53

Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

  • Upload
    dothien

  • View
    217

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que
Page 2: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

2

GANYMÉDES JOSÉ

Capa e ilustrações de

Claudson Rocha

SSUUPPEERRGG

Coleção Veredas

Ao escritor Everaldo Moreira Véras e Dona Terezinha, representantes de Olinda, a minha amizade.

Page 3: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

3

1 A casa era baixa, não rebocada. Vista de longe, parecia achatada no chão. O

pé de bucha subia verde-seco pela cerca de bambu do jardim, cobrindo parte do telhado do alpendre.

Quase todas as casas na Vila Santa Cecília eram parecidas — menos o sobrado que o Zé estava construindo. O Zé era jovem, animado, pedreiro, e os outros tinham inveja dele. Existia pouca beleza na vila. O pessoal não podia se dar o luxo de coisas bonitas; quase tudo era de segunda ou mesmo material aproveitado de construções demolidas. Por isso, certas casinhas tinham janela pequena de um lado, janelão de outro, portinha baixa e até portãozinho de ferro em cerca de bambu. Também as ruas eram abandonadas, a prefeitura nunca mandava passar a máquina nem fechar os buracos que as enxurradas abriam durante as chuvas. Na época da seca, a poeira subia fina, provocando resfriado em todo mundo. E, durante o ano inteiro, a água usada em pias e tanques empoçava por ali, porque na vila não existia esgoto. Nem água encanada. Quando muito tinha luz e uma fileira de postes sem lâmpadas. Porque os próprios moleques da vila viviam quebrando-as.

Gilvan estava sentado na pedra redonda que marcava divisa com as terras do Tristãozinho. Lá, a cerca eram apenas três fios de arame farpado e caídos, de tão frouxos. Os terrenos do Tristãozinho se encompridavam pela baixada verde que tinha, bem ao meio, uma alta e velha macauveira. Lá no fundo, o matinho protegendo a nascente onde o pessoal da vila ia buscar água. Gilvan gostava daquele lugar sossegado. Principalmente de ficar escutando os pardais que ao entardecer pousavam na macauveira.

— Ali deve ser a estação rodoviária deles — pensava, sonhador. Quinze anos, comprido, magro, pés grandes, Gilvan era claro, de cabelo

cor de fogo. Tinha olhos esverdeados como os da mãe, sardas, nariz esborrachado

Page 4: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

4

(por causa de um tombo) e dentes da frente separados. Quando criança, cortavam o cabelo dele curtinho. Por isso andou ganhando muitos apelidos: Taturana Bezerra, Escovão, Cachorro Pelado. Ele não ligava. Deixava falar. Na verdade, ele só se importava com três coisas na vida: o timão — Corinthians —, a bicicleta vermelha e o violão. Ah, do violão tinha um ciúme danado! Havia sido presente de tio Esmeraldo (que morava no Paraná), no dia da sua primeira comunhão. Era um violão vagabundo, mas tratado como se fosse de ouro. Ninguém podia entender como uma criança de sete anos tivesse escolhido um presente daqueles, em vez de brinquedo. Pois o tio deu o violão e, mesmo sem professor, Gilvan aprendeu a tocar. A música tampou a boca da família, que parou de encher dizendo que violão era besteira. Pois até que o garotão tocava bem demais. Tão bem que todos os domingos ia até a ZYR 204, a estação de rádio do lugar, para tocar com os violeiros. E era muito aplaudido!

Geralda chegou da cidade. Vestido cor-de-rosa, 16 para 17 anos, cabelo comprido, pés sujos de terra. Nem olhou para o irmão, foi entrando, foi chamando a mãe. Peteca, a cachorra, latiu para a galinha que ciscava na água empoçada diante da casa, e, atrás dos eucaliptos do terreno da frente (também do Tristãozinho), o Sol começou a deitar-se. Geralda trabalhava como empregada na casa do dentista e estudava à noite. Naquela casa os três estudavam à noite: ela, o Gilvan e o Gilson, o mais velho, 18 anos e empregado na gráfica.

Gilvan continuava tirando uns acordes, quando ouviu o ronco da Kombi. Logo mais, ela parava, e o irmão apeava. Gilson era alto, forte, tinha um peito que parecia paredão de cimento armado. As garotas (principalmente as da vila) viviam correndo atrás dele. Era o tipo do jovem alegre, desportista, todos os domingos jogava futebol no campinho do Desterro. Mas o Gilson não era de namorar uma garota só. Vivia dando corda a todas, mas não firmava com nenhuma.

A perua arrancou, deixando poeira para trás, e o Gilson entrou pelo portãozinho desbeiçado. A roseira branca floria pencas junto ao pé de dália vermelho-escuro.

— Oi, Taturana! — Oi. . . — Ainda tocando as modas de viola? — Que é que ocê tem com isso? — Nada, ué! Lá de dentro, a voz da mãe saiu abafada: — Desocupa logo essa bacia que teu irmão chegou, Geralda! — Ih, mãe, não enche! Entrei no banho agora! Gilvan deu risada e torceu para que saísse uma briga. Mas não saiu.

Então, ele começou a cantar uma moda que falava de uma velha rica que tinha feito uma promessa para curar-se. Ainda continuava cantando, quando escutou conversa subindo a rua. Olhou. Era o pai, um homem miúdo, claro, sobrancelhas largas e olhos esverdeados. Muito magro, o pai vivia se queixando de dor de estômago. O médico tinha falado que ele sofria de úlcera e precisava

Page 5: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

5

largar de fumar. Mas quê! O pai vivia com o cigarro de palha (mesmo apagado) na boca, não havia quem lhe tirasse o vício.

O pai conversou mais um pouco e, depois, despediu-se do amigo, que continou subindo. Pelos vãos da cerca de bambu Gilvan viu que era seu Salvador, o pedreiro gordo. Continuava olhando, nem percebeu que o pai chegava perto, quase encostando.

— Gilvan, — disse em voz baixa, do jeito que sempre falava — o Alencar parou o trabalho comigo.

O filho olhou para cima. O Sol morrendo iluminava o rosto do pai com um tom dourado, emprestando-lhe majestosa dignidade.

— Amanhã você vai trabalhar comigo — disse. — Preciso de um servente, e nesta cidade de droga ninguém quer pegar no trabalho. Todo mundo só sabe é reclamar.

Gilvan ficou atrapalhado. E respondeu: — Pai, nunca trabalhei como servente! — Acaba aprendendo. Na sua idade, eu já ajudava meu pai fazia

quatro anos. Comecei a amassar barro com onze, nem conseguia erguer a enxada. Virando nos pés, entrou na casa. Gilvan continuou olhando, sempre

abraçado ao violão. Servente de pedreiro? Ele nunca havia sonhado com um serviço daqueles! Quando muito tinha trabalhado de turmeiro no caminhão dos que iam colher frutas. Mas servente de pedreiro?

Escutou a baciada de água que Geralda atirava pela janelinha. Dali a pouco o cheiro de sabonete chegou até ele como se todo o fim do dia tivesse ficado perfumado. Então, Gilvan se esqueceu do serviço e, outra vez dedilhando o violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que o desligava da realidade para transportá-lo a um outro mundo, um mundo superior, diferente e deliciosamente mágico.

2

De manha, todos acordavam muito cedo. Dona Carlinda, a mãe, tinha um

galo que dormia na goiabeira e funcionava como despertador. Aí, ela levantava e começava a tirar os filhos da cama. O único com quem não precisava falar duas vezes era o marido. A Geralda, então, um horror! — a mais preguiçosa e resmungona.

Gilvan acordou ainda com sono. Mas levantou, pegou água fria, lavou a cara no tanque e voltou para a cozinha quando o cheiro do café já tomava conta da casa toda. Por dentro, a cozinha era rejuntada, sem reboco. Uma caiação branca, escura no lugar do fogão de lenha, e piso acimentado. Pia, mesa, cadeiras, um armarinho forrado com papel colorido, de embrulho. O pai já estava tomando café preto com pão. Era difícil entrar leite naquela casa.

Puxou a cadeira, sentou. — Levanta, Geralda! — gritou a mãe baixa, magra, meio encurvada de

Page 6: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

6

desânimo, cabelo escorrido e ralo. — Essa menina me deixa maluca, Romeu!

O pai bebeu mais um gole de café. — Quando a gente mudar para São Paulo e ela tiver de bater o ponto, a

coisa fica diferente porque, se não bater o ponto, perde o dia, desconta do ordenado... Não é moleza como na casa do dentista!

— Falando nisso, Romeu, compadre Belarmino deu alguma notícia para a nossa mudança? — perguntou a mãe, ar desanimado.

— Não. Mas ele está arrumando pra trabalhar na obra do governo. Quando conseguir, ele me chama. Acho que antes das férias de julho nós já mudamos.

Dona Carlinda estremeceu: — Tão cedo assim? — Quanto mais cedo, melhor! Dona Carlinda continuava com uma expressão sem vida. — Será que a gente vai acostumar lá, Romeu? Ouvi falar que tudo é

corrido na capital... tem muito ladrão... Seu Romeu caiu na risada. — Tem ladrão que só rouba os ricos, as fábricas e os bancos. É o que a

televisão diz todos os dias. Roubar de nós? Deixa de pensar besteira, Carlinda! Ladrão não perde tempo com pé-de-chinelo!

Encolhendo os ombros, ela voltou ao fogão. — Toma esse café depressa, Gilvan — mandou o pai. — Senão, vamos

atrasar. Gilvan fez que sim. Dali a pouco, eles saíram, enquanto a mãe continuava insistindo para a

Page 7: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

7

Geralda levantar. A descida para a cidade era por uma estrada comprida. Pela frente, a

chácara do Tristãozinho onde, no verão, as moitas de bambu pegavam fogo. Era um tal de gomo estalar que parecia tiro! Em agosto do ano passado tinha sido tamanho tiroteio que a polícia acudiu pensando que fosse assalto. Mas assaltar o quê, no campo? Também tinha um brejo onde plantas de folhas compridas pendoavam cachos floridos. Os pardais ficavam brincando de balançar nas flores. Indo e vindo ao embalo do vento.

Depois de passado o sono, até que era gostoso ver o dia nascer. Primeiro, o Sol, que aparecia numa confusão de cores atrás do eucaliptal do Peres. Depois, o cheiro de terra, de umidade, de plantas — cheiro que não tinha na cidade. À beira do caminho crescia muita flor do mato. Quando não era o cipó-de-são-joão, eram as pastorinhas enfeitando com um alaranjado que lembravam um bailado de borboletas esvoaçantes.

A casa de seu Raimundinho era a primeira, logo na entrada da vila. Num barranco. Pior do que a do Gilvan, nem tinha pintura por dentro. Tudo no tijolo, chão de terra socada que a Cidinha vivia varrendo. Cidinha, a filha mais velha (quase da idade do Gilvan), a gorda que andava com os braços abertos, cabelo curtinho, preto, quando dava risada os olhos sumiam na gordura. Rosto redondo, lábios vermelhos, bochechas rosadas de tanto sol. Era Cidinha quem tomava conta da casa, os pais saíam cedo para trabalhar em fazendas, só voltavam ao escurecer. Cidinha cuidava dos três irmãos menores, limpava a casa, tirava água do poço até para regar as flores do jardinzinho onde gerânios e margaridas estavam sempre florindo. Trabalhadeira, asseada, sempre alegre, apesar de viver apanhando do pai.

Quando eles passaram por ali, Cidinha estava varrendo em frente ao portãozinho. Ao ver Gilvan, abanou a mão:

— Oi! — Oi! — respondeu ele dando uma endireitada no bonezinho do

Corinthians, bonezinho que não tirava da cabeça nem por Santa Maria; — Olha pra frente, Gilvan. Ou tropeça e quebra o nariz! — brincou o

pai. Ele encolheu os ombros. — Eu gosto da Cidinha. Ela é bacana. — É uma boa menina! Mas tenho dó dela. — Por que, pai? — Por causa do pai dela, seu Raimundinho... Gilvan deu uma olhada para trás. Cidinha continuava varrendo, agora não

mais olhando para eles. Decerto estaria cantarolando. Vivia o tempo todo cantarolando baixinho. Na vila todo mundo achava que ela era boba por causa disso. Mas Cidinha não era boba. Se fosse, não seria capaz de tomar conta dos irmãozinhos. Será que ela podia ser boba só porque vivia dando risada? E como ainda conseguia rir, se constantemente apanhava do pai? Seu Raimundinho era

Page 8: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

8

muito bruto, gostava de beber. Às vezes, todo o dinheiro que ganhava em uma semana gastava no bar da avenida. No começo, a mulher brigava muito com ele por causa disso. Depois desanimou. E quando ele "enchia a cara", aprontava escândalos, batia na mulher, na Cidinha, nas crianças, quebrava os móveis da casa, atirava os pratos pelas janelas e chutava o cachorro — um horror! De longe dava para escutar a pancadaria. Uma vez foi preciso chamarem a polícia. Com isso seu Raimundinho ficou dois dias no xadrez. Mas nem assim tomou jeito. Quando voltou, repetiu surra maior... e a Cidinha apareceu com o rosto todo manchado de roxo. Mas, apesar de tudo... ela cantava e ria para as pessoas!

Gilvan olhou para a frente. Atravessaram a nova ponte de madeira sobre o córrego e começou a subida para a cidade. Dali para cima as casas eram melhores, maiores, mais modernas. Depois do buracão — a antiga Boçoroca da Estalagem, conforme chamavam no século passado — chegaram à rua calçada com paralelepípedos. Entrar na cidade era como entrar em um outro mundo. Então, Gilvan encheu o peito de ar e respirou fundo.

Na esquina estava a camionete verde do Péricles. — Querem uma carona? — convidou ele. Não foi preciso insistir. Gilvan bateu a mão na carroçaria e saltou dentro.

O pai foi na cabina, conversando com o motorista. De pé, todo importante lá atrás, Gilvan lá se foi observando a rua comprida em cujas calçadas as quaresmeiras floresciam roxo ou cor-de-rosa. Sentia-se como se estivesse em um palco, aplaudido por todo mundo. Sonhava com a música, com o sucesso, sonhava poder tornar-se, um dia, um dos maiores violeiros do Brasil.

3 No dia seguinte à estréia no trabalho, Gilvan estava com o corpo tão

dolorido que nem queria levantar. Foi preciso o pai ir lá, ou teria ficado debaixo das cobertas resmungando como a irmã.

Levantou a contragosto, tomou café irritado. Em vez de descer a pé para o serviço, pegou a bicicleta. Era velha, sem pára-lamas, ele mesmo a tinha pintado de vermelho — uma bicicleta cafona, com fios coloridos de plástico dependurados nas duas extremidades do guidão, uma campainha rouca e um selim desbeiçado. Atrás, o emblema do timão --a implicância do pai que nem podia ouvir falar do Corinthians!

Gilvan desceu como uma bala. Passou tão depressa pela casa da Cidinha que nem deu pra ver se tinha gente lá. Devia ter. As crianças ficavam sempre trancadas no quintal.

Até a ponte, foi uma voada. Mas quando chegou a subida, Gilvan estava com as pernas tão doloridas que precisou empurrar a bicicleta. A rua esburacada e cheia de cacos de tijolos para segurar as águas da chuva estava intransitável.

— Droga de prefeito! - - resmungou, fazendo uma careta. — Não é à toa que todo o mundo fala mal desse sujeito! Não presta nem pra mandar passar

Page 9: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

9

a máquina pra endireitar este chão! Muitos estudantes estavam descendo para a escola. Gilvan sentiu um

pouco de inveja. Gostaria de estudar de manhã. Ou à tarde. Menos à noite. À noite era chato, dava sono, os olhos ardiam e, por mais que tentasse concentrar-se, nem sempre entendia o que os professores ensinavam. Também, pudera, trabalhar duro durante o dia inteiro, carregando tijolos, amassando reboco, sem parar um só minuto, quem agüenta? Por isso, quando podia, desligava os ouvidos, quase dormia de olhos abertos e não via a hora de bater o sinal da última aula. Esse era o motivo pelo qual Gilvan não gostava de aulas à noite. A última terminava às vinte para as onze, ainda tinha de ir até a vila. Chegava lá tão moído! No dia seguinte, pular às seis. Vivia com o sono atrasado, prometia que no sábado e domingo havia de dormir até arrebentar. Mas dormia? Dormia nada! Nos sábados e domingos é que o sono ia embora porque sempre tinha mil coisas para fazer: as coisas que nunca tinha tempo de fazer durante os dias de semana.

O pai estava reformando o banheiro em casa de seu Mendes, funcionário aposentado. Decerto aposentado por chatice — pensava o Gilvan porque o velho era implicante, malcriado e vivia pondo defeito em tudo o que o Gilvan fazia. A mulher dele era outra chatona.

— Limpe os pés antes de entrar! — mandava. — Não deixe cair areia no chão! — ordenava. — Poxa, menino, não faça tanta poeira com a cal! — gritava. — Que horror, você está me sujando tudo com cimento! —

resmungava. Gilvan ficava louco de raiva, tirava o bonezinho do Corinthians, jogava no

chão, pisava em cima, punha de novo o boné na cabeça e assobiava para não responder. Até com o assobio seu Mendes implicava.

— Menino mal-educado! Assobia pra fazer de conta que não escuta o que a gente diz!

Gilvan não sabia como o pai agüentava trabalhar para gente daquele jeito. Ele, hein? Quando crescesse queria era cantar em rádio, televisão, gravar discos, fazer cinema, ficar importante. Imagine, viver amassando reboco, carregando tijolos nas costas. . . e ainda engolindo desaforos!

Em uma semana, o corpo começou a resistir. Gilvan já não achava tão ruim carregar latas de reboco nem puxar areia. Afinal, até que recompensava quando, no sábado, o pai colocava dinheirinho na mão dele. Dava muito mais que ir de caminhão trabalhar como bóia-fria nas fazendas. Por isso, foi ficando mais animado. Até conseguiu fingir que gostava das implicâncias de seu Mendes!

Quinta-feira, meio-dia e quinze. Gilvan acabou de encostar a bicicleta no muro da casa onde trabalhava e olhou para o monte de areia grossa que o caminhão tinha acabado de despejar: dois metros! Era areia pra danar! Seria dia de serviço duro, o pai pedindo reboco, tijolo, cimento, e a patroa a toda a hora perguntando se ele já tinha recolhido o material porque queria a calçada limpa, tinha alergia a calçadas sujas...

Tirou o bonezinho, olhou para o lado direito da rua. Pernas tortas,

Page 10: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

10

compridas, lá vinha subindo o Mizael. Orelhas de abano, pele mais escura que café forte e um ar de eterno sono. Chegou, parou, olhou, suspirou. Trabalhava no depósito de bebida.

— Oi, Gil! — Oi, Miza. — Dando um duro? — Hoje não vai ser mole. Imaginou recolher tudo isso?

Mizael enfiou o dedo no nariz e limpou no calção. — Vai cantar na rádio domingo? — Não sei. Cê vai lá? — Acho que não. Escuta, já ouviu falar do festival de música que a

oitava série está arranjando? — Eu não! Quando? — Fim de junho. É dinheiro para a escola, esse negócio de Pais e Mestres.

Escute, cara, você canta na rádio. Então, por que não faz uma música? Falaram que o primeiro prêmio é um milhão.

— Tá brincando? — perguntou Gilvan, assanhadíssimo. — Jura! Se você fizer a letra e a música, o milhão é todo seu. Mas se você

fizer só a música e outra pessoa fizer a letra, aí vocês têm de rachar o prêmio. — Eu é que não vou dividir o meu milhão com ninguém. Eu faço tudo! — Taí, malandro! Nem ganhou o prêmio e não está querendo repartir,

não é? É assim mesmo, dinheiro segura a gente... Mizael despediu-se e virou a esquina. Gilvan continuou olhando para lá. Um

festival de música... uma boa oportunidade para concorrer, para mostrar que sabia cantar, tocar... e por que não compor? Se ganhasse um dinheirinho extra, podia

Page 11: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

11

comprar um par de pára-lamas novos para a bicicleta. — Menino, não escuta que seu pai está chamando? — perguntou

a mulher de seu Mendes. — Ainda por cima ficou surdo? Gilvan virou para trás e topou com a cara de coruja. Imediatamente parou

de sonhar e entrou. A mulher marchou atrás, dedo em pé e resmungando: — E não se esqueça: quero que recolha toda essa areia e me deixe a

calçada varrida, limpinha, em ordem. E a sarjeta também, ouviu, menino? 4 Três e meia. Sábado. O sol estava começando a alongar as sombras pelos

lados do Peres. A Boçoroca do Desterro — grande valo cavado pela erosão ao pé de um barraco — parecia mais escura. Acima, ao nível da avenida da estação nova, apontavam casinhas cujos telhados desapareciam entre pomares de laranjeiras, jabuticabeiras e limoeiros. Mais adiante, para baixo, erguiam-se as torres prateadas da Capela de Nossa Senhora do Desterro. O silêncio na vila era pesado. De vez em quando ouvia-se o grito de alguém chamando alguém, assobio de moleques, pio de pássaros, cacarejar de galinhas. Fora disso, buzinas de carro lá longe, no asfalto, que o vento trazia farfalhando as folhas da bucheira.

Passaram três mulheres pelo caminho de terra. Sombrinha aberta, sacola de papel dependurada no braço. Conversando sobre o calor, a carestia, a saúde.

De short, Gilvan estava sentado à sombra do manacá no jardinzinho em frente à casa. A cerca de bambu tinha um rombo de tanto a Peteca sair e entrar. Enquanto trabalhava, Gilvan podia ver o pessoal passando.

Era dia reservado para limpeza e retoque na pintura da bicicleta. Ele a havia desmontado quase todinha. Vivia desmontando a coitada, fazia tamanha montoeira de pedaços que às vezes a mãe dizia:

— Aposto que você não vai saber montar de novo! — Vou, mãe, é fácil! — Não vai, não! — insistia ela com um ar de incredulidade.

Mas ele a montava. Era esperto, tinha grande facilidade para lidar com peças. E como aos sábados os pedreiros paravam de trabalhar mais cedo (depois do café), todos os sábados eram reservados para reparos e lubrificação do veículo. Com o dinheiro recebido na semana passada, ele havia comprado tinta e pincéis. Agora, mãos sujas de graxa, limpava os rolamentos. Assobiando. Quando sentiu que alguém enfiava a cara no buraco da cerca.

— Oi. . . Olhou. O rosto redondo de Cidinha tomava todo o vão. Não era nenhuma

beleza. Era só bonitinha. — Oi, Fofona, tudo bom? Encolhendo os ombros, ela quase se derreteu. Fofona era o apelido que ele

tinha posto. Só ele, mais ninguém. Os outros a chamavam de gorda, de sapo, de

Page 12: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

12

balão, de baleia, de barril. Mas Gilvan a chamava de Fofona, alguma coisa mais do que fofa, não fazia gozação com o tamanho dela. Nunca tinha feito, desde o começo, quando seu Raimundinho tinha mudado para a vila. Por isso, Fofona adorava o garoto de cabelo vermelho.

Ajoelhou-se para melhor caber no buraquinho. — Que que ocê tá fazendo? — Dando um banho na bicicla. Quem não tem fusca, caça com bicicla

mesmo! Ela deu uma risadinha e encolheu-se, toda dengosa. Ficar perto de Gilvan

era ficar arrepiada o tempo todo. — Cê vai cantar na rádio amanhã? — Não sei. Por quê? — Porque quero te escutar. Todos os domingos, eu escuto. Conheço sua

voz sem precisar nem ver a sua cara! — Claro, rádio não é televisão, não dá mesmo pra ver minha cara!

Você gosta de me escutar? — Adoro! Você canta afinado, direitinho. Tem uma voz diferente dos

outros violeiros... Já reparou? Todos cantam igual. Você, não, é o único! — Cê acha mesmo? Eu até que não gosto da minha voz. Acho esquisita. — Esquisita nada! Já escutou a voz do Chico Buarque? É fininha,

parece bezerro desmamado, mas todo mundo acha lindona, não acha? A voz da Bethânia? No começo, eu pensava que era homem cantando. E todo o mundo não morre por causa dela? É isso aí, cantor de verdade vence com a voz que Deus deu!

— Nossa, Fofona, como é bom escutar isso! — Aposto que, um dia, você vai ser um cantor muito famoso também!

Vendendo mil discos, com retratos em bancas de revistas, todo o mundo só falando de você!

— Poxa, sabe que é com isso que vivo sonhando? — Claro que sei. Porque eu sonho com a mesma coisa!

Gilvan olhou para o céu. Depois para o rosto de Fofona entalado na cerca. — Sabe que vai haver um festival de música na escola? Estou pensando

em fazer uma música com letra e tudo. — Que legal! — e Fofona ajuntou as mãos, em dose dobrada de arrepios.

— Nossa, vai ser o máximo! Se você concorrer, eu vou estar lá torcendo por você!

— Só estou pensando em uma coisa... — Que coisa? — Eu precisava de um nome bonito para começar minha carreira de

cantor-compositor. Gilvan é um nome muito comum, todo mundo tem esse nome. Taturana Bezerra, Escovinha, Cachorro Pelado, Nariz de Papagaio são

Page 13: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

13

apelidos que me dão raiva. Porque parece que estão xingando a gente em vez de achar bonito.

— Todo o mundo gosta de fazer gozação em cima da gente — disse Fofona, os olhos tristes. Mas dali a pouco, um estranho brilho passou naqueles mesmos olhos, como se o Sol saísse deles. — Eu, escute, eu tenho um apelido muito bom para você! Quer?

Ele olhou desconfiado. — Qual? — SUPER-G! — falou, carinhosamente pronunciando cada sílaba como

se cada uma fosse um beijo. — Gosta? — Super-G... — repetiu ele, pensativo. — Super-G... — Super-Garoto, Super-Gilvan, Super-Grandão, Super-Gente — explicou

Fofona. — Pra mim, você é o super-maior! — Gostei! — concordou ele, fascinado. — É ótimo! Até estou

pensando em escrever o super em preto, com letra de mão, e um G grandão, vermelho, em letra de forma. Você me deu uma idéia maravilhosa, Fofona! Vou fazer um emblema para a minha bicicla, para o meu violão e para a minha camiseta, quando for cantar no festival. Esse vai ser o meu nome de artista: SUPER-G! E quando eu começar a gravar discos, vou dedicar um a você, numa letra destamanho, escrevendo assim: "Para a Fofona, com um beijo do maior fã do mundo: Super-G!" Você gostaria?

Por pouco Fofona não se derreteu. Sentiu uma incontrolável vontade de dar no rosto de Gilvan o maior beijo de sua vida. Mas a emoção foi cortada como se tivesse recebido um banho de água fria, ao ouvir a voz de seu Raimundinho chamando. O ar de alegria transformou-se em uma sombria expressão de quase medo. Fofona levantou-se depressa.

Page 14: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

14

— Tenho de ir embora, ou meu pai me bate. Tchau, Super-G. Depois a gente se conversa, viu?

Saiu correndo. O vão da cerca ficou vazio. Pareceu que os sonhos tinham ido embora. Super-G continuou olhando para o buraco, pensando em Fofona e repetindo o novo nome com o qual acabava de ser batizado.

5 Domingo de manhã. O pátio da igreja de Nossa Senhora do Desterro

estava cheio de automóveis estacionados à sombra das árvores. Eram fiéis da cidade que iam assistir à missa das oito e meia. Também havia cavalos em frente ao colégio — violeiros para o programa do compadre Tóti. Muitos vinham de sítios, especialmente para a Roda dos Violeiros que acontecia todos os domingos das nove ao meio-dia. Quase todo o pessoal do bairro comparecia ao auditório cor-de-rosa da rádio para assistir às apresentações no minúsculo palco.

Muitos eram os artistas famosos: Chiquinho e Berimbau, o Homem do Chapelão, Ditinha e Sabiá, Eleutério e Maria Francisca. Compadre Tóti, um grande animador, baixinho, gordo, cabelo crespo como molinha de relógio, falava por quantas juntas tinha. Foi ele quem apresentou, lá pelas dez e meia, Super-G, que estreou o novo emblema no violão. Subindo ao palco, o garoto acenou para a pequena multidão. Pisar no palco era como entrar no mundo da fantasia, onde ele era o único, o especial, o importante, o ídolo. Erguendo o violão como o vencedor ergue o prêmio, cumprimentou com um largo sorriso de dentes tortos. A platéia respondeu com assobios, vaias, gritos, aplausos.

— Gilvan, — perguntou compadre Tóti para satisfazer a curiosidade de todos os presentes — por que você resolveu mudar de nome?

— Pra ficar mais charmoso! — respondeu, com uma grande risada. — Vai ser meu nome de cantar de agora em diante. Mais aplausos, assobios, gritos.

— Muito bem — concordou o apresentador. — E quem inventou esse nome para você?

Nessa altura, na casinha de tijolos à vista, na Vila Santa Cecília, Fofona quase entrou pelo rádio.

— Foi uma fã que bolou ele pra mim — a Fofona! Fofona deu um pulo de alegria, por pouco não derrubou a panela do

fogão. Ainda bem que o pai não estava por perto... No auditório, novos aplausos. Super-G tirou uns acordes e disse: — Agora, vou cantar pra vocês O menino da porteira... Começou. A platéia ouvia. Metade atenta, metade conversando. Era assim mesmo, os compadres que tinham muitos assuntos para

conversar não perdoariam nem o próprio Roberto Carlos. Mas Super-G não considerava isso desatenção porque ele não estava vendo nada. Quando cantava,

Page 15: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

15

era como sair de dentro dele mesmo para entrar em um outro mundo onde somente a música era importante. Ele se transformava, a música nascendo do violão passava pelo microfone, pelos aparelhos da emissora, saía pelo ar e repetia nos muitos rádios das muitas casas, ligados pela cidade inteira.

Quando terminou, as palmas foram estrondosas.

— Ele tem nariz torto, — brincou o compadre Tóti — mas sabe dar o

seu recado! Ao meio-dia, ao terminar o programa, Super-G tomou o rumo da casa.

Subiu pela avenida de asfalto onde, antes do pontilhão, virava à esquerda. Ali, estrada de terra com casas pelos dois lados. No fim, nova virada à esquerda, e a estrada se alongava, única, até encontrar a cidade, com o nome de Duque de Caxias. Era ao lado dessa longa rua mal conservada que morava a Vila Santa Cecília.

Violão nas costas, pensativo, foi descendo. Ainda escutando os aplausos que o faziam sentir-se como se fosse o maior artista do mundo. Pela direita, o campo do Tristãozinho abrigando a matinha onde o povo da vila ia buscar água. Descendo, descendo, encontrou algumas pessoas que subiam, passou por uma perua estacionada e chegou diante de casa. Antes de entrar, deu uma olhada na casa da Fofona. Ninguém por ali.

Sem camisa, o Gilson estava deitado no sofá de plástico, na sala. Da cozinha, cheiro de comida. Entrou. Geralda chegaria às duas, sempre ficava para almoçar na casa do dentista, onde a comida era mais gostosa (ela dizia). A mesa estava posta. A mãe disse qualquer coisa. Super-G guardou o violão no quarto. Dali a pouco estavam todos à mesa.

— Tenho uma boa notícia para vocês — disse o pai, ao fim do almoço. Gilson e Gilvan se entreolharam. A mãe endireitou o cabelo.

Page 16: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

16

— Compadre Belarmino telefonou que arranjou o emprego. Assim que a gente terminar a reforma na casa do seu Mendes, mudamos pra São Paulo.

Gilvan arregalou os olhos. — Boa, pai! Gostei! — respondeu o Gilson. Super-G sentiu, então, que o pai olhava para ele como se lhe pedisse a

opinião. Deu um largo sorriso que lhe achatou um pouco mais o nariz, tinha a boca suja de molho de macarronada.

— Também acho uma boa, pai. Eu vou poder cantar na televisão! — E eu vou entrar no futebol profissional! — disse o irmão.

Todos olharam para dona Carlinda, que parecia uma estátua. — A mãe não gostou? Ela continuo com olhar sem vida e cabelo caído na testa. — Não sei! Pra mim São Paulo ainda é a cidade mais perigosa do

mundo... - Perigosa nada! — retrucou o marido. — Isso é conversa de gente que

não sabe o que diz! Todo mundo que vai pra São Paulo endireita as pernas. Não viu seu Francisquinho? Era o pior pedreiro desta cidade. Lembra quando assentou uns azulejos na farmácia do Doroteu? Assentou como o nariz, ficou uma porcaria de serviço que tiveram de arrancar tudo. Agora, apareceu por aí pautando os dentes, roupa nova, ares de gente fina. E sabem o que ele faz em São Paulo? É es-pe-ci-a-lis-ta em assentamento de azulejos. Só isso que ele faz por lá!

Os dois filhos caíram na risada. Dona Carlinda nada disse. Apenas tirou os pratos e colocou-os na pia. Seu Romeu suspirou:

— Está bem, Carlinda, você não acredita em mim! Mas quando estiver morando na capital, vai ver que o diabo não é tão feio quanto pintam.

— Quando a gente muda, pai? — perguntou Super-G. — Acho que no fim de junho. Super-G não respondeu. Ele ainda não tinha pensado direito no que

significava mudar para a capital. E nem queria pensar agora. O importante era saber que tinha tempo. "Vai dar para eu fazer a minha música e inscrever no festival. Vai dar tempo, sim. E depois do festival. . . bem, depois do festival é que a gente vai falar de São Paulo."

Atirou-se à comida quase fria. Sonhando que, em São Paulo, talvez pudesse se apresentar em programas de calouro, na televisão, para receber os aplausos de todo o Brasil.

6 Descida para a aula. Frio de fim de maio. Ele olhou para as lâmpadas

arrebentadas nos postes. Pensou nos moleques que, acostumados a não respeitar a propriedade alheia, cresciam para se transformarem em marginais. Difícil o dia quando não acontecia um assalto na cidade. De manhã, as pessoas se

Page 17: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

17

encontravam e se perguntavam de olhos arregalados: "Sabe a casa de quem foi roubada?" Ultimamente, andava um escândalo! A agressão parecia não mais ser característica das cidades grandes. Inclusive nas cidades pequenas, onde até bem pouco tempo podia-se dormir com janelas abertas, a coisa mudou, os proprietários começavam a colocar grades e trancas em suas portas. Por que o mundo ficava cada vez mais violento, se aumentava o número daqueles que lutavam pela paz?

No jardim da escola, vestiu o avental branco que trazia dobrado entre os livros. Era um prédio majestoso e muito iluminado por dentro. Situado em meio à praça que recentemente havia recebido novos postes altos, de longos braços prateados, com isso ganhando melhor iluminação pública. A escola havia sido recentemente pintada em cinza-claro. Bonito! Quando a tinta começou a ser aplicada, o velho prédio, que antes tinha aparência de um velho fantasma caduco, começou a ressuscitar novamente, jovem e cheio de vida. As quaresmeiras do jardim fizeram festa àquele renascimento, cobrindo-se com milhares de flores roxas.

Classe espaçosa, arejada, construção antiga e sólida. Super-G sentou no fundo, onde poderia dormir sossegado, caso o professor desse aula chata. Depois, abriu a pasta de plástico e começou a retirar o material. Cocando a cabeça, olhou de lado. A quarta aula seria de português, e ele não havia estudado absolutamente nada. Também, cadê tempo?

Mizael acabava de chegar. Atirando os cadernos de qualquer jeito e falando alto. Também chegaram as duas irmãs Roseira. De cabelo comprido, calça branca, justa, unhas dos pés pintadas em vermelho vivo, tamanquinhos de sola de madeira e mascando chiclete. Agora, um pouco mais sossegadas depois que o Andrade, um molecão de dezoito anos, tinha quase quebrado a cara delas. Pudera, durante as aulas as duas costumavam não prestar atenção, ficavam contando piadinhas, rindo alto e atrapalhando. Até que um dia, irritado, o Andrade pegou as duas em um canto e ameaçou: "Se vocês não querem aprender, o que vêm fazer na escola? Pois eu quero aprender!" A mais velha respondeu que ele não era pai delas para passar sermão. Com isso, o Andrade perdeu a cabeça, agarrou a menina pela blusa e provocou aquela correria, sendo preciso que acudissem professores, diretora e serventes. Todo mundo acabou na diretoria, o sermão do Andrade valeu e, a partir daquele dia, as duas barulhentas passaram a usar volume mais baixo quando queriam conversar durante as aulas.

Bateu o sinal, e ela entrou. Era alta, magrinha, olho preto, rosto redondo e cabelo comprido, castanho-claro. Tinha nariz que era uma jóia de bem feitinho. E o sorriso, então?

Quando viu a garota, Super-G até ficou de pé. E cutucou o Mizael: — Ei, quem é aquela menina?

Mizael deu uma olhada. — Qual? — A sentada na terceira carteira, perto da parede. .. — Ah, é a Soninha. — Soninha do quê?

Page 18: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

18

— Sei lá! Pergunte pra ela! — De onde ela veio? — Da turma da tarde. — O que que ela faz?

— Também não sei. Escute, cara, o que você pensa que eu sou?

Computador ou pessoal do censo? Pergunte direto, qual é? O professor acabava de entrar. Era alto, falava grosso, com ele ninguém

piava. Já foi sentando, fazendo a chamada, começando a aula. Não dava oportunidade para ninguém fazer gracinhas.

Super-G nem escutou o que o professor estava ensinando. Só sabia enxergar o jeito dela, o cabelo dela, o rosto dela, o narizinho dela... Tanto olhou que a menina acabou percebendo. O encontro de olhares provocou um arrepio nele, ela parecia não ser capaz de desviar os olhos, até pareceu envergonhada. De repente, virou-lhe as costas depressa e fingiu que se concentrava nas explicações do mestre. Super-G começou a rabiscar coisas no caderno. Escreveu a palavra amor, love (a única que sabia em inglês), fez coraçõezinhos atravessados por uma flecha e sonhou o tempo todo.

A partir daquela noite, Super-G não via a hora de descer para a escola. Jantava pelos olhos, pelo nariz, pegava os cadernos amarrados com barbante e se plantava embaixo dos coqueiros em frente à escadaria da porta de entrada. Enquanto ela não chegava, ele não entrava. Ela entrava, ele entrava atrás. Soninha fingia que não via. Ele insistia em se mostrar, falando alto, mexendo com os outros, tudo para chamar a atenção. E nada! Super-G já estava ficando irritado com o desinteresse daquela menina!

A oportunidade da aproximação aconteceu na prova de inglês, quando dona

Page 19: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

19

Licínia trocou todo o mundo de lugar. Soninha acabou ficando na frente de Super-G. De contentamento, ele quase se levantou para dar um beijo na professora.

Começou a prova. Soninha estava impaciente, mordia a esferográfica, suspirava, fazia de tudo — menos escrever. Sinal que não sabia nada. Com olhos deste tamanho, dona Licínia vigiava cada movimento. Quando ela virou as costas, Super-G fez um psiu. Soninha olhou. Ele estendeu a cola que o Mizael tinha passado. Soninha deu um sorriso de alívio, desdobrou a cola nos joelhos e começou a copiar. Só assim que conseguiu fazer a sabatina.

Quando bateu o sinal e a professora saiu, Soninha aproximou-se dele, deu uma piscada capaz de derreter chumbo e disse:

— Obrigada! Você foi um amor! O quanto bastou. A partir desse momento, Super-G teve certeza que estava

perdidamente apaixonado e que aquela deveria ser a sua garota. 7 Saída das aulas. Quinze para as onze, o relógio da matriz bateu as três

pancadas agudas, e o som atravessou a noite fria dos últimos dias de maio. Céu forrado com estrelas, a roseira da casa de dona Isolina perfumando um pedaço do jardim. Os quatro companheiros desceram pela Luís Piza e viraram na esquina da Duque. Nas calçadas, as quaresmeiras dormiam em silêncio. Uma delas tinha um galho quebrado, a seiva pingava molhando a calçada como lágrimas chorando a dor.

Depois da Santo Antônio, a Boçoroca, o buracão onde todo o mundo despejava lixo. Sempre nas bordas, cada vez fechando mais o caminho.

— Daqui uns tempos ninguém vai mais poder passar por aqui — reclamou o Mizael. — A rua vai ficar entupida com lixo!

— Culpa do prefeito — emendou o Isaltino, loirinho que falava ardido. — O pai falou que votou nesse prefeito, mas que ele é o pior prefeito que esta cidade já teve! Se para a outra eleição ele for pedir voto, o pai disse que vai correr atrás dele.

Ninguém comentou. Andaram mais um pedaço. — Por que você está tão calado, Super-G? — Ele está gamado pela Soninha — respondeu o Lourival, o baixinho

que se metia na vida de todo o mundo. — Está amando! — Não enche! — zangou-se Super-G, dando uma cadernada na cabeça do

amigo. — Ai! — protestou o Lourival, passando a mão. — Se sair um galo, eu te

arrebento! Doeu, pó! — Então, não se meta na minha vida! Continuaram caminhando pela descida. As luzes dos postes continuavam

quebradas. A iluminação pública da cidade inteira estava uma tragédia, a

Page 20: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

20

concessionária da força e luz arrancava postes, punha postes novos, esburacava as calçadas, não consertava, ninguém reclamava, e o aspecto era o pior por toda a parte. Pela falta de iluminação, tinham de cuidar para não caírem nos buracos.

— Você está mesmo gostando daquela menina? — perguntou baixinho o Mizael para os outros não escutarem.

— Estou — confessou Super-G. — Estou mesmo! Quando vejo a Soninha, me dá uma coisa esquisita, Mizael! É... é uma espécie de dor de barriga!

Mizael arregalou tanto os olhos, que pareciam dois ovos cozidos. — Creeeeeedo! Sabe que minha irmã teve uma dor de barriga dessas, faz

uns tempos? Ficava lá parada que nem boba, não comia, não conversava, se esquecia de tudo, punha as coisas nos lugares errados...

— É? E como é que ela sarou? — Só casando. Ou casava, ou morria de bobeira! — Que esquisito! — falou Super-G, impressionado. — Mas eu não estou

pensando em casamento. E nem perdi a fome! — Pois é. Mas se você ficar pensando muito, vai acabar perdendo a fome,

sim. A paixão dá dessas coisas! Super-G parou. Apesar de não haver lua, as estrelas iluminavam cor de

prata. Deu para perceber que tinha o rosto assustado. — Eu não estou apaixonado desse jeito, vê lá! — Não sei, não. Quando começa a dar dessas dores de barriga, a coisa fica

preta! Super-G não respondeu. Continuava pensativo. Isaltino e Lourival

caminhavam mais distantes. Super-G não tinha vontade de chegar em casa. Pensava em muitas coisas, elas passavam pela cabeça como se fossem uma novela de televisão, depressa, não dava para enxergar direito. Eram pedaços da vida dele misturados com a vida dos outros. Os outros cresciam, namoravam. . . e todos casavam. Será que já estava chegando a vez dele? Nossa, que perigo! Ele gostava de brincar com as garotas, tinha namorado uma porção. Mas nenhuma era igual a Soninha. A Soninha tirava até o jeito dele pensar na vida!

Em silêncio, continuaram subindo a rua. Passaram em frente à casa da Fofona. Tudo fechado. Duas casas acima, Mizael virou a esquina e se despediu. Só então Super-G reparou que o Isaltino e o Lourival já haviam desaparecido. Estava sozinho na escuridão da noite, a vila mergulhando no silêncio. Demorou um bocado para chegar em casa. Enfiava os pés na areia do caminho e chutava para cima. Areia fria. Viu a macauveira solitária no campo do Tristãozinho. Era uma sombra negra desenhada sobre um céu tão lindo de estrelas que sentiu vontade de passar a mão. Sentou na pedra redonda, ficou olhando. Antes de conhecer Soninha, vinha tropeçando de sono pelo caminho, não via a hora de deitar. Por que, depois de conhecê-la, o sono tinha ido embora, e ele só tinha vontade de ficar parado, pensando nela? Será que esperava que Soninha aparecesse no meio das estrelas? Ou flutuando no vento? Ou sorrindo no meio das flores? Ou até nas palavras... quem sabe na música?

Page 21: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

21

— Soninha bonitinha... — disse, baixo, olhos fixos no céu — ... você vai ser minha namoradinha...

Um cachorro latiu longe. O que Soninha estaria fazendo naquele mesmo instante? Será que já tinha chegado em casa? Super-G sabia algumas coisas dela. O pai não tinha profissão fixa. Vendia automóveis, casas, gado — era quase um corretor. Moravam em uma casinha reformada, pintada de cor-de-rosa e cheia de vasos no alpendre. A garota tinha mais dois irmãos menores.

— Soninha, bonitinha... você vai ser a minha namoradinha... —repetiu. — Poxa, eu preciso fazer uma música! O diabo é que nunca fiz música antes! Como é que a gente faz? Primeiro escreve os versos? Ou primeiro escreve a música?

Pegou uma pedra e atirou longe. — É isso, burrão, como é que você vai querer fazer uma música, se

nunca ninguém ensinou você? Mas, de repente, o rosto iluminou-se com um sorriso igual ao do Sol. — Isso mesmo! O professor de Português! Eu vou perguntar pro seu

Romero como é que a gente faz música! Já pensou, Super-G, você ganhando o festival? Poxa, mas vai ser o máximo!

Tirando o boné, começou a cocar a cabeça: — Soninha... Soninha que é a dona do meu coração... ! Aí, sentindo que o estômago roncava de fome, esqueceu-se de Soninha e

correu casa adentro. Direto à cozinha para um café com um pedaço de pão. 8 — Gilvan, presta atenção no que está fazendo! — zangou-se o pai, de

cima do andaime. --Eu pedi reboque, e você me traz tijolo! Está no mundo da lua?

Super-G estava mesmo com a cabeça nos ares. Desceu pela escadinha enquanto, mãos no bolso e fumando o antipático cigarro escuro, seu Almeida fazia ar de reprovação.

— Essa molecada de hoje vive com a cabeça nas nuvens! — disse. — São todos uns irresponsáveis! No meu tempo, seu Romeu, as coisas eram diferentes! Crianças, mesmo de calças curtas, tinham responsabilidade! Por exemplo, quando eu estava no grupo escolar, o professor ensinou as capitais de todos os países da Europa. Hoje? Ah! Outro dia, não é que eu escutei um doutor — escute bem: um doutor! -- dizendo que, no fim do ano, ele vai viajar para conhecer o mundo inteiro, principalmente Veneza, a ca-pi-tal da Itália. Escute só que absurdo, seu Romeu, Veneza, capital da Itália!

—E não é? — perguntou, admirado, o pedreiro. Seu Almeida quase engoliu o cigarro.

— Não é, seu Romeu! A capital da Itália é Roma! E afastou-se resmungando.

Page 22: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

22

Dali a pouco, Super-G voltava equilibrando a lata com reboco nos ombros. Subiu a escada, despejou a massa no caixote. Cantarolando.

— Você hoje está parecendo mamangava, tanto que canta, filho — disse o pai.

Ele deu uma risadinha e endireitou o bonezinho do Corinthians. — É que estou inventando uma música, pai. — É? Para quê? — Para o festival da escola. — Não diga! Super-G ficou observando a rapidez com que o pai punha massa em cima

da parede. Depois, ajuntava um tijolo. Com a colher, retirava o excesso do reboco, atirando por cima do tijolo. Com o cabo da colher, dava uma batidinha, endireitando o tijolo. O pai trabalhava rápido como máquina, dava gosto ver a parede crescendo. Era como se o pai fosse mágico. Super-G admirava aquela profissão muito mais que a dos doutores. Às vezes, pensava em ser pedreiro como o pai, quando crescesse. Nada parecia mais importante do que construir lares para as pessoas viverem. Porque, sem casa, ninguém pode viver. Construir com as mãos era um ofício bonito... honrado, importantíssimo. Mas o pessoal, ultimamente, não estava mais querendo saber de ser pedreiro. Todos só queriam fazer cursos superiores, buscando uma porção de títulos para virar doutor, arranjar um emprego do governo e ganhar rios de dinheiro. Pelo menos era assim que o pai pensava e dizia.

— Massa, menino! — pediu o pai com uma rápida olhada. — Mais reboque! Não vê que já acabou? Eta moleque que está no mundo da lua mesmo!

Super-G desceu depressa a escada, quase caiu, e trouxe outra lata com reboco.

O dia inteiro continuou cantarolando a musiquinha que, desde de manhã, estava em sua cabeça. Cantarolava, assobiava, fazia de tudo para não esquecer, não via a hora de chegar em casa, pegar o violão para tirar a melodia. Será que a música para o festival estava nascendo?

— Menininha bonitinha, vai ser a minha namoradinha... E não saía disso! Super-G ficava irritado, fazia força para cantar o resto,

mas o resto continuava arrolhado em algum lugar misterioso, dentro dele próprio, que não sabia onde ficava. Então, descarregava a raiva jogando com força os tijolos no chão ou amassando o reboco com tanta fúria que voava barro para todos os lados. Meia hora depois, já esquecido da zanga, novamente enfileirava as palavras, agora de outro jeito, para ver se conseguia encaixar a melodia. Que inferno! Quando a música dava certo, as palavras não cabiam! Ou quando tinha as palavras arrumadas direitinho, era a melodia que não combinava!

Acabou dando um chute em uma lata. Como estava cheia de água, quase tomou um banho. Ao ver aquilo, o pai gritou de cima do andaime:

— Que foi, menino? Tá ficando maluco? À noite, Super-G não queria conversar com os colegas. Ficou encostado no

corredor porque a conversa estava muito animada dentro da classe e atrapalhava os

Page 23: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

23

pensamentos dele. Precisava de silêncio. Havia batido o sinal, porém o professor ainda não tinha chegado.

Pouco depois, seu Romero apontou vindo pela escada. Era moreno, magrinho, óculos redondos, avental branco e segurava uma vareta de bambu com a qual apontava os exercícios no quadro. Quando Super-G o viu, endireitou o corpo e aproximou-se:

— Professor, posso falar um pouquinho com o senhor? — Claro! — respondeu seu Romero, olhando por cima dos óculos. Então, Super-G contou tudo. Quando terminou, o professor empurrou

os óculos que haviam escorregado no nariz. — Você quer que eu o ensine a fazer música? — perguntou,

espantado. — Não é bem ensinar! — explicou Super-G, cocando a nuca. — O

diabo é que não consigo sair do comecinho! O que é que eu faço? Como é que os artistas conseguem fazer música de verdade. . . e eu não?

O professor respirou fundo. Aí, foi a vez de ele cocar a nuca. — Escute — perguntou — você costuma pensar em coisas bonitas? — Costumo, claro! — Em quais coisas, por exemplo? Super-G deu uma risadinha encabulada. — Ah, muita coisa! Uma coisa que eu gosto muito é. . . a Soninha! —Muito bem! — fez seu Romero abraçando-se aos livros. — Quando

você pensa na Soninha, o que acontece? — Não sei explicar direito, professor! — e Super-G encolheu os

ombros. — Mas dentro de mim acontece tanta coisa... ! — Dentro? Onde? Super-G ia levando a mão ao peito para indicar o coração; porém mudou

de idéia e levou-a até a cabeça. Contudo, nem ali pousou a mão. Os braços caíram desanimadamente ao longo do corpo.

— Eu não sei! O senhor sabe? Ficando nas pontas dos pés, seu Romero subiu e desceu o corpo duas

vezes. — Coração? Cabeça? Alma? Como Gilvan não tivesse sido capaz de responder, o professor sacarrolhou

mais um pouco: — E depois? O que acontece? — Depois? — e os olhos brilharam. — Eu fico pensando em uma

porção de coisas bonitas que eu gostaria de falar pra ela... fico pensando em um lugar bonito onde eu gostaria de ir com ela... Eu também gostaria de... de...

— Dar um beijo nela? — arriscou o professor, novamente endireitando os óculos.

Embora morrendo de vergonha, Super-G fez um lento movimento afirmativo com a cabeça. Mas não levantou os olhos. O professor continuou como se não houvesse percebido.

Page 24: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

24

— Quando você pensa em todas essas coisas bonitas, você fica alegre ou triste?

— Nossa, fico alegre, poxa! Me dá vontade de até sair voando! Sabe o que eu sinto mesmo, quando fico encucado desse jeito? Sinto que pareço uma garrafa cheia, entende? Cheia, cheia, que as coisas querem sair pela minha boca, por minha cabeça, mas é difícil dizer que coisas são essas! O diabo é que não consigo tirar a rolha da minha garrafa, professor!

Seu Romero caiu na risada. — Você sabe construir casa, Gilvan? — perguntou, de repente. — Não direito. Por quê? — falou, atrapalhado com aquela mudança de

assunto. — Será que algum dia você vai conseguir construir uma casa direito? — Acho que vou, uai! Por que não? — E você sabe o que é preciso para conseguir construir uma casa direito? Depois de alguns momentos de hesitação, Super-G arriscou: — Treino? — Não pergunte a mim porque eu perguntei a você antes. — Então... acho que é treino, sim. A gente faz hoje, faz amanhã, até que

a coisa começa a sair bem feita. Eu me lembro que, no começo, eu nem sabia amassar barro direito. O pai xingava. Devagar, eu fui endireitando... aprendendo...

Seu Romero empurrou os óculos pela terceira vez. — Sabe, eu acho que você vai conseguir tirar a rolha da sua garrafa

muito antes do que você pensa! Super-G ficou olhando muito atento, olhos bem abertos à espera da

grande resposta que, segundo imaginava, podia transformá-lo, de um momento

Page 25: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

25

para outro, no grande compositor que sonhava vir a ser. — Vou, professor? Como? Pegando-o pelo braço, seu Romero falou baixinho, quase em tom de

segredo: — Pegue o seu violão, vá para um lugar bem longe sem ninguém por perto

e esqueça que você existe. Depois, comece a cantar... Faça força para ouvir a sua voz de dentro! Cante tudo o que seu coração, ou sua cabeça, ou sua alma disser. Enquanto a sua boca for dizendo as palavras, suas mãos irão arrancando a música. É assim que você vai conseguir desarrolhar a sua voz de dentro!

Gilvan continuava com olhos arregalados: — Só isso, professor? Seu Romero tornou a olhar por cima dos óculos: — Tudo isso, meu chapa! Em seguida, dando meia volta, seguiu para a classe. Gilvan continuou

parado, de pé, no mesmo lugar e pensando. Até que, de repente, lembrou-se de que também tinha de ir para a classe. Com isso, saiu correndo e, por alguns momentos, esqueceu-se da música para o festival.

9 Dia seguinte. Quinta-feira. Cinco da tarde. Super-G chegou do serviço,

foi direto ao quarto, pegou o violão e atravessou a cozinha. - Aonde você vai? — perguntou a mãe.

— Volto já! — fugiu correndo, tropeçando na cadeira, antes que a mãe começasse o interrogatório.

Depois de passar pela cerca de arame farpado, desceu até a macauveira em meio ao campo do Tristãozinho. O Sol começava a cair. Maio era mês bonito, mês de céu colorido na hora do poente. Soprava um vento gostoso. Quando vinha do matinho trazia cheiro de molhado, de verde, de limpeza. A passarada voava baixo na despedida do dia. Os pássaros moravam no matinho, passavam o dia fora, quando começava a escurecer, voltavam barulhentos como os bóias-frias da vila depois do batente.

Super-G sentou no cupim de formiga e ajeitou o violão. Durante todo o dia tinha assobiado a mesma música. Agora, era chegado o momento para desarrolhar tudo.

— Deixa ver... ré maior? — e tomou a posição. Conhecia posições, escalas, notas. Tinha aprendido com dona Elsa, a

professora de artes, e com seus próprios ouvidos. O tom saiu vibrante, alegre. Super-G riu com a boca, com os olhos,

com a alma. — Consegui! Repetiu, com medo de não ser capaz. Era a música que ele tinha assobiado

Page 26: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

26

o dia inteiro! Então, pouco a pouco dominando a melodia, tentou emendar o primeiro verso:

— Soninha bonitinha, você há de ser minha namoradinha... Um cachorro passou por perto, cheirou e foi embora. Super-G repetiu

o verso cantado e deu outro grito: — Eu estou compondo! Eu estou compoooooondo! — gritou

com toda a força do pulmão para ser ouvido até lá longe, na matinha. A explosão de vitória chamou a atenção de algumas pessoas que passavam

na rua. Elas olharam, acharam engraçado, não entenderam, moveram negativamente a cabeça e foram embora. Super-G continuou compondo.

Lá pelas quinze para as seis, a mãe chegou até a cerca e gritou: — Gilvan! Você não vem tomar banho? Está só faltando você! — Jô indo, mãe... — Larga essa porcaria de violão e vem agora. Senão, chega atrasado na

escola!

Ele ficou zangado com o "porcaria de violão". Em casa ninguém dava

valor a sua arte. Muito menos a seus sonhos de vir a ser um cantor de fama. Por que os pais não enxergavam que era isso que ele queria de verdade?

— Pronto, acabou minha vontade de fazer música, diabo! — resmungou.

Levantou-se, pôs o violão nas costas e foi até a casa. Gilson estava de banho tomado. O pai também. Geralda jantava em casa do dentista. De lá, ia direto para a escola, só voltava para dormir. A mãe estava pondo a mesa. Ele pegou a roupa e correu para o banheiro fora da casa, onde estava instalado o chuveiro de água fria. A água provinha do poço onde o pai tinha adaptado bomba elétrica. Com isso, tinham água encanada. Tirou a roupa, abriu a torneira e sentiu o jato frio que quase lhe tirou o fôlego. Mas era um choque

Page 27: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

27

gostoso. Dali a pouco, ensaboado da cabeça aos pés, cantava a música da Soninha. Cantou, cantou até que a mãe gritasse que a janta estava esfriando. Aí, desligou a água, enxugou-se de qualquer jeito e ainda com água pingando do cabelo, enfiou-se na camisa e correu para a cozinha.

— Você não se enxuga direito! — ralhou a mãe, passando-lhe a mão na cabeça. — Parece cachorro que saiu do córrego! Depois, fica resfriado. Vá enxugar esse cabelo!

— Tá gostoso, mãe... — Vá enxugar esse cabelo, já disse! Super-G pegou a toalha, passou com tanta força na cabeça que o

cabelo ficou arrepiado como alfineteiro. Com outra corrida, voltou à mesa e começou a despejar sopa no prato fundo.

— Meu cabelo ficou bom, mãe? — Parece que você viu o medo! Ele riu de mostrar os dentes separados. Comeram em silêncio. Quando o pai afastou o prato, Gilson perguntou: — Já marcou a data para a mudança pra São Paulo, pai? — Ficou para o fim de junho mesmo. Acho que depois do São João. Super-G sentiu um choque mais violento que a água fria. Antes, ele

estava todo aceso para se mudar, para cantar em programas de calouro na televisão... Mas agora existia a Soninha. Antes, o tempo passava devagar. Agora, fim de junho estava quase ali. O festival seria para fins de junho. Falavam para depois de São Pedro, mas ainda não estava marcado.

— O senhor quer mesmo ir, pai? — perguntou, tomando as colheradas de sopa.

— Quero. E você não quer também? Encolheu os ombros. — Até outro dia, ele queria — disse o Gilson. — Por que mudou de

idéia? Outra encolhida de ombro. Ele não queria falar o que realmente estava

sentindo. — Aposto que tem coisa atrás disso... — brincou o Gilson. — Tem nada! — respondeu Super-G, carrancudo. — E se tiver, não é da

sua conta! — Se ele ficou bravo é porque tem — concluiu o Gilson. — E aposto que

deve ser uma namorada! — Não enche, Gilson! — gritou Super-G, vermelho até nas sardas. — Deixe seu irmão comer sossegado, Gilson — pediu o pai. — Cada uma

sabe tomar conta de sua própria vida. Gilson levantou-se e foi escovar os dentes no tanque. Super-G continuou

comendo devagar. Tão devagar que parecia tartaruga. Foi preciso a mãe dar-lhe um cutucão.

— Menino, a escola não espera! Como mais depressa! O que é que você

Page 28: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

28

tem? Tem andado tão esquisito, de uns tempos para cá... Parece que vive sonhando!

Super-G não respondeu. Viu que o pai dava uma risadinha. Será que ele também estava desconfiado do namoro? Será que o pai, quando tinha a idade dele, também tinha sentido tudo aquilo... por uma garota?

10

Escurecia a noite do sábado do quarto dia de junho. O tempo estava mais frio, o inverno caminhava para o fim, e a molecada já soltava as primeiras bombinhas.

Seu Romeu sentou no sofá de napa, apertou-se no velho casaco de lã e ficou assistindo à televisão. Dali a pouco, alguém bateu palmas. — Entra!

Era o Mizael. Cumprimentou e foi passando para a cozinha. — Noite, dona Carlinda! Cadê o Gilvan? — Penteando no banheiro... Não deu tempo de o Mizael ir até lá; Super-G vinha chegando rescendendo a

água-de-colônia. — Nossa, como ele está cheiroso! — caçoou o companheiro. A descida para a cidade, primeiras estrelas no céu, ainda nos ouvidos os

conselhos da mãe: "Não volte tarde!". Sempre conversando, foram até a praça Barão de Mogi-Guaçu, em frente à igreja, onde havia a imagem do Cristo Redentor. Ônibus de uma empresa particular faziam linha, durante todo o mês de junho, levando o povo da cidade à quermesse na Vila Industrial. Os dois subiram no veículo. Quando lotou, ele subiu pela Altino Arantes até a praça Rui Barbosa, na estação velha. Tomando o asfalto, atravessou a linha da FEPASA e entrou na vila. A praça da igreja Santo Antônio estava toda iluminada, havia muita gente, o serviço de alto-falantes tocava música alegre, alguém sempre dedicando a alguém. O bar gigante, meia dúzia de barracas, mas o pessoal preferia mesmo o bar para um refrigerante, uma cerveja, um prato de batatas fritas e um papo. Garçons e garçonetes passavam equilibrando pratos de papelão e garrafas. O Lourival e o Isaltino já tinham chegado e guardavam lugar para os amigos.

Papo vai, papo vem, o bar foi ficando entupido de gente. Nas barracas, festeiros giravam a roda da sorte para atrair os compradores e mostravam as prendas. Um delicioso cheiro de frango assado e pastéis fritando vinha da cozinha onde um grupo de atarefadíssimas mulheres trabalhavam ao redor de um gigante fogão de lenha. A igreja estava sendo construída com o dinheiro arrecadado pela quermesse.

Às oito e meia, de repente, quando voltou de uma visita ao banheiro, Mizael cochichou ao Super-G:

— Adivinha quem está aqui!?

Page 29: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

29

Os olhos do menino de cabelo vermelho brilharam. — Ela? — É ! — Onde? — perguntou, pondo-se de pé. O Mizael o puxou para baixo. — Você quer que dê na vista? Está lá perto da saída... — Sozinha? — Não, com a antipatia daquela Rosa Maria. — Vou falar com ela! — resolveu Super-G, outra vez pondo-se de pé.

Isaltino e Lourival perguntaram o que estava acontecendo. Mizael contou tudo. Muito curiosos, os dois ficaram de pé e viram Soninha, de cor-de-rosa, sentada de costas para eles.

— Cê tem mesmo coragem de ir falar com ela? — perguntou o Lourival. — Claro que tenho! E por que não? — E se ela já tiver um namorado? E se te der um fora? — Ela não tem namorado — respondeu ele, decidido. — Eu sei! Me dá

esse guaraná aí! — Pra quê? — Não amola — e passou a mão na garrafa. — Agora, fiquem só

olhando o jeitão do papai, aqui, conquistar a garota mais bonita da cidade... — Ei, cara! — protestou o Isaltino. — O guaraná é meu, eu que

paguei e não bebi! — Depois eu pago outro. Sem dizer mais nada, Super-G afastou-se, misturando-se na multidão. Os

três ficaram de pé em cima da cadeira para não perderem a cena. Isaltino, o mais baixinho, queria subir na mesa, mas Mizael não deixou.

— Assim também não! Se ela pega a gente vendo, fica mal pro Super-G! — Ela vai dar é risada na cara dele! — falou o Lourival. — Imagine se

uma garota cheia de frescuras como ela vai querer namoro com um bicho feio igual o Super-G! Ele parece um papagaio!

— Ela dá bola pra ele! — explicou o Mizael. — Dá nada! Ela está é fazendo o cara de bobo, isso sim. Aquela menina

não é de nada! Quase em seguida, Super-G chegava à mesa. A primeira que o viu foi a

Rosa Maria, a moreninha. Mizael, Isaltino e Lourival pagavam para ter orelha de borracha pois queriam ouvir o que eles estariam conversando. O pior era que Soninha estava de costas, nem dava para ver a expressão dela. Por isso, eles ficaram firmes olhando a cara do Super-G. Ele tinha mesmo cara-de-pau, continuava sorrindo com tanta classe que parecia o maior conquistador da cidade.

— Ai, que raiva, eu queria escutar o que ele está falando! — desabafou-se Lourival.

Viram o Super-G estender a garrafa de refrigerante e Soninha pegar. A conversa durou mais um pouquinho. Depois, Super-G despediu-se e voltou aos

Page 30: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

30

amigos. — Uai, eles não iam namorar? — perguntou Isaltino. — Aposto que ela deu um não do tamanho da igreja para ele! — riu o

Lourival. Super-G chegou. Estava com o rosto tão vermelho quanto o cabelo.

Começou a abanar-se. Os três caíram-lhe em cima. — Então, o que ela disse? Super-G encolheu os ombros e continuou mascando chiclete. — Adorou o guaraná, claro! Só faltou me beijar de contentamento. Os três se entreolharam com o rabo dos olhos.

— E por que não beijou? — Tá maluco? Queria que ela desse escândalo no meio de tanta gente? — E por que não convidou pra sentar? — Começaram o namoro? — Ei, gente, a coisa tem de ir devagar! Eu não fui lá falar em namoro,

ainda. Fui só bater um papo, de leve. Sabe como é, primeiro a gente vai sondando o terreno, dando um jeitinho, preparando o bote... e depois...

Isaltinho suspirou. — Não acho graça num namoro desses! Namoro pra mim é assim:

bateu o fogo, a gente vai, fala com a garota e fica numa boa. — Pra mim também — concordou o Lourival. — Eu acho que ela deu

um fora em você, e você não quer contar... O que você acha, Mizael? — Eu acho que o Super-G sabe o que está fazendo. Agora eu quero

Page 31: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

31

um prato duplo de batatas fritas. — E eu quero o meu guaraná — declarou o Isaltino. — E quem vai pagar

é o senhor, seu Super-Coisa-Nenhuma. Porque eu é que não estou pra dar guaraná pra namorada de ninguém!

— Está bem! — concordou Super-G. — Pode mandar vir refrigerante pra todo mundo e muita batata frita. Eu pago. Hoje estou rico porque é sábado e recebi meu dinheiro.

11

Amanheceu domingo cheio de passarinhos que desciam das árvores para brincar no brejo do terreno do Tristãozinho. O dia estava mais bonito, colorido demais para o inverno de junho.

Lá da vila, era gostoso olhar para a cidade. Dava uma grande sensação de sossego vê-la tão comprida, a maioria das casas mergulhadas na sombra protetora de pomares com árvores frondosas, que faziam menos quentes os longos dias do verão. Acima do casario, a igreja, majestosa como rainha. A velha matriz estava suja por fora, manchada de chuva, pedindo pintura. Mas o padre não ligava a mínima, não promovia uma campanha para arranjar o dinheiro que desse um banho de tinta ao templo nascido para catedral. Com isso, ia ficando mais feia, mais triste, mais cafona por dentro, onde havia mais cartazes do que na quermesse da vila, mais empoeirada e abandonada.

Super-G levantou. Meio acordado, meio dormindo, porque havia chegado tarde na véspera. Tomou café, a mãe atrás resmungando que meia-noite não era hora de menor chegar em casa. Ele não escutou, pegou o violão e foi para a ZYR 204, programa do compadre Tóti. Voltou ao meio-dia, a barriga roncando de fome, o Mizael junto. Super-G nem escutava. Ele só queria uma coisa: acabar de compor a música da Soninha para inscrevê-la no festival na segunda-feira.

Almoço, a mãe pedindo ao pai que proibisse o filho de chegar tão tarde, um cafezinho, agarrou o violão e lá se foi plantar-se embaixo do coqueiro.

— Esse aí embirutou de vez — disse o Gilson. — Não sabe fazer outra coisa senão tocar o violão o dia inteiro!

Em junho, o Sol cai mais cedo, lá pelas três horas. Às quatro já parece tardinha, o frio torna-se mais intenso à medida que anoitece. Pois foi lá pelas quatro que Fofona criou coragem e resolveu ir escutar o que ele estava cantando. O pai dormia enfiado debaixo das cobertas, e as crianças brincavam no quintal. Fofona fugiu em silêncio, atravessou a cerca e aproximou-se.

Como sombra, dedo na boca, olhar comprido, ensaiava um sorriso. Logo Super-G a viu, disse um oi e continuou ligado à música. Fofona cruzou as pernas, sentou em cima, continuou escutando, encantada. No chão, um caderno aberto no qual Super-G anotava palavras. A folha estava toda rabiscada, ele parecia longe da

Page 32: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

32

realidade, em um esforço de ruga na testa tentava encaixar palavras aos sons corretos. Segurando a custo a própria língua, Fofona sentia uma incrível vontade de ajudar.

Depois de quase dez minutos de grande esforço, Super-G, afinal, anotou a última palavra e só então olhou para Fofona como se tivesse voltado de um mundo muito distante.

— Acho que a-ca-bei! — disse com um suspiro de alívio. Fofona cruzou os braços. — Foi difícil? — Um pouco... Sabe, Fofona, quando a gente tem uma pessoa que a gente

quer muito... muito... muito, é fácil fazer qualquer coisa quando a gente pensa firme naquela pessoa. Aí, a força vem!

— É, Super-G? — É. — Então, você está apaixonado? Ele encolheu os ombros. — Não sei. . . Será que estou? Se isso é paixão, então eu estou apaixonado

até a raiz dos cabelos. Também, Fofona, quem não se apaixona por ela? Ela é linda, sabe? — e esticou o dedo quase encostando no rosto da menina que, olhos abertos, continuava sorrindo. — Ela é assim: tem a pele bonita, branquinha... Os olhos redondos... pretinhos... as pestanas sabe o que parecem? Borboletas voando de flor em flor. E a boca, então? Vermelhinha igual pitanga!

Dizendo cada uma daquelas palavras, ele ia apontando para o rosto de Fofona. Por isso, ela sentiu o arrepio. Se Super-G falava daquele jeito, mostrava o rosto dela e olhava tão firme... será que a música era para ela"? O sorriso ficou mais doce, Fofona ajuntou as mãos e suspirou.

— Quero ouvir a sua música. Posso, Super-G? — Claro que pode! Super-G tirou o bonezinho do Corinthians, virou a aba para trás, ajeitou o

violão e começou: — Ela é minha garota

mais bonita que ninguém. É a minha menininha

que encantos muitos tem. Seu sorriso me arrepia,

seu rostinho é de encucar! Tem um lindo narizinho,

linda boca pra beijar. Ela tem olhos redondos,

tem a mão pequenininha. Ela é minha querida,

o seu nome é... Soninha!

Page 33: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

33

Ao ouvir aquilo, Fofona estremeceu, o sorriso morreu, e uma sombra de tristeza escureceu-lhe os olhos. Voltava a ser a menina escondida atrás da cerca, deixava de ser a boneca gorda para se transformar na garota que vivia fugindo das pessoas.

— O que foi? — perguntou Super-G, percebendo a transformação. Ela tentou disfarçar. — Nada! — Você fez cara feia. Não gostou? — Gostei... — falou devagar enquanto fazia força para não deixar

transparecer que estava desapontada, triste e morrendo de vergonha. Como podia ter chegado a pensar que Super-G pudesse apaixonar-se por ela? Ele nem sabia que ela existia, nunca puxava conversa, nunca havia falado nada de namoro. Era sempre ela quem o procurava. Bobeira sonhar que ele pudesse ter feito uma música para ela!

— Então...? Fofona respirou fundo. Estava acostumada a não chorar quando o pai

batia porque não queria que as pessoas soubessem quando estava sofrendo. Com Super-G tinha de agir do mesmo modo. Precisava fingir alegria porque ele não podia saber as coisas que ela pensava. Sorriu fraco e mentiroso.

— É o que eu achei... que você não devia pôr o nome da menina no fim da música.

— Por quê? Eu fiz a música só para ela! — É que, depois, os outros meninos não vão querer cantar a sua

música para a namoradinha deles, uai! Se ficar com esse nome, não vai dar certo!

— Será? — e, preocupado, Super-G cocou a cabeça. — É sim — confirmou Fofona, ficando de pé. — Tira esse nome daí!

Fica melhor. Agora, preciso ir embora antes que o pai acorde e me chame.

Page 34: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

34

Tchau! Afastou-se correndo e sem olhar para trás. Super-G continuou sentado

na mesma posição. Pensando na reação de Fofona. Por que tinha ela mudado de uma hora para a outra? Incrível!

Mas não podia ficar encucado. Então, novamente dedilhando o violão, tratou de modificar os dois últimos versos.

12 — Jura que tá pronta mesmo? — perguntou Mizael com os olhos

arregalados. — Juro! — E quando você aprontou ela? — Ontem. Eram quase cinco horas. — Ficou boa? — Pra mim está ótima! — Então, quero escutar. — Depois. — Ah, que chato! Por que depois? Eu não sou seu amigo? — Claro que é. Mas você acha que vou cantar aqui, agora, em frente à

escola e sem violão, seu bobo? Não dá! Vamos entrar. Preciso conversar com dona Conceição sobre o festival.

Subiram pela escada de mármore branca. Os corredores estavam todos acesos. Na secretaria, atrás de uma escrivaninha, dona Conceição só faltava entrar pelo livro adentro porque, cotovelos fincados na mesa, lia com olhos arregalados. Alta, morena, rosto redondo, cabelos curtos, anelados, enrolada em um xale cor de areia, Conceição também era orientadora de alunos. Vivia a maior parte do tempo passando pelo 'corredor, cantarolando como mamangava, ou então correndo atrás dos mil problemas dos alunos porque a diretora, dona Rute, sempre lhe empurrava os abacaxis. Conceição era uma pessoa bem-humorada e, às vezes, desligadíssima. Por isso, quando Super-G e Mizael chegaram junto ao balcão da secretaria, jogaram os cadernos com um estrondo. Conceição deu um salto, um berro, só faltou atirar o livro longe.

— Minha Nossa Senhora Aparecida! — gemeu ela, olhando para os dois. — Filhinhos, que diabo foi isso?

Por pouco, eles não caíram na risada porque a cara que a Conceição tinha feito era pra lá de engraçada.

— Dona Conceição, acontece que eu queria inscrever a minha música no festival — explicou Super-G engolindo em seco.

Ao ouvir aquilo, dona Conceição aproximou-se. Agora que o coração batia menos depressa, ajeitou o cabelo e pôs a mão sobre o balcão.

— Está bem, filhinho, me dá aqui a sua musiquinha...

Page 35: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

35

— O quê?

— A música gravada em fita e três cópias da letra datilografada em espaço dois.

— Ué, precisava? Conceição respirou fundo e pôs as mãos na cintura: — Menino, como é que você quer inscrever uma música, se não gravou?

Por acaso pensa que é só assobiar no meu ouvido? Não leu o regulamento do festival?

— Não, senhora... — Pois então, leia: está aí, grudado nesta mesma porta!

Super-G e Mizael leram. O regulamento pedia a música gravada em fita cassete e três cópias, para o júri poder escolher as dez melodias que seriam apresentadas no dia de São Pedro. Por isso, atrapalhados, eles se afastaram.

— E agora? — perguntou Mizael. — Como é que você vai fazer? — Comprar a fita... arranjar um gravador emprestado... e ver se alguém

me bate a letra, ora essa! Pensa que vou desistir? — Gravador, eu sei quem tem — disse o Mizael. — A Maria Helena que

trabalha no posto. Bater à máquina... ei, acho que podemos pedir pró Bicudo. Ele trabalha no fórum, fica o dia inteiro de mãos abanando...

— Boa! — concordou Super-G. — A que horas podemos fazer tudo isso amanhã?

— Deixa ver... às nove horas tenho de entregar umas bebidas lá pra cima... posso pedir o gravador pra Maria Helena. Mas a fita você compra.

— Claro! Faço isso na hora do almoço. De tarde, antes de ir para a casa, falo com o Bicudo.

— E que hora você vai gravar? — Só pode ser depois da aula, que não tenho folga. — Onde? Tem de ser onde ninguém faça barulho. — Debaixo da macauveira no campo do Tristãozinho. Amanhã. — Então, eu estou lá. Quero ouvir essa música. Como é que ela chama

mesmo? — Namoradinha. — Legal! — Mas escute, não conte pra ninguém! Nem pró Isaltino, nem pró

Lourival. Senão eles também vão querer ir, e eu não quero saparia me amolando. — Falou. A minha é a boca mais fechada deste mundo — disse o Mizael

segurando os beiços juntos. Dali, subiram para a classe. No dia seguinte, de manhã, Super-G estava nervoso. Distraído, fazia tudo

errado. Seu Almeida apareceu para dar palpite. Super-G ligou a mangueira do esguicho dentro do latão, com a pressão a mangueira foi pelos ares, e o implicante tomou um banho. Que barulho! Por pouco seu Almeida não mandou Super-G

Page 36: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

36

embora. Quando o velho parou, seu Romeu começou a segunda sessão. Super-G não abriu a boca, mas também não escutou. A única coisa que lhe interessava era gravar a música.

Às onze horas, montou na bicicleta e, como um doido, pedalou até a Ultrasom, onde o Gladston fez um desconto na fita. Depois, tocou para a casa numa voada. Estava tão elétrico que conseguiu vencer a subida da vila sem perceber. Ao passar diante da casa da Fofona, viu os irmãos dela brincando no jardim. O rádio estava ligado, a porta aberta. Fofona devia estar na cozinha. Se Super-G não estivesse com tanta pressa, teria descido para bater um papo com ela.

O restante da tarde passou frio e devagar. Mas, apesar do frio, Super-G trabalhou sem camisa, tanto suava. Quando terminou o dia, voltou a engarupar na bicicleta e correu até ao Bicudo. Bicudo concordou em datilografar a letra em três vias. Cada uma deveria estar em um envelope fechado com pseudônimo por fora para não influenciar os jurados. Super-G prometeu que pegaria as cópias no dia se-guinte, às cinco horas, após sair do serviço.

Chegou em casa feliz da vida, tomou banho rápido, jantou, desceu para a escola e encontrou o Mizael com um vastíssimo sorriso e o gravador.

— O bichinho está aqui — disse. — Só que a Maria Helena pediu muito cuidado. Se quebrar, você paga o conserto.

— Tá falado. Mas por nada deste mundo quero quebrar o nosso amigo. Aquela noite, então, depois das aulas e enfrentando o vento gelado das

estreladíssimas noites de junho-inverno, os dois plantaram-se embaixo da macauveira no campo do Tristãozinho. Não havia luz. Nem precisava porque a Lua boiava cheia no céu prateado. De resto, silêncio total. Era como se só eles dois existissem no mundo. Super-G pegou o violão, limpou a garganta e respirou fundo.

— Posso ligar? — perguntou o Mizael com o dedo na tecla. — Pode. Mizael ergueu o microfone em frente à boca de Super-G e comprimiu a tecla

start. Os primeiros acordes da alegre marchinha cortaram a noite, e eles começaram a gravação.

13

Estava feita a inscrição. A partir dali, os quatro mal podiam aguardar o dia

15, data estabelecida para a publicação das dez músicas escolhidas. — Será que a sua entra, Super-G? — perguntou o Isaltino, desconfiado. — Claro que entra! — afirmou o Mizael. — Tia Teresinha vai até fazer um

despacho! — Com despacho não vale! — E por que não? O que vale é a música ser clas-si-fi-ca-da!

Page 37: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

37

Ninguém sabia quais eram os jurados que iriam selecionar, separadamente, letra e melodia. Depois eles deveriam reunir-se para chegarem a um acordo final. Uns diziam que eram os professores da escola. Outros diziam que era gente de fora. Havia o maior mistério em cima da coisa, ninguém sabia a verdade verdadeira.

Dia 13, dia de Santo Antônio. Festa em casa de seu Zico, o vizinho na vila. Terço, mastro, doce, bolo de fubá e quentão. Os quatro amigos resolveram enforcar aula porque escola tinha todos os dias. Festa com mastro, não.

A família toda foi até a casa de seu Zico, pouco antes das sete. O terço estava marcado para as sete em ponto. A casa estava cheia. Seu Zico tinha puxado um fio e luz para o jardim da frente e mais dois para o quintal. Chão varridinho. Dona Amélia, mulher dele, tinha jogado água para apagar a poeira e varrido tudo. Todo o pessoal da vila estava convidado, era um tal de chegar gente que nem mais cabia dentro da casa. Na sala, tinham armado um altarzinho forrado com lençóis e toalha de plástico (do enxoval da filha). O mastro estava em lugar de honra, todo enfeitado com flores de papel-de-seda. Havia dois jarros com dálias e rosas de pencas. Na parede, estampa do Sagrado Coração de Jesus e, em cima do televisor, imagem de Nossa Senhora Aparecida. Na cozinha, a mesa forrada com toalha muito branca. Debaixo, pé-de-moleque, bolo de fubá, amendoim, doce de abóbora de pingar e biscoitos de polvilho. Tudo feito por dona Amélia, uma magrela sem dentes que escondia a boca quando ria. No fogão aceso fervia um tacho com metade de água, metade de pinga, açúcar, gengibre socado com canela e cravo-da-índia para fazer o quentão. Todas lavadinhas, as xícaras secavam de bruço em cima do pano de prato.

No quintal iluminado, a fogueira e o buraco do mastro. Às sete em ponto, dona Albina (da cidade), a rezadeira de terços

especialmente convidada, subiu para puxar o terço. Muito empinada, óculos redondos, vestido escuro, gola de crochê, perfumadíssima, chegou, entrou, apertou a mão de todo o mundo, se benzeu e começou:

— No primeiro mistério glorioso contemplamos com a anunciação do anjo a Nossa Senhora. Ave Maria, cheia de graça...

As vozes sonolentas respondiam a segunda parte da oração. Os homens de pé, em respeitoso silêncio, as crianças se cutucando ou tomando safanões das mães. Dependurado na janela, o Mizael quase caiu de sono, Super-G olhava para a Fofona que do outro lado da mesa não tirava os olhos de cima dele, o Isaltino só bocejava e, distraído, o Lourival brincava de empurrar uma vassoura que acabou caindo nas pernas da rezadeira de terço.

Depois do terço, todos ao quintal. Todos fazendo questão de dar uma socadinha no pé do mastro para estar vivo no ano seguinte.

— Beija o santo, beija o santo que você casa! — anunciava a Marcolina Pedregulho, segurando o quadro para o povão que, em fila de respeito, dava um beijo extra no Menino Jesus no colo do santo.

Depois, colocaram o mastro na ponta de uma vara de eucalipto pintada, e lá se foi Santo Antônio para cima, enquanto rojões estouravam assustando os

Page 38: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

38

cachorros. Serviram doces e quentão. Para a criançada, refrigerante. Fofona não disse um A. Ficou lá, num canto, olhando, olhando, sorrindo e

dando um jeito de chegar perto. A oportunidade aconteceu na hora de socar o mastro.

— Oi, Super! — cumprimentou, meio acanhada. — Oi, Fofona! — Ouvi dizer que você já levou a música. Eu sei que ela vai ser classificada

e vai ganhar! — Como é que você sabe? — Quando vão subir o mastro, é pra gente fazer um pedido que o santo

ajuda. Então, eu pedi pra sua música ganhar. — Você pediu pra mim e não pediu pra você? Ela fez um movimento rápido com a cabeça e olhou para a cerca. — Meu pai não sabe que eu vim. Se souber, me bate. Ele não gosta que

eu saia à noite. Agora, vou embora. Tchau. No dia do festival eu vou estar lá torcendo por você, viu?

— Mas se seu pai não gosta que você saia à noite, como você vai ao festival?

— Eu fujo! — Quando você voltar, ele te bate. — Não faz mal. Pra ver você ganhar, posso tomar a maior surra do mundo! E saiu correndo antes que ele pudesse dizer alguma coisa. Super-G

continuou de pé no mesmo lugar e olhando. Fofona era uma menina muito esquisita, ele não podia entender por que ela fazia as coisas daquele jeito!

O dia 14 passou vagarosíssimo. O dia quinze, então, parecia nem passar. Super-G foi à escola. Estava meio ressabiado, só pensava na relação que eles iam afixar.

A lista foi afixada na porta da sala de dona Regininha no terceiro intervalo. Ficou duro de gente se empurrando lá para ler. O Mizael foi dando cotoveladas e abrindo o caminho a sopapos. Parou, ficou na ponta dos pés, arregalou os olhos, deu um berro e saiu correndo. Para dar um abração em Super-G.

— Eu não falei? Está lá! Está lá! A sua música foi escolhida! Super-G ficou parado. Não podia acreditar! A música estava mesmo lá?

Então, ele ia poder cantar a música, oferecer a música a Soninha, conquistar a admiração da garota para, enfim, sair passeando de mãos dadas com ela pela cidade?

14 O festival seria realizado no salão nobre da escola, no dia de São Pedro

Início às dezenove horas e trinta minutos. Sendo promoção da oitava série, os

Page 39: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

39

alunos daquelas classes encarregaram-se de fazer os programas, que distribuíram pela cidade inteira. Quanto maior público, maior renda para a A.P.M. O movimento contou com a publicidade do jornal da cidade, da emissora local, e o comércio contribuiu afixando faixas nas ruas principais.

O palco do salão ficaria à disposição de intérpretes e conjuntos para ensaios a partir do dia 20, das duas às cinco da tarde.

Tão logo saiu o resultado da decisão do júri, começaram a formar grupos ao redor de seus favoritos. Volta e meia vinha um palpite:

— Dizem que a música do Zé das Flores está uma beleza! Todo mundo fala que vai ganhar o primeiro lugar.

Também formaram torcidas. Segundo se comentava, a roupa da Maria Célia Juriti seria alguma coisa para deixar todo o mundo de queixo caído. Uma turma levaria flâmulas para serem mostradas durante a apresentação da melodia favorita. Muitas eram as notícias, e as fofocas ficavam cada vez maiores.

— Como você vai apresentar a sua música, Super-G? — perguntou o Isaltino, à noite, enquanto voltavam para a vila depois das aulas.

— Com a cara e a coragem. — Não é isso! Estou perguntando qual roupa você vai usar... se vai

arrumar um conjunto... — Conjunto? Tá brincando? Quem é que vai querer tocar a minha música?

Nessa altura, eles já formaram todas as panelinhas e não sobrou ninguém pra mim. Roupa? Vou com a de sempre. A única coisa que eu gostaria era de um emblema na camiseta — um Super-G grandão. Só não sei quem podia me fazer um emblema de pano.

— Você mesmo pode fazer o emblema — disse Mizael-quebra-galho. — Que jeito? — Pintado! Você não sabe pintar? Pois então, pega um pedaço de pano do

tamanho de um prato e desenha as letras num papel. Depois, passa as letras na camiseta, com papel carbono. . . e pinta como você pintou o emblema na bicicleta!

Super-G deu uma piscadinha e um tapa na cabeça do amigo. — Se você não tivesse essa caixa-pensante, eu não seria capaz de resolver

a metade dos meus problemas! — Não exagera... — Você parece que está nervoso, Super-G — disse o Lourival. — Nem um pouquinho. — Até hoje, você não tocou a música para nós — queixou-se o Isaltino.

— Isso não é coisa de um amigo. — Eu já conheço a música! — falou Mizael com ares de muita

importância. — Aposto o meu pescoço que ela ganha! — Não conte com os ovos antes de ter a galinha. .. — A música é muito boa, pó! — insistiu o Mizael. — Não escutei a

dos outros, mas eu sei que a do Super-G é melhor! É gostosa, quando vê, a gente está assobiando. E agora me diga: o que esse pessoal entende de fazer

Page 40: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

40

música? Pelo que sei, até ontem ninguém era capaz nem de escrever uma carta. De repente, virou todo mundo músico, poeta... Não é esquisito?

— É bom a gente ter pai inteligente que ajuda, não é? — perguntou o Isaltino com uma careta. — A gente escuta cada fofoca...!

— Por que não fazemos uma torcida para o Super? — arriscou o Mizael, — Uma faixa. Para levantar quando ele estivesse cantando.

— Só nós quatro? — Podemos convidar mais gente. Temos amigos na classe. — Nessa altura do campeonato, todo o mundo já está num grupinho —

falou o Lourival. — Mas podemos tentar. Precisamos dar uma força para o nosso representante da Vila Santa Cecília, não é, Super?

— Vocês é que sabem! — falou ele erguendo as sobrancelhas. — Pelo jeito, parece que eu sou o único compositor de verdade, não é?

Ao ouvir aquilo, os três amigos começaram a vaiar. Um cachorro deu-lhes um carreirão, e eles dispararam correndo até a ponte. Ali retomaram os passos lentos e, sempre falando sobre o festival, pegaram a subida para a casa. Ao chegarem à segunda esquina, despediram-se. Sozinho, Super-G caminhou até o portão. A noite estava fria, a Lua boiava redonda em mais uma estrelada noite de inverno. O dia 20 ainda estava longe, e Super-G não iria ensaiar a música no salão nobre. Não queria que os outros a ouvissem antes do grande dia. Ensaiaria sozinho, ali mesmo, junto à macauveira do Tristãozinho.

— Ela vai estar lá — disse Super-G, falando alto o que a voz de dentro falava baixo. — Toda bonitinha, de cor-de-rosa, que é a cor que ela mais gosta. Sentada e me ouvindo. Então, todo elegante — vou pedir pra mãe caprichar na minha roupa — eu subo no palco.

Não vou tremer! Aí, pego o violão, olho firme para ela e começo a cantar. O que vai acontecer? Vai acontecer o que acontece na rádio: enquanto eu estiver cantando, ela vai aplaudir de pé! Depois, quando eu for chamado para cantar de novo, quero dizer, depois que eles escolherem as cinco finalistas, entre elas a minha, vou cantar mais bonito ainda. E por fim, eu vou dar um jeito de falar bem alto para todo o mundo ouvir que eu fiz a música para ela!

Super-G olhou para a macauveira como se ela fosse a platéia aplaudindo-o. — Namoradinha eu fiz para a menina mais bonita desta cidade. .. Não, a

menina mais bonita do mundo: So-ni-nha! As estrelas pareceram assobiar, gritar, aplaudir. Exatamente como acontecia

na rádio. Só que ali era um público maior, um público universal. Por isso, ele continuou sonhando.

— Soninha vai ficar toda importante porque eu sei que até hoje ninguém fez uma música só para ela! Aí, ela vai se derreter toda, e, lá da escola mesmo, a gente sai de mãos dadas... e todo o mundo vai morrer de inveja!

De repente, Super-G vibrou um murro no ar. — Grande, garotão, você é o mais esperto de todos! Vai ganhar o festival

porque a Fofona rezou pra Santo Antônio. . . e conseguir a namoradinha!

Page 41: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

41

Deu uma corrida, entrou em casa e foi dormir feliz da vida. No dia seguinte, de manhã, durante o café, o pai deu uma notícia:

— Compadre Belarmino telefonou. Marquei a mudança para o dia 25. É só eu chegar lá e começar a trabalhar.

Super-G até parou de comer. — Dia 25 não, pai! — Por quê? — Porque eu tenho o festival no dia 29! Seu Romeu olhou para a esposa. Dona Carlinda não abriu a boca. — Esse festival é muito importante? Super-G olhou para a mãe. Ir embora para São Paulo seria desistir de tudo:

da vitória, da música, de Soninha. Depois de tantos sonhos, não era justo! — Pai... a gente tem mesmo de mudar para São Paulo? —

arriscou, atrapalhado. — Está resolvido — respondeu seu Romeu. — Já falamos desse assunto

muitas vezes e vocês todos toparam. Agora não posso voltar atrás. Dona Carlinda percebeu que o filho tinha perdido o apetite. Olhou para o

marido e pediu: — Romeu, será que não dá para atrasar a mudança uma semana? — e deu

uma olhada na folhinha. — Dia 29 cai numa quinta. A gente podia ir embora no sábado, primeiro de julho. É só uma semana...

Silêncio. Apenas o fogo crepitando no fogão. Seu Romeu era um homem enérgico, mas compreensivo. Olhou para a mulher. Depois para o filho.

— Está bem! — concordou. — Não é uma semana que vai matar a gente! Eu telefono para o compadre Belarmino e digo que não deu tempo de terminar a reforma na casa do seu Almeida. Podemos atrasar uma semana!

Super-G deu um sorriso agradecido. Mas ao mesmo tempo triste. Porque mais uma semana, menos uma semana, teria de acabar indo embora. E deixar

Page 42: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

42

Soninha para trás era o que ele não queria. 15 Mas a idéia de que eles podiam namorar à distância — cartas, telefonemas,

visitas de fim de semana — logo fizeram Super-G esquecer a tristeza. O importante era concorrer... e fazer de tudo para mostrar a sua música. O resto seria mais fácil porque uma garota apaixonada sempre espera o rapaz que ela gosta. Pelo menos era nisso que Super-G acreditava.

Agora que o festival estava marcado, os dias voavam. São João passou quase despercebido — ninguém rezou terço na vila. O povo gostava mais mesmo de Santo Antônio, o santo casamenteiro. Fácil se entender por quê.

E assim chegou o 29. Desde a manhã, a escola estava vivendo uma grande confusão. Até a

diretora parecia meio maluca porque o Pantera, do serviço de som, não aparecia. Era um tal de entra e sai que não tinha fim. No salão nobre, as discussões aconteciam uma atrás da outra. Um cantor exigia ensaiar mais vezes seu número — por mais bem ensaiado que estivesse. O outro mostrava-se nervoso. A roupa de um terceiro não tinha ficado pronta, e as fofocas entre as torcidas deixavam todos em ponto de bala.

Como a reforma do banheiro de seu Almeida já havia sido concluída, Super-G estava de folga. À tarde, deu uma passada pela escola para ver como as coisas estavam indo e ficou de cabelos em pé com a bagunça que viu.

— Será que o pessoal está pensando que vai ser festival igual ao da Música Popular Brasileira, do Rio? — perguntou-se.

Às cinco e meia tomou um banho caprichado, vestiu a roupa que a mãe preparou com muito carinho, penteou o cabelo e abusou da água-de-colônia. Depois pegou o violão, deu uma olhada no espelho para conferir se estava tudo bem. O emblema que tinha pintado havia sido costurado à camiseta caprichosamente pela mãe. Tudo perfeito. Depois, só esperar pelas seis e meia, quando o Mizael passou para acompanhá-lo.

— Bênção, mãe! Bênção, pai! Os pais desejaram boa sorte, e os dois amigos saíram. Eram seis e meia

passada, e o Mizael ainda estava cansado de tanto que tinha corrido para chegar a tempo.

Passando em frente à casa da Fofona, eles deram uma paradinha. Lá de dentro, vozes de criança. Será que Fofona iria ao festival? Será que o

pai ia deixar? Super-G sentiu vontade de conversar com ela, mas preferiu evitar. Seu Raimundinho já teria chegado, e ele não era brincadeira.

A frente da escola estava coalhada de carros e mais chegando. Maior o movimento que em dia de formatura. Muito elegante em seu vestido vermelho, dona Rute, a diretora, estava muito bonita. Via-se que também estava nervosa. A seu lado,

Page 43: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

43

estreando um costume verde, dona Conceição, toda perfumada. O salão, entupido. Aquele barulhão! Às quinze para os oito, a diretora e a

comissão da oitava subiram ao palco para dar início à festa. Aplausos, vaias e gritos. Também apitos. Em seguida, constituído o júri, que também foi recebido por uma salva de vaias: eram oito. Alguns, de fora. A maioria de cara amarrada porque sentiam-se ofendidos por serem vaiados antes de terem decidido alguma coisa. Professor Rosário dos Santos, aposentado, e que atualmente morava na capital, encarou a professora Vilma (também do júri) e desabafou-se:

— Que terra de gente mais sem civilidade! Por que estão nos vaiando? Somos pessoas de respeito! Quando conheci esta cidade, há muitos anos, os jovens sabiam tratar os mais velhos com educação!

— Os tempos mudaram, professor! — brincou a professora, meio atrapalhada.

— Mas a educação e as boas maneiras continuam as mesmas, professora! Se eu soubesse que era para enfrentar esse vexame, não teria aceito este convite! — concluiu, despejando fogo pelos olhos. Constituído o júri, os apresentadores entraram em cena: um casal. A apresentação poética e bem escrita nem foi ouvida porque o distinto público gritava, miava, cacarejava, pedia para o festival começar. Por mal dos pecados, o sistema de som pifou, quase provocando um desmaio na professora. Procura que procura o Pantera, o defeito foi corrigido, e a diretora pôde evitar o desmaio pela metade. Em seguida, anunciada a primeira composição:

— A garota e a gasolina. Marcha de Zé das Flores e Tuniquinha Pires! Meia platéia de pé. Ergueram uma faixa tão alto que quase derrubaram o

lustre de cristal do salão. Precisou de o servente pedir cuidado. E o servente quase apanhou. A garotada mascava chiclete, punha os pés para cima, pulava a ponto de quebrar cadeiras. Nesse instante, entrou o Zé das Flores: cabelo comprido caído e liso de um lado. Crespo e alto do outro. Camiseta vermelha com uma flor de plástico no colarinho. Uma perna de calça comprida e branca. A outra curta e preta. No pé direito, botina. No esquerdo, sapato de salto alto. Tuniquinha tinha escolhido o modelo paneleiro. Na cabeça, uma chaleira de onde saía fumaça. Na blusa, pela frente, duas tampas de alumínio. Por toda a volta do corpo, panelas, frigideiras, conchas e caldeirões dependurados. Nos pés, enfiadas, canecas de latão. Não andava, tinha de arrastar os pés, ou as canecas saíam. Começaram a música. A certa altura, Tuniquinha pegava a colher de arroz e malhava no fundo da frigideira para fazer batucada. Horrorizada, a professora Mirlene Silva, do Conservatório Musical de São Paulo, só olhava por cima dos óculos e perguntava:

— Jesus da minha guarda, isso é música? A macacada de auditório torcia que só faltava dependurar-se nas janelas. Tinha de tudo naquele festival. Alvinho Canguru apareceu de short e

gravata feita com meia velha. Maria Célia Juriti -— e sua tão esperada fantasia — desfilou de noiva do vampiro, sangue (de tinta) escorrendo pelo pescoço. Altamente impressionável, dona Ernestina Alves, do júri, precisou ser carregada, porque não podia ver sangue e teve um solene chilique. Silvinha Torres apareceu vestida de papel laminado, porque a sua música chamava A resplandecente. Fartissimamente iluminada, o

Page 44: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

44

ponto alto de sua composição seria o malabarismo, ou batucada-de-uma-perna-só, que tirava de um carrinho de mão pintado com spray dourado. Tamanho barulho provocou que o professor Rosário dos Santos precisasse tampar as orelhas. O pior foi o rasgo na calça de Silvinha — e a platéia quase veio abaixo, delirando. Acreditando que tamanha ovação estivesse sendo provocada pela música de protesto, Silvinha tanto mais sapateava, mais aumentando o rasgo nos fundilhos. A tal ponto chegou o vexame que a diretora se viu obrigada a subir no palco para mostrar o ponto vulnerável. Quando Silvinha entendeu que estava provocando um espetáculo particular, ficou vermelha e saiu correndo, interrompendo a execução da melodia. Professor Rosário dos Santos deu graças a Deus e anulou a apresentação.

Os outros candidatos estavam vestidos com roupas menos esquisitas e Super-

G foi o único que se apresentou sem acompanhamento. Quando pôs os pés no palco, olhou direto para Soninha. Ela estava com o grupo de sempre, a Rosa Maria segurava uma flâmula com o nome do Alvinho. No meio da platéia, Super-G também viu o Lourival, o Isaltino, o Mizael e fez sinal de positivo para eles. Não muito longe dos amigos, a Fofona em um vestido escuro, de um terrível mau-gosto.

Anunciado o título da melodia. Super-G tomou posição, concentrou-se, os dedos feriram as cordas, e a voz encheu o salão nobre. A maior vantagem de Super-G era ser afinado, conhecer um pouco de música e ter experiência. Além dessas vantagens, Namoradinha era marcha alegre, ritmo contagiante. Tão contagiante que, ao repetir a segunda parte, muitos acompanhavam o ritmo batendo as mãos ou soprando apitos. Isso o fez receber aplausos calorosíssimos, e Super-G retirou-se erguendo o violão como se fosse troféu.

Depois dele, os três últimos candidatos.

Page 45: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

45

Encerrada a apresentação, a diretora foi discretamente recolher as notas do júri e com muita diplomacia sugeriu que eles se retirassem.

— É que a gente não sabe qual será a reação do público — disse. O Professor Rosário dos Santos sentiu-se indignado.

— Senhora dona diretora, isto não é uma terra civilizada? A diretora suspirou porque não queria responder o que estava pensando. E

foi um custo convencer o professor de que era mais prudente ele sair dali inteiro... do que permanecer apenas para satisfazer uma curiosidade que poderia ser satisfeita até através de um simples telefonema.

16 Quinze minutos após a retirada do júri (debaixo de vaias...), a platéia estava

incontrolável, exigindo o resultado que apresentaria as cinco finalistas. Então, os apresentadores novamente voltaram ao palco, e a voz grave do rapaz ressoou, provocando um momento de inesperado silêncio.

— Senhoras e senhores, é com grande prazer que anunciamos a melodia escolhida em quinto lugar no Primeiro Festival de Música Estudantil desta cidade. E ela é. . . Sonhador! Composição de Alvinho Canguru. Canta, Betinha Cardoso!

Vaias, protestos, faixas, apitos, buzinas — de tudo. Tamanho o barulho que a dupla nem conseguia fazer-se ouvida. Ao terminarem o número, das mãos do Dr. José Carlos de Araújo, brilhante vereador, receberam um troféu dourado. Pausa para o Toninho-Fotógrafo bater a foto.

Na platéia, Fofona mordia os dedos. Lourival, Mizael e Isaltino não conseguiam parar nos lugares. Por de trás da cortina, Super-G olhava para baixo procurando imaginar o que a Soninha estaria pensando.

Novamente os apresentadores: — Em quarto lugar, a marcha-rancho Domingo de sol. Canta... Vaias

dobradas, gritaria. Foi preciso a diretora levantar, emitir psius, aos quais as torcidas não deram ouvidos. A autoridade convidada a entregar o prêmio foi o professor Cláudio Vicente Mitidieri. Mais uma vez o Toninho-Fotógrafo atrapalhou todo o pessoal do conjunto, escolhendo melhores ângulos.

— E agora, distinto público, em terceiro lugar... Super-G mordeu os lábios. Fofona encolheu-se na cadeira. Mizael começou a

abanar-se. — Reconciliação! Mais aplausos. — Faltam só duas! — disse o Mizael dando um cutucão no Isaltino. — Faltam só duas! Isso quer dizer que, se ele não pegar o primeiro, tem de

pegar o segundo! — Ou não vai pegar coisa nenhuma — respondeu o Isaltino mascando

chiclete.

Page 46: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

46

— Vira essa boca pra lá! O apresentador pegou o microfone, olhou firme para a platéia e anunciou: — Agora, a vice-campeã, aquela que contagiou a todos nós, aquela

que a platéia inteira cantou com alegria... Namoradinha, a marcha de Super-G! Fofona deu um salto. — Não vale! Ele merece o primeiro lugar! Não. vale! Marmelada!

Marmelaaaaaada! Tamanho barulho aprontou, que o Mizael deu uma olhada. — Nossa, vejam só o fuá que a Fofona está aprontando! Foi preciso que o servente falasse forte, ameaçando botá-la para fora caso

não calasse a boca. Fofona estava suada, vermelha, descabelada, indignadíssima. Alguns concordavam com ela.

Lá no palco, um pouco surpreso e decepcionado, Super-G fazia força para não deixar transparecer o que estava sentindo. Plantando-se diante do microfone, começou a cantar sua música. Pouco a pouco, a platéia começou a acompanhar, atestando que a vitória que o público dava era àquela música. Por isso, quando terminou, Super-G sorria com toda a alma. Ergueu as mãos, colheu os aplausos e deu meia-volta.

— Venha cá, Super-G! — chamou a apresentadora segurando-o pela mão. — Aonde você vai com tanta pressa? Esqueceu-se da sua taça?

Ele cocou a cabeça e deu uma risadinha meio sem graça. — Convidamos dona Conceição Davi, nossa querida vice-prefeita, para

a entrega do prêmio... Dona Conceição Davi levantou-se, teve uma dificuldade danada para

atravessar a massa humana e subiu os degraus para o palco. Toda sorridente, no vestido bege justo, os brincos de ouro lampejando discretos, ela acenou para o público. Simpática, cabelos presos para trás, apanhou a taça prateada e estendeu-a a Super-G.

— Gostei muito de sua música, rapaz! — — confessou. — Você é um bom compositor e ótimo cantor. Há de ter muito sucesso na vida!

— Uma coisa me deixa curiosa — disse a apresentadora diante do microfone. — Eu gostaria de perguntar ao Super-G se essa é a primeira música que ele compõe.

Super-G fez um movimento afirmativo com a cabeça. — E posso saber onde você foi buscar a inspiração? O garoto aproximou-se do microfone e respondeu: — Na menina mais bonita do Brasil. — Nossa, e quem é essa menina? Ela está aqui, por acaso? — Está! — Onde? Ele ficou indeciso. A surpresa de não haver vencido o festival o tinha

deixado meio inseguro. Devia ou não devia falar? Da platéia, a torcida começou a exigir: "Fala! Fala!" Nessa altura, Mizael afundou na cadeira, Isaltino tampou os ouvidos e Lourival cocou a cabeça. Furiosa, Fofona despejava fogo

Page 47: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

47

pelos olhos, olhava ameaçadora para Soninha que nem estava prestando atenção às coisas que aconteciam.

Criando coragem, Super-G apontou: — Ela está lá! — E quem é ela? — insistiu a apresentadora forçando os olhos. — A Soninha da minha classe! A revelação caiu como um raio nas costas de Rosa Maria, que deu um

cutucão na amiga. — Ei, você não escutou? — Escutou o quê? -— perguntou Soninha, surpresa. — O nariz de papagaio lá no palco acaba de dizer que você que inspirou

a música dele! Eu não disse que ele estava te paquerando? Todo mundo olhava para Soninha que, empalidecida pela surpresa, não

sabia o que dizer. Uns aplaudiam. Algumas amigas riam alto e gozavam: — Aí, hein Soninha, namorando aquilo e não contou pra gente, não é? Encurralada, Soninha não sabia o que dizer, eles nem deixavam, tanto

caçoavam com piadinhas e tantas gargalhadas cínicas. Ela foi ficando de tal modo assustada que, de repente, começou a defender-se gritando:

— Eu não sou namorada daquele monstro! Eu não sou namorada de ninguém! Esse moleque é um cretino se pensa que eu estou gamada por ele! Será que ele não se enxerga?

Formou-se uma confusão, e a Fofona escutou o destampatório. Com isso, sentiu que o sangue lhe subia aos olhos. Sem pedir licença, começou a sair da fila, ia como um trator, empurrando todo mundo, pisando nos pés. E, levada pelo ódio, plantou-se em frente a Soninha que continuava dizendo tudo o que lhe vinha à cabeça.

— Não fale mal do Super-G! — ordenou, ameaçadora, erguendo a mão.

Page 48: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

48

Ao ouvir aquilo, Soninha ficou duas vezes mais irritada. — Eu falo de quem eu quiser, seu elefante! O que você pensa que é pra

mandar em mim? Aquele cafajeste é um... Não terminou a frase porque o bofetão de Fofona estalou no rosto de

Soninha, que caiu sentada no colo da Rosa Maria. Soninha deu um grito, Rosa Maria quase desmaiou de medo porque Fofona parecia um caminhão desgovernado. Precisou que seu Peixoto, o servente, interviesse. Mas Fofona estava fora de si, deu tamanho empurrão no servente que ele quase caiu em cima dos que estavam na fileira da frente. Foi preciso que quatro homens agarrassem a Fofona que esperneava, dava pontapés e gritava:

— Ninguém fala mal do Super-G perto de mim! Ninguém! O barulho da platéia encobria aqueles gritos, tudo aconteceu muito depressa,

e em seguida o aglomerado se desfez, enquanto Fofona era arrastada fora do salão. Ao perceber algo errado por ali, Super-G tentou ir ver o que estava

acontecendo. Entretanto, seu Mário, um taludo professor de quase dois metros de altura, barrou-lhe o caminho.

— Calma, Gilvan! Agora está tudo em ordem. — O que foi que aconteceu? — perguntou nervoso. — Vi um

ajuntamento onde estava a Soninha... — Nada de importante. Só uma discussão entre os torcedores. Vamos

esperar terminar o festival Depois você conversa com seus amigos, tá? Tinha de estar, ainda que Super-G não concordasse. E ficou ali,

angustiado, esperando que entregassem o primeiro prêmio a Luarão, de Serginho Macedo, melodia que, por sinal, recebeu mais vaias do que aplausos.

A entrega do troféu foi feita pelo prefeito municipal que abreviou a solenidade a fim de que o espetáculo terminasse depressa. Só então seu Mário deixou que Super-G saísse. Ele foi correndo até os amigos que, já de pé, o esperavam. Derradeiras torcidas retiravam-se gritando: "Marmelada!".

— Que foi que aconteceu? — perguntou Super-G agarrado ao violão. — O maior espetáculo de luta-livre do século! — respondeu o Isaltino.

— Fofona encheu a cara da Soninha com bolachas! — O quê? — É sim — explicou o Lourival. — Quando você disse que tinha feito a

música para Soninha, ela começou a rir. Aí, a Fofona viu e deu uns sopapos na Soninha. Não fosse a turma do deixa-disso, aposto que a Soninha ia acabar na Santa Casa!

O coração de Super-G disparou. — Cadê ela? — Soninha? — Claro! — Deve estar saindo por aí... Sem ouvir mais nada, Super-G disparou. Empurrava as pessoas para

encontrar a garota. Lourival franziu a testa e olhou para o Mizael:

Page 49: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

49

— Pôxa, e não é que ele ainda foi atrás dela? Super-G desceu quase correndo a escada. Havia um grupinho na esquina

da praça. Ele reconheceu Soninha lá. Correu chamando: — Soninha! Soninha! Ela voltou-se furiosa, o rosto ainda vermelho pelo bofetão, os olhos

despejando todo o ódio do mundo. — Vá pro diabo, cafajeste! — gritou. — E leve aquele elefante gordo

com você! — Soninha! — gemeu ele tentando explicar-se. — Mas o que

aconteceu? — O que aconteceu? Aconteceu que eu não sou palhaço! Olhe bem

para a minha cara! Onde já se viu, fazer todo o mundo rir de mim? Você não se enxerga?

— Mas eu não quis fazer ninguém rir! Eu só falei que tinha feito minha música para você!

— Pois faça música para a sua mãe! E escute aqui, seu nariz de tucano, da próxima vez que você quiser gozar da cara de uma garota, olhe bem, antes, a sua cara no espelho, tá? Porque nenhuma garota do mundo vai querer que um sujeito nojento e feio como você faça música para ela! Não quero ver a sua cara. Nunca mais!

Dando meia-volta, Soninha saiu correndo. As amigas olhavam acusadoramente para Super-G, eram expressões de nojo. Rosa Maria falou por todas:

— Você não tem espelho em sua casa, nariz rachado!? Aquele desabafo valeu por uma bordoada na cabeça. Super-G ficou arrasado, pequeno como um grão de areia e queria que a terra se abrisse debaixo dos pés. Continuou parado no mesmo lugar, enquanto o grupo se afastava.

O público se dispersou. A praça ficou vazia. Na escola, os serventes apagavam as luzes.

Arrastando o violão, Super-G tomou o caminho de casa. Batendo nas pedras do calçamento, o violão produzia um som oco, parecia um coração chorando alto.

Desceu a Duque. Passou pela Boçoroca, pelo córrego. Começou a subir para a vila. Ventava frio, ele nem sentia. Só queria uma coisa: dormir para nunca mais acordar.

Foi quando escutou que o chamavam. Voltou-se. Era Fofona, encolhida no portão da casa dela. Ao vê-la, Super-G sentiu que o sangue se incendiava. Aproximou-se com um salto e agarrou-a pela blusa.

— O que você fez com a Soninha? O que você fez, sua cretina? As lágrimas escorriam prateadas no rosto de Fofona. Soluçava alto.

— Eu só. . . Eu só. . . — Você é uma gorda nojenta, intrometida e estraga-tudo, sua droga! —

gritou o menino, cego de ódio. Ela continuou chorando baixinho.

Page 50: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

50

— Não fala assim Super-G! Eu não queria bater nela... — Mas você estragou tudo, sua gorda burrona! Sabe o que você é? Uma

invejosa, uma desocupada, um sapo inchado que todo mundo ri de você! Bem feito que o teu pai vive batendo em você!

— Não fala assim, Super-G, não fala! — Falo, falo e falo! Você é feia, é gorda como um barril, é nojenta, é

burra como um elefante! Toma! — e arrancando o emblema que a mãe tinha costurado na camiseta, esfregou-a no rosto de Fofona. — Engole isso, engole o seu Super-G, engole as suas rezas pro santo, as suas fofocas e a sua xeretice, sua bestinha!

Furioso da vida, afastou-se correndo. Fofona foi tombando o corpo, tombando até ajoelhar-se. Ali, segurando o

emblema amassado no peito, continuou chorando baixinho, as lágrimas tic-tuc pingando no chão. Enquanto, como resposta, ela só ouvia o silêncio das estrelas frias e distantes.

18 Primeiro de julho. Sábado de manhã. O caminhão estava em frente à

casa de seu Romeu desde as seis da manhã. Estava pronto. — O motorista passava uma corda para segurar um encerado cobrindo

os móveis. Dona Carlinda, Geralda e o Gilson já tinham seguido de ônibus. Seu Romeu e Super-G iriam de caminhão.

Meio desconfiado, Mizael olhava de banda. Os vizinhos de cima estavam no portão. Seu Romeu trancou a casa e pôs a chave no bolso. Super-G saltou da carroçaria para o chão.

— Tudo pronto, pai. — Então, podemos ir — disse seu Romeu, entrando na cabina. Super-G limpou as mãos nas calças e aproximou-se do Mizael. — Eu te escrevo. A gente continua amigo, não continua? Mizael fez que sim. — Cadê o Lourival e o Isaltino? — Devem estar dormindo. É cedo e está muito frio. Super-G endireitou o bonezinho do Corinthians. — Em São Paulo... você vai continuar cantando? — arriscou o Mizael. — Não sei. Parece que perdi a vontade. — Bobagem. Esquece, tá? — Vou pensar. Os dois amigos se olharam, um no fundo dos olhos do outro. Super-G

sentia que Mizael estava querendo perguntar de Soninha, mas não tinha coragem. Era um assunto que ele queria evitar.

Page 51: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

51

— Vou me esquecer de tudo isto daqui — disse dando uma olhada pela vila. — Tudo!

— Menos de mim, ué! — Menos de você meu chapa! Correu até o caminhão, entrou na cabina e bateu a porta. O motorista ligou a

chave, a fumaça com cheiro forte saiu pelo escapa-mento. Rangeu para engatar marcha. Depois, o caminhão começou a sacolejar descendo a rua esburacada, Super-G olhou para trás e acenou. Mizael respondeu. O caminhão foi ganhando velocidade, passou em frente à casa da Fofona. Super-G não queria olhar. Mas havia alguma coisa, uma força maior do que a vontade, que o fez olhar. Então, ele viu: meio escondida atrás da cerca, a Fofona. Enxergou o rosto redondo, os olhos grandes, o cabelo preto de índia, como sempre meio indecisa, não sabia se ficava escondida ou se se mostrava, aquele jeito angustiado de quem quer agradar a todo o mundo, mas sente medo...

Fofona viu que ele a tinha visto! Aí, criando coragem, pôs todo o corpo para fora e acenou. Super-G olhou com o rabo dos olhos. Ela continuava acenando em desesperada despedida e esperando que ele respondesse, dizendo que a havia perdoado. Porém, em vez disso, Super-G se manteve firme, olhando só para a frente. O que Fofona não sabia era que ele ficou o tempo todo observando-a através do espelho redondo do retrovisor. Bem ao centro, lá estava a Fofona de pé, no mesmo lugar, dizendo adeus. Pequena de caber no coração.

Até que, finalmente, saindo do foco, ela desapareceu na rua poeirenta da Vila Santa Cecília, que já tinha ficado no passado.

Page 52: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

52

AUTOR E OBRA

Bem na hora do batizado o padre ameaçou, enérgico: "Com nome de pagão eu não batizo! Só se juntarem José". Foi assim, sob pressão, que Ganymédes passou a ser também José. Felizmente a imposição do vigário junto à pia batismal não deixou seqüelas, e o garoto pôde seguir sua brilhante trajetória sem que o acréscimo fosse um peso . "Daí eu virei substantivo composto", brincava ele.

Ganymédes José nasceu em Casa Branca, no interior de São Paulo, em 15 de maio de 1936. Formou-se professor em sua cidade, fez direito na PUC de Campinas e cursou letras na Faculdade de

São José do Rio Pardo. Desde cedo começou a juntar coisas no coração: pedaços do mundo (sua cidade, por exemplo, cabia inteira), gente, muita gente, livros, músicas... "Gosto de paz, silêncio, plantas, animais, amigos, honestidade, escrever, música, ale-gria, fraternidade, compreensão...", escreveu certa vez.

Quando ainda estava no grupo escolar, surpreendeu a professora ao afirmar que seria escritor. Retornando à sua cidade, depois de formado, o menino escritor deixou de ser menino. E não parou mais de escrever. Datilografava só com três dedos, o que não o impediu de nos deixar mais de 150 obras. É livro para todos os gostos: mistério, humor, histórico, romântico, infantil, juvenil... Em todos, o mesmo fio condutor, a mesma energia vital: o amor à juventude.

Teve obras premiadas pela Associação Paulista de Críticos de Arte (1975, melhor Livro Infantil) e pela Prefeitura de Belo Horizonte (1982, Prêmio Nacional de Literatura Infantil "João de Barro").

No dia 9 de julho de 1990, quando Ganymédes se preparava para o lançamento de Uma luz no fim do túnel— mais uma grande prova de amor ao jovem —, seu coração, aquele cheio de pessoas e coisas bonitas, parou repentinamente de bater. E tudo quanto ele amava levou embora, dentro do peito. Mas tudo em que acreditava ele deixou aqui, em seus livros.

Page 53: Ganym des Jos - Super G (pdf)(rev)portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/SuperG.pdf · violão, recomeçou a cantar. A música o fazia feliz, era uma espécie de chave mágica que

53

Esta obra é distribuída Gratuitamente pela Equipe Digital Source e Viciados em Livros para proporcionar o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente. Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras. Se quiser outros títulos nos procure : http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-lo em nosso grupo.

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros

http://groups.google.com/group/digitalsource