica formada pelos pulsos elementares, beats, pela linha-rtmica e pelas

    variadas seqencias tmbricas que deles resultam, constitui um fundamento estvel para as

    linhas improvisadas do solista23 (MAULTSBY, 1990, p. 193, trad. nossa). Por isso serfundamental na msica africana que a percusso se alicerce sobre ciclos repetitivos e sobre

    padres rtmicos. Embora essa caracterstica soe montona para uma esttica musicalocidental, desacostumada a variaes de timbre horizontais24, justamente a repetio que

    permite a ornamentao musical e a expresso individual, tanto dos msicos improvisadorescomo dos danarinos.

    Como observado anteriormente, alguns instrumentos do Samba de Roda tm maisliberdade para abrir mo de seus respectivos padres rtmicos e improvisar. Esse o caso dostambores graves atabaques e timbais e dos pandeiros. Os demais instrumentos variamapenas em propores muito pequenas, tocando, por exemplo, uma batida fora do tempo ouduplicando-a. Este estudo deixar a anlise detalhada da improvisao instrumental para

    pesquisas futuras, por se propor a examinar os princpios formais e elementos comuns doSamba de Roda. Nesse sentido, verifica-se um tipo de variao comum na parte do timbal:

    22Guegueo, do Grupo Razes de Santo Amaro, em comunicao pessoal, maro de 2010, Santo Amaro daPurificao.23A stable foundation for the improvised lines of the soloist.24Na esttica europeia se aprecia a combinacao vertical de diferentes timbres, isto , diferentes instrumentaes.

    Por exemplo, um trio com piano oferece trs linhas tmbricas: violino, violoncelo e piano. H uma variaovertical, mas, no desenrolar horizontal da msica, cada timbre permance basicamente o mesmo. apenas nosculo XX que os compositores de msica erudita vo realmente explorar as diferentes possibilidades sonoras deum mesmo instrumento, variando seus timbres horizontalmente.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    13/23

    13

    Variao recorrente do timbal no Samba de Roda, em comparao ao seu padro rtmico bsico:

    _ = Batida no centro da pele _ = Batida abafada no centro da pele/ = Tapa na borda da pele . = Pulso vazio

    Multifuncionalidade rtmica do pandeiro

    Os brasileiros desenvolveram suas prprias e variadas tcnicas de execuo para opandeiro, instrumento de origem rabe, que remetem a conceitos musicais africanos. Surge aseguinte questo: por que o pandeiro tornou-se smbolo da msica afro-brasileira, sendo partefundamental no somente de diferentes estilos do samba, como tambm de outros gnerosmusicais brasileiros como a capoeira? Ao observarem-se as diversificadas possibilidadessonoras e funcionais do instrumento dentro do conjunto percussivo fica clara a razo de suaimportncia.

    O pandeiro o instrumento de percusso que cumpre, alternadamente, vrias funes:ele preenche os pulsos elementares, marca os beats, executa ocasionalmente a linha-rtmica etem grande liberdade para improvisar. Atravs disso o instrumento demonstra umafuncionalidade especfica: representar a integrao dos diversos nveis rtmicos, dos diversos

    padres percussivos presentes no samba. De acordo com Willie Anku (1997) trata-se dapercepo multirrtmica, uma capacidade de msicos influenciados por concepesmusicais africanas de perceber a integrao de todos os padres rtmicos, e no somente cadafrmula isoladamente:

    Ainda que esse tipo de performance no seja tpico na percusso [da etnia africana] Akan, opercussionista capaz de executar, em vez de padres rtmicos pr-determinados como a tradioos prev, aquilo que ele percebe como resultante de sua integrao. (...) O ritmo emergente podeser definido como uma seleo aleatria e esttica de um contnuo de picos de proeminncia dos

    padres sonoros, a partir de uma palheta de ritmos integrados. O ritmo final, no entanto, umresultado mais definido da integrao, concebido monoliticamente. (...) A percepo intrnseca dasincronizao temporal das vrias partes componentes do conjunto est fortemente impregnada naconscincia do performer e nas expectativas perante os ritmos que acabam emergindo.25 (ANKU,1997, p. 213, trad. nossa).

    Esse fato poderia esclarecer o que faz o pandeiro ser to essencial para a performancedo samba: qualquer formao espontnea de uma roda de samba encontra neste prtico, leve e

    pequeno instrumento a resumida integrao de toda a bateria do samba com suas diferentesfunes rtmicas. No necessria nenhuma outra percusso para se escutar o ritmo bsico dosamba.

    25Even though this manner of performance is not typical in Akan drumming, the drummer is able to do so notby playing a succession of predetermined isolated patterns as traditionally prescribed but by performing what heperceives as the expectancies of the integration (...). The emergent rhythm may be defined as a random and

    aesthetic selection of a continuum of peaks of prominence of sound patterns, from a palette of integratedrhythms. The resultant rhythm, however, is a more definite outcome of an integration, conceived monolithically(). The intrinsic perception of time synchronization of the various composite parts of the ensemble is to a greatextent embedded in the performers awareness and expectancies of the emergent and resultant rhythms.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    14/23

    14

    As particularidades do pandeiro vo alm do aspecto rtmico, abrangendo tambmuma questo esttica26. Pandeiros dispem de uma grande diversidade sonora ao integrar osvariados timbres de um membranofone, de um pequeno tambor, com o som difuso das soalhas

    que o tornam ao mesmo tempo um idiofone. Msicos tradicionais africanos tm um idealsonoro divergente do europeu de sons puros e afinados, demonstrando uma preferncia

    por um complexo sonoro que inclui sons percussivos e sons que produzem rudo27

    (NKETIA, 1991, p. 150, trad. nossa). comum em tradies africanas e afro-brasileirasacrescentar tambores, xilofones, arcos musicais como o berimbau e seu o caxixi deinstrumentos ou objetos que produzem um som difuso, como as soalhas do pandeiro. Dessamaneira a execuo do instrumento principal a pele do pandeiro, as tbuas do xilofone, acorda do berimbau produz um rudo secundrio28.

    Nesta pesquisa identificaram-se principalmente os seguintes padres rtmicos dopandeiro:

    Padres rtmicos do pandeiro recorrentes no Samba de Roda:

    _ = Batida do polegar no meio da pele _ = Batida do polegar prxima borda da pele

    _= Forte batida com a mo inteira no meio da pele _ = Batida fraca com as pontas dos dedos na pele/ = Tapa com a mo inteira na pele * = Acento

    A primeira frmula representa a tcnica de execuo do instrumento comum adiferentes estilos de samba. O padro seguinte, executado pelo professor Paulinho da EscolaDid em Salvador, o que integra os diferentes ritmos do samba, sendo possvel observar atmesmo o padro de marcao um e dois do surdo, latente nas diferentes batidas do polegar.Tanto essa como as duas prximas frmulas constituem-se de ciclos de 16 pulsos elementares,dentro dos quais dois acentos off-beatso regularmente acentuados dentro do terceiro beat29.Tais acentos parecem ser caractersticos do Samba de Roda, mesmo quando no presentes no

    padro do pandeiro como nos exemplos 1 e 5 , sendo executados por outros instrumentos.Alm disso, chama a ateno a diferena de acentuao sistemtica entre os trs primeiros

    exemplos e os dois ltimos: nos exemplos 1, 2 e 3, os quartos pulsos de cada beat soenfatizados, enquanto que nos exemplos 4 e 5, os prprios beats so acentuados, o que lhesconfere um carter de galope. Essa sensao de galope s se verifica no toque de pandeirode antigos mestres do Samba Chula.

    As anlises dos padres rtmicos do pandeiro no Recncavo Baiano ainda revelaramum estilo pessoal de sua execuo. Mestre Vav, renomado percussionista de Samba de Roda,

    26Ambas as particularidades do pandeiro foram observadas tambm por outros autores (PINTO & TUCCI, 1992;CROOK, 2007). Frederick Moehn (2009) ofereceu recentemente novos dados interessantes sobre as

    possibilidades sonoras do pandeiro.27Vorliebe fr ein musikalisches Gefge, das perkussive Klnge enthlt bzw. Klnge, die das Gerusch im

    Verhltnis zum Ton verstrken.28Esse ideal sonoro se reflete ainda no canto do Samba de Roda (GRAEFF 2013).29Aqui se pode determinar a ordem dos beats porque ela se relaciona aos outros ciclos paralelos, tanto da

    percusso como do canto.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    15/23

    15

    capoeira e candombl na regio de Santo Amaro, falecido em 1996, tinha tal destreza emexecutar diversos instrumentos e padres rtmicos tradicionais de diferentes contextosmusicais, que desenvolveu um estilo prprio de toc-los, alcanando novas dimenses com

    base na prpria criatividade e capacidade tcnica30 (PINTO, 1991, p. 89, trad. nossa). Apeculiaridade de seu toque de pandeiro resulta de um movimento exagerado de seu brao

    direito, que impulsiona a execuo do padro inteiro, sendo facilmente identificado em vdeosdos anos 80. O movimento to largo, que a cada repetio um pulso elementar fica vazio:

    Padro do pandeiro de Mestre Vav:

    _ = Batida prxima borda da pele / = Tapa com a mo inteira na pele_ = Batida fraca com as pontas dos dedos na pele _= Forte batida com a mo inteira no meio da pele_ = Largo movimento ascendente do brao _ = Largo movimento descendente do brao. = Pulso vazio

    Canto

    Aspecto pouco abordado em anlises musicais, a organizao rtmica do cantodemonstra na pesquisa do Samba de Roda a sua relevncia para a compreenso de gnerosmusicais. O canto do Samba de Roda no apenas apresenta caractersticas peculiares,diferenciando-o de outros gneros musicais, como comprova claramente, mais uma vez, aampla dimenso que conceitos rtmicos africanos podem abranger. Um princpio musical daetnia africana Venda, pesquisada por John Blacking, parece ser vlida no Samba de Roda:A msica venda no se fundamenta na melodia, mas na decorao rtmica de todo o corpo,do qual o canto apenas uma extenso31(BLACKING, 1973, p. 27, trad. nossa).

    A maioria das frases meldicas do Samba de Roda no comea no beat, mas sim nosegundo ou quarto pulso elementar de um beat, maneira do antecipado, aspecto comum doSamba de Roda (PINTO, 1991). Independente do estilo regional ou forma dos textos, tanto as

    parelhas da chula, quanto os puxadores de corridos e os coros cantam dentro de frmulasrtmico-meldicas estruturadas com os mesmos princpios da linha-rtmica. Cada slaba eisso significa cada articulao meldica coincide com um pulso elementar dentro de umaconfigurao cclica e assimtrica. Texto e melodia variam sobre um mesmo padro rtmico:

    30Neue Dimensionen aufgrund eigener Kreativitt und technischen Knnens.31Venda music is founded not on melody, but on a rhythmical stirring of the whole body of which singing is

    but one extension.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    16/23

    16

    Estrutura rtmica de No meu castelo de sonho, grupo Filhos da Pitangueira:

    Linha-rtmica latente32

    : . x . x . x x . x . x .(x)x . x

    Dessa forma, uma linha-rtmica serve sempre de base para o desenrolar do canto, fato

    presente tambm nos toques-de-machete (GRAEFF & PINTO 2012). Entretanto, essa frmulano permanecer a mesma ao longo da performance inteira, como prev o princpio da linha-rtmica. As performances encadeiam vrias cantigas diferentes que se estruturam sobrefrmulas rtmicas e meldicas variadas, porm sempre com uma linha-rtmica inerente. Logo,independente da variao ou improvisao dos textos e melodias, sua estrutura ser sempreassimtrica, mesmo quando os versos sejam de poucas slabas:

    Estrutura rtmica de Eu vi a ema, grupo Suspiro do Iguape:

    Linha-rtmica inerente (possvel): x . (x) . (x)x . x . x . (x)x . (x) .

    To rgida assimetria da estrutura do canto pouco ocorre em outros gneros musicais,mesmo no samba carioca, que se compe de frases meldicas sincopadas, porm mais livres,sem basear-se em linhas-rtmicas ou frmulas pr-concebidas. Entretanto, outros gnerosmusicais baianos como o ax, o pagode e o afox empregam frmulas rtmicas assimtricas ainda que no to estveis como no Samba de Roda. Os sambas do baiano Dorival Caymmiso igualmente marcados por essa concepo rtmica, como o exemplo seguinte demonstra:

    32As sublinhas identificam os beats.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    17/23

    17

    Estrutura rtmica de Maricotinha, de Dorival Caymmi:

    O princpio vale tambm para os cnticos do candombl. A diferena que aacentuao das slabas coincide de fato com a linha-rtmica sendo executada pelo G. Aformao de padres rtmico-meldicos uma necessidade em tradies orais, como explicaLhning (2001):

    Enquanto no Ocidente a fixao escrita e/ou visual seria a principal fonte de memria, dentro douniverso da palavra e do texto musical no fixado podemos observar que a cantiga, letra-melodia-percusso, serve como uma ajuda mnemnica: ela estrutura a fala, d contornos, ajuda naestruturao da memria. A dupla codificao, pela msica e pela palavra cantada, faz certamentecom que a informao passe por processos de fixao mais intensos e abrangentes nas estruturasmentais. (LHNING, 2001, p. 28).

    E se falamos em processos mnemnicos relacionados com ritmo, temos de recorrer ligao entre linguagem e msica na frica. Nas lnguas africanas tonais, como o bantu e oiorub, as melodias se formam de acordo com os tons das slabas entoadas (NKETIA, 1991, p.219). Esse certamente no mais o caso do Samba de Roda, cantado em portugus, mas podeter sido responsvel pela formao original das suas seculares cantigas.

    Segundo Kubik, crianas decoram as linhas-rtmicas atravs de slabas mnemnicasou mnemnicos verbais (KUBIK, 1972). As prprias slabas indicam a estrutura rtmica dalinha-rtmica. A sequncia mnemnica por trs da frmula Kachacha, a mesma do samba,

    ___ ___ ___ ___l_ ___ ___ ___l_ (KUBIK, 1979, p. 17). Mais tarde, opesquisador verifica que os fonemas ne mfuncionam somo slabas mudas, coincidindoprecisamente com os pulsos elementares vazios e formando acentos off-beat (KUBIK, 1983a,p. 54-55).

    Se no Samba de Roda e no candombl as linhas-rtmicas so a principal orientaotemporal da performance, resulta natural que o ritmo das cantigas se atrelem a elas ou oritmo das linhas-rtmicas que se atrelaram s slabas cantadas em idiomas africanos no

    passado. natural tambm que a necessidade de estruturas rgidas que colaborem namemorizao dos cantos seja substituda por sua fixao atravs da notao musical e degravaes. O msico ter a liberdade de interpretar melodia e ritmo vontade, transformando-

    os.

    Dana

    A relao estreita entre msica e dana em sociedades africanas uma evidncia paraos pesquisadores da rea. Assim como samba designa simultaneamente um gnero musical,um tipo de dana e um evento, no h termos nos idiomas africanos para designar msica oudana isoladamente (KUBIK, 2004), da maneira como ocidentais as compreendem. Msicasurge do movimento, constituindo-se de padres mocionais, assim como a dana interage coma msica, estimulada pelos seus sons (WULF, 2007). No entanto, pouco se sabe a respeito dainterao entre essas duas esferas, mesmo no que se refere a outras culturas tradicionais. Em

    que nveis rtmicos a msica executada em uma roda de samba determina os passos e gestosdos danarinos?

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    18/23

    18

    Uma das razes para a escassez de anlises da relao entre msica e dana est nasdificuldades quase instransponveis de represent-la graficamente. Se aqui foi necessria umaseo exclusiva para a reflexo sobre a forma mais adequada de representar os eventossonoros do Samba de Roda, a dana revela-se ainda mais complexa. Enquanto a msica seestende verticalmente pelas variadas frequncias sonoras e horizontalmente no tempo,

    necessitando de, no mnimo, duas dimenses para sua representao, as dimenses da danaso mltiplas. Elas implicam o deslocamento de diversas partes do corpo em vrias direes eem momentos diferentes. Tentar unificar a multidimensionalidade de eventos sonoros com ade movimentos complexos se torna ainda mais complicado.

    Tais dificuldades podem estar sendo superadas atravs de mtodos computacionais ecognitivos, que, no caso do samba carioca, tm sido desenvolvidos por Marc Leman e Luiz

    Naveda, sendo reunidos na tese de doutorado do ltimo (NAVEDA, 2011). O computadordesenha o desenvolvimento mocional das diferentes partes do corpo ao longo do tempo, a

    partir de vdeos de danarinos profissionais, direcionados especialmente para osexperimentos. Os grficos resultantes so apresentados em relao com os beats da msica esuas subdivises33.

    Apesar de muito bem-sucedido, esse mtodo se limita momentaneamente identificao de relaes peridicas de passos e gestos bsicos do samba, deixando de ladoaspectos da improvisao aspectos menos relevantes no samba carioca que no Samba deRoda. Alm disso, as relaes identificadas permanecem no plano de uma linha de pulsoselementares e beats uniformes, sem poder considerar as diferentes sequncias tmbricas.Futuramente seria interessante desenvolver esse mtodo procurando adequ-lo a culturastradicionais, nas quais a diversidade de passos, gestos e possibilidades de improvisao geralmente maior.

    A dana do Samba de Roda transcende movimentos peridicos que coincidem compulsos elementares, assemelhando-se s danas de culturas africanas:

    Pode haver grande liberdade de improvisao e cada um pode variar e ampliar, de vrias maneiras,seus movimentos bsicos de acordo as frmulas rtmicas tocadas pelo percussionista principal ou

    por outros instrumentistas, que formam uma base de orientao para a dana; ou ento osdanarinos podem encadear e organizar seus virtuosos movimentos a partir da integrao dosritmos resultantes dos diferentes instrumentos do conjunto. costume que um bom danarino tentereproduzir de uma determinada forma os ritmos da msica atravs de sua dana.34 (NKETIA,1991, s. 260, trad. nossa).

    Assim, a anlise coreogrfico-musical do Samba de Roda impe outra barreirareferente a duas caractersticas que o distingue, junto das danas africanas, de outras tradiescoreogrficas: opolicentrismoe a multiplicao(GNTHER, 1969). Porque a dana africanaconcebe diversas partes do corpo, e no o corpo inteiro, como propulsor dos movimentos, odanarino isola esses mltiplos centros policentrismo para a realizao de diferentes

    padres mocionais (op. cit .). Como representar em uma nica notao os diversosmovimentos das mos, dos braos, dos ps, dos joelhos, dos quadris, ao mesmo tempo?

    33A interpretao de Naveda diverge da empregada aqui, no se baseando em pulsos elementares. O autor parteda viso mais comum do samba, que lhe atribui um compasso binrio, isto , de dois tempos em nossoentendimento dois beats que so novamente divididos em quatro partes aqui compreendidos como os quatro

    pulsos elementares de cada beat.34Scales, modes and other details of tonal organisation contribute to the total impact of a piece of music on thedancer and may influence the expressive quality of his dance. Generally, however, it is rhythm that is articulated

    in the basic movements employed in the dance - the rhythm of a song where this is clearly defined for thepurpose of the dance, or rhythm played by melodic and non-melodic instruments. These rhythms which governthe choice of movement sequences or the grouping of such sequences may be complex and may be organisedlinearly or multilinearly.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    19/23

    19

    J a multiplicao a tcnica africana de despedaar uma sequncia de movimentossimples e unificada em vrias moes (op. cit., p. 31, trad. nossa). Se nas danas ocidentaisum dos ps suporta o peso do corpo, enquanto as outras partes realizam os movimentos, nasdanas africanas o prprio passo de apoio do corpo dividido em vrios momentos. Essatcnica explica a dificultosa tentativa de reconhecer nos passos do famoso miudinho do

    Samba de Roda sobre qual lado do corpo o danarino est se apoiando. Gnther (op. cit.) atmenciona um movimento tpico da dana Jazz walk que se assemelha ao miudinho:Frequentemente o p que carrega o peso, rigidamente preso ao cho, arrastado para trs emsua segunda moo por um leve deslize (p. 31).

    Os diversos tipos de movimento fundamentam-se sobre o mesmo alicerce rtmico dapercusso. Embora uma anlise ideal que integre os diferentes nveis rtmicos da msica e dadana seja difcil na falta de mtodos adequados, a observao atenta dos danarinos doSamba de Roda mostra que a dana incorpora as quatro funes rtmicas da percusso, comoo pandeiro. Os movimentos das diferentes partes do corpo so capazes de representarsimultnea e alternadamente os pulsos elementares, os beats, a linha-rtmica e a improvisao:

    1. No constante movimento dos quadris e nos curtos passos se refletem os pulsos

    elementares;2. A troca de apoio sobre o lado direito e o lado esquerdo do corpo se d sobre o beat;3. Nos momentos de improvisao, diferentes partes do corpo movem-se mais

    enfaticamente, resultando em acentos coreogrficos que coincidem com as batidasda linha-rtmica;

    4. O movimento dos ps incorpora o padro microrrtmico do samba.

    A seguir procura-se ilustrar os movimentos do passo bsico do samba com a ajuda dosistema TUBS:

    Passos bsicos do Samba:

    D / E = Amplo movimento do lado direito/esquerdo d / e = Curto movimento lado direito/esquerdo_ = Apoio principal do corpo + = Curto movimento dianteiro!= Amplo movimento anterior arrastando o p no cho - = Calcanhar volta ao cho

    Na figura acima se pode notar que principalmente os ps tendem a executar o mesmopadro microrrtmico dos instrumentos de percusso: os quartos pulsos so acentuados eenvolvem os movimentos mais amplos; os primeiros pulsos so amplos e servem de apoio

    para o peso do corpo; os segundos e terceiros pulsos so curtos e quase imperceptveis.Registre-se ainda que o som dos ps que no miudinho friccionam o cho constantemente assemelha-se ao som do padro microrrtmico principalmente se pensarmos em um reco-reco, instrumento igualmente friccionado. Esse fato ainda corroborado por um enfticodepoimento do famoso sambista Paulinho da Viola, mencionado por Kazadi (2006), sobre aantiga prtica do samba carioca: Conforme salienta Paulinho, a dana exibida por solistas nomeio do crculo tinha um carter especfico: o de duplicar o padro rtmico contrapontstico

    bsico com o som dos passo [sic] (p. 83).

    Na dana de algumas sambadeiras tradicionais do Recncavo Baiano constata-se outropadro bsico de movimentos dos ps, dividido em trs passos pequenos, em vez de quatro.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    20/23

    20

    Os passos continuam a corresponder aos pulsos elementares, de maneira que a troca de apoiocorporal no coincide com cada beat:

    Passo ternrio do Samba de Roda em relao com a linha-rtmica bsica de 8 pulsos elementares:

    D / E = Amplo movimento do lado direito/esquerdo d / e = Curto movimento lado direito/esquerdo!= Amplo movimento anterior arrastando o p no cho _ = Apoio principal do corpo- = Calcanhar volta ao cho

    Esse movimento resulta em uma relao mtrica divergente da anterior e,evidentemente, em um padro sonoro ternrio. Se o ponto de apoio da dana ocorre a cadatrs pulsos elementares, e os beats esto diretamente ligados com os ou so mesmodeterminados pelos passos principais da dana, esse padro coreogrfico pode ser de origemdiferente daquela dos passos bsicos do samba, remetendo a uma cultura da costa ocidentalafricana35.

    Representar a relao entre a linha-rtmica instrumental e sua assimilao pelodanarino mostra-se ainda mais complexa do que ilustrar os passos bsicos e peridicos dosamba. Afinal, como mencionado, durante a improvisao do danarino que determinados

    padres rtmicos, entre eles a linha-rtmica, sero incorporados coreograficamente. Aincorporao pode ocorrer atravs de diversas partes do corpo ao mesmo tempo e em vriasdirees. Contudo, a linha-rtmica tambm pode revelar-se somente nas pernas, de umamaneira simples que possibilita sua representao:

    Passos coreogrficos do Samba de Roda em relao linha-rtmica:

    D = Amplo movimento dianteiro do p direito e = Curto movimento dianteiro do p esquerdo"= Amplo movimento dianteiro arrastando o p no cho = O p chutado para trs atingindo seu ponto mais alto

    Os exemplos tornam claro que os movimentos coreogrficos do Samba de Roda noapenas dialogam com os sons executados, mas parecem ser ordenados pelos mesmos

    princpios rtmicos de sua msica.

    Concluso

    Os resultados apresentados neste artigo evidenciam a importncia de pesquisasmusicais para tradies afro-brasileiras que transcendam a anlise de partituras, fonteshistricas e teorias musicais europeias. As teorias africanas sobre msica e dana demonstramgrande afinidade com os fenmenos musicais brasileiros, contribuindo enormemente para suacompreenso. A dimenso dessa afirmativa ainda maior do que se pode demonstrar aqui. Asrelaes rtmicas entre instrumentos, canto e dana revelam ainda outros aspectos daorganizao rtmica do Samba de Roda, e mesmo do samba carioca, a serem expostos em

    publicaes futuras.Os fundamentos musicais africanos aqui explorados foram descobertos atravs de

    intensa pesquisa etnogrfica de antroplogos e etnomusiclogos na frica. Isso significa quetal conhecimento sobre o funcionamento da msica africana baseia-se nos prprios fenmenos

    musicais, na performance e na percepo de seus msicos. Para esses, ritmo mais do que

    35Ver Kubik (1979, p. 19-21; 1986, p. 126).

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    21/23

    21

    durao de notas. tambm mais do que sequncias tmbricas, acentuaes, fenmenosacsticos organizados no tempo. No Samba de Roda, ritmo funciona como uma matriz queorienta toda a performance e mesmo outros, seno todos aspectos da vida de seus praticantes,como sugere Agawu (1987) em relao a tradies africanas. At que ponto tal concepo noestaria presente em toda a msica afro-brasileira?

    Referncias bibliogrficas

    AGAWU, Kofi. The Rhythmic Structure of West African Music. The Journal ofMusicology, ano 5, n. 3, p. 400-418, vero 1987.

    BENGTSSON, Ingmar. Empirische Rhythmusforschung in Uppsala.Hamburger Jahrbuchfr Musikwissenschaft, vol. 1, p. 195-219, 1975.

    BLACKING, John.How musical is man?. University of Washington Press, 1973.

    CHERNOFF, John Miller.Rhythm and Sensibility. Chicago e Londres: University of ChicagoPress, 1979.

    CROOK, Larry.Music of Northeastern Brazil, Nova Iorque e Londres: Routledge, 2007.

    GERISCHER, Christiane. O Suingue Baiano. Mikrorhythmische Phnomene in baianischerPerkussion. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2003.

    GRAEFF, Nina. Reflexos da nomeao do samba de roda como Obra-Prima da Humanidadepela UNESCO sobre a cultura do Recncavo Baiano. In: Susana Moreno Fernndez, PedroRoxo e Ivn Iglesias (Eds.).Musics and knowledge in Transit / Msicas e saberes em trnsito

    / Msicas y saberes en trnsito. Lisboa: Colibri, 2012.____________. Samba de Roda: comemorando identidades afro-brasileiras, in:Artelogie 4,jan. 2013. http://cral.in2p3.fr/artelogie/spip.php?article173 [04.03.2013]

    GRAEFF, Nina; PINTO, Tiago de Oliveira. Msica entre Materialidade e Imaterialidade: ostons-de-machete do Recncavo Baiano / Music Between Tangibility and Intangibility: TheToques-de-Machete from Recncavo Baiano. Revista Mouseoin. Revista Eletrnica do

    Museu e Arquivo Histrico La Salle ano 1, n.10, p. 72-97, jan-abr. 2012.

    GNTHER, Helmut. Grundphnomene und Grundbegriffe des afrikanischen und afro-

    americaknischen Tanzes. Graz: Universal Edition, 1969.JACKENDOFF, Ray; LERDAHL, Fred.A Generative Theory of Tonal Music. Cambridge eLondres: The MIT Press, 1983.

    KAUFFMANN, Robert. African Rhythm: A Reassessment.Ethnomusicology, ano 24, n. 3,p. 393-415, 1980.

    KAZADI wa Mukuna. Contribuio Bantu na Msica Popular Brasileira. PerspectivasEtnomusicolgicas. 3aedio. So Paulo: Terceira Margem, 2006.

    KEIL, Charles. Participatory Discrepancies and the Power of Music. CulturalAnthropology, ano 2, n. 3, p. 275-283, ago. 1987.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    22/23

    22

    KOETTING, James. Analysis and Notation of West African Drum Ensemble Music.Selected Reports, ano 1, n. 3, p. 115-146, 1970.

    KUBIK, Gerhard. Oral Notation of some West and Central African time-line Patterns.Review of Ethnology, ano 3, n. 22, p. 169-176, 1972

    _____________. Angolan traits in black music, games and dances of Brazil. A study ofAfrican cultural extensions. Lisboa: Junta de Investigaes Cientficas do Ultramar, 1979._____________. (1983a). Beziehungen zwischen Musik und Sprache in Afrika. In: ArturSimon (Ed.).Musik in Afrika.Mit 20 Beitrgen zur Kenntnis traditioneller afrikanischer

    Musikkulturen. Berlin: Museum fr Vlkerkunde, 1983a. p. 49-57._____________. (1983b). Kognitive Grundlagen afrikanischer Musik. In: Artur Simon(Ed.). Musik in Afrika. Mit 20 Beitrgen zur Kenntnis traditioneller afrikanischer

    Musikkulturen. Berlin: Museum fr Vlkerkunde, 1983b. p. 327-400._____________.Zum Verstehen afrikanischer Musik. 2aedio (1984). Wien: Lit, 2004._____________. Zur Mathematik und Geschichte der afrikanischen time-line Formeln. In:Albrecht Schneider (Ed.). Systematic and Comparative Musicology: Concepts, Methods,

    Findings. Frankfurt am Main: Lang, 2008. p. 359-398._____________. Theory of African Music. Volume 2. Chicago: Chicago University Press,2010.

    LIMA, Luiz Fernando Nascimento de. Simbologia e significao no samba: uma leituracrtica da literatura.Per Musi Revista Acadmica de Msica, n. 12, p. 5-24, jul.-dez. 2005.

    LOCKE, David. Principles of Offbeat Timing and Cross-Rhythm in Southern Ev_e DanceDrumming.Ethnomusicology, ano 26, n. 2, p. 217-246, maio 1982.

    LHNING, Angela. Msica: palavra-chave da memria. In: Fernanda Teixeira de Medeirose Elisabeth Travassos (Eds.). Ao encontro da palavra cantada. Poesia, msica e voz. Rio deJaneiro: 7 letras, 2001. p. 23-33.

    MOEHN, Frederick. A Carioca Blade Runner, or How Percussionist Marcos Suzano Turnedthe Brazilian Tambourine into a Drum Kit, and other Matters of (Politically) Correct MusicMaking.Ethnomusicology, ano 53, n. 2, p. 276-307, 2009.

    MAULTSBY, Portia. Africanisms in African-American Culture. In: Joseph E. Holloway(Ed.).Africanisms in American Culture. Indiana Univ. Press, 1990. p. 326-355.

    NAVEDA, Luiz. Gesture in Samba. A cross-modal analysis of dance and music from theAfro-Brazilian culture. Tese de Doutorado, Universidade de Ghent, 2011. Disponvel em:http://www.ipem.ugent.be/samba/SambaProject/Thesis_files/Naveda2011_GestureInSamba_PhDthesis.pdf [04.03.2013]

    NKETIA, Joseph H. Kwabena. Die Musik Afrikas. 2 edio. Trad. Claus Raab,Wilhelmshaven: Noetzel, 1991.

    PANTALEONI, Hewitt. Three Principles of Timing in Anlo Dance Drumming. AfricanMusic ano 5, n. 2, p. 50-64, 1972.PFLEIDERER, Martin.Rhythmus. Psychologische, theoretische und stilanalytische Aspekte

    populrer Musik. Bielefeld: Transcript, 2006.

  • 7/26/2019 Fundamentos Rtmicos Africanos Para a Pesquisa Da Msica Afro-brasileira- o Exemplo Do Samba de Roda - Nina

    23/23

    23

    PINTO, Tiago de Oliveira. Capoeira, Samba, Candombl. Afro-brasilianische Musik imRecncavo, Bahia. Berlim: Museum fr Vlkerkunde, 1991._______________________. As cores do som. Estruturas sonoras e concepes estticas namsica afro-brasileira.frica. Revista do Centro de Estudos Africanos 22-23, USP, SoP a u l o 1 9 9 9 - 2 0 0 1 p . 8 7 - 1 0 9 . D i s p o n v e l e m :

    http://www.fflch.usp.br/cea/revista/africa_022/af04.pdf [04.03.2013]._______________________. Som e Msica. Questes de uma Antropologia Sonora.Revista de Antropologiaano 44, n. 1, 2001b, p. 221-286.

    POLAK, Rainer: (2010). Rhythmic Feel as Meter: Non-Isochronous Beat Subdivision inJembe Music from Mali. Music Theory Onlineano 16, n. 4, dez. 2010. Disponvel em:http://www.mtosmt.org/issues/mto.10.16.4/mto.10.16.4.polak.html [04.03.2013]

    RYCROFT, David R. Tribal Style and Free Expression. African Musicvol. 1, 1954. p. 16-27.

    SANDRONI, Carlos. Feitio decente. Transformaes do samba no Rio de Janeiro 1917-1933. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/Ediora UFRJ, 2001a.

    _________________. Ritmo meldico nos bambas do Estcio. In: Fernanda Teixeira deMedeiros e Elizabeth Travassos (Eds.). Ao encontro da palavra cantada. Poesia, msica evoz. Rio de Janeiro, 2001b. p. 53-60.

    SEEGER, Charles. Prescriptive and Descriptive Music-Writing. The Musical Quarterly,ano 44, n. 2, p. 184-195, abr. 1958.