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1 Afinal, por que os Awá (Guajá) se casam com as filhas de suas irmãs? - parentesco e multinaturalismo em um grupo tupi na Amazônia. (versão provisória) Texto a ser apresentado no seminário do NAnSi (Museu Nacional/UFRJ), Junho 2009 Uirá F.Garcia - aluno de doutorado, PPGAS- USP Palavras-chave: Awá-Guajá, avunculato, criação, rikô. O objetivo desta apresentação é delinear algumas noções que governam as classificações de parentesco de uma sociedade indígena da Amazônia, e discutir de que maneira o seu sistema de aliança é tributário de uma lógica de pensamento, a meu ver, mais ampla e atuante em outras esferas da vida do grupo que não só o parentesco. Os Awá-Guajá Os Awá-Guajá são um pequeno grupo de caçadores, habitantes da porção oriental da Amazônia, mais exatamente o noroeste do estado do Maranhão, nas bacias do Rio Pindaré e Gurupi. Com cerca de 350 pessoas, estão divididos em quatro aldeias distribuídas por três terras indígenas. Falantes da língua Guajá da família Tupi-Guarani, se auto-denominam awá, vocábulo que, em linhas gerais, pode ser traduzido por “humanos”, e a depender da situação, “homem”, em oposição a “mulher”, kuanhã. Como sabemos, vários outros grupos tupi da Amazônia utilizam o termo Awá como um designador da espécie humana (ver por ex. Ballé 1994, Fausto 2001, Müller 1990), por isso a categoria Awá entre os Guajá não seria propriamente um etnônimo. Quanto ao termo Guajá, este não era conhecido por eles até a época do contato, e foi a FUNAI, a fim de diferenciá-los dos Guajajara, povo Tupi que habita a mesma região, que os “ensinou” o nome “Guajá”. Os Guajá nunca tiveram aldeias permanentes e, até o contato, organizavam-se em pequenos grupos, formados por uma ou duas famílias nucleares, dispersos

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Afinal, por que os Awá (Guajá) se casam com as filhas de suas irmãs? -

parentesco e multinaturalismo em um grupo tupi na Amazônia.

(versão provisória)

Texto a ser apresentado no seminário do NAnSi (Museu Nacional/UFRJ), Junho 2009

Uirá F.Garcia - aluno de doutorado, PPGAS- USP

Palavras-chave: Awá-Guajá, avunculato, criação, rikô.

O objetivo desta apresentação é delinear algumas noções que governam as classificações de parentesco de uma sociedade indígena da Amazônia, e discutir de que maneira o seu sistema de aliança é tributário de uma lógica de pensamento, a meu ver, mais ampla e atuante em outras esferas da vida do grupo que não só o parentesco.

Os Awá-Guajá

Os Awá-Guajá são um pequeno grupo de caçadores, habitantes da porção oriental da Amazônia, mais exatamente o noroeste do estado do Maranhão, nas bacias do Rio Pindaré e Gurupi. Com cerca de 350 pessoas, estão divididos em quatro aldeias distribuídas por três terras indígenas. Falantes da língua Guajá da família Tupi-Guarani, se auto-denominam awá, vocábulo que, em linhas gerais, pode ser traduzido por “humanos”, e a depender da situação, “homem”, em oposição a “mulher”, kuanhã. Como sabemos, vários outros grupos tupi da Amazônia utilizam o termo Awá como um designador da espécie humana (ver por ex. Ballé 1994, Fausto 2001, Müller 1990), por isso a categoria Awá entre os Guajá não seria propriamente um etnônimo. Quanto ao termo Guajá, este não era conhecido por eles até a época do contato, e foi a FUNAI, a fim de diferenciá-los dos Guajajara, povo Tupi que habita a mesma região, que os “ensinou” o nome “Guajá”.

Os Guajá nunca tiveram aldeias permanentes e, até o contato, organizavam-se em pequenos grupos, formados por uma ou duas famílias nucleares, dispersos

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sobre um território também ocupado por outros povos indígenas (Guajajara, Kaʼápor e Tembé). Famosos por não praticarem agricultura, não dominavam nenhum cultivo agrícola, nem mesmo milho ou mandioca. Tal situação vem se modificando desde os últimos vinte anos, com a população mais jovem sendo ensinada por funcionários da FUNAI a cultivar mandioca (basicamente para a produção de farinha), além de milho, macaxeira, abóbora e arroz.

Antes de tudo os Awá são exímios caçadores! A caça é a principal atividade - o tema que mais interessa a todos -, e é sobre ela que os Awá depositam boa parte de seus interesses. Caçam dezenas de espécies de aves e mamíferos, e possuem

uma técnica extremamente apurada para a caça de quatro tipo de macacos (macaco-prego, cuxiú, capelão e cairara). A caça em geral, e a caça de macacos especificamente, é uma atividade que mobiliza toda a aldeia: homens, mulheres e crianças. Com tais características (caça e nomadismo), de tempos em tempos os Awá aparecem nos meios de comunicação brasileiros e internacionais como os “últimos nômades caçadores-coletores do Brasil”, e coisas do gênero.

Sobre o casamento

Os Awá postulam que a relação matrimonial entre um homem e uma mulher é uma relação de “criação”, em certa medida, da mesma maneira que outras relações existentes em seu mundo (como veremos mais a frente). Em linha gerais, o modelo de casamento ideal é o que envolve uma menina muito jovem e um homem mais velho (as vezes muito mais velho), de preferência o seu tio materno. Antes de prosseguir, no entanto, são necessárias algumas breves palavras sobre a terminologia de parentesco!

Tal como ocorre a outros grupos das terras baixas da América do Sul, os Guajá apresentam uma terminologia de parentesco dravidiana, do tipo avuncular1. Ocorre de um homem considerar a filha de sua irmã (ZD) sua emerikô, que é o

termo reservado à “esposa” (W), e o filho de sua irmã um harɨwaiá (txiá é o termo vocativo), o termo dispensado aos afins de sexo oposto, “cunhado” ou “sogro” por exemplo. Já a mulher, se refere ao seu tio materno (MB) através do termo imena, o

1 O casamento avuncular é entendido como a união entre ego masculino e a filha de sua irmã, ZD ; ou ego feminino e o irmão de sua mãe, MB.

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termo consagrado para “marido”. Em linhas gerais, os homens Awá-Guajá se casam com suas sobrinhas cruzadas (ZD), geralmente meninas muito mais jovens do que eles, e as mulheres se casam com os irmãos de suas mães.

Além disso, na terminologia guajá, quase sempre, um homem transforma sua sogra (WM) - a mãe de sua esposa - em “irmã” (Z). Nas vezes em que a sogra é uma irmã real não há novidade, porém, mesmo quando a sogra é um parente distante, não cognato, um homem se refere a ela como txikarí, o mesmo termo utilizado para se referir à irmã. Para os Guajá, se assim posso exagerar, as sogras sempre são irmãs (e vice-versa).

O casamento avuncular corresponde a, em média, 40% dos casos (e curiosamente isso se dá tanto nas aldeias onde trabalho, quanto na que trabalhou Cormier 2003).

***

Os Awá-Guajá, como defende Anne Christine Taylor (2001) para os Jívaro - e para a maior parte dos grupos amazônicos -, “dão pouca importância à instauração de uma relação conjugal”. Quase sempre uma jovem se casa ainda na infância, seja com seu tio materno ou não. A jovem, mesmo vivendo na casa de seus pais, gradativamente toma parte nas atividades de seu marido: aos poucos (1) passa a acompanhá-lo na caçadas; (2) deixa de tomar banho no rio de forma animada com seus irmãos primos e amigos, para acompanhar o marido nos banhos em casal - muitas vezes levando um irmão ainda de colo; (3) passa a realizar suas refeições junto ao novo marido; (4) e aos poucos começa a freqüentar sua rede. É importante lembrar que não há um momento específico para ela sair da casa de seus pais, e ela só toma essa atitude realmente um pouco antes de engravidar.

A partir dos seis, ou sete anos de idade, até a sua gravidez, a menina experimenta uma gradual transição, deixando de viver como “filha” em sua casa natal, para viver como “esposa” ao lado do marido. E o casamento é visto como um

processo gradativo de transformação de uma menina em esposa. Ela aprende neste processo a “cantar bonito” - a principal marca de beleza e feminilidade que uma mulher pode ter (aprende ouvindo sua mãe e irmãs); a cuidar dos filhos; e a caçar com o marido ou na companhia de outras mulheres (pois lá as mulheres também

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caçam). E o final da infância é o período da descoberta do sexo (ao lado do marido, e muitas vezes com alguns irmãos dele, também chamados “maridos”).

Durante este processo a principal tarefa do futuro esposo é fornecer alimentos (caça, as vezes peixe, e mais atualmente farinha) à sua jovem mulher, mãe e irmãos jovens. Ele também deve incluir seus jovens cunhados nas caçadas que até então realizava com seus irmãos e afins mais velhos. É possível encontrar casamentos de homens muito mais velhos com meninas muito jovens, mas também de jovens “tios” com suas sobrinhas. Só para termos uma noção, os dois últimos arranjos de uma das aldeias corresponde (1º) um homem com cerca de 35 anos e uma menina de 8,

tio (MB) e sobrinha (ZD) respectivamente; e outro, (2º) entre um rapaz de 13 anos, e a filha de sua irmã (ZD) de 7 anos.

Criando esposas

É dispensável dizer que o fato de não haverem marcas nem rituais de casamento, não significa que as relações matrimoniais e afetivas não sejam refletidas, ao contrário.

Para tanto, as pessoas se utilizam comumente de um termo chamado rikô (ou rekô), que traduzo, por hora, por “criar” ou “amansar”. Trata-se de uma daquelas formas de relação presente na Amazônia que abrange tanto a criação e adoção de animais domésticos, quanto a paternidade e a maternidade; uma agência que envolve as relações estabelecidas entre os “donos” dos animais e seus domínios, mas não só isso.

O rikô é uma “idéia de relação” (nas palavras de Lima, 2005) capaz de exprimir diferentes agências. Por exemplo:

1- A relação entre uma mãe e seus filhos é dita como uma relação do tipo rikô;

2- Os animais domésticos, filhotes de presas animais caçadas que,

criados na aldeia, são chamados nimá (ou hanimá). Tratam-se de diversas espécies de macacos; aves; porcos; roedores, dentre tantos outros, animais familiares cuja relação de criação é também chamada rikô.

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3- Da mesma forma os objetos. Possuir um flecha, uma faca, um tecido ou qualquer outra coisa, é ter com esse objeto uma relação rikô.

A idéia de “criar” é mais significativa para exprimir a posse do que o verbo “ter”. O portador de determinado objeto, ao possuí-lo, o “cria” mais do que o “tem” : aʼe rikô (“eu o crio”), seria a resposta imediata quando alguém diz estar com algo.

Os Awá também postulam que boa parte das relações no mundo podem ser pensadas como relações entre “donos” (no sentido amazônico do termo) e “criaturas” ou, como colocam, entre um iará e um nimá, e o rikô seria um esquema

relacional baseado no encontro destas duas categorias. Relações de “dono no sentido amazônico do termo” seriam aquelas que Fausto (em um artigo recente, Fausto 2008) se refere como de “maestria” e “domínio”, nas palavras do autor: trata-se de “um modo generalizado de relação, que é constituinte da socialidade amazônica e caracteriza interações entre humanos, entre não humanos, entre humanos e não humanos e entre pessoas e coisas”. Os exemplos onde tal noção aparece são muitos.

Em linhas gerais, toda criatura tem um dono e todo dono exerce domínio sobre algumas criaturas a eles relacionadas. Os Wajãpi por exemplo, (um povo linguisticamente muito próximo aos Guajá), utilizam as noções de -jar ("dono"), eima ("criatura") (Gallois, 1988: 98) para explicarem o funcionamento da vida. São estes donos que garantem a vida e a reprodução dos seres, e é porque as criaturas tem um dono que elas se reproduzem. Assim, ko-jar = "o dono da roça", tem como principal atribuição "tomar conta de suas criaturas, controlando sua reprodução, seu crescimento, seu bem-estar físico e também seu movimento" (Gallois idem).

Saliento também a complexa noção de iwa, encontrada entre os Yudjá, que exprime a relação de sujeitos com coisas, ambientes, seres humanos, animais, dentre muitas outras possibilidades. Como aponta Lima, “o iwa atua como condição

da vida social em seu desenrolar no dia-a-dia”, e é essa “agência que torna pensável tanto a existência humana e o universo, quanto “os acontecimentos mais mundanos” (Lima 2005: 95). O iwa , de alguma maneira, faz menção a esta forma social específica presente de forma significativa no pensamento ameríndio.

Vejamos o que acontece com os Guajá!

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As pessoas da aldeia Jurití (uma, entre duas, onde realizo pesquisa) não traduzem o termo iará. Desconfio até que eles não conheçam a palavra “dono” em português. Penso que se alguma tradução pudesse ser feita, certamente a idéia de “dono”, tal como aparece em outras etnografias, seria um termo razoável. Por outro lado, como veremos, os “donos” de lá possuem particularidades não-generalizáveis a outros contextos etnográficos.

Todos me afirmam que muitos - mas muitos! – seres se enxergam como iará, e que como tais são vistos pelas criaturas que controlam. Exemplificando uma paca é, para ela mesma, iará de uma cotia, e nimá de um veado. Ou, melhor dizendo, do

ponto de vista das pacas, os seus “donos” são os veados, e do ponto de vista das cotias, seus “donos” são as pacas.

Outros exemplos? Borboletas são criadas por jabutis; formigas são animais de estimação de macacos guaribas; os porcos do mato são donos de algumas espécies de cobra; o poraquê (peixe elétrico) é dono de diversas espécies de peixes e por sua vez é hanimá (um animal criado pelo) do jacaré; assim como toda espécie de mel, dentre as dezenas existentes, pertence a algum animal que é seu iará. De uma maneira geral, muitos animais caçados são animais de estimação de outros.

Com as flechas acontece algo interessante. Atualmente os jovens caçam com espingarda e os velhos com arco e flecha. Mesmo assim, todo homem, jovem ou velho, possui o seu feixe de flechas e tabocas, e cada feixe pode conter, facilmente, centenas de flechas. Embora as flechas sejam feitas pelos humanos, elas possuem uma autonomia a ponto de seus donos manterem com elas uma relação de rikô. Em outras palavras, como gostam de traduzir, os homens “criam” suas flechas. Criar as flechas implica basicamente em confeccioná-las (obviamente), alimentá-las e repará-las sempre que necessário. Depois de confeccionada a flecha ainda não está pronta para o uso, pois requer um longo processo de “alimentação” e “envenenamento” para que se fortaleça e, com isso, seja capaz de matar.

Uma flecha se alimenta fundamentalmente do sangue dos animais que abate. Uma vez o animal morto, os homens esfregam na carne cheia de sangue a ponta de diversas flechas para que a fome delas seja aplacada. Os Guajá dizem que as flechas não param de pedir sangue, e caso eles não atendam os pedidos, elas não matarão nenhuma animal (se quebrarão ou não acertarão o alvo). Uma vez a flecha alimentada ela é posta em um jirau situado estrategicamente em cima do moquém,

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para que a fumaça seque o sangue. Com o sangue seco, e depois de “defumada”, a flecha está “envenenada”, pronta para o uso. As únicas exceções são os sangue da onça (jawara) e dos humanos (awá, kamará [povos vizinhos] e karaí [brancos]).

O sangue humano é altamente nocivo à uma taboca. Caso uma dessas flechas venha a matar algum humano, ela deve ser descartada, jogada fora. O sangue de um inimigo faz com a taboca se acostume com o sabor de sangue humano e queira sempre mais. Se a mesma taboca que matou um humano, for reutilizada em uma caçada, tempos depois, ela certamente desprezará o alvo e se voltará contra as pessoas que estiverem ao redor do caçador, em busca de mais

sangue humano. Por isso ela deve ser imediatamente inutilizada. Já o sangue do jaguar enfraquece a flecha, e embora não precise ser descartada, tão logo ela abata uma onça, o sangue do animal não deve permanecer na ponta da flecha, como é desejável em outros casos, e ela deve ser limpa2.

Os Guajá também defendem que os muitos agenciamentos entre um caçador e suas flechas, são da ordem de uma relação rikô. Os homens fazem suas flechas e depois as “criam” também.

Do mesmo modo, do ponto de vista dos aiã (espectros canibais que vivem na floresta) os macacos da noite são seus hanimá (xerimbabos). E se determinadas borboletas são hanimá dos jabutís, ou se os macacos cuxiú são hanimá dos macacos prego, este é um acordo entre os respectivos donos e suas criaturas. “Onde houver uma relação ela existe para mim”!, e aqui também é inconcebível a existência de um espectador absoluto (Lima 2005).

Darei mais alguns exemplos!

Uma aldeia guajá não é um local dos mais confortáveis. Quem afirma isso não sou eu, são eles próprios3. Acostumados ao frescor e a liberdade da floresta, onde permaneceram vivendo até o contato recente, a aldeia, que veio como parte do “kit pacificação” (refiro-me à agricultura; utensílios de metal e espingarda), ainda é algo

novo para eles. Parafraseando Viveiros de Castro a respeito da aldeia Araweté, o que ocorre com os Guajá são aldeias junto a Postos Indígenas, e não o contrário.

2 A complexa relação dos Guajá e suas flechas vai além desta breve observação. Estou desenvolvendo este tema em minha tese. 3 O contraste entre aldeia e mata; aldeia e céu, é ressaltado todo tempo pelas pessoas.

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Os tapiris (tapãʼí) cederam lugar às casas de taipa, e a concentração de pessoas trouxe, além das galinhas e cachorros, muitas baratas.

O amontoado de coisas e comida que os Awá estocam em seus telhados de palha, e brechas de parede, é tamanha que toda noite uma miríade de baratas aparece zanzando em boa parte dos espaços das casas, do chão ao teto. Nas noites úmidas de inverno sobem por nossas pernas circulando por todo o corpo, por dentro e fora da roupa, da cabeça aos pés. A quantidade de baratas é tão grande que eu (particularmente) tive que me acostumar quanto aos movimentos delas por meus braços e pernas. Quando espantamos uma do braço, duas já estão no

tornozelo.

Certa vez, conversando sobre o desconforto que as baratas trazem à aldeia, um homem me disse que elas eram de responsabilidade da SUCAM (órgão da Fundação Nacional de Saúde), disse mais, que as baratas eram sucam nimá, “xerimbabos da SUCAM” (criaturas cuja vida e o controle da vida é propiciado pela SUCAM). Em linhas gerais a SUCAM, é iará das baratas. Segundo Uirohó, esse homem com quem eu conversava, “a Funai foi a responsável por trazer as baratas até a aldeia”, porém por não ser uma iará das baratas, a FUNAI teve que chamar o verdadeiro “dono” delas, trata-se da SUCAM, ela sim, por ser o iará verdadeiro sabe controlar essa praga. Cada vez que um funcionário da SUCAM vai até a aldeia, ele não está para lá exterminar as baratas, mas sim para controlá-las, elas são as suas “criaturas”. Um não vive sem outro, e é disso que se trata o rikô. É esta a relação entre a SUCAM e baratas, uma relação de “criação”.

Ainda dentro da categoria “pragas”, assim como a SUCAM é iará das baratas, uma anta é iará de seus carrapatos.

Quando abatem animais grandes como porcos, veados e, principalmente antas, os Awá, maldizendo o animal, queimam, com um ramo seco de palhas, os pelos do bicho a fim de tirar todos os carrapatos. Reclamam da anta, por exemplo,

por “gostar de criar tantos carrapatos”. As mordidas de carrapato que qualquer um de nós adquire nas caminhadas pela mata, são associadas a um animal específico: “Esses são os carrapatos de um veado que passou por aqui”, ou “eu fui mordido pelo carrapato daquele porco, ou daquela anta”. Cada carrapato também tem o seu iará. Não que nesse caso as antas, porcos e veados controlem os carrapatos, mas,

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diferente disso, os carrapatos apenas “estão com” esses animais. “Estar com”, eu penso, também pode ser uma tradução para rikô.

Para que não haja mal entendido, os carrapatos são uma chateação para todos, tal como as baratas e algumas espécies de cobra são. E, se dependesse das pessoas, eles manteriam esses bichos todos bem longe, não muito diferente do que nós mesmo pensamos e fazemos. Porém, quando os Guajá dizem que os carrapatos e baratas só vivem a partir desses iarás, diferente de nós, estão enfatizando que a “praga”, tal como nós definimos, é um descontrole de outra ordem, da ordem de um princípio sociológico, e não de um desequilíbrio ambiental.

***

Além dos exemplos citados, também são iarás uma complexa classe de seres celestes, chamados karawara, responsáveis por diversos animais terrestres, sobretudo animais de pequeno porte: pássaros e insetos. Um grupo que envolve ex-humanos, espíritos de inimigos (tenetehara), animais, os karawara, em linhas gerais são uma espécie de “Awá celestes”: todos são “iará” de alguma criatura (do pica-pau, do pássaro jurití, do tucano, da jibóia, dentre outros); todos são exímios caçadores; e embora vivam no céu (iwá), todos mantém um trânsito constante entre céu e terra onde vêm buscar, basicamente, “caça”, “água”, “mel” e outros produtos essenciais que só se encontram na terra (wɨʼa), além de ajudarem os humanos em curas xamânicas.

Mais do que uma espécie de “super donos”, os karawara são ditos serem os humanos do céu. São humanos melhores: mais bonitos; habitantes de um lugar mais limpo e agradável; e, sobretudo, caçadores infalíveis. Ainda estou quebrando a cabeça para entender a classe de seres karawara, porém, o que gostaria de enfatizar, por hora, é o fato de todos estabelecerem uma relação do tipo rikô com algum animal da terra. Todos os karawara são iará.

***

Recapitulando: até agora temos uma relação (ou uma ação), rikô, estabelecida entre um iará e um hanimá. E tal ação pode ocorrer entre seres de diferentes ordens, na tabela abaixo encontramos cinco possibilidades.

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Algumas possibilidades para a relação rikô

Possibilidades Relações Exemplos

1 humanos → humanos pais e filhos

2 humanos → animais mulheres e seus animais de estimação

3 humanos → objetos caçadores e suas flechas

4 animais → animais antas e carrapatos; veados e pacas; alguns macacos entre si; cotias e

esquilos

5 não - humanos → animais aiã - macaco da noite

Pelo que pude perceber, a idéia de rikô também nos informa sobre o sistema de aliança. Muito embora os Guajá não mencionem nenhum verbo para “casar”, em todas as indagações sobre o tema, me oferecem o rikô, como a idéia de relação entre marido e esposa. E se rikô não é “casar”, casar é rikô. Vejamos agora por que.

Antes, gostaria de ler uma passagem, já resumida por mim, de um mito que coletei.

“Conta-se que, certo dia, um caçador que (por algum motivo) vivia sozinho, realizou uma produtiva caçada e matou um grupo de macacos guariba (Alouatta Belzebul), conseguindo ainda como saldo da caçada capturar um filhote do bando como “xerimbabo” (como animal de estimação), prática muito comum entre os Guajá. A partir de então, este homem, sempre que retornava à sua casa após um dia inteiro na mata, encontrava-a bastante bagunçada: seus objetos revirados, e os alimentos, que até estão estavam sem preparo, já preparados e consumidos, como se alguém tivesse se aproveitado de sua ausência, passado por lá, e feito uma bela refeição. Dia após dia era a mesma coisa: não haviam rastros de outras pessoas, e só quem ficava em sua casa era aquele adorável filhote de macaco (provavelmente amarrado em algum canto).

Certo dia, intrigado com tais acontecimentos, este homem resolveu voltar mais cedo para casa a fim de averiguar o que estava de fato ocorrendo em sua ausência.

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Eis que, ao chegar em casa, ele se depara com uma bela jovem, que, naquele momento estava cozinhando os frutos da palmeira “inajá”. Atordoado, porém muito atraído pela jovem dama, ele propõe que ela fique com ele, porém a jovem recusa a proposta, acusando-o de ter assassinado os seus pais e tê-la aprisionado como um “animal”, tornando-se “dono” dela. Eis que ele se dá conta que aquele macaquinho que ela havia aprisionada era, na verdade, a jovem que agora ele mesmo pleiteava como esposa. Ele tenta convencê-la a ficar, mas a dama foge para o céu a fim de encontrar seus parentes já mortos, deixando o homem sozinho novamente”.

Neste mito que chamo por hora (por sugestão de uma amiga) de “ mito da

origem das relações de gênero” estão relacionados, dentre outros, os temas da domesticação e de uma aliança frustrada. Aprisionamento e casamento são noções que aparecem juntas. O animal doméstico (hanimá) seria, na verdade, a possível esposa desse iara - o dono do animal - que é também um possível marido, mais exatamente um mau marido.

Sabemos que em diversas sociocosmologias sul americanas (por exemplo, entre os Ashuar, Wajãpi, e até mesmo nos históricos Tupinambá) o casamento é descrito como um processo de, nas palavras de Anne Christine Taylor, “amansamento” da esposa, muitas vezes desposada ainda bem jovem (entre os Awá-Guajá por volta dos 6, 7 anos). No caso Ashuar, por exemplo, o casamento é modelado por uma relação de captura violenta, já que, na prática muitas esposas eram fruto de expedições guerreiras entre os diferentes grupos. O mesmo acontece com os Parakanã, que davam preferência às jovens “pois as mais velhas eram difíceis de “pacificar” e, por vezes, resistiam à captura. Mesmo entre os Guajá, quando mencionam os grupos que vivem sem contato com a FUNAI, uma das principais preocupações dos homens é com as possíveis esposas que poderão adquirir a partir do contato (desejadas mesmo que seja por rapto).

Para os Wajãpi, lembra Gallois, o apresamento de mulheres é algo tributário a

um estado indômito das esposas e das mulheres em geral, cuja captura e domesticação são necessárias à uma transformação da jovem. No caso Guajá, tal necessidade é transformar uma jovem menina em esposa: isto é o casamento! Esta é a única forma de se contrair matrimônio! Eles dão várias motivos (de ordem econômica, ecológica e sexual) para a preferência em se casar com um parente tão próximo e tão jovem, e todos eles alegam a necessidade de “criar” a esposa a fim de

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que ela não entre em um estado de raiva incontrolável, destino a que toda mulher está sujeita caso por algum motivo não se case.

Para os Guajá, uma mulher não pode crescer sem estar casada, e não é recomendável que ela demore para arranjar um marido pois cresceria muito “zangada” (imahɨ ). Cresceria zangada, por exemplo, pois não se alimentaria direito, tarefa que, desde que instituído o casamento, compete ao marido (ou pretendente). Além disso, se a esposa não se casar durante a infância, ela não serviria mais ao casamento pois estaria com tanta raiva que não toleraria marido algum.

O rikô, como um modulador da aliança, é aplicável tanto para homens quanto

mulheres. Em outras palavras, as mulheres também dizem “criar” os seus maridos. Muitas mulheres adultas, casadas com homens velhos, e muitas viúvas, dizem “criar” seus jovens maridos, pois o perigo nesse caso é o jovem homem entrar em um profundo estado de melancolia - por não possuir uma esposa - capaz de comprometer a sua produtividade na caça, talvez o pior mal que possa se abater sobre um homem.. Como sabemos, tal casamento (mulheres velhas e homens jovens) é também característica dos regimes de avunculares.

Como no mito que relatei, e no esforço paciente que várias amigos Guajá vem empreendendo para me explicar o funcionamento do sistema de aliança, tenho percebido que as preferências matrimoniais estão relacionadas a idéias como “criação”, “adoção”, “amansamento”... Me parece que o entendimento do esquema que prescreve um mundo repleto de “donos” e “criaturas” é fundamental para se entender o sistema de aliança caracterizado pelos próprios Awá como uma relação rikô, relação assimétrica que pressupõe um iará e um hanimá, um “dono” e uma “criatura”. E o fato desta relação aparecer em esferas tão diferentes (entre os animais, seres celestes, fantasmas, dentre outros) aponta para um sistema de pensamento que destaca parte significativa da vida como um exercício permanente de produção desta ação. Para mim, a complexidade da relação rikô está no fato de

não se desenrolar em um nível específico de realidade, a despeito de seu caráter realista. A ação se acontece em diferentes esferas da vida sem necessariamente reduzir uma à outra. Por isso gosto de pensar que rikô não é casar, mas casar é rikô. O próprio termo para esposa, cuja a tradução para mim é incerta, é eme rikô, o que nos remete a mesma idéia da “esposa” como alguém “criável”.

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Devo salientar que iniciei a minha pesquisa de doutorado interessado no sistema de parentesco (categorias, regras e práticas), porém, uma vez entre os Guajá, ao seguí-los (seguí-los no sentido de levar a sério suas idéias), me deparei com tais noções, o que colocou a discussão sobre parentesco como um “ponto de partida”. Ou, sendo mais direto, dificilmente entenderemos o que é - por exemplo - o “casamento” entre os Guajá, sem antes entendermos como eles concebem e constroem suas relações. E quando as penso aqui passando de uma para outra tenho a intenção de destacar o caráter multinatural e perspectivo presente nestas relações que, como já salientado por outros autores (ver Viveiros de Castro 1996,

Lima 1996), é fundamental para o entendimento dessas sociocosmologias.

Para finalizar, não acredito que se de trate um modelo que prescreva uma dominação masculina, ou algo do gênero, até por que, poucas vezes na literatura etnológica, eu tenha lido sobre mulheres tão - como dizer? – “donas de si mesmo”, como são as mulheres Guajá. As mulheres não só caçam como propõem caçadas; em muitos casos pegam flechas nos feixes de seus maridos a fim de ferirem algum animal; participam ativamente da caça aos macacos aterrorizando-os com palavras de espanto, enquanto os homens sobem nas árvores para flechá-los; e não é raro elas saírem sozinhas com facões e machados para caçarem uma cotia ou até mesmo animais maiores (como pacas) e trazerem a refeição para casa, quando, ao mesmo tempo, seus homens chegam com as mãos vazias.

***

O “processo de parentesco” Awá-Guajá, está baseado em uma lógica de produção e transformação de meninas em esposas, e é em certa medida prescrito pelo esquema relacional iara - hanimá, tendo na idéia de rikô a sua melhor forma de compreensão. O parentesco Awá seria uma dessas “teorias não-biológicas sobre a vida”, como escreveu Viveiros de Castro em um artigo recente; isto significa que para apreendê-lo se faz necessário incorporar não só o “método genealógico” mas

também o conjunto de idéias que caracterizam os Awá com um grupo diferente de - por exemplo - nós mesmos.

Referências Bibliográficas

Page 14: Garcia, Uira - Parentesco e Multinaturalismo

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