Gaibéus e a Maquinização Do Homem

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Estudo comparatista entre Gaibéus e Vidas Secas

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REPRESSO E SILNCIO EM GAIBUS DE ALVES REDOL

REPRESSO E SILNCIO EM GAIBUS DE ALVES REDOL

Kellen Millene Camargos RESENDE(RESUMO

O Neo-Realismo surgiu durante governos favorveis ao fascismo russo. O regime poltico no permitia que se abordasse, em qualquer veculo de comunicao, as temticas sociais e polticas que a sociedade vivia. A literatura, nesse perodo, foi silenciada. O estudo do silenciamento no romance Gaibus, do autor portugus Alves Redol, ser necessrio para se compreender o nvel de explorao a que as personagens so submetidas, as quais so desumanizadas e equiparadas a animais e mquinas. Dessa forma, ser feito um dilogo com a histria, pois, pelo fato de a obra ter sido publicada em um perodo de represso, precisa-se entender por que era proibido mencionar, na arte literria, qualquer assunto social ou poltico.

Redol e a temtica social: personagens silenciadas

A preocupao social de Alves Redol, que o tornou precursor do Neo-Realismo em Portugal, com Gaibus (1939), no adveio infundadamente. Suas obras posteriores, Mars (1941), Avieiros (1942), Fanga (1943), Porto manso (1946), Vindima de sangue (1954), A barca dos sete lemes (1958), O barranco de cegos (1962), O muro branco (1966), Uma fenda na muralha (1966), dentre outras, vieram confirmar as temticas iniciadas em Gaibus.

Redol interessou-se pelas obras de escritores ligados ao socialismo e foi um dos primeiros portugueses a ler Plekhanov: Vm-lhe parar s mos os primeiros escritores ligados ao marxismo-leninismo. Ele foi sem dvida, das primeiras pessoas a ler Plekhanov em Portugal. (TORRES, 1979, p. 15).

Com as leituras de Plekhanov, Redol desenvolve conceitos que ele considerava essenciais em relao funo da arte. Em uma conferncia, realizada a 17 de junho de 1936, Redol exps, dentre outras reflexes, que a arte deve ter uma funo que favorea o homem:

Todos os assuntos devem servir em proveito do homem, se no querem ser uma v e ociosa ocupao; a riqueza existe para que toda a humanidade goze; a cincia para guia do homem; a arte deve servir tambm para algum proveito essencial e no deve ser apenas um prazer estril. (TORRES, 1979, p. 15).

Foram essas idias ou ideais que fizeram Alves Redol levar para a literatura portuguesa personagens populares, trabalhadores, seres marginalizados. Ele no s retratou o povo como trouxe tona, com Gaibus, traos da realidade social. Sem, contudo, permitir que ao longo da narrativa as personagens se tornassem centrais.

Redol soube mostrar a marginalizao das personagens, exploradas ao mximo de suas foras fsicas, a ponto de serem tratadas como animais. Devido ao seu comprometimento social, o escritor nunca se viu livre da censura e travou uma grande batalha individual contra os coronis da Mesa Censria, que nunca venceu. (TORRES, 1979, p. 17).

Redol no pde vencer a censura, mas soube criar um artifcio que lhe possibilitou driblar a perseguio censorial. J que no podia escrever sobre as represses e problemas sociais, mostrou como isso acontecia. Dessa forma, sem precisar escrever sequer uma linha criticando explicitamente a poltica do governo, o escritor resistiu mostrando como as camadas pobres de Portugal viviam, utilizando como personagens os gaibus em seu livro de ttulo homnimo, Gaibus.

So muitos os pequenos quadros pintados dentro da moldura de Gaibus, vrias as personagens captadas pelo artista. Para Cruzeiro (1970, p. 839), explorar muitas vidas e situaes fez com que o romance se perdesse, por apresentar-se em desequilbrio:

Gaibus perdeu-se como romance, na sofreguido narrativa do autor. Na preocupao de tudo contar, de trazer para primeiro plano a histria de cada um dos personagens (at do pai do Cadete), Redol no ordenou nem selecionou, em prioridade e importncia, como escrevamos atrs, as pessoas e as situaes. Assim, tudo aparece um pouco disperso, com grande desequilbrio mistura, ausente a indispensvel sobriedade narrativa que vir a alcanar, por exemplo, em Barranco de Cegos. (CRUZEIRO, 1970, p. 839).

Comparar Gaibus, primeiro romance do escritor, com suas obras posteriores, j amadurecidas do ponto de vista esttico, incoerente, pois aquelas elaboradas no decorrer da experincia e maturidade, possivelmente, alcanaro maior domnio de composio.

Gaibus, como o ttulo j indica, abordar um grupo como protagonista, como expe Torres (1979, p. 23), mesmo sendo um protagonista coletivo, alguns indivduos so destacados.

Cruzeiro (1970, p. 839), no entanto, parece exagerar ao dizer que Redol traz para primeiro plano a histria de cada um dos personagens. Cruzeiro (1970, p. 839) diz, ainda, que Redol no soube selecionar em prioridade e importncia a focalizao das personagens. Como se trata de protagonista coletivo, Redol soube, sim, selecionar algumas personagens que se configuram como representantes do grupo, pois, de certa forma, suas histrias no se diferenciam.

No so todas as personagens do grupo protagonizadas, como indicou Celso Cruzeiro, mas somente aquelas que representam destinos similares aos demais. Quantas mulheres do grupo no se perderam nos encantos de um eguario? E quantas no se deixaram ir para a cama do patro com promessas de levar para casa mais dinheiro? Quantas Ti Maria do Rosrio, velhas que mal se agentam nas prprias pernas, vem-se obrigadas a trabalhar para ter o po no inverno? Quantos rapazes no buscam a diverso, para esquecer as fadigas da colheita? Quantos homens no esto endividados, preocupados porque o salrio daquela ceifa no dar para liquidar a dvida? Quantos no sonham em retirar-se de Portugal e enriquecer-se no Brasil ou em um pas africano? No entanto, apesar de haver vrias vidas semelhantes, apenas uma representante de destinos iguais protagonizada.

Parece haver apenas uma personagem que singulariza, o nico que compreende a explorao e a diviso de classes, o ceifeiro rebelde. Este , realmente, singular, pois se outros houvesse, como ele, j teriam feito protestos contra a explorao. A voz apagada, porm consciente, do ceifeiro rebelde, refere-se aos poucos que tinham conscincia da represso, mas que eram silenciados. Como considerou Mendes (1970, p. 877):

Sendo o romance do povo e da sua trgica experincia quotidiana, estirado por uma motivao coletiva que rompe as grilhetas do individualismo tradicional, no o retrato fotogrfico nem o discurso impassvel (com esqucios de decadismo mais ou menos ocultos) que viria a caracterizar certa prosa de ento.

Como observou esse autor, Gaibus constitui-se pela motivao coletiva que rompe as grilhetas do individualismo tradicional, todavia, isso no quer dizer que o individual seja prioridade, pois no h personagens de maior importncia que outras. So todas pares do mesmo destino, membros da mesma categoria social decadente e miservel.

As personagens, que foram expostas em suas individualidades, foram retratadas como exemplos de outras tantas na mesma condio. Homens e mulheres que deixaram seus lares, temporariamente, em busca de trabalho para no passarem fome durante o inverno. Abandonavam sua regio e partiam para uma outra, onde seriam tratados como escravos em terra estranha:

os gaibus so os verdadeiros emigrantes em torturada saudade pelo rinco que lhes ficou longe. Babilnia, na tradio lrica que vem desde os salmos, simboliza a terra ingrata para onde se foi forado a emigrar. Sio lembra a ptria perdida, sempre idealizada, pela qual se curte a dor da separao. Os gaibus acabam, pois, de chegar sua Babilnia e fazem um rpido inventrio da aspereza da paisagem: uma gleba despovoada, cu e plancie plancie e cu. (TORRES, p. 20-21).

Os gaibus carregam uma marca que os denuncia, a misria, como se o fato de ser um gaibu acarretasse uma insgnia de ridicularizao, em que eles mesmos criticam-se, como aconteceu no final da obra, em que um rapaz, mais esperto, aps conseguir pegar o trem, gritou, criticando os que ficaram: Eh, gaibu dum corno! (REDOL, 1976a, p.175).

Essas personagens de Redol mostram-se nas duras formas em que vivem fora de suas terras. Ao mesmo tempo em que focado o coletivo, o individual exposto para mostrar representantes de uma camada que se igualam na dor, na misria, nos problemas.

Um dos representantes do individual Rosa, que foi Lezria atrs de trabalho, na colheita de arroz, para ter o que comer com a me, durante o inverno. No entanto, acabou ganhando mais dinheiro que os outros, porque o ganhou no na ceifa, mas na cama do patro. Rosa representa tantas outras que j haviam passado pela mesma situao: As que tinham vindo quela emposta noutras ceifas e mondas j sabiam da escolha. Algumas delas conheciam o aposento e a cama do patro. (REDOL, 1976a, p. 94).

tambm o caso da ceifeira dbil, que sonha com o rapaz do barrete verde que a iludira. Restava-lhe trabalhar para cuidar do filho, nico bem que o rapaz lhe deixara: ela lembra-se da noite em que se dera quele homem que nunca mais voltou. (REDOL, 1976a, p. 49). Muitas mulheres esto nesta mesma condio, deixam os filhos de colo sozinhos, jogados em um canto para irem ceifa:

J as mulheres que deixaram os filhitos ao abandono por ali os apertam entre os braos e os animam, beijando-lhes as faces sujas de terra, amassada com lgrimas. E eles buscam-lhes, com as bocas rebentadas de feridas, onde as moscas pousam e o ranho criou crosta, os peitos escorridos, beliscando-lhes nas blusas a sua fome. (REDOL, 1976a, p. 46).

Algumas personagens recebem nomes, outras so identificadas por suas personalidades, como o ceifeiro rebelde. Outras, ainda, recebem apelidos. As que recebem nomes como se no os tivessem, pois ao se misturarem na ceifa, para uma s ao, como se fossem mquinas ou animais, perdem a identidade, so apenas gaibus.

Os gaibus so desprezados a ponto de serem jogados em um barraco, para dormirem, como se fossem animais encurralados: Homens e mulheres, enrolados nas mantas listradas, dormem pelo cho, em ressonares profundos, sobre esteiras ou palha, como o gado que est na mota a remoer. (REDOL, 1976a, p. 26).

A individualidade perdida mesmo entre as personagens que so nomeadas, como Rosa que, depois de dormir com o patro, sente-se como se tivesse mudado de nome e se tornado uma mulher da rua Pedro Dias, rua de prostitutas, onde elas se expem como mercadoria na feira: Ela agora no era a Rosa do rancho do Francisco Descalo, mas a Balbina da Rua Pedro Dias Noiva de todos que mercassem afagos. (REDOL, 1976a, p. 96).

A individualizao perde-se na coletivizao, o coletivo torna-se, ento, o protagonista, como afirma Torres (1979, p. 23, grifos do autor): A individualizao no alcana o principium individuationis. apenas um entre muitos que podem todos ser ele. A intermutabilidade absoluta. Ainda que algumas personagens sejam focalizadas na sua individualidade como se no fossem, so vidas to parecidas que acabam se misturando, ou como diz Torres, acaba havendo uma intermutabilidade entre eles.

Metamorfose: homem-animal-mquina

A aproximao da imagem do homem com a de animais e mquinas uma forma de desumanizao que o sistema explorador produz. O homem visto como fora de trabalho e explorado ao mximo de sua capacidade fsica, como os animais:

Como corcundas, os alugados vo passando submetidos carga, e desfilam pelo valado, uns atrs dos outros, em caravana. Dali embarcao declive por onde se despenham, impelidos pelo peso do arroz. As pernas retesam-se a travar a marcha e os olhos fixam-se na estrada apertada da prancha, cada vez mais estreita. (REDOL, 1976a, p. 138-139).

No incio do romance, os gaibus so levados para a lavoura como animais que so conduzidos para a pastagem. Os capatazes levam, inclusive, uma vara para reprim-los, caso acontea um imprevisto: Os capatazes vm frente, de marmeleiros na mo, como guias do rebanho que levanta uma gaze de poeira no caminho. Deitam rabos de olhos para trs, se as gargalhadas estalam, no vo aqueles dianhos fazer alguma coisa a despreceito que amofine o patro. (REDOL, 1976a, p. 29).

O cansao que a leitura provoca, quando da descrio do servio no campo, parece proposital, criado pelo escritor para fazer o leitor sentir o cansao sofrido pelos trabalhadores, na ceifa que no pode parar:

O ceifeiro pende mais a cabea e vai caminhando sempre, a cortar o espao com a foice que talha clareiras na seara!

Esses bocados rezentos ficam!

Lume nesses olhos! O que verdete no se corta!

Atrs do rancho, a cachopada vai fazendo a respiga. O Agostinho Serra traz a terra de renda Senhora Companhia e um punhado de arroz faz-lhe falta nas contas.

Nas goelas anda seca de Agosto, que os xabocos dos canteiros avivam. Os lbios sorvem as gotas de suor que escorrem sempre, como os canteiros fazem o remijo para as valas de esgoto.

O cuspo baba de boi que deitam fora e fica a balouar moinha que pede descanso, mas o trabalho no pode parar.

No pode parar, porque l em baixo, no aposento, o patro est a fazer contas colheita, que correu em boa mar.

Parece que dos braos as carnes caram e s ficaram os ossos, como tomados de reumtico, e os tendes retesados, como correias de debulhadoras em movimento.

Os peitos arfam, as pernas derreiam-se.

A malta trabalha em silncio e s as foices e as espigas falam. As tosses, de quando em quando, dizem que ali vai gente isso a distingue das mquinas, que no tm pulmes. (REDOL, 1976a, p. 36-37).

Os ceifeiros trabalham vigiados por capatazes que no deixam escapar uma nica parada para respirarem. So vigiados para trabalharem como mquinas, que no precisam comer e beber.

No incio da colheita, assim que os gaibus chegaram Lezria, as mulheres cantavam como uma forma de satisfao por terem trabalho. Com o passar das horas e dos dias, porm, o trabalho vai se acentuando e elas vo perdendo a vontade de cantar ou rir. Os capatazes no as proibiam, pois a msica dava-lhes nimo. Foi o cansao do trabalho, que comeava pela manh e s terminava quando o sol se punha, que as silenciou.

No trabalho, quase sincronizado de homem e mquina, em que o homem deve medir fora com o instrumento para que o servio no atrase e o capataz no ralhe, pois [a]s falas ali so ralhos (Redol, 1976a, p. 128), o trabalhador se transforma em mquina:

A azfama ali no pra; as mquinas no sentem cansao e os homens devem acelerar as mos ao seu ritmo. Os volantes perderam os raios com a velocidade e as correias passam velozes, um pouco bambas. O brao da cambota no se desalentou ainda e os cilindros arfam, mas no esto fatigados. (REDOL, 1976a, p. 128).

Esta a metamorfose do homem moderno, que vive numa rdua disputa para conseguir manter-se no emprego: Os homens tornam-se mquinas tambm; no raciocinam nem tm querer. (REDOL, 1976a, p. 128).

A metamorfose completa porque, de certa forma, condiciona o homem a apenas agir mecanicamente, no h necessidade do pensamento: E os homens no guardam pensamentos, porque so mquinas tambm. (REDOL, 1976a, p.128). Em Gaibus, quando o trabalho acentuado e as foras fsicas esto esgotadas, at mesmo os pensamentos das personagens no transparecem, em forma de discurso indireto livre, assim como ocorre em Vidas secas, com a chegada da estiagem. Somente a voz do narrador ouvida.

o tpico exemplo de Tempos modernos, de Charles Chaplin, em que o trabalho segue o paradigma do fordismo. O homem apenas mais um mecanismo no processo, o importante que essa pea no pare.

No incio da colheita, como foi dito, os trabalhadores cantavam, ora pela satisfao de terem um trabalho, ora para esquecerem as dores e fadigas: Uma cachopa canta. Outra junta-se-lhe e outra ainda. Entre lbios, todo o rancho acompanha as cachopas que cantam. Adormecem angstias e a ceifa ameniza (REDOL, 1976a, p. 39). Quando, porm, o trabalho torna-se muito rduo, e quando h competio injusta entre homem e mquina, apenas esta emite seus sons: No h risos nem cantigas. S as correias riem s a debulhadora e a locomvel cantam. Cantam e riem pelos eirantes riem dos eirantes. (REDOL, 1976a, 128). A personificao da mquina ironiza a disputa injusta entre ela e o homem. Mesmo os ceifeiros se esforando para competir, eles se cansam, sofrem, sentem dores.

A metamorfose originada pela necessidade de subsistncia, a transformao de homem em mquina, em que explorado alm do que seu corpo suporta, indica um aspecto intrigante. Os trabalhadores no reclamam da explorao, pelo contrrio, o medo de no terem trabalho para garantir o alimento durante o inverno faz com que aceitem deliberadamente as condies impostas pelo empregador, como a de no fornecer a comida durante a ceifa: H alugados que nem caldo fizeram para o almoo. Po e duas petingas chegam para enganar o estmago. E o po enrola-se sem saliva, como um naco de sola que os obrigassem a comer. (REDOL, 1976a, p. 47).

Nessas condies, os gaibus mal tinham foras fsicas para suportar o trabalho, mesmo os que cozinhavam alguma coisa no se alimentavam bem: Na gua vogam magras bolhas de leo e feijes furados. (REDOL, 1976a, p. 40). Nada disso, porm, desanimava o grupo, porque mesmo em condies adversas, eles sabiam que no podiam deixar o trabalho, pois cada hora a menos lhes era descontada no salrio.

H, dessa forma, o capital que impulsiona o homem em desafiar as leis de sua capacidade fsica: Pela noite adentro h trabalho na carga [...]. No h trguas. Ceia depressa e depois sacas s costas. Os gaibus gostam daquilo, porque sempre mais alguma coisa que vai para o canto; mas os corpos andam sem ganas, pois o trabalho no falta e as sezes no poupam. (REDOL, 1976a, p. 132).

Para os gaibus, alm do trabalho rduo, um outro mal os acometia, a febre amarela. Assim, a fadiga do trabalho mais atrativa do que o descanso nos barraces, pois a convivncia com os companheiros acometidos de sezes perturba-lhes o esprito, faz com que pensem na possibilidade de ficar como os companheiros:

Cada homem na eira no passa de um volante, uma correia ou um brao da ciranda. Quando o apito soar, o volante achar os raios, a correia e o brao da ciranda adormecero. Os homens iro ajudar carga e pensar na vida. Nos corpos de alguns correr o frio das sezes; e os crebros, libertos da vertigem comunicativa das mquinas, encontraro pensamentos. Mas os pensamentos no sabem ainda acalentar fadigas. Nas poisadas, a vida torna-se mais negra. (REDOL, 1976a, p. 132).

O barraco torna-se um ambiente mais insuportvel que o trabalho prolongado na ceifa. Nesse momento, suas vontades so de que a metamorfose em mquina no se desfaa: De novo se acham homens e gostariam de ficar mquinas para sempre as mquinas no pensam. (REDOL, 1976a, p. 132). Quando o trabalho do dia encerrava, sentiam falta porque nada, em suas realidades, era bom. Ser mquina tinha a vantagem de no precisar pensar.

As imagens que sobressaem na narrativa so de mos, foices, corpos cansados, suados, gestos geis que se misturam. So rostos que refletem outros rostos, ou faces sem rostos que aceitam qualquer projeo. As personagens se anulam ao serem exploradas como mquinas, no precisam ter um nome, um apelido talvez seja mais significativo, como o apelido do rapaz gaibu que achou por bem ser chamado de Nove, pois ficara fascinado com uma brincadeira dos rabezanos que dizia Nove: quem padece o pobre! (REDOL, 1976a, p. 66).

Torres (1979, p. 25), ao tratar sobre a individualidade do grupo considera que

Alves Redol vai transmitir-nos, atravs de poderosas imagens, o longo processo de aviltamento dos gaibus, processo em que o prprio grupo, em bloco, como individualidade multifacetada, ou talvez sem rosto, ajuda perpetuao do prprio sistema degradatrio. (TORRES, 1979, p. 25, grifo do autor).

Os prprios gaibus corroboram para perpetuar o sistema degradatrio do grupo, isso porque aceitam a explorao sem questionar, silenciam, assim como Fabiano, por medo de perderem o emprego, to escasso naquelas paragens.

A explorao que animaliza o homem conduz o olhar do leitor para um fato que tambm ocorre na realidade. No o artista quem inventa ou inventou essa similaridade entre homem e animal, ou homem e mquina, o artista observou um fato que o sistema capitalista efetivou, cabendo ao artista perceber e retratar aquilo que, de certa forma, velado, mas existe. Redol soube mostrar, em Gaibus, o drama de homens sem rosto, como esttuas moldadas nas lamas da plantao de arroz, e silenciados pelas suas necessidades de mendigos, como se observa na cena a seguir, em que a poeticidade do texto mistura-se a uma linguagem spera, uma forma de amenizar ao leitor o sofrimento das personagens que a obra demonstra:

Na malta o silncio torna-se mais fundo o tombar das espigas j no farfalha; as gavelas j no crepitam. Esqueceram rudos.

Nos rostos terrosos, como pedaos moldados no lamaal dos canteiros, h bagas de suor que o sol faz lucilar, como a orvalheira que ponteia o arroz. Mas o suor parece gelar nas faces cavadas pela fome guardada.

As roupas esto empapadas, a feder sujidade e cansao crescidas babugem. Fica o cheiro acre dos corpos molhados pela rudeza da labuta. Como por toda a lezria se agigantam os alugados que se curvam a brandir as foices. Tudo se amesquinha ali, junto deles, que vivem necessidades de mendigos.

As mos limpam as frontes, depois de ampararem at s gavelas os ps ceifados. O suor vem agora em borbotes, cada vez mais impetuoso, como sangue a verter de chaga funda. (REDOL, 1976a, p. 34).

A similaridade entre homem e animal tambm percebida no quadro Caf, de 1934, do pintor Cndido Portinari, em que grande parte dos cafeicultores aparece curvada, como animais quadrpedes. Um outro detalhe interessante a figura de um ser, em uma palmeira, com os braos estendidos e as pernas dobradas, parecendo um macaco, cuja posio assemelha-se de trs figuras humanas, ao seu lado, colhendo caf, denotando claramente a animalizao do indivduo explorado.

Os trabalhadores so desfigurados, despersonalizados, as feies do rosto so indefinidas, mas na maioria dos casos seus rostos no aparecem, ora por estarem cobertos por sacas de caf, ora por estarem curvados ou de costas. Apenas um rosto visto de frente, porm, seus olhos esto fechados e a tonalidade da pele, em relao aos demais trabalhadores, mais clara, dando a aparncia de uma esttua, um ser petrificado, sem vida prpria. Um destaque dado, como nas demais pinturas do artista e de outros que retratam a figura do trabalhador, aos ps e s mos, marcas do trabalho.

A diferena entre o fragmento de Gaibus, pgina 34, e o quadro Caf, est no tipo de plantao colhida, porm, na forma desumana de trabalho, com os capatazes dando ordens a indivduos despersonalizados, h bastante semelhana, como se o quadro fosse a retratao dos gaibus na colheita.

Explorao como fator de desumanizao

Os gaibus foram contratados para ceifar arroz, j que as mquinas no colhiam, apenas debulhavam. Como a escassez de trabalho estava generalizada no pas, o patro possua esta arma para garantir a explorao. Dessa forma, ele conseguia manter os salrios baixos, pois caso no quisessem trabalhar pelo preo estabelecido, outros o quereriam. Nota-se, nesse procedimento, a mesma represso existente em Vidas secas.

Os rabezanos, moradores da Lezria, no mais eram contratados pelos agricultores para as colheitas de arroz, uma vez que no aceitavam a forma de trabalho que os gaibus ainda se submetiam. Os rabezanos j haviam se acostumado s reivindicaes de proletariados, aprendidas como operrios, nas fbricas:

Se no fossem eles, [gaibus] mais braos da Borda-dgua encontrariam trabalho na Lezria. Os patres querem pessoal que no tenha domingos e se alimente de jornas baixas.

Por isso as mondas e ceifas so feitas por gaibus e carmelos. E os rabezanos procuram nas fbricas e nas descargas dos cais o que o campo no lhes d agora. Ainda bem, pensam muitos. (REDOL, 1976a, p. 65).

Alm do baixo salrio, no eram oferecidas condies mnimas para trabalharem. Os gaibus dormiam amontoados como animais, no recebiam alimento decente, tomavam gua do mesmo poo que as alimrias (guas), sem contar que no podiam beber quando quisessem, apenas quando os capatazes autorizassem:

As bocas movem-se a resmoer, querendo segregar a humidade que no vem mais. Esto febris e sedentas, provocadas na sua tortura pela gua dos xabocos, onde os ps se enregelam. [...] As bocas no param de resmoer a humidade, porm, no chega mais. [...]. De soslaio, os olhos vo clamando, em silncio, aos capatazes.

Mas os capatazes espreitam as horas nos relgios e entenderam que ainda no chegou a hora de lhes dar de beber. (REDOL, 1976a, p. 34).

A sede e o cansao j no permitem que tenham foras para trabalhar, porm, persistem na jornada, sem conscincia de que com a unio do grupo, conseguiriam conquistar seus direitos bsicos. Eles no enxergaram, como afirma Torres, o que a prpria natureza lhes mostrava:

[o romance] quer mostrar-nos o grau de alienao a que chegaram por recusarem ouvir a voz da prpria natureza, porque a prpria natureza animal ensina como os estorninhos se devem unir para fugir ao milhano, metfora constante, como j dissemos, do explorador, da usura, do Capitalismo, de garras sempre voracssimas. (TORRES, 1979, p. 28, grifos do autor).

Os gaibus no compreenderam a voz da natureza e nas suas passividades individuais, o coletivo silenciava e aceitava a explorao com o olhar humilde de animal pacfico (REDOL, 1976a, p. 35).

Como animais pacficos aceitavam as normas impostas e, pacientemente, esperavam a ordem do capataz para saciarem a sede: Um capataz deitou olho ao relgio e deu ordem aos aguadeiros para encherem os cntaros. Os rapazes correm ao arrozal fora, lestos que nem poldros, at ao furo que se debrua no tanque, onde as guas bebem. (REDOL, 1976a, p. 37).

Quando os aguadeiros, lestos que nem poldros, retornam com os cntaros de gua salobra, as vozes dos que pedem gua assemelham-se s de quem est a arder em um deserto:

as mangas das camisas e das blusas ensopadas limpam as bocas definidas por humores que assemelham pus. Os cntaros passam de mo em mo, mirados pelas pupilas ardentes dos que ainda lhes no deitaram os lbios.

Auga!... Auga!... (REDOL, 1976a, p. 38).

O tratamento que os gaibus recebem na Lezria, como o tomar gua no mesmo tanque que as guas, ratifica o que eles representavam ao patro, fora de trabalho, assim como os animais. Todavia, o tratamento a dois animais, o Doirado, cavalo de montaria do Agostinho Serra, e o cachorro Madrid, animal de estimao, estabelecem um paradoxo com a forma de tratamento destinada aos gaibus:

O cavalo encaracola-se vaidoso, ladeando de cabea s upas e de mos bem erguidas. Os seus relinchos so de jbilo, porque patro Agostinho lhe afaga o pescoo de plos luzidios, como batido por reflexos de oiro. Mete-lhe as mos nas crinas para as deixar correr depois, e de novo, pela garupa de recorte airoso.

[...]

Atrs deles nunca faltava o Madrid, um galgo cor de pinho, esguio que nem tsico, mas tratado a boa comida. (REDOL, 1976a, p. 88, grifo do autor).

H, ainda, uma outra forma de desumanizao. Alm de tomarem gua no mesmo poo que as guas, todos a tomam no mesmo cntaro, indicando a diviso do mesmo destino. Essa indicao pode ser observada no sofrimento dos gaibus ao verem o que aconteceu a Ti Maria do Rosrio, quando acometida de sezo. A velha desespera-se quando o capataz lhe pede para deixar a ceifa. uma cena angustiante, seu corpo j no agentava trabalhar, mas ela sabia que, se parasse, no teria quem lhe desse o po no inverno:

Ento Ti Maria do Rosrio?! ...

Hum?!

Sente-se doente?! ... V um quartel para o barraco...

O corpo da velha sacode-se num estremecimento de pnico quando o capataz lhe fala em descansar.

Nem para ela nem para os companheiros a ceifa pode parar a ceifa o po.

[...]

O crebro diz-lhe que deve ir para junto deles, e depressa, mas as pernas j no obedecem ao seu mando. O capataz segura-lhe os braos magros e tira-lhe a foice.

Isso no, Manel! ... Isso no!... clama a Ti Maria do Rosrio num desespero.

O corpo treme-lhe, os olhos gotejam. Levanta as mos numa splica, no percebe o que faz e depois luta com o homem, desesperada.

Manel!... A foice... d-me a foice!... (REDOL, 1976a, p. 85).

Apenas os gaibus compadecem-se da velha, pois vem nela os seus futuros, mas mesmo assim, no tinham conscincia de que poderiam mudar a situao, no se revoltaram nem mesmo diante da crueldade em no indenizarem a velha Ti Maria do Rosrio por ter contrado a doena no trabalho. Resignaram-se e continuaram a colheita, sujeitos s ordens desumanas dos capatazes. A pobre mulher, porm, que h algum tempo estava trabalhando j acometida de alucinaes, no suporta a fraqueza e estatela-se no canteiro, sem uma contraco no corpo derrancado. Fica, porm, com a foice bem segura nas suas mos descarnadas. (REDOL, 1976a, p. 86).

A desumanizao, em Gaibus, ocorre de vrias formas, porm, como percebe Torres (1979, p. 26), nesse romance no h, como em Vidas secas, a humanizao de animais, como ocorre com a cachorra Baleia.

Em Gaibus, a primeira equiparao do homem com um animal feita por um gaibu, logo no incio do romance: H um homem que repara na tortura das guas peadas. Aquelas to com`a gente... (REDOL, 1976a, p. 27). O trabalhador sentia-se peado, como se a necessidade o obrigasse a estar ali. Trabalhar de sol a sol, de domingo a domingo, sem descanso, para receber um salrio s aceito por quem no possui outra alternativa, um tratamento semelhante aos recebidos pelos animais, que ganham apenas o alimento. V-se que essa personagem tem noo da explorao que sofre, como indica Torres (1979, p. 26): Esta auto-identificao, este olhar volta e ver-se o gaibu muito conscientemente espelhado numa gua de mos peadas, revela bem como ele sabe a que nvel tratado.

A identificao do gaibu com um animal assemelha-se ao episdio de Fabiano quando este afirma ser homem, e, logo aps, retifica o que disse e considera-se um bicho. No entanto, segundo Torres (1989, p. 223), o processo de desumanizao [em Gaibus], ou melhor, de animalizao, atinge nveis e planos de enquadramento que no se encontram em Graciliano. Apesar de nas duas obras ocorrer o processo de explorao, a ponto de as personagens se sentirem bichos, em Gaibus o nvel de explorao pode ser considerado mais acentuado.

Ao mostrar o processo exploratrio, em nveis que animaliza o homem, Redol fez referncia a algo que estava ocorrendo em Portugal, durante o regime fascista, que explorava o trabalhador rural, principalmente no perodo entre guerras, quando exportou produtos agrcolas aos pases europeus. A denncia foi feita, mas sem dizer uma nica palavra contra esse sistema. O autor usou um discurso para significar um outro, silncio constitutivo, uma forma de mostrar em que condies o pas conseguiu se beneficiar com os lucros da exportao.

Apesar de os gaibus aceitarem a acentuada explorao de suas mos de obra, sem cogitarem em manifestar uma reivindicao que lhes beneficiasse, possuem noo de que so maltratados, como se nota na interrogao do fragmento seguinte, o qual expe a confuso de vozes entre narrador e personagem, em forma de discurso indireto livre, sugerindo a inquietao dos pensamentos dos trabalhadores: O Agostinho Serra era o dono do arrozal e dos ceifeiros. Eles no passavam de alugados sero homens? (REDOL, 1976a, p. 91).

As duas vozes, ao levantar a dvida se eram homens, indicam uma certa noo de que so exploradas, mas no conscincia, porque em momento algum sequer pensam em fazer reclamaes, talvez por alienao ou por necessidade. De acordo com Torres (1979, p. 27), aceitam passivamente o processo explorador por alienao: Alves Redol apresenta-no-los, antes de mais, como um grupo de trabalhadores inconscientes da alienao em que vivem, e, ainda por cima, totalmente desconhecedores da causa dessa alienao, ou forma de a combater.

Parece haver aqui um choque de definies. Primeiramente, Torres (1979, p. 26) aborda a conscientizao do trabalhador ao ver-se to peado como uma das guas no pasto , depois, diz que as personagens so inconscientes da alienao (1979, p. 27). O que Torres parece querer dizer que as personagens so conscientes da explorao, a que esto sujeitas, porm, so alienadas porque desconhecem qualquer forma de reverter ou de combater a causa da alienao, ou seja, desconhecem os direitos que possuem como trabalhadores. Por isso, parece melhor considerar como noo o que o terico denomina de conscincia, na pgina vinte e seis, de seu livro Os romances de Alves Redol (TORRES, 1979, p. 26).

Em Gaibus, como j foi mencionado, apenas uma personagem possui conscincia da alienao, e apesar de se misturar com o coletivo do aglomerado de vontades individuais idnticas (Torres, 1979, p. 27), essa personagem resiste, ou tenta resistir explorao, contudo, deixa-se envolver. Trata-se do ceifeiro rebelde, o nico que no dia em que chove, antes de findar o dia, no foi descascar milho para completar o salrio, interrompido pelo mau tempo.

O ceifeiro rebelde queria gritar aos outros para no aceitarem aquela explorao absurda, sabia que se exigissem do patro, teria direito a ganhar o salrio completo, pois no fora por vontade deles que no trabalharam o dia todo. O ceifeiro rebelde, o nico que parece perceber a explorao, por ser um homem experiente e viajado, silencia tanto quanto os outros. Em nenhum momento, por mais que tenha vontade de advertir os companheiros, tenta conscientiz-los para que se unam. Silencia porque sabe que o sistema no estava preparado para mudar. E, por mais que tentasse, os gaibus no o compreenderiam, desconheciam seus direitos, tanto que se alegraram quando o patro ofereceu o milho para descascarem, pois estavam desanimados no barraco por no terem recebido o salrio integral.

O trabalho oferecido deveria ser pago, conforme a viso do ceifeiro rebelde, como um salrio extra, separado do pagamento daquele dia. No entanto, os gaibus no compreendiam esse direito e achavam justo o patro no lhes pagar todo o salrio, j que trabalharam apenas metade do dia. Com a oferta de trabalho, Agostinho Serra foi considerado homem de boa alma, deixando o ceifeiro rebelde ainda mais indignado com a ignorncia dos gaibus:

O ceifeiro rebelde pensava que estavam a tirar o po a eles prprios; se todos percebessem, nunca ningum pegaria numa maaroca. E o trabalho seria pago ao dia, porque a ceifar ou na descamisa as barrigas no achavam diferena. Aquilo tornava-o mais sombrio que o temporal e a falta de jorna. Parecia-lhe que os outros estavam tomados de loucura, de que aquele turbilho de vozes e correrias, gargalhadas e cantos era o sintoma. Ele no podia compreender o dio surdo dos rabezanos pelos gaibus. Mas naquele momento sentia tambm por eles uma averso instintiva. Averso que logo depois se fazia lamento, lamento que era depois confiana. Ele confiava ainda naqueles irmos que tiravam o po a eles prprios. (REDOL, 1976a, p. 110).

A pobreza e a necessidade de evitarem a fome, no inverno, faz com que os gaibus aceitem qualquer forma de trabalho. Ocorre, nessa luta para garantir o alimento, a individualizao do grupo, fator que beneficia, de certa forma, o capitalista. Torres (1979, p. 41), ao tratar sobre as companhias empresariais de Portugal, discute que a inimizade entre rabezanos e gaibus, rivais na disputa por trabalho, era incentivada pelo sistema capitalista:

evidente que as Senhoras Companhias, atravs do seu mundo de capatazes, fomentam a diviso entre os grupos: encorajam-na mesmo. Assim gaibus e rabezanos podem continuar para sempre como compartimentos estanques, que isso no vai perturbar os Agostinhos Serras. Enquanto os trabalhadores estiverem assim divididos, olhando-se como inimigos, eles podero explorar um ou outro grupo, vontade. (TORRES, 1979, p. 41, grifo do autor).

A alienao, em relao explorao capitalista, tapa a viso do homem para que ele no compreenda que seu trabalho vale mais do que lhe pago. Dessa forma, parte do lucro, que o trabalhador deveria receber, vai para o bolso do patro.

No mecanismo explorador, o patro aproveita a ignorncia dos trabalhadores, fingindo que os ajudam, mas na realidade, retira essa ajuda do que j lhes era de direito, como ficou claro no dia em que o trabalho foi interrompido devido chuva. Os gaibus tinham direito ao salrio integral, o patro, no entanto, ofereceu um trabalho adicional, para que no tivessem prejuzo de salrio. Se conseguissem ganhar mais do que o salrio do dia, seria um pouco a mais, e o patro sairia ganhando de novo.

O drama da explorao no tratado pela denncia explcita ao capitalista. No dilogo entre os dois homens, percebe-se que a explorao velada pelo discurso caridoso do patro, muito bem compreendido pelo capataz, que aproveita para tambm se beneficiar da manipulao do discurso engendrada pelos dois.

O silncio existente nos discursos de Agostinho Serra e do capataz Francisco Descalo ocorre para disfarar as verdadeiras intenes daquela situao, um e outro sabiam que o patro estaria ganhando, mas nenhum ousou expor esse fato, porm, o silncio contido ali e a prpria situao conduzida pelo patro, ao tratar o capataz como um scio, fazendo-o pensar que estava pedindo conselhos, faz esse empregado aderir incondicionalmente ao patro, o nico a se beneficiar com o negcio.

Ideologicamente, a explorao velada pelo discurso. Porm, a sua denncia aproveita esse mesmo recurso. As imagens e os sentimentos humanos, em Gaibus, quando submetidos represso, so minuciosamente construdos de forma a permitir ao leitor visualizar os esforos dos gaibus na lavoura, sentir a acelerao dos seus coraes, ouvir os gemidos que emitem no esforo rduo e repetitivo.

Redol no tinha inteno de que sua arte revolucionasse o mundo. O mrito est em ter conseguido mostrar o que se passa na conscincia de personagens submetidas aos rigores de um sistema repressor, num sentido que significa sem se expor abertamente, porque construdo por signos silenciosos.

ABSTRACT

RESENDE, Kellen Millene Camargos.Repression and silentment in Gaibus by Alves Redol. Temporis[ao], Gois, b. 1.n 9, Jan/Dez 2007.

Neo-Realism rose during governments that were favorable to the russian fascism. The political system did not allow any mention, in any means of communication, about the social and political themes that those societies experienced. Literature, therefore, was silenced. The study of the silentment in the novel Gaibus, by the Portuguese author Alves Redol, will be needed to comprehend the exploitation level that characters are submitted or, are made submissive and made as if a non-human compared to animals and machines. In this way, it will be made a connection to the history due to the fact that the book was published in a repression period. It is necessary to understand why it was prohibited to mention, in literature, any social or political matter in these countries.

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( Mestre em Estudos Literrios pela UFG e professora de Prtica e Estgio Supervisionado na UEG - Unidade Universitria de Inhumas.