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© da autora1ª edição 2021

Direitos reservados desta edição: Tomo Editorial Ltda.

A Tomo Editorial publica de acordo com suas linhas e conselho editoriais que podem ser conhecidos em www.tomoeditorial.com.br

Editor

João Carneiro

rEvisão

Luciana Balbueno /Maria de Nazareth Agra Hassen

ProjEto gráfico E diagramação

Juliano Bruni / Tomo Editorial

caPa (sobrE Pintura dE fabrício manohEad)Juliano Bruni

Tomo Editorial Ltda. Fone: (51) [email protected] www.tomoeditorial.com.brRua Demétrio Ribeiro, 525 CEP 90010-310 Porto Alegre RS

L435g Leal, Ondina Fachel. Os gaúchos : cultura e identidade masculinas no pampa / Ondina Fachel Leal . − Porto Alegre : Tomo Editorial, 2021.

368 p.

Inclui bibliografia Inclui fotografias

ISBN 978-65-88538-05-0 Capa dura ISBN 978-65-88538-06-7 Capa brochura

1. Antropologia. 2. Etnografia. 3. Identidade social. 4. Gaúcho: trabalha-dor campeiro. 5. Mulher: o feminino nas estâncias. 6. Pampa gaúcho. I. Título .

CDU 316.334.352

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Bibliotecária: Ketlen Stueber CRB 10/2221)

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CULTURA E IDENTIDADE MASCULINAS NO PAMPA

ONDINA FACHEL LEAL

Porto Alegre, 2021

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Prefácio

O mais eloquente dos silênciosLuiz Fernando Dias Duarte

Professor Titular de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ

Uma das mais preciosas qualidades do trabalho antropológico é o registro minucioso, reflexivo, das atividades que se chama de “et-nografia”, ou seja, o trabalho de campo pessoalmente conduzido, ne-cessário para a construção e o desenvolvimento de qualquer análise. Trata-se, primeiro, do registro originário, multiforme, dos “cadernos de campo” e seus complementos de toda espécie. Trata-se, em seguida, da publicação (ou publicações), em que a articulação entre os materiais registrados se revela ao mundo, na tessitura composta pela problemá-tica teórica e pelas estratégias metodológicas do/a autor/a.

Esta obra que se tem agora em mãos, traduzida para o português de seu formato de tese de doutorado defendida em inglês, tardou trin-ta anos a vir a lume − e só pôde fazê-lo graças à riqueza do acervo ame-alhado pela autora ao longo de seus dois anos de pesquisa de campo. O resultado é uma verdadeira caverna de Ali Babá aberta à visitação e reflexão, tantos são os tesouros que ali reluzem.

A riqueza do trabalho etnográfico conduzido na campanha gaúcha na segunda metade dos anos 1980 sobre, nos termos da autora, esses “peões campeiros, trabalhadores rurais da pecuária extensiva da região do pampa latino-americano” − gaúchos, em suma −, é notável, sobre-tudo se pensarmos o quanto envolveu de coragem e perseverança a

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VI Prefácio: O mais eloquente dos silêncios

aventura de enfrentar e adentrar − como mulher que é; e muito bonita (o que não é irrelevante neste caso) − um mundo masculino de fron-teiras rígidas ciosamente defendidas por seus membros.

As três décadas transcorridas foram de imensas transformações no instrumental analítico da antropologia mundial, inclusive brasilei-ra, e − no entanto − graças à qualidade da informação construída pela autora, mantém-se impecável a força de sua contribuição à antropolo-gia em geral, e − em particular − dessa configuração sociocultural que pesquisou.

A vida de um prefaciador é dura. Não pode dizer demais, por não estragar a originalidade do que faz entrever; tampouco pode dizer de menos, por tornar-se irrelevante. Sublinho, assim, alguns pontos altos que me tocaram particularmente e que podem servir de escasso guia para a percepção dos caminhos a percorrer.

Trata-se, acima de tudo, de um estudo de identidade social, com todas as suas nuances e angulações − envolvendo os focos do gênero, do trabalho e da cultura. Isso ensejou a apresentação, em correta medida, da longa história da configuração ocupacional da região e da caracteri-zação “sociológica” do segmento social em causa: esses “trabalhadores rurais da pecuária latifundista”, dependentes de processos socioeconô-micos tais como o cercamento da terra das estâncias e das mediações da produção ganadeira que se estendem até o mercado internacional.

Ondina Fachel Leal prenunciava, nesta obra, com seu tratamento sensível da “paisagem cultural” e da “paisagem etnográfica”, a aten-ção mais recente e intensa sobre o conceito de “paisagem”, na esteira da ênfase na dimensão afetiva, sensorial, corporalmente mediada, da experiência vital de nossos interlocutores e da própria vivência do/a pesquisador/a em campo. A transmissão desses “imponderabilia” vi-tais é hoje reconhecida como essencial. Vocês saberão a que me refiro quando lerem as anotações memoráveis sobre o “silêncio e imobili-dade do pampa” como dimensão ativa daquele mundo ou sobre os crepúsculos coletiva e intensamente vivenciados − com vastas impli-cações fenomenológicas.

Em outro registro, tudo o que nos é dito sobre a especificidade da reprodução por pastoreio, essa “cultura pastoril tradicional” de que fala a autora, é de grande valia para possíveis reflexões de outra monta, em

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VIILuiz Fernando Dias Duarte

comparação com o que se sabe do papel desse modo de produção entre os antigos judeus, os árabes do tempo de criação do islamismo, ou os nuer etnografados por Evans-Pritchard − por exemplo. A ideia de uma “cultura autocentrada”, ciosa e orgulhosa de sua singularidade pastoril, foi fundamental para eventos marcantes da história da humanidade.

O eixo identitário do gênero é certamente o mais preeminente na obra, por força da configuração muito peculiar e radical em que se manifesta nessa cultura. Serão raras as socialidades em que tão severa dissociação entre a vida masculina e a feminina se deem. Por múltiplas razões, bem analisadas, a vivência diferencial dos homens e das mu-lheres se dá não apenas pela universal “divisão social do trabalho de gênero”, mas por uma segregação social, espacial e afetiva bem defini-da, com tintas de desconfiança, medo e ansiedade notáveis. Inevitavel-mente, dadas as circunstâncias da pesquisa, avulta a expressão da ver-são masculina desse enfrentamento, mas também algo se vem a saber da versão feminina. A expressão de “ausência mútua” é muito expres-siva da forma fenomenal desse sistema relacional; mas a autora não se engana em lembrar que se trata de “faces de uma mesma moeda”, em que o vigor mesmo da diferenciação contém a percepção analítica de sua indissociabilidade, de seu caráter dolorosamente complementar, implacavelmente naturalizado entre todos e todas. As contribuições mais recentes da melanesista Marilyn Strathern, em seu O Gênero da Dádiva, amplificam esse tema da mútua constituição do sujeito social, na complexa troca e partilhamento (mesmo que sob a forma da des-confiança e da insegurança) que impõe o comércio dos gêneros.

Ondina Fachel Leal apresenta e explora com sutileza as possibili-dades de análise estrutural das posições complementares de homens e mulheres, submetidos a injunções de relação com a reprodução ani-mal (e humana), com a sexualidade/afetividade, com o sofrimento físico-moral de humanos e não-humanos, com as possibilidades de saída da armadilha social, totalmente diferentes − e, no entanto, termo a termo, simétricas. O exemplo mais transparente (que tanto lembra a celebrada análise por Pierre Bourdieu do celibato camponês no Béarn francês) é o das possibilidades maiores de alternação do feminino: “Uma mulher é capaz de fazer essa passagem do rural para o urbano mais facilmente do que um homem”.

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VIII Prefácio: O mais eloquente dos silêncios

Não sei o que achará a autora, mas alguma coisa do pathos de gê-nero descrito evocou-me o belo filme A Intrusa, de Carlos Hugo Chris-tensen, baseado no conto do mesmo nome publicado por Jorge Luis Borges em El informe de Brodie nos anos 1970. Na verdade, foi quando ela mesma se percebeu como intrusa em seus primeiros movimentos de acercamento ao mundo masculino do galpão.

Há uma constante percepção e aproximação da situação estudada com a noção antropológica de hierarquia − “Ela é tomada como se fosse da ordem natural e imutável das coisas, funcionando como um podero-so operador simbólico ordenador do mundo”, por exemplo. Formado como sou pela “teoria da hierarquia” de Louis Dumont, eu teria prefe-rido que, ao se referir ao “individualismo” dos gaúchos (o que é, num nível mais fenomenal, perfeitamente compreensível), tivesse usado ex-pressões como “singularidade” ou “individuação”, para traduzir o sen-so de “dignidade” majestática de que se ornam. Pois não há aí nada da “ideologia do individualismo”, no sentido daquele autor, mas sim uma teatral encenação da personalização singular de cada um, bem situada na hierarquia geral que lhe empresta os papéis. “Desafio” e “honra” são, como aí, atributos de muitas socialidades hierárquicas − por classe e por gênero −, como as ditas “mediterrâneas”, evocadas apropriadamente por Ondina Leal. Mas isto já é da ordem dos muitos debates possíveis a partir de suas propostas! O material aqui está, rico e desafiador.

O tema da oralidade dessa cultura masculina pastoril é desenvol-vido magistralmente, com minúcias de etnomusicologia e de etno-grafia da fala; sublinhando-se a constante interpenetração da inven-ção local com tradições maiores, poéticas e musicais, que a memória social e o radinho de pilha abastecem constantemente, nas tertúlias compartilhadas.

O livro vai ganhando em intensidade à medida que vai progre-dindo para os capítulos finais, sobre a briga de galos e sobre a morte. Não fossem já esses temas clássicos e envolventes (um “deep play”, disse-nos Clifford Geertz sobre o primeiro fenômeno em Bali), mas a forma como se manifestam nesse mundo vivido e a forma como a autora consegue captar o pathos aí envolvido conformam uma contri-buição de enorme complexidade, gravidade e qualidade. Estamos aí já no plano do antológico!

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IXLuiz Fernando Dias Duarte

Quão pungentes e inquietantes podem ser para os citadinos letra-dos, “civilizados” ao modo de Norbert Elias ou de Philippe Ariès, as impressões sobre a convivência constante com a luta sangrenta, com a solidão morbosa, com a morte de humanos e não-humanos. Essa “intimidade com a morte”, bem presente em seus cancioneiros, leva ao fenômeno tão peculiar da pretensão de um “poder de decisão sobre ela” − por meio do suicídio, perpetrado de forma quase ritual. Ondina Leal analisa o fenômeno inclusive à luz de informações estatísticas e do modelo de Émile Durkheim − para propor uma forma fenomenal diversa do dualismo entre o “altruísta” e o “egoísta” por ele classica-mente descritos.

Para o/a leitor/a, assim como para os gaúchos interlocutores, “é quando até o silêncio sente frio”, nos seus termos.

Sentir o frio − também nós − que perpassa os sentimentos enove-lados na epopeia dos “centauros dos pampas” é o melhor testemunho do engenho e arte com que Ondina Fachel Leal nos entrega este bri-lhante resultado de sua etnografia.

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2021

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Sumário

Apresentação: trinta anos, trEzEntos anos 13

Introdução: rEEncontrando os gaúchos 29

o gaúcho E o PamPa: tErra dE frontEira sEm frontEiras 37Os gaúchos 37Homens montados: o Sul como área cultural 39As estâncias 45Origem social do gaúcho 48O luto literário pelo gaúcho 56Guerreiro, bandido, herói, trabalhador 61Cultura de massa, cultura popular e folclore 68Cultura e ideologia como objetos etnográficos 75

trabalho dE camPo: Quando o camPo é o camPo 81O objeto 81Limites 84Pampa 90Cidades e vilarejos pampeanos 99Um vilarejo na fronteira 106Uma intrusa em um universo masculino:

notas sobre o método 118

o galPão E suas histórias 129O galpão, a casa dos homens 129Gaúchos assalariados 132Causos que se contam e se cantam 141

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12 Sumário

Liberdade encilhada 144“Para escutar payadores, até o silêncio se cala” 148O causo e suas mediações: “Quem conta um

conto acrescenta um ponto” 156Porcas dão coices? 160O lore do riso 166Salamandras: representações masculinas sobre a mulher 175A cópula mágica: narrativa mítica

constituidora da identidade gaúcha 179

mulhEr, a altEridadE ausEntE 191Ausência feminina 191Era uma vez, no tempo em que as mulheres existiam... 195“Mulheres campeiras apenas” 204Cartografias de gênero 216Chinaredo e bruxaria: o domínio da desordem 225Metáforas que curam 232

os homEns E sEus galos 245Da rinha de galos 245A posse dos galos 250“Rude gaúcho emplumado” 261Rinhas e ringues 265Natureza e cultura: o selvagem e o domado 276

suicídio: a mortE como um discurso final 285Histórias de morte 285De direito e de razão 297Centauro totêmico 302De centauro a mulita 309Duas cenas: a morte do cavaleiro solitário

e a morte da noiva abandonada 311Morte, disputa e honra 320

Post scriPtum: rEEncontro com o diário dE camPo 335

rEfErências 357

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Apresentação

Trinta anos, trezentos anosLuís Augusto Fischer

Professor Titular de Literatura Brasileira no Instituto de Letras, UFRGS

Qualquer obra humana tem vários lados, várias portas de entrada e de saída, tem labirintos mais e menos complexos. Um elementar “bom dia” é assim, uma sinfonia é assim, uma partida de futebol, dizia Nelson Rodrigues, tem a complexidade de um drama shakespeariano. Qualquer livro de antropologia é também assim. Este livro, este gran-de livro, tem muitas camadas de histórias e, antes delas, de vidas. Vou começar por onde o conheci.

Mas antes ainda, por dever de cordialidade, devo advertir o leitor e a leitora: eu transgredi, nesta apresentação, aquela regra de ouro das introduções, que já Machado de Assis lembrava − que o melhor prólo-go é o mais curto. Pois devo dizer que me alonguei e, pior ainda, não vejo como ser mais breve. De maneira que fica meu convite: que o lei-tor e a leitora pulem essas páginas aqui. O livro da Ondina Fachel Leal se deixa ler de modo tão agradável, tão envolvente, tão fluente, que de nada necessita para fazer sentido, ou melhor, para fazer sentidos, sal-vo a presença de uma inteligência aberta para penetrar nos mistérios da vida humana, neste caso aquela vida que ela encontrou na frontei-ra sul do Brasil, entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai pampeanos. Sinta-se bem à vontade, então, para pular esta conversa. Mas se quiser me acompanhar também, será um gosto. Vou tentar ajudar.

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14 Apresentação: Trinta anos, trezentos anos

Devia ser 1990, ou pouco depois. Trabalhando no Campus do Vale, da UFRGS, como professor de Literatura Brasileira no Instituto de Le-tras, eu conhecia a Ondina de fama e de vista, e havia sido colega de um irmão dela, numa cadeira do departamento de História. Sabia por alto de sua pesquisa para a tese, algo sobre os gaúchos − os gaúchos no sentido de gente do campo, trabalhadores rurais a cavalo, não gaúchos no sentido em que qualquer nascido no Rio Grande do Sul é gaúcho.

Mas esses dois sentidos não esgotam os sentidos de “gaúcho”, por-que há pelo menos outro sentido, que se superpõe em parte com esses dois primeiros. Não, eu nem vou tentar esclarecer a origem e o cami-nho percorrido pelo termo: é assunto controverso, que já mereceu ensaios de gente de alta valia, como Augusto Meyer (Gaúcho, história de uma palavra, um clássico, publicado em Prosa dos pagos e hoje já discu-tível em muitos sentidos).

Só quero marcar essa terceira camada: entre o gaúcho como de-signação do trabalhador da fazenda, da estância, a cavalo, na fronteira, etnicamente nascido do encontro − trágico, mágico, histórico − entre o colonizador branco europeu e o ameríndio, melhor seria dizer a ame-ríndia, de um lado, e na ponta mais distante o gaúcho como o nascido no Rio Grande do Sul, genericamente, urbano ou rural, da fronteira ou da colônia, do latifúndio pastoril ou da pequena propriedade agroindus-trial, de ascendência lusa, ameríndia, negra, germânica, italiana, polaca ou o que mais houver, de outro, entre eles dois se interpõe outro gaúcho.

Este terceiro é aquele que de algum modo se identifica com aque-le primeiro gaúcho, o homem a cavalo, o soldado da facção de seu senhor em lutas e guerras da fronteira, mas não vive a realidade ori-ginária deste primeiro. Este terceiro pode nem ter nascido nem pre-cisa viver no território do Rio Grande do Sul, por estranho que possa parecer: ele pode viver no sertão irrigado da Bahia, em Rondônia, até no exterior; se quiser ele vai se agregar a um Centro de Tradições Gaú-chas e praticar formas de socialização, de artesanato e de arte que de algum modo se identificam como sendo gaúchas.

Sim, é confuso, mas não se deixe intimidar pela confusão. São ao menos três sentidos concentrados numa mesma palavra, cada qual com certa capacidade de descrever um certo grupo humano, os três com certa superposição mas também com muitas diferenças.

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15Luís Augusto Fischer

Conhecia a Ondina, voltando, e sabia que ela tinha defendido sua tese no exterior, na famosa Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos. Só essa indicação já acrescentava outra camada de in-teresse, numa época em que era muito mais raro do que hoje o trânsi-to entre a universidade brasileira e o mundo exterior.

Perdoe o leitor por mencionar agora dados pessoais, que só en-tram na conta porque ajudam a entender, creio, meu interesse no tra-balho da Ondina, que logo vai entrar em cena. Sendo descendente, em três quartas partes, de germânicos imigrados na segunda metade do século 19 para o Rio Grande do Sul, meu universo cultural tinha muito a ver com a vida das comunidades germânicas, rurais ou urbanas, e pouco a ver com a estância, o cavalo e, numa palavra, com os gaúchos, no primeiro e no segundo sentidos.

Minha geração já não teve como língua materna o alemão, mas a de meus pais sim; entre eles e mim, a Segunda Guerra havia feito a separação fatal: Getúlio havia proibido o ensino escolar em alemão, a industrialização pós-Guerra induziu a geração deles a migrar para Porto Alegre. Quando nasci, eu já era brasileiro e gaúcho, restando a identidade cultural germânica da geração anterior como uma fo-tografia na parede da memória, ou como fóssil. Minha avó materna ainda pensava na namorada não-germânica que eu apresentava como “brasileira”, o que já me soava como coisa de um passado irremedia-velmente distante da minha vida.

Sendo um tipo urbano, eu porém vivi a geração que ingressa na universidade em meados dos anos 1970 e recebe de um lado a herança da contracultura sessenta-e-oitista, com algo do movimento hippie e com muito da magnífica herança dos cancionistas que reinventaram a roda no Brasil, na MPB, na Tropicália, no rock, na música negra, até no samba (como Paulinho da Viola), e de outro lida com a realidade opressiva, que era brasileira mas também latino-americana, e canta-va outras modalidades de canção, que conhecíamos com os Parra do Chile, com Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui da Argentina, com Los Olimareños do Uruguai, tanta gente.

Era uma pororoca, que ainda tinha outro elemento − eu já volto para a Ondina, prometo. Era justamente a força que vinha tomando, na mesma época, virada dos 70 para os 80, a cultura gaúcha no ter-

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16 Apresentação: Trinta anos, trezentos anos

ceiro sentido. Parecia incrível, para uma pessoa como eu, naqueles momentos de combate à ditadura − uma unanimidade no meu círculo de interesses e relações, tirando uns velhos tios −, que gente urbana passasse a frequentar os CTGs, que tivesse um fervor meio religioso naquelas práticas de danças coreografadas e tal.

Do lado civil dessa pororoca, essa época assistiu, não sem certo susto, o fenômeno novo de tomar mate em público, garrafa térmi-ca debaixo do braço, na praça pública. Isso sim existia em Montevi-déu, nos subúrbios de Buenos Aires, mas aqui não rolava: mate era, na minha experiência, coisa para dentro de casa. Esse mate público veio acompanhado por uma revitalização, agora com ar pop, do le-gado musical do mundo gauchesco, aquele do primeiro sentido, mas que também de algum modo circulava, meio engessado, no mundo gaúcho no terceiro sentido.

Foi quando começou a carreira do Borghettinho (se o prezado lei-tor não conhece, não sabe o que perde, mas pode providenciar um remédio, que é ouvi-lo), assim como de gente como o grupo Almôn-degas, Vitor Ramil, Bebeto Alves e Mário Barbará (com o grupo Sara-cura), esses de algum modo conversando com as formas tradicionais da milonga, da rancheira, da valsa, assim como, de outro lado, de gente como Nei Lisboa, Nelson Coelho de Castro e Hermes Aquino, este úl-timo mais velho, veterano dos festivais dos anos 60, todos por sua vez com nítido acento urbano, fazendo o que já se chamava, imprecisa mas eloquentemente, de MPB (e alguns quiseram chamar de MPG, Música Popular Gaúcha), além de samba, fado e uma penca de outras músicas.

Esses artistas eram a ponta de um iceberg novo: eles eram a face porto-alegrense do imenso movimento musical dos festivais de mú-sica regional gauchesca. O primeiro deles foi a Califórnia da Canção Nativa, com primeira edição em 1971, e em menos de dez anos eram dezenas os festivais, cada qual numa cidade, muitos deles tentando sua diferenciação, mas todos irmanados na certeza de que era infinita a criação cancional, uma linguagem artística que as gerações anterio-res legaram aos anos 1970 e seguintes.

(Se o leitor ou a leitora são inocentes nesses assuntos, devo advertir uma diferença importante: a Ondina se doutorou na Califórnia norte--americana, aquele estado vizinho do México, aliás, conquistado ao

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17Luís Augusto Fischer

México em guerra. E há pouco mencionamos um festival curiosamen-te denominado Califórnia da Canção: aqui, a palavra tem outro senti-do. Os organizadores se valeram, ao que consta, de três significados: primeiro teria sido um sentido grego, dizem, em que significa um con-junto de coisas belas − será que tem cabimento essa etimologia? −; mas depois “califórnia” designou incursões, razias, investidas em busca de gado, e daí se derivou um outro significado, de corrida de cavalos. Eu nunca disse que seria um mar de rosas essa conversa sobre gaúchos.)

Prometi e cumpro: volto agora ao livro. Aqueles anos da década de 1980, segunda metade, traziam à tona esse complexo de fenômenos que conectavam o mundo da indústria cultural ao universo antigo do campo − gaúchos no segundo sentido de nascidos no estado sulino, nas maiores cidades, entravam, de mãos dadas com a arte da canção, no universo simbólico dos gaúchos no primeiro sentido histórico, o dos homens a cavalo lidando com o gado e lutando nas fronteiras, gente que tem pre-sença no território do pampa, quando menos, há uns trezentos anos.

Quanto de imaginação havia aí? Quanto de mentira? Quanto de arte? E que repercussões essa nova onda causaria? Seria algo passagei-ro ou duradouro?

Perguntas de 1980 se debruçavam sobre o fenômeno: e o machis-mo evidente desse universo primeiro, como fica? Ele se reproduz ago-ra? Mulher continua sem lugar, ou melhor, em um lugar subalterno? O quanto das exigências da vida urbana moderna − pressa, violência real e simbólica, isolamento, rotinas alienantes de produção, mas também liberdade de pensamento e movimento − refrataria essa onda toda, impondo a elementos ancestrais uma lógica nova?

Foi nesse bololô, nessa esquina histórica, que conheci o livro da Ondina, em 1990. Era ainda em papel, era ainda a forma da tese, era ainda em inglês. Não lembro como foi a aproximação, mas acho que foi minha a iniciativa de perguntar a ela sobre a tese. Ganhei aquela preciosidade.

Por essa época, segunda metade de 1991, eu conversava com um amigo, Poti Campos, jornalista, sobre os não poucos artigos que na imprensa da cidade tematizavam essas novidades na arena da identi-dade sulina, gauchesca, contra e a favor. Era nítido que o assunto tinha retomado força, numa nova rodada geracional que, no contexto da

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também nova onda de globalização − queda do Muro de Berlim, fim da União Soviética, avanços na União Europeia, armação do aparen-temente futuroso Mercosul −, mais uma vez indagava qual era exata-mente nosso lugar, o lugar deste território, em sua singeleza e com-plexidade, na nova ordem. “Alguma coisa está fora da ordem / fora da nova ordem mundial”, dizia o refrão de uma canção de Caetano Veloso, lançada no mesmo 1991.

E a internet começava a se tornar realidade, começando na Uni-versidade e, em poucos anos, em toda parte. As distâncias geográficas e os afastamentos temporais pareciam diminuir, esmaecer e mesmo sumir: tudo ao mesmo tempo agora. Aliás, Tudo ao mesmo tempo agora é o nome de um − puxa vida, que coisa velha − elepê, o sexto, do grupo Titãs, de São Paulo. No mesmo ano de 1991.

Foi o Poti que sugeriu que eu produzisse um livro juntando alguns desses artigos, que pareciam olhar para o umbigo apenas, quando es-tavam na verdade reagindo a todo um movimento tectônico planetá-rio. Logo pensei, ou pensamos, que cabia solicitar outros, de gente que também pensava ou poderia pensar por escrito sobre o tema. Levei a ideia ao Sergius Gonzaga, colega da área de Literatura Brasileira que naquele momento dirigia a editora da UFRGS: ele topou na hora. Sur-gia um livro que em pouco viraria uma série de cinco, sob o nome Nós, os gaúchos − saíram dois volumes com esse nome (1992 e 1994), depois chamado Nós, os afrogaúchos (1996), outro chamado Nós, os teutogaúchos (1998) e outro Nós, os italogaúchos (1998).

Ondina: lembrei logo dela, de sua tese, defendida uns anos antes. Era claro que seu texto deveria entrar em nossa conta. Abordei-a, não lembro se num café, num telefonema (não havia e-mails, caro leitor jovem), e ela logo topou. Eu tinha lido grande parte da tese na primei-ra hora com um grande entusiasmo, pelo tanto que ela iluminava o tema, pela visão ao mesmo tempo miúda, descritiva, da vida de gente comum da Campanha − os gaúchos no primeiro sentido, sobreviven-tes a tantas ondas de modernização − e panorâmica, emancipada dos debates mais triviais sobre identidade local. A tese não caía na visão elementar de opor certo e errado, esquerda e direita, novo e antigo, tanto por ser um trabalho inteligente, informado pela ciência social exigente, quanto por ser feito por uma mulher.

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Pausa para outro flashback. Vai ser mais breve.No campo da música e da cultura gauchescas, o Rio Grande do

Sul da época também apresentava nuances e pelo menos uma grande divisão. Havia o grupo mais identificado com os CTGs, de orientação política e comportamental mais conservadora, que ganhava força por esses anos, como mostra o trabalho de Ruben Oliven, aumentando seu poder de influência na mídia e nas políticas de Estado. Tendiam a ser mais velhos e mais interioranos. Esses eram os tradicionalistas.

E havia outra corrente, formada por gente identificada com po-sições de oposição ao regime militar que há pouco acabara, gente de alguma forma envolvida com a subida ao poder dos partidos de centro e de esquerda (PDT na prefeitura de Porto Alegre em 1986, PMDB no governo estadual a partir de 1987, PT na prefeitura da capital a partir de 1989). Muitos eram interioranos também, mas tinham essa marca política e muitos haviam passado por alguma das grandes universida-des do estado. Gostavam de música popular brasileira e latino-ameri-cana, e combinavam esse gosto com a prática de música popular local, de origem campeira também. Muitos eram urbanos, com família de origem rural. Eram os nativistas.

Quer dizer, no mesmíssimo contexto, marchavam tendências globalizantes e tendências particularistas, umas e outras negociando entre si numa escala nova, com a indústria cultural funcionando a ple-no − os dois lados se amparavam, por exemplo, em distintas editoras de livros, gravadoras de música, etc.

A pesquisa feita pela Ondina se dá exatamente nessa intersecção histórica. E seu objeto inicial era, veja só, indagar sobre o modo como as canções gauchescas dos festivais de música batiam na percepção de gaúchos no primeiro sentido da palavra, trabalhadores de fazendas de criação de gado, gente que acompanhava pelo rádio o que se passava. Estariam eles achando aquilo ok? Estariam achando outra coisa? Gos-tavam? Não? Por quê? Como?

Pois para o livro Nós, os gaúchos, a Ondina aportou um texto que, lido agora, mostra o quanto o livro que o leitor tem neste momento em mãos teria valido se publicado lá, três décadas atrás. Queria que fosse possível parar tudo agora para a leitura daquele texto. Na impos-sibilidade, transcrevo aqui o começo e o final do que saiu lá publicado,

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sob o título de Do diário de campo: os percursos do ser gaúcho, do ser homem (e do ser mulher).

(Artigas, Uruguai, 6 de janeiro de 1988) Cheguei da estância São Pedro hoje ainda pela manhã. Deverei ficar alguns dias em Artigas; espero que o administrador de uma estância entre em contato comigo para combinar a ida a outra estância do mesmo dono. (...) Amanhã devo buscar os dados sobre suicídio na Delegacia de Polícia da cidade, embora, dizem eles, os dados não possam ser divulgados sem autorização superior (...). Saí muito cedo da estância, a estrada não é ruim (...). Parei o carro para uma boiada passar, o tremor de terra me assustou, os gaúchos que levavam a boiada sorriram com desdém da minha pequenez encolhida dentro do carro, janelas fechadas, assustada com a boiada. (...)

O relato conta então de sua chegada ao hotel da cidade de Artigas, pequena e rotineira. Ela era uma forasteira, e sabia que chamava atenção. Pensa em nem descer para comer no restaurante, mas precisa. Desce, toma uma das mesas da calçada de um restaurante. Está quente, ela re-solvera usar um vestido, depois de muitos dias de estada no campo e de roupas por assim dizer masculinas, ou neutras. Basta sentar que é abor-dada por um sujeito, que pergunta se pode acompanhá-la. Ondina mede as palavras, sabe que está numa cidade pequena e convencional, em que mulheres sozinhas na rua são uma senha para abordagem masculina.

Responde que está sozinha porque quer, e assim deseja perma-necer. E comenta no texto: “O homem retorna a sua mesa; não per-deu apenas a possibilidade de companhia, perdeu um pedaço de sua dignidade”. Os camaradas do homem riem dele, e Ondina pensa em como é ser homem − não basta “ser homem apenas, é preciso ser ho-mem entre homens”. Ela resolve permanecer ali e saca da bolsa seu diário de campo, onde escreve isto, uma carta para sua filha:

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Filha, te escrevo da mesa de um bar onde possivelmente eu não deveria estar sentada, já me indicaram isso de várias maneiras. (...) O que eu mais quero é que, quando cresças, não mais uma mulher sozinha cause algum espanto ao sentar-se em um restaurante. Sei, já cresceste, em breve estarás viajando só. Para que isso passe a fazer parte das possibilidades da vida destes mortais, não me omitirei agora de fazê-lo. Permanecerei, impassível, aqui, sentada nesta mesinha − enfim é só uma mesinha, mas é mais um espaço a ser conquistado. (...)

Ser gaúcho, ouvir as canções da nova onda em plena era da globa-lização, ser homem, mas também pensar na lógica do suicídio naquela região, e igualmente se dar conta de que permanecer sentada numa mesinha de um restaurante num canto qualquer do planeta significa um gesto de amor e de militância feminista em favor da filha peque-na − já pensou em como isso tudo se articula? Quais os meandros que levam de uma coisa a outra, e de novo para as primeiras?

Nem precisa pensar: basta agora parar tudo para ler este brilhante estudo da Ondina Fachel Leal.

Mas eu não posso ir ainda embora, deixando o palco livre para quem de fato importa. Preciso, me desculpe antecipadamente, falar sobre os trinta anos entre a defesa da tese e esta edição aqui. E aqui entra outra mãe em cena. A mãe da Ondina.

De trás para diante: em dezembro de 2019, eu estava envolvido com a produção de uma revista digital, a Parêntese (parentese.com.br), em Porto Alegre, e queria ter, a cada edição, uma entrevista ba-cana, interessante, dando palco para gente que tivesse o que contar. Uma das primeiras pessoas que entraram na minha primeira lista foi, naturalmente, Ondina Fachel Leal. Eu queria tanto falar da tese, aque-la maravilha que eu conhecia e desde sempre tinha convicção de que deveria ser conhecida de muito mais gente, quanto queria perguntar por que afinal não tinha rolado a publicação.

Falei com a Ondina no dia 19 de novembro. A entrevista saiu no número 14, final de fevereiro de 2020, um ano antes de eu escrever essa apresentação. E finalmente eu entendi − um motivo profundo e muito, mas muito complicado emocionalmente.

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Como eu perguntei a ela, e ela respondeu e saiu publicado o resul-tado, reproduzo aqui, em trechos que vêm ao caso.

Parêntese − Esse momento da canção no Rio Grande do Sul tem a ver com tua escolha do tema? O fato de tu estares com isso na cabeça, de isso estar sendo um assunto, foi importante na tua escolha?

Ondina − Sim, emocionalmente sim. Por que o tema: eu queria alguma coisa que tivesse a ver com mass media porque eu já tinha cons-truído interlocutores lá em Berkeley nesse tema. Eu estava ainda mer-gulhada nas leituras da pesquisa do mestrado, ia sair meu livro [com a pesquisa de mestrado], A leitura social da novela das oito. Mas eu escolhi um orientador que era um antropólogo extremamente clássico. Eu pensei: vou aprender a fazer etnografia clássica. Era o Burt Benedict [Burton Benedict, 1923-2010, antropólogo], um senhor que estava já com certa idade, ou compunha-se como tal, em seu apurado sotaque britânico, no uso de colete, relógio de bolso e inseparável pince-nez. Era conhecido pela exigência de dedicação ao trabalho de campo e pelo rigor e erudição em teoria clássica. Era também um excelente contador de histórias, isso nos aproximou muito. Ele dizia que era da linhagem direta do [Bronislaw] Malinowski [famoso antropólogo polaco, que redefiniu o trabalho de campo na Antropologia com sua ênfase na pesquisa empírica e é tido como formulador da Antropolo-gia Social; 1884-1942]. O Benedict fez o doutorado na London School of Economics; ele não chegou a ser aluno do Malinowski, pois Mali-nowski tinha morrido alguns anos antes, mas sim de Raymond Firth [1901-2002], que tinha sido aluno do Malinowski, e Benedict se iden-tificava como parte dessa linhagem. Então ele dizia: “Bom, tu vais ser da quarta geração” de antropólogos no mundo (porque, afinal, são eles o centro do mundo...). Benedict não tinha muitos orientandos naquele momento, pois estava dirigindo o importante Museu de antropologia da universidade. Ele prezava muito essa coisa do “craft” do trabalho de campo, da coleta cuidadosa do dado, do artefato − o próprio dado como artefato − da experiência intensa da alteridade, como se diz em antropologia, do outro país, do outro lugar, da outra língua. Por outro lado, eu era encantada com toda essa literatura gaúcha desde Simões Lopes, Erico Verissimo... e eu sempre li muito literatura argentina e uruguaia. Pela literatura, pela poesia, pelos festivais de canção, pelas

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milongas da minha vida, eu tinha um Pampa imaginário na cabeça e acho que fui buscá-lo armada de convincentes justificativas científicas.

P − Mas o assunto da identidade masculina, especificamente, já tinha te chamado atenção como objeto de possível estudo?

O − Não, eu entrei no Pampa pela mídia. Porque naquele mo-mento os festivais de música estavam em alta, e minha definição de objeto passou muito por isso, pela força da mídia na veiculação ou na produção mesmo do tradicional. Era um momento de reestruturação do gauchismo. E já tinha o trabalho do Ruben [Oliven, que estudou o tema em trabalhos como o livro A parte e o todo, 1982], que foi meu orientador de mestrado em outro tema, mas Ruben, em seus traba-lhos, chamava atenção para isso, a criação do Movimento Tradiciona-lista e a difusão dos CTGs. Para essa reinvenção da tradição.

P − A questão de gênero apareceu no confronto mesmo?O − Olhando para trás, posso dizer que apareceu porque estava

lá e era inevitável, mas eu não a tinha antecipado. Não era parte do meu projeto. O meu ponto de partida era: bom, vamos ver o que exis-te hoje de produção sobre o ser gaúcho no estado do RS. O CTG, as agências produtoras da ideia de um outro gaúcho; a mídia com uma ideia de gaúcho; os festivais com uma produção cultural a respeito do gaúcho. Mas aí vamos ver o que aqueles gaúchos, os “verdadeiros”, os trabalhadores do campo nas estâncias, os peões, pensam disso. Se eles recebem isso, essa produção sobre eles, e de que forma a recebem. Foi essa a questão inicial. Aí cheguei lá e achei os peões, na riqueza de sua cultura oral, muito mais interessantes do que o que pudessem dizer sobre eles. Meu foco passa a ser aqueles homens, seus cotidianos, seus afazeres, seus causos, suas vidas. A estância que eu desejava estudar: uma estância que fosse sobre a fronteira, que fosse grande o suficiente para que eles tivessem lá o seu mundo. Quer dizer, a ideia de buscar o nativo, o verdadeiro − com todas as críticas a isso, sem ilusões pri-mitivistas, mas essa era a ideia: etnografar, tentar entender a lógica da coisa vivida, preservá-la em texto e imagens. E essa estância que eu encontrei (onde me foi permitido ficar por longos períodos) não tinha luz elétrica, então havia pouco consumo daquilo que eu tinha me proposto estudar, que era ver como eles percebiam os programas gauchescos. Ou seja, a recepção de um outro gauchismo midiatizado

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não estava lá porque não viam tevê. As armadilhas epistemológicas são feitas de ingenuidades. Mas esse outro gauchismo estava lá como uma referência: pelo rádio, que era muito presente, eles sabiam das teleno-velas ou sabiam do que se tratava, sabiam dos programas gauchescos televisivos e dos festivais da canção, porque eventualmente, uma vez por mês, eles iam à cidade, ou de Alegrete, no Brasil, ou de Artigas, no Uruguai, porque suas famílias moravam lá, então contavam e falavam. Não falavam de programas gauchescos, mas eventualmente falavam de telenovelas, ainda que para eles não fosse algo importante.

P − Como é que tu vai fazer a pesquisa em si? O approach já deu para entender, que é tudo isso, tem todo esse caldo de cultura... A tua pergunta era como os gaúchos de verdade, digamos, estão recebendo esse neogauchismo.

O − Ver como é que recebem, se é que recebem, essa novidade, ou mesmo se vem algo dos CTGs. Como são eles, como é que se organi-zam. Porque era essa a questão, semelhante ao meu trabalho anterior: uma questão de recepção de um bem cultural midiatizado. Claro que, no fim, o tema da recepção ficou totalmente de lado, ele foi só o ca-minho. E quando eu cheguei lá, nos Confins do Inferno − não é uma metáfora, assim se chamava aquela região do Pampa − me dei conta que ser gaúcho é identidade, é o que os constitui como pessoas. Vários níveis de identidade: nacional, para eles lá, do lado uruguaio, e que acionavam a nacionalidade quando interessava, ou regional. Nacional quando interessava, e noutro momento era regional − afinal eles eram todos gauchos ou gaúchos. Mas era uma identidade de trabalho muito forte, porque ser gaúcho para eles é ser vaqueiro, é trabalhar com re-banhos, é trabalhar montado.

P − Não te ocorreu fazer uma comparação com os cowboys lá dos EUA?O − O meu orientador queria muito isso. Mas eu queria usar toda

essa questão de mass media, de teoria, que no final nem aparece (risos). Só no primeiro capítulo, e ficou ali. Mas eu acho que é isso, a gente constrói objetos assim, no processo... Bom, voltando: além de ser então uma identidade regional e uma identidade nacional, se trata de uma identidade cultural vigorosa que é uma identidade de trabalho, do ofí-cio das lidas campeiras. Quer dizer, se tu não fores vaqueiro, campeiro, se não subires no cavalo com a elegância e o domínio que isso exige, se não fores cavaleiro, tu não és gaúcho. Tu és peão de casa, mas não

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és peão de campo. O gaúcho é o outro, é o de campo. E foi − antes de chegar lá − invisível para mim o fato óbvio de que eram homens, por-que são todos homens. Só então, fui me dando conta o quanto esta era também uma identidade de gênero: ser gaúcho é ser homem.

P − E é com tua chegada lá que te desperta essa questão da identidade como masculina?

O − A gente não se dá conta, porque aquele universo todo tem gênero, é masculino, como é o ar que se respira por aquelas bandas. Só depois de penetrar naquele campo é que isso − gênero − passa a ser também um tema a ser estudado.

P − E isso é meio que um ponto de chegada do trabalho, certo?O − Não era no início da pesquisa; no entanto, na escritura da et-

nografia, gênero e masculinidade creio que estão por todas as partes. Acho que o ponto de chegada, o tema conclusivo, é a morte, o suicí-dio, que também tem gênero, é masculino. O que aconteceu é que cada vez que eu entrava mais nas histórias dos galpões − eu fui a dois galpões, de ficar lá, de ir toda a noite −, e as histórias de morte iam aparecendo. Eu achava: ah, quem sabe é uma coincidência tanta his-tória assim sobre mortes e mortos... Porque um antigo capataz, uma pessoa importante daquela estância, tinha se matado há, sei lá, cinco, seis anos, antes do novo capataz, que veio exatamente porque o ante-rior tinha se suicidado.

P − Uma coisa recente...O − Sim, recente talvez, mas era uma história que aparecia muito. E

tinha a história que contavam que outro, da estância não sei qual, tam-bém dentro das relações dos presentes naquele galpão, também tinha se suicidado. Então, tu estares em um lugar e o capataz se matou, o ou-tro também se matou, eu não sabia bem se era coincidência ou o quê. E aí também surge outra pergunta: o quanto isso é parte das histórias, não vem ao caso se verdadeiras ou não − mas era factual a história do sui-cídio, sempre contada com detalhes −, ou se aquilo era realmente um fenômeno do ponto de vista epidemiológico tão grave quanto parecia, porque afinal era uma população muito isolada e rarefeita. Em núme-ros relativos, aquilo parecia imenso. Aí eu fui atrás também dessa pista e fui perguntando, fui perguntando. Fui atrás dos dados nas delegacias das cidades mais próximas. Tinha também as histórias contadas pelas

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mulheres, que eram relatos de como os homens se matam, e reaparecia o tema. Como talvez eles tenham achado que eu estava querendo histó-rias... eles e elas me davam histórias. A poesia também, toda a literatura tem esse traço muito forte sobre ir ao encontro da morte, de não de-pender de ninguém, essa construção de uma honra em relação a voltar para a natureza, na própria ideia de morte. No fundo, é uma ideia de morte para evitar que se fique na dependência de alguém. E tinha todo o simbolismo do enforcamento, do enforcamento no pé do umbu. Até fica meio cômico porque nem toda estância tem um umbu... E tem um lado um tanto tragicômico nesse universo das histórias que eles con-tavam sobre enforcamento, porque tu te enforcas, mas é montado no cavalo; tu tocas o cavalo; se o cavalo não andar... com a mesma corda com que tu laças o cavalo... Eu comecei a entrar muito nessas histórias, e tentar entender as razões pelas quais isso acontecia. Isso foi uma coisa que me marcou muito. Demais. Bem, quando eu tinha dois capítulos prontos − eu não comecei a redação pelo início − eu já tinha fechado um contrato com a [editora] UC Berkeley para publicação da tese como livro, para sair lá [nos Estados Unidos].

P − E acabou não saindo o livro?O − O livro não saiu porque eu desisti. Eu desisti. Foi minha a op-

ção. Foi difícil porque rompi o contrato. Assim que eu voltei, termina-da a tese, já tinha recebido todos os pareceres para a publicação e fazia algumas revisões, aquele capítulo sobre o enforcamento, o suicídio, foi publicado numa versão simplificada numa revista de psiquiatria aqui. Este capítulo, ou melhor, o tema foi muito difícil pra mim. O pessoal aqui da psiquiatria me chamou para discutir sobre a questão do suicídio. Me lembro de uma conferência que um psiquiatra se le-vantou assim e disse: “Pô, também, assim até eu me mato” (risos). E houve outro comentário, em outro momento, que não deixa de ser verdadeiro em certo sentido, de que eu estava fazendo uma apologia do suicídio. Isso para mim foi uma coisa muito complicada. Se eu estivesse um pouco mais distante da questão, poderia dizer que fazer uma apologia do suicídio é o que o antropólogo quer fazer, ele quer entender culturalmente como determinado evento se dá. O objetivo é desvendar todas as razões que levam a uma determinada prática que eu estava tomando como cultural, não como algo patológico.

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P − É uma forma de apologia, mas não no sentido banal!O − Isso, no sentido de entendimento do porquê um fato social se

dar. Mas aí teve uma coisa muito próxima a mim, que foi o suicídio da minha mãe. Nos anos seguintes à defesa da tese, eu estava neste processo de revisar o manuscrito em inglês e o de reescrevê-la em português, capítulo por capítulo, para publicar primeiro como artigos e depois pensar em um livro. Minha mãe tinha lido a minha história sobre o suicídio. E... Se enforcou feito gaúcho, sem medo da morte. Aí eu não quis mais publicar. Nem em inglês, nem em português, nem artigos, nem nada. Fica o nada. E a culpa. Eu precisava de muito mais tempo. Agora eu estou conseguindo tocar nesse assunto. Passei por um processo radical de rejeição da tese, de rejeição da minha história sobre os gaúchos, quem sabe da minha própria história. Juro que eu tinha medo de abrir o manuscrito. Dele sairiam fantasmas.

P − Faz trinta anos...O − Trinta anos depois, trinta anos depois. Então eu estou conse-

guindo tocar nesse assunto agora, é uma coisa complicada. Instigada por um amigo, que deve ter encontrado um exemplar perdido em alguma estante, não é?

Essa impressionante conversa, que eu não sei bem como encarei na hora − uma mulher, feminista, pesquisadora madura da Antropo-logia, contando o sofrido motivo de haver postergado por trinta anos a publicação de sua tese, sua importante, original, ousada, iluminado-ra tese −, essa conversa encerrou com outra pergunta minha: “Então agora vamos publicar a tese, é isso?”

A resposta da Ondina na hora foi sim, e agora a tese está nas mãos do leitor, da leitora, de quem estiver agora segurando este exemplar nas mãos.

E eu, além de mais uma vez pedir desculpas pelo tanto que me alonguei, só posso ficar feliz, sabendo que aqui vai um trabalho de grande valor, para o Rio Grande do Sul, para o Brasil, para a saúde da cultura e da inteligência.

Foram 30 anos, que são como 300 anos.

Porto Alegre, 21 de fevereiro de 2021

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Introdução

Reencontrando os Gaúchos

Haveria formas de escrever sobre vidas em que os outros figurassem como menos outros?

— Lila Abu-Lughod

Este livro é uma etnografia sobre os gaúchos − gaúchos tomados na acepção restrita do termo − peões campeiros, trabalhadores rurais da pecuária extensiva da região do Pampa latino-americano. Este trabalho é sobre identidade. É sobre a identidade social de um grupo específico e sobre vários discursos através dos quais essa identidade se apresenta. Gaúchos são vaqueiros, homens, em geral montados, cavaleiros, dedica-dos às lidas campeiras em uma paisagem específica. Essa é uma socieda-de que se estrutura a partir de uma radical segregação espacial de gênero. E este estudo é também sobre identidade de gênero, pois gênero, traba-lho e identidade cultural apresentam-se, nesse grupo e nessa tradição, tão amalgamados que a cultura − práticas cotidianas e universo simbóli-co que conformam uma visão de mundo e moldam os sujeitos sociais − é inseparável do próprio processo de construção de masculinidade.

Não se trata de trabalho recente: esta etnografia foi feita há mais de três décadas. Neste sentido, são dados coletados em um período específi-co, mas que, no meu entender, preservam a qualidade e o rigor do fazer etnográfico, buscando dar conta de um determinado sistema cultural. Como tal, acredito que sua publicação em português, ainda que tardia, seja válida como um exercício de pesquisa antropológica intensa, de lon-ga duração e como escritura etnográfica. Neste livro opto por manter o relato original com o uso do presente etnográfico, ou seja, em sua leitura é preciso ter em mente que o trabalho se refere a outra temporalidade. O

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