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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA GEDEVAL PAIVA SILVA TERRITÓRIOS EM DISPUTA E A BARRAGEM DE ANAGÉ - BAHIA: TERRA E ÁGUA DE TRABALHO VERSUS TERRA E ÁGUA DE NEGÓCIO Salvador 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

GEDEVAL PAIVA SILVA

TERRITÓRIOS EM DISPUTA E A BARRAGEM DE ANAGÉ - BAHIA: TERRA E ÁGUA

DE TRABALHO VERSUS TERRA E ÁGUA DE NEGÓCIO

Salvador

2011

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GEDEVAL PAIVA SILVA

TERRITÓRIOS EM DISPUTA E BARRAGEM DE ANAGÉ - BAHIA: TERRA E ÁGUA

DE TRABALHO VERSUS TERRA E ÁGUA DE NEGÓCIO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação

em Geografia, Instituto de Geociências, Universidade

Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do

grau de Mestre.

Orientadora: Profª Drª Guiomar Inez Germani

Coorientadora: Profª Drª Suzane Tosta Souza

Salvador

2011

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Catalogação na fonte: Elinei Carvalho Santana - CRB-5 /1026

Bibliotecária – UESB – Campus Vitória da Conquista – BA

S58t Silva, Gedeval Paiva.

Os territórios em disputa às margens da Barragem de Anagé - Bahia:

Terra e água de trabalho versus terra e água de negócio/ Gedeval

Paiva Silva, 2011.

142f.: il.; color.

Orientador (a): Guiomar Inez Germani.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia,

Instituto de Geociências, Programa de Pós-Graduação em

Geografia, Salvador, 2011.

Referências: f. 140-142.

1. Barragens – Aspectos sociais. 2. Remoção (Habitação) –

Barragem de Anagé - BA – Aspectos sociais. 3. Geografia agrária.

4. Assentamento rural. I. Germani, Guiomar Inez.

II. Universidade Federal da Bahia, Programa de Pós-Graduação

em Geografia. III. T.

CDD: 305.5633098142

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TERMO DE APROVAÇÃO

GEDEVAL PAIVA SILVA

OS TERRITÓRIOS EM DISPUTA ÀS MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ -

BAHIA: TERRA E ÁGUA DE TRABALHO VERSUS TERRA E ÁGUA DE NEGÓCIO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Submetida em satisfação parcial dos requisitos ao grau de

MESTRE EM GEOGRAFIA

à

Câmara de Ensino de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal da Bahia

Comissão Examinadora:

.............................................................................

Profª Drª Guiomar Inez Germani - Orientadora

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

..............................................................................

Profª Drª Suzane Tosta Souza – Coorientadora

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)

...............................................................................

Prof. Dr. Marcelo Rodrigues Mendonça

Universidade Federal de Goiás (UFG)

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EPIGRAFE

Não sou profeta, Nem tão pouco visionário, Mas o diário, desse mundo tá na cara, Um viajante,

Na boléia do destino, Sou mais um fio, Da tesoura e da navalha, Levando a vida

Tiro verso da cartola, Chora viola, Nesse mundo sem amor, Desigualdade, Rima com hipocrisia,

Não tem verso nem poesia, Que console um cantador, A natureza na fumaça se mistura, Morre a

criatura, E o planeta sente a dor, O desespero, No olhar de uma criança

A humanidade, Fecha os olhos pra não ver, televisão de fantasia e violência, aumenta o crime

Cresce a fome e o poder, Boi com sede bebe lama, Barriga seca não dá sono, Eu não sou dono

do mundo, Mas tenho culpa, porque sou, Filho do dono. (Flávio José).

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho aos meus avós, José Ferreira Paiva Filho (in memoriam), Maria Eunice

Andrade Paiva, José Juviniano da Silva (in memoriam), Maria Tertuliana de Santana (in memoriam),

pela raiz camponesa, pela transmissão dos valores e da forma de ver e ser no mundo. Ser

Geógrafo Agrário certamente se deve a esse convívio, e aprender a gostar da terra, da vida na

roça veio da convivência e dos aprendizados ao longo de nossas vidas.

Dedico também este trabalho à memória do Pequeno Davi Lima, guerreiro pequenino, que lutou

bravamente pela vida e que, apesar dos seus vinte e cinco dias de existência, permitiu um

profundo e marcante aprendizado para aqueles que conviveram com ele: nunca desistir, lutar

sempre! Obrigado por nos permitir crescer e aprender com você. Siga em paz teu caminho, que

ele seja iluminado.

À memória dos 34 trabalhadores que perderam a vida no grave acidente ocorrido no dia 3 de

dezembro de 2011 na Rodovia 116, nas proximidades do Município de Brejões, nas terras da

Bahia, quando retornavam do duro trabalho no corte da cana-de-açúcar no Mato Grosso. Por

meio de vocês, que perderam a condição de trabalho em suas terras e lugares de vida e vivência, e

que perderam a vida no movimento da busca das mínimas condições de sobrevivência, estendo o

meu agradecimento a todos os trabalhadores e trabalhadoras que tombaram nas lutas e conflitos

no campo e nas péssimas condições de trabalho, nesse país da contradição, enfim a todos de

alguma forma ainda lutam em prol da superação desse modelo de sociedade, velho, arcaico e

podre.

Dedico este trabalho ainda aos camponeses de Anagé: Sr. Loro, Sr. Cecílio, Sr. Aurelino, Dona

Anelina, Dona Anasenhora, Dona Ana Marinho, Sr. Tonico, Diacísio Rodrigues, Sr. Zé, Sr. Elias

e todos os que lutaram e lutam pela permanência na terra e pelo retorno à condição de

camponeses. Em nome deles, dedico-o a todos os camponeses desse Mundão de Meu Deus, que

lavram a terra, garantem a vida, alimentam as nações e forjam a história da construção de outro

mundo.

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AGRADECIMENTOS

Enfim é chegada a hora de agradecer. Trata-se de uma tarefa difícil, porém

indispensável, já que este trabalho é resultado de contribuições e apoios de muitas pessoas e

instituições, que, direta ou indiretamente, contribuíram para concretização de um sonho. Mais

que sonho, um projeto de vida. Como diz Chico Buarque, “Sonhar/ mais um sonho

impossível/ Lutar/ Quando é fácil ceder/ Vencer/ o inimigo invencível”. Assim foi fazer o

Mestrado: no início um sonho, que depois se tornou real, sonho que me fez lutar, sorrir,

sofrer, chorar, mas que me transformou em, além de mestre, em outro homem.

Agradeço ao Grande Arquiteto do Universo, Deus do amor, da caridade e da justiça,

pela vida, pelas inspirações, pelo apoio dos meus benfeitores, pela força e coragem para

continuar firme no meu propósito, pela minha família, meus amigos, por possibilitar o

encontro e o convívio com pessoas tão especiais, que foram essenciais ao longo da caminhada

e na conclusão com êxito da minha empreitada.

Agradeço à minha família, base e sustentação da minha existência, razão de lutar e

viver: minha querida mãe Maria das Graças Paiva, mulher forte, destemida, corajosa,

carinhosa, sempre pronta a me apoiar e a me incentivar, cujo amor é fundamental para mim;

meu pai Salvador Santana, homem íntegro, pai admirável, exemplo de vida, cheio de alegria e

presença de espírito, de quem herdei muitas qualidades. A ele o meu obrigado por fazer parte

da minha vida em todos os momentos.

Aos meus amados irmãos Salvador Júnior, Salmária Paiva e Silvia Paiva, provas

concretas da existência do amor incondicional e verdadeiro, que sempre me apoiaram, me

incentivaram e entenderam os momentos em que estive ausente do convívio familiar.

Aos meus sobrinhos Salvador Neto, Bruno Paiva, Beatriz Paiva, Ícaro Salvador e

Helena Tosta (sobrinha de coração), que, na ternura de ser, na inocência da infância, me

mostram a beleza da vida e a importância de ser amado, o que alimenta o sonho de continuar

lutando para construir um mundo melhor e justo para o futuro deles. Amo muito vocês!

A minha avó Eunice Paiva, grande guerreira, mulher de fibra, cheia de amor e carinho,

que sempre se preocupou comigo, que, mesmo distante, esteve sempre presente. Obrigado

pelas suas valiosas orações, pelas constantes palavras de incentivo e motivação. Aos meus,

tios tias, primos, primas, cunhados, pelo amor, carinho, apoio e torcida e por constituírem

uma família linda, unida e forte, em especial tio Juracy, tia Zena, Goi, Henrique e Ney, pela

acolhida que possibilitou o convívio em família em Conquista. Essa vitória é nossa!

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A Guiomar Germani, amiga, companheira, professora, orientadora, sempre disponível,

pronta para me ajudar. Obrigado, professora, pelos ensinamentos, por incentivar nosso

engajamento político, pela experiência rica e única no GeografAR, pelo carinho e cuidado.

Sem a senhora, professora, esse projeto não seria possível. Obrigado por tudo e por me

ensinar a compreender a Geografia e a importância da luta e da resistência nas trincheiras da

Universidade.

A Suzane Tosta, amiga querida, companheira de luta, mestre e professora, orientadora

e, acima de tudo, apoiadora desse sonho, desde a época da graduação. Su, você sabe o quanto

és especial para mim e o quanto foi essencial para a realização desse projeto, que é seu

também. Obrigado por me ensinar a entender e praticar uma Geografia Viva, Radical, que me

levou a compreender a realidade para além da aparência e desvendar a essência das

contradições do mundo que lutamos para transformar.

Ao professor Marcelo Mendonça, amigo, companheiro de lutas, incentivador.

Obrigado pela amizade, pelos ensinamentos, pelo apoio e sugestões no decorrer desse

processo, por contribuir com a construção desta dissertação, por dividir conosco o projeto de

compreender as contradições do mundo.

A Patrícia Amorim, meu amor, companheira, amiga, obrigado por dividir a vida

comigo, pelo amor, pela compreensão, pelo apoio, pelo incentivo, por entender quando não

pude lhe dar a atenção merecida e, sobretudo, por aceitar fazer parte de minha vida nesses

dias de turbulência.

À galera de Salvador, Janio Santos e Eduardo Brandão, queridíssimos amigos, que

foram essenciais para que eu continuasse no Mestrado e em Salvador, partilhando a vida,

dando atenção, apoio e companhia nos momentos difíceis, minimizando a dureza de “viver na

Metrópole”, proporcionando boas risadas de uma amizade que levarei para a vida. A Andrigo

Afonso, pela partilha da casa, dos problemas, dos sonhos, da alegria, pela companhia nos

momentos mais duros ao longo do primeiro ano das disciplinas.

Aos amigos de velhos carnavais, Claudinha, Carla, Fabrício, Adriano, Bruno (Brão),

Fabiane, Heitor, Danilo, Marcos, Tarcisio e todos da turma da Casa Branca, pelo convívio,

pelos momentos de alegrias, de resenhas, pela acolhida e por, acima de tudo, demonstrar que a

distância e o tempo não destroem as amizades verdadeiras.

Aos amigos e às amigas do GeografAR, mais que do colegas de pesquisa, são irmãos,

parceiros, companheiros, que me acolheram em Salvador, especialmente Denílson, colega de

turma, amigo do peito, irmão e companheiro de orientação; Tiago, pela amizade, pela

companhia, pelos debates e por sempre me proporcionar momentos de alegrias; Hingyd,

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amiga querida, pelo apoio, pela companhia, pelo incentivo; Edite, Pablicio, Hernany, Paulo,

Elane, Edcarlos, Ednizia, Aullus, Cássia, pelo companhia, ajuda e partilha dos problemas e

das dificuldades.

Aos meus colegas da turma MGEO 2009, pela partilha dessa difícil e muitas vezes

dolorosa jornada. Vocês tornaram esse processo mais humano, alegre, mais feliz e, por isso,

cheguei aqui. Valeu Adriana, Danillo, Daniel, Fádia, Denílson, Guilherme, Henrique

Ione, Ivan, Noélia, Paulo, Polly!

Ao Programa de Pós-Graduação e Geografia da UFBA, pela possibilidade da

qualificação e por todos os aprendizados. A todos os professores e servidores, em especial a

minha amiga Catherine Prost, coordenadora, professora, amiga e companheira de luta;

Wendel, pela amizade, pelos ensinamentos e pela alegria do convívio. A meu grande amigo

Itanajara, sempre sorrindo, nos apoiando, incentivando, tornando nossa vida mais alegre.

Obrigado pela disposição, dedicação e cuidado conosco. A Dirce, pela atenção, competência e

compromisso com os alunos e com o curso.

Aos meus amigos e amigas, que são tantos e tão diferentes, que são parte da minha

vida, em diferentes momentos e que sempre me apoiaram cada um do seu jeito e dentro das

suas possibilidades. Vocês são verdadeiros anjos da guarda: Espedito Maia, Meirilane

Rodrigues, Jânio Diniz, Alex Dias, Michelle Félix, Sócrates Menezes, Dayse Maria, Deise

Rocha, Ediluzia Maria, Tadeu, Jó, João Diógenes, Marco Mitidiero, Vanessa Dias, Manuella

Cajaíba, Manoel Oliveira, Edneilton Gomes, Renato Léda.

Agradeço especialmente a Flaulles Boone, amigo, companheiro e agora já ex-chefe.

Sua compreensão, apoio e incentivo foram essenciais; a minha queira amiga Celina Pereira,

que “segurou a barra” no meu setor de trabalho, me substituindo nos momentos em que estive

ausente, além do incentivo e da amizade de todas as horas; a Erbene Café, sempre solícita,

disponível e pronta a me ajudar. Seu apoio foi fundamental; sua amizade é para a vida.

Aos alunos e amigos da UESB; à turma da Unopar; aos meus queridos amigos da

Campanha do Tody, pela possibilidade da prática de ajudar ao próximo; aos moradores de rua

de Vitória da Conquista, os quais atendemos todas as terças-feiras, homens, mulheres, idosos

e crianças que partilham a vida, dividem o sofrimento e possibilitam o exercício de amor ao

próximo.

À Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), pela liberação das minhas

atividades, pela concessão da bolsa, por possibilitar construir grandes amizades, pelas lutas

que travei e por se constituir em uma parte de minha vida. Agradeço em especial a Allen

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Cristiano, Maneulla Cajaíba, Carol e a todos os servidores que me apoiaram nesses quase dez

anos de trabalho.

Por fim, mas não menos importante, aos que tornaram a pesquisa possível, aos que

deram sentido à prática da pesquisa científica e à experiência da partilha da vida e do

exercício de uma Geografia radical e prática. Aos camponeses e trabalhadores, sujeitos

centrais da minha pesquisa, que, ao abrirem suas portas, permitiram-me conhecer suas

histórias de vida, seu jeito de viver, mais que suas trajetórias e lutas. Revelaram, na

simplicidade do trabalho com a terra, que forjam uma nova forma de produzir e transformar o

espaço, produzindo e construindo o território da terra e água do trabalho, resistindo e

mostrando que um mundo justo e igualitário é possível e necessário. Obrigado pelo carinho e

pelo acolhimento, em especial a toda família Marinho, que desde a graduação tem me

recebido e partilhado suas histórias de vida.

Agradeço também ao Servidor do DNOCS, José de Souza Leitão, sempre atencioso,

prestativo, receptivo, muito simpático e amigo, ao me receber inúmeras vezes para a

realização do trabalho de campo. Aos representantes das empresas, que permitiram as visitas,

a realização das entrevistas, os trabalhos de campo, em especial o Sr. Natalino da Fazenda

Santa Clara, Job e João da Fazenda Umbuzeiro.

Aos trabalhadores e trabalhadoras de Anagé, da Bahia e do Brasil, que trabalham

incessantemente e garantem a existência da Universidade Pública, e para quem produzimos o

conhecimento que, esperamos, possa contribuir com a superação da condição de explorados e

oprimidos, que auxilie na construção de um processo de emancipação, rumo à construção de

uma nova sociedade, na luta pela transformação social. A luta continua!

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RESUMO

Esta dissertação tem como objetivo principal analisar as transformações territoriais recentes

ocorridas no entorno da Barragem de Anagé, obra executada pelo DNOCS. O projeto de

construção dessa barragem data do final da década de 1980, contexto em que foram atingidas

muitas famílias camponesas, em sua maioria, posseiros. A expropriação camponesa constitui

uma das principais contradições dessa intervenção do Estado no espaço agrário do Sudoeste

da Bahia, apesar de não ser a única. O mais importante propósito do projeto da barragem era

perenizar o trecho a jusante do Rio Gavião, por meio da construção de um grande reservatório

de água, que permitiria a instalação da agricultura irrigada, vinculada ao agronegócio. Esse

processo de modernização da agricultura para se estabelecer precisava substituir ou sujeitar

formas camponesas de uso da terra e da água. Entretanto, tal propósito não se concretizou

plenamente em decorrência da resistência camponesa, evidenciando, dessa forma, o território

em disputa. De um lado verificou-se a permanência dos camponeses que foram parcialmente

atingidos no trabalho na terra, como agricultores, e, na água, como pescadores, consorciando

o uso da terra e da água de forma articulada, como necessidade para sobreviver a partir da

redução das terras. A relação com a natureza é fundamentada no valor de uso ou como

condição e meio de reprodução da vida, na qual o trabalho é o elemento de garantia da vida,

constituindo o que se denomina Território de Terra e Água de Trabalho. No sentido inverso,

constatou-se a territorialização do capital, processo em que os capitalistas se apossam da terra

e da água, como mercadorias ou como meios de extrair a renda da terra, a partir da exploração

do trabalho alheio, sobretudo a partir da fruticultura irrigada que se estabeleceu nas

proximidades da barragem, constituindo o que se conceituou como Território de Terra e Água

de Negócio. Outra face da apropriação da terra e da água pelo capital se constata no uso da

terra e da água com fins de entretenimento e diversão, com a edificação de chácaras, sítios e

hotéis às margens do espelho d’água. As distintas racionalidades de uso da terra e da água,

desenvolvidas nas proximidades da Barragem de Anagé, revelam a lógica das classes sociais

antagônicas no seu processo de reprodução e apropriação da natureza, evidenciando a luta de

classes pelo/no território, que se materializa no desenvolvimento desigual e combinado no

espaço. A pesquisa possibilitou compreender a essência da lógica do Estado, que revelou sua

face real – a de instrumento de classe –, tendo em vista que, para garantir a plena acumulação

do capital, tem permitido a apropriação da água sem custo e sem limites para os capitalistas,

enquanto dificulta e inviabiliza a disponibilidade de água para os camponeses, ao impor

regras, limites e, sobretudo, por não construir formas de captação de distribuição de água nas

propriedades que perderam o acesso à água após a barragem.

Palavras-chave: Barragem de Anagé, Campesinato, Capital, Estado, Território em disputa.

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ABSTRACT

The present dissertation had as the main objective to analyze the recent territorial

transformations in the surroundings of the Anage Dam, work made by DNOCS. The project

of construction of that dam occurred in the end of the 1980s, context in which six hundred

peasant families on average, the most of squatters, were affected. The expropriated peasantry

was one of the main contradictions of that State intervention in agrarian area of the Bahia

Southwestern, although it does not be the only one. The most important aim of that project

was to promote “the regional development”, above all, through the installation of irrigated

agriculture, attached at the agribusiness. That modernization agriculture process to establish

needed to replace or to destroy peasant manners of use of land and water. However, such

intention did not make entirely real, because of the peasant resistance, so making clear the

territory on dispute. On the one hand it was verified the stay of the peasants, who partially

were affected, from labor in the land as farmers, and in the water as fishermen. Associating

the use of land and water in an articulate manner to survive from the reduction of lands, the

relationship with nature is based on the value in use or is a condition and means of

reproduction of life, in which the labor is the guarantee element of the life, constituting what

we named Land Territory and Labor Water. In the opposite direction it was evidenced the

territorialization of capital, an process in which the capitalists appropriated the land and water,

as goods or means of acquiring a revenue of land from the exploitation of alien labor,

especially from irrigated fruit tree which was established in the neighborhoods of the dam,

constituting the Land Territory and Business Water. On the other hand the ownership of land

and water by capital was verified through the use of land and water in order to entertain and

amuse by means of building of farms, ranches and hotels at the banks of the reflecting pool.

The different rationalities of use of land and water, developed in the neighborhoods of Anage

Dam, have revealed the reasonings of antagonistic social classes in its process of

reproduction, so underlining the class struggle by/in the territory, which is materialized

through the unequal and combined development of the place. That research allowed us to

understand the essence of the reasoning of State, which revealed its real reason, - one

instrument of class -, taking into account that, in order to ensure the full capital accumulation,

it has allowed the ownership of water, without cost and limits to the capitalists, while it

became difficult and impossible to make available the water to the peasants, because it

imposed rules, limits, and did not especially build manners of impounding the water

distribution in the properties which lost the access to water after the dam.

Keywords: Anagé Dam; Peasantry; Capital; State; Territory in Dispute.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01: Mapa 01 Terras que pertenciam aos Guedes de Brito 33

Figura 02: Mapa 02 – Bacia do rio Gavião 79

Figura 03: Mapa 03 Mapa de Localização da Barragem de Anagé 80

Figura 04: Início das obras, maio de 1987 97

Figura 05: Início do enchimento da barragem 98

Figura 06: Romaria da Terra para Anagé 105

Figura 07: Residência da Família Camponesa 124

Figura 08. Casa construída após a Barragem 125

Figura 09: Placa da Sede da Associação 134

Figura 10: Estrutura da interna da associação 134

Figura 11: Pesca Artesanal em Anagé 137

Figura 12: Tanques Redes de Anagé 138

Figura 13: Barracas próximas a Barragem de Anagé 140

Figura 14: Prainha de Anagé 140

Figura 15: Vista Panorâmica do Acampamento Ojeferson em 2008 144

Figura 16: Entrada do Acampamento Ojeferson em 2008 144

Figura 17: Ruínas de um barraco do Acampamento em 2011 145

Figura 18: Estrada do local onde estava o Acampamento 2011 146

Figura 19: Área de Produção Coletiva do Acampamento Ojeferson 149

Figura 20: Alguns Camponeses do Acampamento na área de produção 149

Figura 21: Mapa 04: Área com cultivos próximos a Barragem de Anagé 155

Figura 22: Plantação de Uvas da Fazenda Umbuzeiro 159

Figura 23: Plantação de Pinhas da Fazenda Umbuzeiro 159

Figura 24: Plantação de Manga da Fazenda Santa Clara. 161

Figura 25: Plantação de Coco da Fazenda Santa Clara. 162

Figura 26: Casas de Veraneios nas margens da Barragem de Anagé. 167

Figura 26: Casas nas margens da Barragem de Anagé com píer 167

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LISTA DE GRÁFICOS E TABELAS

Gráfico 01 – Redução da Agricultura de Sequeiro após a construção da

Barragem do Município de Anagé.

156

Gráfico 02 – Crescimento da Fruticultura Irrigada após a construção da

Barragem do Município de Anagé

157

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APPA – Associação de Pescadores e Piscicultores de Anagé

ASA – Articulação do Semi-Árido Brasileiro

BA - Bahia

CEBS – Comunidades Eclesiais de Base

CNBB – Conselho Nacional dos Bispos do Brasil

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco.

CPT – Comissão Pastoral da Terra

CUT – Central Única dos Trabalhadores

DNOCS – Departamento Nacional de Obras Contra as Secas

EMBASA – Empresa Baiana de Águas e Saneamento S. A

GEOGRAFAR – A Geografia dos Assentamentos na Área Rural

IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

INTERBA – Instituto de Terras do Estado da Bahia

ITR - Imposto Territorial Rural

MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens

MDA - Ministério do Desenvolvimento Agrário

MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

PA – Projeto de Assentamento

PAC - Programa de Aceleração do Crescimento do Brasil

PCdoB – Partido Comunista do Brasil

PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

PT – Partido dos Trabalhadores

SUDENE - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

SP – São Paulo

TECNOSAN – Empresa de Engenharia e Consultoria LTDA.

UESB – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

V/C – Vitória da Conquista

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------

17

2 A OCUPAÇÃO DE TERRAS, ESTRUTURA FUNDIÁRIA E A

FORMAÇÃO TERRITORIAL DO SUDOESTE BAIANO E DO VALE DO

RIO GAVIÃO.

23

2.1 OCUPAÇÃO DE TERRAS E FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: A

COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E AS FORMA DE USO DA TERRA.

25

2.2 A OCUPAÇÃO DAS TERRAS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA E A

FORMAÇÃO TERRITORIAL DO SUDOESTE BAIANO: DO LATIFÚNDIO

DOS GUEDES DE BRITO AOS MINIFÚNDIOS POLICULTORES.

30

3 AÇÃO DO ESTADO, O PLANEJAMENTO E AS TRANSFORMAÇÕES NO

ESPAÇO AGRÁRIO.

50

3.1 A CONSTRUÇÃO DE BARRAGENS, A EXPROPRIAÇÃO CAMPONESA E

AS TRANSFORMAÇÕES NO ESPAÇO GEOGRÁFICO.

61

4 A CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM DE ANAGÉ, A HISTÓRIA DE LUTA

E RESISTÊNCIA CAMPONESA.

75

4.1 LOCALIZAÇÃO E ASPECTOS TÉCNICOS DA BARRAGEM DE ANAGÉ.

78

4.2 A HISTÓRIA DO PROJETO DA BARRAGEM E A CONCRETIZAÇÃO DA

OBRA.

82

4.3 A LUTA E RESISTÊNCIA CAMPONESA EXPROPRIADOS PELA

BARRAGEM DE ANAGÉ.

94

5 OS TERRITÓRIOS EM DISPUTAS NAS MARGENS DA BARRAGEM DE

ANAGÉ.

112

5.1 RESISTÊNCIA E PERMANÊNCIA CAMPONESA NAS MARGENS DA

BARRAGEM DE ANAGÉ. O TERRITÓRIO DE TERRA E ÁGUA DE

TRABALHO.

118

5.2 CAMPONESES, PESCADORES E COMERCIANTES: MESMA CLASSE

SOCIAL, NOVAS FORMAS DE TRABALHO.

128

5.3 MESMO TERRITÓRIO E A NOVA MARCHA DA LUTA PELA TERRA ÀS

MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ – O ACAMPAMENTO OJEFERSON.

142

5.4 O ESTADO E AS CONTRADIÇÕES DA TERRITORIALIZAÇÃO DO

CAPITAL NAS MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ.

150

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5.5 LAZER E TURISMO: OS TERRITÓRIOS DE TERRA E ÁGUA DE

ENTRETENIMENTO OS SÍTIOS E CHÁCARAS NAS BORDAS DO LAGO

165

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

170

REFERÊNCIAS 176

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1 INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado é parte dos estudos desenvolvidos desde o ano de

2007, iniciados com o Projeto de Pesquisa “Novas Configurações do Espaço Agrário da

Região do Sudoeste da Bahia” e que tiveram continuidade na Monografia de Graduação

intitulada “Terra, água e vida. A ação do Estado, expropriação camponesa e a luta pelo

território: uma análise do processo de construção da Barragem de Anagé – Bahia”, sob

orientação da Prof.ª Dr.ª Suzane Tosta Souza. A monografia teve como foco principal a

análise do processo histórico de construção da Barragem de Anagé, com destaque para os

processos de luta e resistência dos camponeses que foram atingidos pela obra.

A experiência de pesquisa na graduação nos motivou a continuar os estudos no

âmbito da Geografia e, mais objetivamente, na temática das barragens com um olhar

geográfico. Ingressamos no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade

Federal da Bahia (UFBA) com o propósito de pesquisar os rebatimentos territoriais

promovidos pela construção da Barragem de Anagé, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª

Guiomar Inez Germani, pesquisadora que havia realizado um dos estudos pioneiros sobre

esta temática, com a análise da construção da Hidrelétrica de Itaipu, instalada na década de

1980. Esses estudos resultaram na dissertação de mestrado intitulada “Os expropriados de

Itaipu”, defendida em 1982 e publicada em 2003 (GERMANI, 2003).

Com o ingresso no mestrado, fomos também integrados ao Projeto “A Geografia

dos Assentamentos na Área Rural (GeografAR)”, coordenado pela professora Guiomar

Germani, e que, entre pesquisas e atividades desenvolvidas à época, estava elaborando o

“Inventário Sócio-ambiental das Barragens na Bahia”. A colaboração com esta pesquisa

permitiu-nos uma experiência ampla sobre a construção das barragens da Bahia, suas

intenções, interesses, contradições e, sobremodo, os rebatimentos territoriais desses

empreendimentos (GeografAR, 2009). O contato com essas informações nos possibilitou

perceber a atualidade e a importância do estudo sobre as barragens para a Geografia e para

as Ciências Sociais e Humanas diante da diversidade de contradições e transformações

sociais e territoriais delas decorrentes.

Os estudos sobre a construção de barragens trazem para a Geografia uma nova

perspectiva de análise, mais especificamente para a Geografia Agrária, pois as

transformações ocasionadas alteram a forma e o processo de apropriação da terra e da água

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pelas distintas classes sociais e se expressam espacialmente através da territorialização

camponesa e da territorialização do capital, quando se ampliam as formas capitalistas de

uso desses espaços.

Com a construção de um empreendimento como uma barragem, há o acirramento

dos conflitos por terra e por água por parte daqueles que são atingidos. Os grandes projetos

de barramento de rios, executados em diversos lugares do país, em especial aqueles

localizados no semiárido brasileiro, agravam também a questão agrária pela expropriação

de milhares de pessoas.

Alguns pesquisadores têm estudado as barragens em diferentes regiões do país, a

exemplo das pesquisas sobre o agro-hidro-negócio, coordenadas por Mendonça (2007) e

Mesquita (2007), que analisam os conflitos, a resistência e o processo de expropriação dos

camponeses promovidos pela Hidrelétrica Serra do Facão, no Vale do Rio São Marcos, e

sua relação como modelo de desenvolvimento agrário no estado de Goiás.

Sobre a realidade do estado da Bahia, alguns estudos foram realizados para

compreender os rebatimentos das barragens no espaço agrário, advindos de grandes

projetos de barramento de rios, com destaque para as represas de Sobradinho, Pedra do

Cavalo, Itaparica, construídas com o propósito de gerar energia hidrelétrica e possibilitar o

uso da água para irrigação e abastecimento humano.

A nossa pesquisa analisa as barragens com enfoque no papel do Estado, como

agente produtor do espaço e do capital, que se apossa dos recursos públicos (seja no

processo de construção, seja na edificação de infraestrutura para esses empreendimentos),

e também com enfoque nas formas de luta e resistência dos atingidos contra o processo de

expropriação. Pretendemos contribuir para compreensão das contradições desses grandes

projetos e dos interesses neles envolvidos, a partir da lógica do desenvolvimento desigual e

combinado, como princípio estruturante do modo capitalista de produção e das

racionalidades contra-hegemônicas empreendidas por camponeses e trabalhadores em

marcha pelo direito à terra, à água, ao trabalho, enfim, à vida.

Diante de um contexto de contradições e resistências, a pesquisa empreendida sobre

a construção da Barragem de Anagé procurou responder às seguintes questões centrais:

Quais as principais transformações territoriais, no espaço agrário do entorno do

lago, ocorridas a partir da construção da Barragem de Anagé e quais as novas

formas de uso da terra e da água desenvolvidas?

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Como se deu a difusão da agricultura capitalista e como esses empreendimentos

se apropriaram da terra e da água?

 

Quais as estratégias de resistência dos camponeses que foram parcialmente

atingidos e que permanecem nas áreas e quais as formas de uso da terra e da

água que passaram a desenvolver após a construção da barragem?

 

Quais as novas formas de luta pela terra e pelo trabalho implementadas por

parte das famílias camponesas que tiveram perdas totais ou parciais de suas

terras, bem como de novos sujeitos que passaram a residir nas proximidades da

barragem?

O objetivo principal do trabalho – formulado para responder a estas questões da

pesquisa – foi analisar as transformações territoriais ocorridas principalmente no entorno

da Barragem de Anagé, com destaque para as formas de uso da terra e da água

desenvolvidas ao longo dos vinte anos, tanto no processo de territorialização de projetos

capitalistas, quanto nas formas de resistência e permanência camponesas.

Para compreender essa realidade, utilizamos, como método, o Materialismo

Histórico e Dialético, por possibilitar compreender as contradições do modo capitalista de

produção e os rebatimentos espaciais da luta das classes sociais antagônicas no processo de

disputa pelo e no território. Como metodologia para o desenvolvimento da pesquisa,

usamos a pesquisa participante, como processo de convivência e acompanhamento dos

sujeitos da pesquisa, sobretudo dos camponeses e das lideranças, além da pesquisa

histórica, revisão bibliográfica e compilação de dados e informações junto a órgãos

oficiais.

Na etapa do trabalho de campo, realizamos visitas aos locais de estudo, onde foram

feitas entrevistas com os camponeses e lideranças envolvidas com a obra e com a história

da barragem. Na pesquisa direta, foi possível conviver com muitos dos sujeitos da

pesquisa, em especial os camponeses que resistem nas margens da barragem.

Desenvolvemos uma relação de convivência e amizade com os entrevistados, o que nos

permitiu compreender a essência do modo de vida camponesa em sua expressão mais

concreta, entendendo como se forjam as formas de reprodução da vida, a organização

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social, a estrutura familiar e os aspectos relacionados aos costumes desses sertanejos,

dimensões imateriais e subjetivas que mostram as diferenças nas formas de viver e

entender a vida, uma nova forma de estruturação social, que, por vezes, se apresenta como

revolucionária simplesmente por existir.

Foi possível também perceber os elementos centrais que orientam as formas de uso

da terra, das águas, do trabalho e as estratégias desenvolvidas para garantir a sobrevivência

com a resistência e permanência em suas terras. Assim a metodologia se reverteu em uma

vivência prática com a realidade em estudo, superando os princípios formais,

transformando-se em uma experiência única, pessoal, acadêmica e política, enfim, vendo,

no cotidiano desse grupo social, o sentido verdadeiro de ser camponês.

A dissertação está estruturada em quatro capítulos, que, apesar de separados,

guardam uma relação direta entre si e compõem uma estrutura que se completa. Parte da

compreensão da estrutura fundiária como elemento inicial da formação territorial da área

de estudo e do seu entorno; no segundo momento, discute conceitualmente o Estado e as

formas como se produz e se transforma o espaço geográfico; na terceira parte, analisa o

processo histórico de construção da barragem e as formas de resistência e mobilização dos

camponeses atingidos; e, por último, analisa as diversas formas de apropriação da terra e

da água no entorno da barragem e as transformações territoriais decorrentes dessa obra.

De forma mais detalhada, assim estão distribuídos os assuntos nos respectivos

Capítulos:

No Capítulo I, realizamos uma revisão bibliográfica do histórico da formação

territorial do Sudoeste da Bahia, mais especificamente, do Vale do Rio Gavião, tentando

compreender a constituição do Latifúndio de Antônio Guedes de Brito, desde as sesmarias

até o processo de minifundização promovido pela venda das terras pelo Sétimo Conde da

Ponte, para entender a situação fundiária dos municípios que compõem a pesquisa,

sobretudo Anagé e Caraíbas, que tiveram parte das terras agricultáveis atingidas.

No Capítulo II, demos um enfoque maior aos aspectos de ordem teórico-

conceituais, com revisão bibliográfica de conceitos essenciais para a dissertação: o

processo de produção do espaço, que contribui para compreensão do conceito de espaço

geográfico como processo em movimento; o conceito de território, categoria central na

análise sobre a realidade do estudo; a ação do Estado, entendido como agente produtor e

transformador do espaço geográfico e regulador dos conflitos de classes na apropriação do

território, destacando também o papel do planejamento no processo de concepção e

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elaboração das ações do Estado; por fim, a construção de barragens e os rebatimentos

territoriais desse empreendimento no espaço agrário.

No Capítulo III, analisamos a história da construção da Barragem de Anagé, desde

a concepção do projeto até a sua execução. Examinamos os discursos oficiais, por meio de

entrevistas com pessoas que estiveram envolvidas em várias etapas do projeto, desde o ex-

deputado Élquisson Soares, tido como idealizador do projeto, e José de Souza Leitão,

servidor do DNOCS, que trabalhou no levantamento topográfico no início da construção e

que permanece até os dias atuais como responsável pela Barragem de Anagé. Realizamos,

também, entrevistas com alguns sujeitos que acompanharam e apoiaram as mobilizações e

a resistência dos camponeses atingidos pela obra, como o advogado Ruy Medeiros; o Padre

João Cardoso e Diacísio Rodrigues, membros da então Comissão Rural Diocesana; e

sobremodo os camponeses parcialmente atingidos e que ainda permanecem nas áreas

próximas à barragem, vivendo do trabalho com a terra e com a água.

No Capítulo IV, analisamos as formas de uso da terra e da água desenvolvidas após

a construção da Barragem de Anagé, a partir da constituição dos territórios de terra e água,

que evidenciam a disputa das classes sociais pelo e no território. Os conflitos de classes

expressam as distintas racionalidades de uso da terra e da água: de um lado, os camponeses

que medeiam a relação segundo a concepção do valor de uso da terra e da água, por meio

do trabalho, como agricultores, pescadores ou comerciantes; de outro lado, empresas

capitalistas que se apropriam da terra e da água com a edificação de médios e grandes

empreendimentos da agricultura irrigada, apossam-se da natureza como mercadoria,

orientada pelo valor de troca ou pela possibilidade de extrair a renda da terra, além da

territorialização do capital, que se materializa na construção de sítios e chácaras às

margens do lago, usando a terra e a água como meios de diversão e entretenimento.

Desse modo, o trabalho partiu do processo histórico de formação territorial da área

de estudo, tentando compreender as transformações ocorridas na estrutura fundiária até a

configuração espacial que se tem atualmente. Posteriormente analisamos as transformações

promovidas pelo Estado, entendido como instrumento de classe, tanto no que se refere à

questão da terra, quanto nas estratégias de organização espacial e de produção resultantes

de planos, projetos e outras formas de controle e incentivo. Em outra etapa, nos detivemos

nas mobilizações e na resistência camponesa, que se expressaram no enfrentamento ao

Estado e seus organismos, quando se deu o processo de expropriação das terras,

ocasionado pela construção da Barragem de Anagé.

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Com a construção da barragem, houve profundas transformações territoriais, as

quais expressam concretamente as distintas racionalidades de uso e apropriação da terra e

da água, com destaque para a lógica camponesa, que tem resistido como camponeses ou

pescadores ou trabalhadores precarizados, e para a edificação de empresas capitalistas que

têm se apropriado das terras, das águas e, sobretudo, do trabalho precarizado. Isso

evidencia claramente as diferentes mudanças espaciais e territoriais que alteram essa

porção do espaço agrário baiano, que, certamente, jamais será o mesmo. Perderam-se

aspectos imateriais e subjetivos, que, atualmente, só existem na memória de homens e

mulheres diretamente atingidos pela ação do Estado.

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2 FORMAÇÃO TERRITORIAL DO SUDOESTE BAIANO E DO VALE DO RIO GAVIÃO

ÔZefinhaOluarchegoumeubem

VamospelaestradaqueteupaipassouQuandoeracriancinhaigualvocêtambém

ÔZefinhaessaéaterradeninguémGuardanalembrançaelaéaesperança

DosfilhosdaterraQueaterranãotem

NelaoteupainasceuesecriouEseDeusquiser

UmdiahádemorrertambémÔôôô...Zefinha

OuveoseupaimeubemAmaessaterraquenossoSinhô

UmdiabatizôaterradeninguémÔôôô...Zefinha

VejaquantosranchostemNessaterraoshomiplanta,colhiecomi

LouvandoJesusnaterradeninguémElomar1(Álbum“DasBarrancasdoRioGavião”1972)

Parece oportuno iniciar, com um poema de Elomar, a discussão sobre as

transformações territoriais no espaço agrário, promovidas com a construção da Barragem

de Anagé, que represou as águas do Rio Gavião. O compositor que eternizou esse rio em

inúmeras canções, tornando-o conhecido no Brasil e no mundo, também relata, em suas

canções, o modo de vida sertanejo, que acompanhava os ciclos que se desenvolviam no

compasso das chuvas e dos regimes desse que era o maior rio intermitente da Bahia, antes

de sua perenização com a construção da barragem.

O trecho da letra transcrito expressa também o significado da terra, sobretudo para

os sertanejos, um meio de produção que não pertence a ninguém, que é uma dádiva da

criação, um bem coletivo e social, que não surgiu com donos, nem era cercada ou

demarcada. O parcelamento e a apropriação privada da terra são resultado da ação da

1 Elomar Figueira de Mello, compositor e cantor, é natural de Vitória da Conquista, arquiteto de formação e músico por paixão e opção, é integrante da música regionalista. Reconhecido internacionalmente, tem o sertão e modo de vida sertanejo como as maiores inspirações para sua obra artística. O Rio Gavião é citado em diversas obras e músicas, inclusive é o título do álbum da música, cujo trecho citamos.

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sociedade, que a concebe como uma mercadoria. A terra e a natureza nasceram livres e

foram aprisionadas na condição de mercadoria, quando a sociedade passou a ser

organizada, hierarquicamente, segundo as relações de poder e de classes sociais.

Pretendemos, neste capítulo, discutir o processo histórico de formação territorial e a

constituição da estrutura fundiária do Sudoeste da Bahia, atualmente Território de

Identidade de Vitória da Conquista2. Para que possamos compreender a ocupação das

terras nas margens do Rio Gavião – desde as primeiras expedições e a ação dos

bandeirantes que iniciaram a ocupação do interior da Bahia –, fazemos uma breve análise

histórica para identificar a origem da questão agrária e da questão fundiária dessa porção

do espaço baiano. Intentamos, também, situar os posseiros que foram expropriados e

atingidos pela construção da Barragem de Anagé, no final da década de 1980.

Partimos do princípio de que estudar o espaço geográfico é, em essência, uma

análise da história da sociedade no processo de apropriação da natureza, ou seja, para

compreender a atual configuração geográfica, é fundamental conhecer o processo histórico

de formação territorial e a realidade espacial, pois o espaço é um testemunho material e

dinâmico da história social.

Para compreender as novas formas de uso da terra e a lógica da apropriação dos

recursos naturais nas margens da Barragem de Anagé que se desenvolvem atualmente é

importante fazermos uma análise história da formação desse território. Entenderemos,

assim, a ação dos camponeses e das classes sociais que se territorializaram historicamente

nesse espaço.

Souza, ao analisar a formação territorial do Sudoeste baiano, afirma: Entender o estágio atual da luta de classe existente no campo, e mais especificamente no Sudoeste da Bahia, requer, em qualquer instância, retomar o processo histórico de ocupação deste território e as atuações, nos diferentes momentos, do Estado, mediante novas demandas que passam a caracterizar os processos de realização do capital. Assim sendo, há que se reportar ao processo de abertura e interiorização do território brasileiro, a partir da ação dos bandeirantes, sobremodo, a partir do século XVII, quando estes começaram a promover alterações significativas nas áreas denominadas “Alto Sertão da Bahia3”, com

2 “Sudoeste da Bahia” era a denominação utilizada para a divisão político-administrativa do estado da Bahia. A partir de 2007, passou a ser utilizada a expressão “Território de Identidade” para designar a divisão regional do estado. São 26 “Territórios de Identidades” na Bahia. 3 “Alto Sertão da Bahia” refere-se atualmente às áreas do Centro-Sul baiano, Serra Geral e Médio São Francisco, ou seja, a sua demarcação inicial, no Século XVI, referia-se às grandes propriedades fundiárias dos Guedes de Brito, que correspondem a mais de três Territórios de Identidade, entre

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destaque a ação do mestre-de-campo Antônio Guedes de Brito, responsável pelo controle de amplas porções de terras, conseguidas a partir da “extinção do gentio bárbaro”, passando tais domínios a seus descendentes, que controlavam as terras por ocasião das descobertas de metais e pedras preciosas, o que predominou até o século 19, quando estas terras passaram a sofrer um processo de loteamento e comercialização por parte dos herdeiros do sexto conde da Ponte (SOUZA, S. 2008, p. 359).

Por entender que esses processos estão inseridos numa totalidade que transcende a

escala regional e local, analisaremos, inicialmente, a formação territorial brasileira de

maneira mais abrangente para, posteriormente, aproximar o foco de análise para a área que

está sendo estudada, ou seja, o Sudoeste da Bahia e o Vale do Rio Gavião.

2.1 OCUPAÇÃO DE TERRAS E FORMAÇÃO TERRITORIAL DO BRASIL: A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA E AS FORMAS DE USO DA TERRA

É essencial iniciar o debate acerca da formação territorial brasileira desconstruindo

um equívoco muito recorrente nos estudos sobre a ocupação e colonização portuguesa, a

ideia de que existia nessas terras um espaço vazio, desocupado. Isto, na realidade, não

condiz com a verdade, pois, no período da colonização portuguesa, viviam nas terras do

Brasil cerca de cinco milhões de indígenas, que resistiram bravamente a essa ocupação e à

expropriação a que foram submetidos. Essa resistência representa os primeiros conflitos e

disputas pelas terras e a gênese da formação territorial, marcada pela luta e disputa pelo

território.

Os indígenas que aqui viviam se reproduziam materialmente daquilo que a natureza

lhes oferecia, tinham seu território livre, desprovido das amarras do capital e da

propriedade privada. Só com a chegada dos “invasores” e, com eles, as relações mercantis

é que se dá a gênese da formação territorial, com a dominação, extermínio e escravização

dos verdadeiros donos dessa terra. Assim nossa formação territorial está calcada na

injustiça, na violência e na expropriação.

Segundo Neves, para conquistar e ocupar as terras:

eles, o de Vitória da Conquista, onde estão localizados os municípios abrangidos por esta pesquisa: Anagé, Belo Campo e Caraíbas.

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[...] Os colonizadores moveram guerra aos indígenas e promoveram sua escravização, submissão ou expulsão para o interior, onde os recursos eram mais escassos e teriam que combater outras tribos a lhes tomar as áreas que ocupavam, num processo de desterritorialização em cadeia (NEVES, 2005, p. 122).

Para entendermos as formas de uso da terra e os conflitos das classes sociais na

apropriação da terra, é fundamental que analisemos a constituição da estrutura fundiária

desde sua origem. No Brasil a configuração fundiária desenvolveu-se historicamente de

forma desigual, pois sempre esteve alicerçada nos princípios da concentração das terras e,

posteriormente, na consolidação da propriedade privada desse meio de produção.

Desse modo, a função que a terra passou a desempenhar a partir da colonização

portuguesa foi gerar riqueza e concentrar poder; passou a representar, também, poder

político e econômico. Desse modo há duas contradições centrais: a concentração de terras e

apropriação privada desse meio de produção por uma pequena minoria; e a expropriação

de uma massa de pequenos produtores, que foram, em muitos casos, exterminados e

expulsos de suas terras, como os índios, os rendeiros, os posseiros e os negros.

No contexto das expedições marítimas dos espanhóis e portugueses, que

encontraram as terras da América, foi elaborado o Tratado de Tordesilhas, para partilhar e

dividir as terras, com limites imaginários, entre Portugal e Espanha. A partir desse Tratado,

a Coroa Portuguesa estabeleceu a divisão das terras sob o seu domínio em Capitanias

Hereditárias. Esse processo consistiu em repartir o território em grandes propriedades, que

se iniciavam no litoral e seguiam em direção ao sertão (sentido leste-oeste). Tais porções

de terras foram divididas por linhas imaginárias e doadas a famílias nobres de Portugal. Ao

todo, foram quinze capitanias hereditárias, que, como diz o nome, eram propriedades

hereditárias. Muitas delas correspondem às áreas de alguns estados atuais. Souza, ao se

referir a esse tema, afirma:

O processo de ocupação do território brasileiro, desde o início, está vinculado ao movimento de expansão comercial da Europa, decorrente de práticas mercantilistas da época moderna. A colônia brasileira se inseria nesse quadro de competição entre as várias potências européias, como produtora e exportadora de bens primários, lançados no mercado externo através de Portugal. Nesse contexto, o principal meio de produção era a terra e sua distribuição definiu o caráter de atividade produtiva de larga escala e a intensa exploração da mão-de-obra escrava (SOUZA, M. 2001, p.60).

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A divisão desse território em capitanias foi uma alternativa da Coroa Portuguesa

para garantir o povoamento e a ocupação do território, para evitar o tráfico do pau-brasil e

as invasões de outros povos, especialmente os franceses e holandeses. Foi também uma

estratégia para ocupar o território sem ter muitos custos para a Coroa, uma vez que os

donatários tinham que tornar as terras produtivas, “desbravá-las” por conta própria, gerar

renda e, ainda, repassar parte das riquezas à Coroa Portuguesa.

As capitanias hereditárias representaram a primeira forma de organização e divisão

territorial do espaço brasileiro, mas entraram em decadência em consequência de dois

fatores principais: a grande extensão das terras e a distância de Portugal. Muitos donatários

não conseguiram tornar suas capitanias produtivas, por isso muitas delas fracassaram ou

foram abandonadas.

Instalou-se, posteriormente, o Sistema de Sesmarias, com o propósito de ocupar

efetivamente o território e torná-lo produtivo, ou seja, uma ocupação rentável e

economicamente viável para a Coroa. Esse sistema estava baseado em uma prática já

utilizada em Portugal, que consistia, basicamente, em conceder terras às pessoas que

tivessem condição de produzir.

Como analisa Germani:

O instrumento legal utilizado para a distribuição das terras foi a Lei do Sexmo – as Sesmarias. É o núcleo de onde originou o direito agrário brasileiro. Era um antigo costume em Portugal retirar seus donos das terras não exploradas para entregá-las a quem se dispunha a lavrá-las e semeá-las. O costume foi transformado em lei escrita, em 1375 pelo rei D. Fernando. Segundo a dita Lei, as terras eram concedidas por tempo determinado e o proprietário estava obrigado a trabalhar nelas, por si ou por terceiros, pagando à coroa a sexta parte dos frutos, chamada antigamente de “sexma” (GERMANI, 2005, p. 5).

As sesmarias já eram uma forma de uso da terra praticada em Portugal havia muito

tempo e foram estendidas ao Brasil Colônia com algumas modificações. Assim, por

determinação legal, os donatários das capitanias recebiam ordens de doar parte de suas

terras a qualquer pessoa, contanto que detivessem as condições objetivas de fazê-las

produzir e que fossem cristãos. É importante destacar que, naquele contexto histórico, a

população da Colônia era relativamente pequena, sobretudo a população branca e cristã.

Esse processo ocorreu por volta de 1531, ou seja, nesse período a massa de expropriados

da terra era formada por índios nativos e brancos pobres.

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Neves, ao comparar o Sistema de Sesmarias de Portugal com o do Brasil, afirma:

O regime de sesmarias estendeu-se ao Brasil com as capitanias hereditárias, instituídas por Dom João III, 1534. Seu conceito continuou o mesmo de Portugal, com algumas adaptações, significando terras conquistadas, não ocupadas economicamente, doadas pelos capitães donatários e mais tarde pelos capitães governadores, com posteriores confirmações, para exploração de particulares, ou seja, território disponível para exploração de terceiros, com anuência governamental. Quanto ao substantivo sesmerio, passou a designar donatário de sesmaria, diferentemente de Portugal, onde denominava o agente do poder político, encarregado de repartição de terras por esse regime (NEVES, 2001, p. 10-11).

Iniciou-se, assim, o primeiro grande processo de parcelamento das terras em

propriedades menores que as capitanias. Na prática, representou a divisão e a fragmentação

das capitanias por meio de concessões de sesmarias. Conjugada com esse sistema,

surgiram outras práticas, com os rendeiros, posseiros e foreiros, formas de uso da terra,

sem concessão de posse, uma vez que aqueles que, de fato, as tornavam produtivas, ou

seja, que “derramavam o suor” e produziam as condições para a extração da renda, não

tinham a posse desse importante meio de produção.

Ao analisar esse processo, Germani afirma:

As primeiras concessões de terras se concentraram, em 1531 com Martin Afonso de Souza, capitão maior das terras do Brasil. Foi também ele que estabeleceu o primeiro engenho de cana no Brasil, na vila de São Vicente. Estavam lançadas as bases de uma nova política econômica que se apoiavam em duas instituições – o sexmo e o engenho – os quais construíram os antigos pilares da antiga sociedade colonial (GERMANI, 2005, p. 5).

Com o surgimento dos engenhos se desenvolveu uma nova configuração territorial

e toda uma estrutura social baseada na produção de açúcar, estabelecendo a desigualdade, a

exploração do trabalho escravo e a extração da renda da terra como condições mínimas

para a manutenção do desenvolvimento da Colônia. Constitui-se, assim, o primeiro ciclo

econômico importante a influenciar na formação territorial brasileira, com duas

características perversas: a exploração do trabalho e a concentração de terras.

Os engenhos representaram o primeiro empreendimento produtivo do Brasil e

estavam fundados em contradições básicas, como a exploração da força de trabalho dos

escravos e dos indígenas.

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A estrutura dos engenhos também contribuiu na ocupação do território para além do

litoral, com o cultivo de alimentos para abastecimento interno e das fazendas e com a

criação de gado bovino, que passou a ocupar as áreas do agreste e do sertão, uma vez que

os engenhos se desenvolviam na porção litorânea, dadas as condições climáticas mais

propícias.

Para garantir a produção e a ampliação dos engenhos, dois elementos foram

primordiais: grandes porções de terras conquistadas com a dominação ou o extermínio dos

índios; oferta de força de trabalho que, naquele período, era essencialmente escrava.

Assim, os negros trazidos da África foram fundamentais para a manutenção desse sistema

produtivo e para a garantia da produção do açúcar e exportação desse produto para a

Europa. Também os índios foram essenciais, pois, além de serem expulsos de suas terras,

eram, por vezes, escravizados e submetidos a um processo alienante de “catequização”.

Assim ao passo em se desenvolviam os engenhos, mais índios eram expropriados e negros

eram utilizados como escravos.

Neste aspecto, Germani comenta:

Se por um lado, o indígena era caçado, por outro, a implantação dos sexmos e dos engenhos necessitavam de suas terras. Assim o latifúndio no Brasil nasceu e se desenvolveu sob o signo da violência contra populações nativas cujo direito congênito a propriedade da terra nunca se respeitou, e muito menos se exerceu. Deste estigma de ilegitimidade, que é o seu pecado original jamais se redimirá (GERMANI, 2005, p. 9).

Concomitante com os engenhos, outros ciclos importantes passaram a se

desenvolver nas áreas mais distantes do litoral, no sentido do continente, sobretudo com as

expedições dos bandeirantes e “desbravadores”, que passaram a adentrar nos agrestes e nos

sertões, à procura de pedras preciosas e, principalmente, de ouro.

Essas expedições deixavam o rastro da violência e da expropriação com o

extermínio de tribos indígenas inteiras, como também de quilombos de negros fugitivos.

Esses foram sendo dizimados garantindo, assim, o controle das terras, para edificação de

grandes fazendas destinadas à criação bovina ou para o transporte de rebanhos que vinham

do sul para abastecer a capital da província.

Foi nesse processo de abertura e expansão para as áreas do interior que se deu a

ocupação efetiva dos sertões do Brasil e, mais especificamente, no caso da Bahia, do Alto

Sertão, que será analisado no tópico seguinte.

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2.2 A OCUPAÇÃO DAS TERRAS DO ALTO SERTÃO DA BAHIA: DO LATIFÚNDIO DOS GUEDES DE BRITO AOS MINIFÚNDIOS POLICULTORES

A ocupação das terras, que se iniciou no litoral, passou a se interiorizar com as

expedições dos bandeirantes à procura de metais preciosos. Nos sertões, essa ocupação

também sucedeu com a criação e transporte dos rebanhos bovinos, com a instalação das

sesmarias, que promoveram um povoamento mais intenso, e com formas produtivas de uso

da terra seja por meio das fazendas de gado bovino, seja pela agricultura. Todo esse

processo foi fundamental para ocupação e formação territorial dos sertões da Bahia e para

o aumento populacional e o surgimento de vilas e povoados.

Sobre essa questão, afirma Maria Aparecida de Souza:

A busca de metais e pedras preciosas e a caça ao índio para escravização não foram os únicos fatores que permitiram a ocupação e povoamento do interior brasileiro. Desde muito cedo os rebanhos bovinos trilharam caminhos pelos sertões provocando transformações na paisagem baiana. Se, por um lado, a expulsão ou eliminação física do nativo significava o despovoamento, por outro num movimento inverso, a fixação de colonizadores reconstruía e redimensionava o povoamento com as fazendas criadoras de gado e instalação de rancharias para atender às necessidades imediatas de tropeiros que estabeleciam os vínculos comerciais com a isolada região (SOUZA, M. 2001, p.73).

Esse processo também ocorreu com o Sudoeste baiano, área que outrora

correspondia às terras do “Alto Sertão da Bahia” e que tinha como modelo de povoamento

a criação de gado em grandes propriedades e, posteriormente, a descoberta de minas de

ouro e pedras preciosas. O mais conhecido proprietário de terras dessa porção do espaço,

que atualmente corresponde às terras do estado da Bahia e de Minas Gerais, foi o Mestre

de Campo Antônio Guedes de Brito, que detinha concessão de inúmeras sesmarias e que

ampliou suas terras com áreas conquistadas aos índios.

Compreender o processo de ocupação das terras com o povoamento e o

desbravamento da caatinga é essencial para entendermos a formação do território baiano,

sobremodo as diversas formas de uso da terra que se desenvolveram historicamente nessa

região e a atual estrutura fundiária.

Para tanto é imprescindível recorrermos à história da “conquista” dessa porção do

território. Segundo dados historiográficos, o Sudoeste baiano e, também, as margens do

Rio Gavião, na porção que foi represada para formar a Barragem de Anagé, têm uma

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ocupação que data do século XVII, quando os bandeirantes e sesmeiros passaram a ocupar

os vales dos rios dessa região, que, naquele contexto, era denominada Alto Sertão da

Bahia.

Como afirma Neves:

As cartas de doação das capitanias hereditárias e os respectivos forais no século XVI, já empregavam esse termo com a mesma acepção. Também a denominação de Alto Sertão da Bahia tem antecedentes remotos, talvez século XVI, quando Antônio Guedes de Brito conquistou esse território de povos indígenas (NEVES, 2005 p. 20).

A formação territorial do Alto Sertão da Bahia ocorreu com a expansão da pecuária

extensiva, desenvolvida em grandes latifúndios, que foram sendo formados a partir das

sesmarias e das terras que foram sendo repartidas aos herdeiros de famílias. Naquele

contexto histórico, os casamentos se davam entre famílias brancas, consideradas nobres ou

com posses, para que a riqueza e, sobremodo, a terra não fossem divididas, mas, sim,

somadas, promovendo a concentração para que permanecessem sob domínio das mesmas

famílias.

O maior exemplo desse processo é o controle dos Guedes de Brito, como relata

Neves, ao se referir aos domínios fundiários de origem sesmeira dessa família:

Um dos maiores vinculava parcelas do Morgado Guedes de Brito, instituído no século XVII, por verba testamentária do tabelião Antônio de Brito Correia e sua mulher Maria Guedes. Esse patrimônio fundiário de origem sesmeira, em poder do filho Antônio Guedes de Brito, expandiu-se e somente não superou, em extensão, as terras da Casa da Torre, domínio dos descendentes de Garcia d’Ávila que se estendia por zonas que mais tarde ficaram sob jurisdição de vários estados nordestinos. Quase todo o sertão da Bahia pertenceu a essas duas famílias. Os d’Ávila disporia de 270 léguas à margem esquerda do São Francisco, “indo para o sul” e 80 desse rio “para o norte”, e os “herdeiros do mestre-de-campo Antônio Guedes de Brito possuiriam 160 léguas desde morro dos Chapéus até a nascença do rio das Velhas”, em cujas terras estabeleceram sítios de uma légua, arrendados “por dez mil réis de foro” anuais (NEVES, 2008 p. 65-66).

O destaque do autor de que todas as terras do sertão pertenceram a essas duas

famílias e, levando-se em consideração que tais domínios fundiários correspondiam

também a outras áreas do agreste, do litoral e a terras que hoje constituem áreas de outros

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estados, como Minas Gerais e Sergipe, tudo isso nos leva a inferir que as grandes

propriedades fundiárias não tiveram origem necessariamente nas capitanias hereditárias.

Elas são provenientes, sobretudo, da expansão das sesmarias e da apropriação ilegal e

ilegítima de grandes extensões de terras, tendo em vista que existia um limite para cada

sesmaria, mas que não foi respeitado pelos patriarcas dessas famílias e por seus

descendentes.

As terras que pertenciam aos Guedes de Brito foram ampliadas com extensões de

áreas que correspondem a partes dos estados da Bahia e Minas Gerais. Esse patrimônio

fundiário foi sendo construído com as heranças das famílias e com as terras conquistadas

com a expropriação dos índios, que foram violentamente massacrados e dizimados pelas

expedições organizadas pelo Mestre de Campo Antônio Guedes de Brito. Sabe-se também

que ocorriam processos de ocupação das terras para, posteriormente, ser solicitada a

legalização junto à Coroa. Esse grande latifúndio ocupava partes da área central da Bahia

indo até o norte de Minas Gerais, como descreve Neves:

O mesmo Guedes de Brito, associado a Bernardo Vieira Ravasco, recebeu do Conde de Óbidos, capitão-geral da Bahia em 1663, terras desde a nascença do Itapicurú e do rio de São Francisco e por elle acima tanta léguas, quantas há da própria nascença do Itapicurú á do Paraguassú [...]. Posteriormente Guedes de Brito comprou parte do sócio. Sobre o que caberia a tribos indígenas nada se sabe. Desconhece-se qualquer reserva indígena na região. E assim comprando de parceiros em sesmarias e outros proprietários, descobrindo e conquistando territórios dos índios, o mestre de campo se apoderou, nos sertões baianos e mineiros, de áreas mais extensas que diversos países da Europa juntos ou correspondentes a vários Portugais (NEVES, 2001, p.131).

As marcas da violência e da expropriação estão presentes na gênese da formação

territorial do Sudoeste baiano. No processo de conquista do território dos índios, várias

tribos foram completamente exterminadas pelas tropas do Mestre de Campo Antônio

Guedes de Brito. Terras foram tomadas de posseiros e pequenos proprietários, além de

diversas formas de extração da renda da terra, que já se desenvolviam, nessa época

histórica, por meio de arrendamentos, foreiros, posseiros que, por não disporem de terras,

pagavam as rendas aos proprietários.

A Figura 01 refere-se ao Mapa 01, que mostra a extensão das terras que pertenciam

aos Guedes de Brito. Como podemos perceber, as propriedades ultrapassavam os limites de

alguns estados, que, na época, ainda não eram demarcados com os limites atuais.

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As propriedades sob o controle dos Guedes de Brito foram sendo ampliadas,

usando das mais diversas práticas, como as ações de espoliação de pequenos proprietários,

usando, como forma de controle, a violência e a truculência, maculando com sangue,

ilegalidade e ilegitimidade um dos maiores latifúndios dos sertões da Bahia. Segundo

Neves:

Se a imensidão das terras ermas facilitava as ocupações, propiciavam também a espoliação de posseiros pobres por proprietários mais experientes e influentes nas órbitas do poderes políticos e que dispunham, na retaguarda, das milícias coloniais. A legislação portuguesa ignorava a existência de posseiros. Em casos de conflitos se reconheciam os direitos dos donatários de sesmarias, que materializavam a onipresença do poder monárquico português, emanante da propriedade da terra. Explorando essa faculdade desde o século XVII se legalizaram extensas áreas já ocupadas, das quais passaram a cobrar foros e arrendamentos de moradores (NEVES, 2001, p. 131).

O direito a esse meio de produção se apresentava inacessível para a grande massa

de excluídos e pobres, mesmo que estivessem na condição de posseiros, tendo em vista

que, quando ocorriam conflitos por terra e litígios entre os sesmeiros e posseiros, a lei

sempre favorecia os proprietários das terras. Esse processo de disputa entre posseiros e

supostos proprietários ainda ocorre atualmente no Brasil, evidenciando que as contradições

e a concentração fundiária não sofreram grandes alterações, mesmo com o aprimoramento

das leis e instituições.

Ao analisar o parcelamento das terras por meio da sesmaria, Neves relata:

As restrições e controles das concessões e conservação de sesmarias, não eliminaram seu caráter de latifúndio inacessível ao lavrador sem recursos. Enquanto perdurou no Brasil esse sistema de repartição de terras funcionou como mecanismo de construção e consolidação da estrutura fundiária de grandes propriedades concentradora de renda, facilitando sua transferência para outros sistemas econômicos, conduta típica de economias primário-exportadoras de origem colonial (NEVES, 2001, p. 130).

Com a morte do Mestre de Campo Antônio Guedes de Brito, o patrimônio fundiário

foi transferido para sua única filha, Maria Isabel Guedes de Brito, que, juntamente com seu

marido Antônio da Silva Pimentel, administrou as propriedades, que, em grande parte,

eram arrendadas para aqueles que não tinham a terra e pagavam o arrendamento ou o foro

anual à proprietária ou aos seus procuradores. Como descreve Neves (2005, p.135), “o

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procurador de Isabel Maria cobrava rendimentos dos ocupantes, mas estes passaram a se

declarar espoliados e suspenderam os pagamentos”.

Fica desse modo evidente que a herdeira assumiu com afinco a gestão de suas terras

e usava as mesmas práticas de seu pai, para ampliar as propriedades. A disputa pelas terras

no Rio das Velhas, onde foram descobertas pedras preciosas, incitou os conflitos e os

interesses não apenas sobre as terras, mas, principalmente, sobre as riquezas minerais ali

encontradas e em processo de exploração, como relata Neves:

Logo que se descobriu ouro no rio das Velhas, na primeira metade da década de 1690, intensificou-se o povoamento de suas adjacências, iniciando com as fazendas pecuaristas de Antônio Guedes de Brito. Desenvolveu-se, a partir de então, a demanda por terras e surgiram, em conseqüência, arrendatários e posseiros que, em pouco tempo, passaram a disputar, com Isabel Maria Guedes de Brito, a posse das glebas que ocupavam (NEVES, 2005, p. 134).

Outros conflitos entre arrendatários e posseiros e a proprietária Isabel Maria

também ocorreram em outras áreas, como em Jacobina, sobretudo em decorrência das

minas de ouro que passaram a ser exploradas, tendo os ocupantes de pagar o valor do

arrendamento. Tais conflitos, segundo relato de Neves, sempre eram levados ao

conhecimento do rei, ou do seu representante na colônia, que, via de regra, sempre

reconhecia o direito da proprietária: “O conde de Assumar, por considerar a matéria de

competência régia e, enquanto o rei não deliberasse, ordenou aos moradores que voltassem

a pagar as rendas da terra a Isabel Maria Guedes de Brito” (NEVES, 2005, p. 137).

A herdeira de Guedes de Brito, juntamente com seu marido, o coronel Antônio da

Silva Pimentel, além de administrar as propriedades herdadas, atuou no sentido de ampliar

as terras, como descreve Neves, ao se referir a esse processo: “Pode-se, com base nestes

dados, deduzir que Antônio Guedes de Brito se apossara do território do centro-norte da

Bahia até a foz do rio das Velhas. Seu genro e sua filha estenderam as ocupações até as

cabeceiras desse afluente do São Francisco” (NEVES, 2005, p. 143).

Com a morte de Isabel Maria Guedes de Brito e do seu esposo, o domínio fundiário

foi transferido para Joana da Silva Guedes de Brito, neta de Antônio Guedes de Brito, que

recebeu uma imensidão de terras, correspondendo às áreas do estado da Bahia e Minas

Gerais, entre elas as porções de terras do Sudoeste baiano e as margens do Rio Gavião.

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Terras que correspondem atualmente aos municípios de Anagé, Caraíbas e Belo Campo,

onde está localizada a Barragem de Anagé.

Erivaldo Fagundes Neves descreve a transferência das propriedades de Isabel Maria

para sua filha Joana no seguinte trecho: “Isabel Maria manteve e transferiu para a filha

Joana parte do vale dos rios: Pardo e Verde Grande, todo o Médio São Francisco e a Serra

Geral, inclusive os sub-vales do Antônio, São João, Brumado e Gavião, da bacia do rio de

Contas” (NEVES, 2005, p. 143 Grifo nosso).

Com base na descrição das terras que foram transferidas para Joana da Silva

Guedes de Brito, podemos concluir que as terras que margeiam o Rio Gavião foram

propriedade dos Guedes de Brito, até a venda realizada pelo Sétimo Conde da Ponte.

Todas essas terras foram administradas por Joana da Silva Guedes de Brito, que,

após ficar viúva do primeiro matrimônio, casou-se, em segundas núpcias, com o fidalgo

português Manoel de Saldanha da Gama, e, juntos, gerenciaram as propriedades fundiárias

até o falecimento da herdeira dos Guedes de Brito.

Após a morte de Joana, todo o patrimônio fundiário foi transferido para o seu

segundo marido, tendo em vista que a herdeira dos Guedes de Brito não teve filhos em

nenhum dos matrimônios. O viúvo de Joana da Silva Guedes de Brito, o fidalgo Manoel de

Saldanha da Gama, retornou a Portugal, onde se casou com Francisca Joana Josefa da

Câmara Coutinho.

Essa descrição histórica, apesar de ser detalhada, é essencial, pois serão os

descendentes de Manoel de Saldanha da Gama e Francisca Joana Josefa da Câmara

Coutinho que irão redefinir a divisão das terras e a estrutura fundiária e vão contribuir para

reorganização territorial de grandes extensões de terras da Bahia e também de Minas

Gerais, pelo processo de venda e parcelamento desse grande latifúndio que começou a ser

formado no início do século XVI e ficou sob o domínio dos descendentes do Mestre de

Campo Antônio Guedes de Brito até o século XVIII.

Neves descreve toda a sucessão histórica do domínio fundiário dos Guedes de Brito

no trecho que se segue:

O Alto Sertão da Bahia, conquistado de povos indígenas e ocupado por Antônio Guedes de Brito, na segunda metade do século XVI, manteve-se na mesma cadeia sucessória, transferiu-se para a filha Maria Isabel Guedes de Brito e desta para a neta Joana que, depois de enviuvar-se de João de Mascarenhas, contraiu novas núpcias com Manoel de Saldanha Gama. Dona Joana não teve filho em nenhum dos enlaces e legou tudo (...) mais tarde, em seu testamento, ao segundo marido e o nomeou sucessor do Morgado (...). Depois de viúvo, Saldanha da Gama casou-se

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novamente, em Portugal e tornou-se pai de João Saldanha da Gama Melo Torres Guedes de Brito, que além das heranças paternas e maternas coube-lhe, de um tio sem descendência a titularidade de conde da Ponte (NEVES, 2005, p. 116).

Coube desse modo ao Sexto Conde da Ponte, João Saldanha da Gama Melo Torres

Guedes de Brito, a administração do patrimônio fundiário dos Guedes de Brito, no Alto

Sertão da Bahia. Analisar e estudar a atuação do Conde da Ponte é essencial para

compreender a estrutura fundiária do Sudoeste da Bahia (Território de Identidade de

Vitória da Conquista) e, também, das margens do Rio Gavião, pois foi, a partir da gestão

desses empreendimentos, que se deu o parcelamento e a divisão das terras em sítios,

fazendas e glebas e pequenas propriedades, vendidas aos arrendatários. Esse processo foi o

marco inicial da fragmentação desse grande latifúndio e da configuração da estrutura

fundiária, que, após essa divisão, passou a ter como característica a existência de uma

grande quantidade de pequenas propriedades, coexistindo com alguns latifúndios.

A descrição de Neves demonstra bem esse processo:

Após inventário e partilha dos bens de Manoel de Saldanha da Gama, o filho João, já investido no titulo de conde da Ponte, comprou dos demais herdeiros, em 1806, tudo que restava do domínio fundiário recebido em sesmarias, herdado, comprado e conquistado de índios, por Antônio Guedes de Brito, no século XVI. O conde reunificou o remanescente dos seculares domínios territoriais, iniciou processos de “libelo de reivindicação” contra cada um dos usurpadores das terras, e negociou com eles, arrendamentos ou venda das glebas que ocupavam. Mobilizou, para isto, uma rede de procuradores, através do procurador geral, Pedro Francisco de Castro, em todos os sertões, por onde se expandiam os latifúndios (NEVES, 2005, p.151).

A venda das terras foi organizada depois da divisão do grande latifúndio em áreas

administrativas, certamente para haver um controle melhor sobre a propriedade, tendo em

vista a sua dimensão, como destaca Neves:

O conde da Ponte, quando assumiu a titularidade, em fins do século XVIII, dividiu esses territórios em cinco áreas administrativas (Rio de Contas, Rio Pardo, Caetité, Urubu, Xique-Xique, Jacobina), e as denominou de distritos. Em 1819, determinou-se o tombamento do patrimônio fundiário de cada uma dessas unidades, dos quais só se conhecem apenas os dos tombos do Rio Pardo, com 105 fazendas e sítios arrendados e o de Urubu, com 111 além das grandes unidades pecuaristas dos baixos do São Francisco, administradas pelo próprio senhorio, incluídas no inventário de 1831 (NEVES, 2005, p.149).

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Os conflitos com os posseiros continuaram, inclusive aqueles que se iniciaram

quando Joana da Silva Guedes de Brito ainda era a administradora do patrimônio fundiário,

destacando-se as contestações em Jacobina, onde se explorava o ouro. Segundo Neves, “o

príncipe regente emitiu nova carta ao governador da Bahia, com determinação de que o

Juiz privativo de administração dos bens da Casa da Ponte na Bahia deslocasse para onde

situavam as terras em litígio”. Ou seja, percebemos, com essa descrição, que as disputas e

os conflitos dos posseiros e arrendatários duravam muitos anos, mas sempre o poder

central, nesse caso representado pelo Rei, atendia aos interesses dos proprietários das

terras.

Mesmo com as disputas, a atenção e o apoio dos representantes do poder, sempre

existiram e se reproduziram parcelas de camponeses em pequenas propriedades, praticando

a agricultura de autoconsumo, por meio de relações não capitalistas quanto à reprodução e

tão antigas quanto a tentativa de apropriação privada das terras.

Na descrição que segue fica ainda mais evidente essa relação:

Preservaram-se, pois, os interesses do conde da Ponte, ao reconhecer aos mineiros e lavradores de Jacobina apenas o direito a recursos ou apelações, cujas perspectivas já se anteviam. Quando ao conde, obteve mais do que pretendeu: foi nomeado Governador da Bahia pelo príncipe D. João e ocupou o cargo entre 1805 a 1809, quando morreu. Desse modo, passou a exercer influências sobre o judiciário colonial, inclusive com poderes de transferir e afastar magistrados. A partir de então, a documentação conhecida nada mais registra sobre essa quase centenária disputa de terras em Jacobina (NEVES, 2005, p.153).

A gestão do Conde da Ponte foi responsável para que o patrimônio fundiário dos

Guedes de Brito se tornasse conhecido de forma mais detalhada, com o levantamento das

propriedades, o que foi essencial para sua posterior venda, como relata Neves (2005, p.

166): “Três anos após reunificar o domínio fundiário, o conde da Ponte morreu em 24 de

maio de 1809, no exercício do cargo de Governador da Bahia.”.

Depois da morte do Sexto Conde da Ponte em 1809, a condessa e os herdeiros

deram continuidade ao inventário e, após conclusão do espólio, iniciaram o processo de

venda das propriedades. Por volta de 1818, assumiu a gestão do patrimônio o Sétimo

Conde da Ponte, o primogênito do casal.

Como descreve Neves:

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O jovem herdeiro atingira a maioridade e obtivera licença régia para se deslocar até Salvador, de onde conduziria seu plano administrativo de venda dos terrenos livres, operação já deferida por acórdão do juízo privativo, de 23 de setembro de 1817. Na suposição de que a distância entre suas terras e Salvador prejudicasse as vendas em hasta pública, como sugeriria o juiz privativo, decidiu transferir os terrenos, preferencialmente, aos respectivos arrendatários. E por desejar rapidez nas transações, o jovem conde definiu normas para sua execução a serem retransmitidos pelo administrador geral, Pedro Francisco de Castro, aos subprocuradores regionais. Por esses critérios, o administrador e procurador geral deveria listar os “prédios arrendados ou devolutos” de cada distrito e substabelecer os poderes da sua procuração para pessoas de conhecida probidade, a fim de vendê-los (NEVES, 2005, p.168).

Diferente dos demais gestores do patrimônio fundiário dos Guedes de Brito, que

ocupavam a terra ou sobreviviam das rendas cobradas dos arrendatários, o Sétimo Conde

da Ponte tinha o claro propósito de vender as propriedades e acumular as riquezas dessa

transação, ou seja, converter o patrimônio fundiário, as terras, em capital, fazendo-a

assumir sua condição fundamental de mercadoria. Essa medida foi essencial para a

conformação de uma estrutura fundiária menos concentrada, sem, contudo, extinguir os

grandes latifúndios, tendo em vista que as dimensões de algumas propriedades

correspondem a áreas de municípios atuais, como veremos mais adiante, quando

analisaremos a formação dos municípios que compõem a área em estudo.

Por volta de 1820, o valor pago pelo arrendamento das propriedades era

relativamente pequeno, diante da extensão das propriedades, mas alguns elementos

tornavam uma área mais valorizada que as demais, como afirma Neves (2005, p.174): “Os

preços dos arrendamentos e as avaliações oscilavam e se elevavam de modo considerável

quando se dispunha de mananciais permanentes, tanto nas encostas de morros e serras,

como nas bordas dos vales de vertentes”.

A presença de água interfere diretamente na capacidade produtiva da terra e, por

conseguinte, no seu valor de mercado. A existência de uma barragem, por exemplo,

redefine toda a relação do uso produtivo da terra em conjunto com a água, da mesma forma

que a proximidade de rios perenes, brejos e áreas mais úmidas, além de valorizarem as

terras, aumentam os conflitos e disputas. É preciso salientar que essas terras se localizam

no semiárido.

Outro aspecto importante a ser destacado é a preocupação com os posseiros e outras

formas “ilegais” de uso da terra, ou seja, sem o consentimento ou conhecimento do

proprietário. Os posseiros nunca eram considerados e, na prática, não existiam

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formalmente para o dono da terra, por isso a preocupação em regularizar a situação

fundiária, como relata Neves:

Para combater ocupações ilícitas, os procuradores arrendavam terrenos ocupados e concediam prazos de carência aos ocupantes. Quando a pobreza não permitia o pagamento, cediam glebas, gratuitamente, “de presente”, por determinado tempo e nunca permitia o uso da terra sem contrato formalizado. Também os descobridores que se dispusessem a medir e demarcar as unidades para arrendamento ou comercialização recebiam “de presente”, por certo tempo, a gleba que escolhiam para si (NEVES, 2005, p.168).

O destaque das aspas feito pelo autor chama a atenção para esse processo de doação

de terras “aos pobres”, que, na realidade, era uma estratégia para impedir a ocupação das

terras sem conhecimento do proprietário. A doação, na prática, era a última medida, caso o

arrendatário não tivesse condição de pagar o valor devido, mesmo com os longos prazos e

carências.

É importante mencionar ainda que, no contexto histórico em que esse processo

ocorreu, por volta de 1830, existia um considerável número de pobres, mestiços e índios

expropriados da terra, que representavam uma ameaça, caso as ocupações ilegais se

alastrassem. Muitas dessas pessoas que arrendavam as terras foram atraídas pela

mineração, que, quando entrou em decadência, fez com que elas se estabelecessem nessas

regiões e passassem a trabalhar na terra.

Neves afirma nesse sentido:

O conceito de arrendamento de terras relaciona, diretamente, um inquilino como possuidor precário de uma gleba dentro de uma propriedade, com o proprietário, ao qual se torna semidependente. Nos seus domínios os Guedes de Brito arrendavam grandes faixas de terra para o assentamento de fazendas pecuaristas, desde finais do século XVII. Quando esses domínios transferiram-se para a Casa da Ponte, no final do século XVIII, a decadência aurífera dispersava pelos sertões, grandes contingentes de despossuídos de meios para produzir a subsistência, que não foram absorvidos como mão-de-obra pelos fazendeiros, empregadores preferencialmente de trabalhos escravo. A enorme disponibilidade de terras desocupadas oportunizou ocupações de áreas, onde essas famílias produzissem o sustento e multiplicaram-se os apossamentos ilícitos, fora das grandes fazendas. Os agentes da Casa da Ponte apresentaram-lhes os contratos de arrendamentos, e desse modo, generalizou-se esse sistema de uso da terra em pequenas glebas (NEVES, 2005, p. 184).

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Evidencia-se, com esta citação, o processo de minifundização das terras do Alto

Sertão da Bahia, atualmente Sudoeste da Bahia, revelando uma contradição: apesar de ser

o controle e o cativeiro de muitos que eram atraídos para o trabalho, houve a ocupação e o

apossamento das terras por pequenos sitiantes, que se estabelecerem nas pequenas glebas,

vizinhas e próximas às grandes propriedades. Nessa lógica, foram sendo estruturadas e

desenhadas as disparidades no que se refere ao controle e uso da terra, base da principal

contradição no campo baiano: latifúndios e grandes propriedades pouco produtivas, ao lado

de pequenas propriedades camponesas policultoras, que produzem os principais alimentos

de consumo da população.

Na citação seguinte, percebemos alguns indícios da origem histórica desse

processo, conforme relato de Erivaldo Neves:

Os primeiros arrendatários chegaram ao Alto Sertão da Bahia como administradores das fazendas dos Guedes de Brito ou levaram os recursos para se estabelecerem como fazendeiros em terras alugadas. O segundo fluxo caracterizou-se pela pobreza, quando não indigência, de pessoas que não dispunham de meios para se instalarem como posseiros. Estes, com um pouco de sorte, tornavam-se meeiros, e negociavam a sobrevivência com a extrema dependência do patrão, caso contrário restava-lhes a possibilidade de conseguir trabalho avulso, como diarista, nem sempre encontrado numa sociedade escravista (NEVES, 2005, p. 184) Grifo Nosso.

Ao retomarmos a história da formação territorial do Sudoeste baiano, alguns relatos

e descrições parecem se referir à realidade atual, dada a semelhança, em vários aspectos,

como a pobreza e a desigualdade, do final do século XVIII, relatadas por Neves e que

ainda estão muito evidentes na realidade sertaneja da Bahia. Ou pouca coisa mudou ao

longo da história, ou a história ainda é a mesma, ou muito semelhante.

É importante saber que todo esse processo de venda de terras ocorreu antes da

promulgação da Lei de Terras de 1850, ou seja, já havia um processo de mercantilização

da terra, mesmo antes da sua condição de mercadoria legalmente consolidada. Daí a

preocupação do Sétimo Conde da Ponte em apressar o processo de venda das terras, como

descreve Neves:

Quando os reflexos das revoluções liberais da Europa irradiaram-se no Brasil, a Casa da Ponte apressou-se em converter seus inquilinos em proprietários. O inventário do Conde da Ponte indica as razões pela pressa na venda das terras. Como ressaltou um cronista sertanejo do

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início do século XX, os herdeiros, no temor da eventual encampação dos seus domínios, venderam a baixos preços aos sargentos-mores, e ricaços, extensíssimos latifúndios extremado e transferiram as pequenas glebas 4para ocupantes ilícitos e arrendatários (NEVES, 2005, p. 184).

Com isso e como se antevissem a Lei de Terras, promulgada vinte anos após a

venda das terras, que ocorrera por volta de 1831, os herdeiros dos Guedes de Brito

venderam todas as terras, para, certamente, evitar processo de litígios e disputas com a

Coroa. Esse fato contribuiu para conformação territorial da região e para a constituição da

estrutura fundiária, como descreve Neves:

Esse vasto loteamento, iniciado pelas herdeiras dos Guedes de Brito e concluído pela Casa da Ponte, delineou a estrutura fundiária do Alto Sertão da Bahia, no século XIX, caracterizada pelo grande número de pequenas e médias unidades agrárias, entremeadas por número de grandes domínios, estrutura que permaneceu até a contemporaneidade, com a mesma feição, embora reduzissem as áreas do latifúndio, que ficaram descontínuos, e os grandes proprietários senhores de várias glebas distantes umas das outras. Se por um lado a sucessão hereditária parcelou a terra e multiplicou os titulares, por outro, através da comercialização, concentrou a propriedade, embora predominassem as unidades menores, trabalhadas pelos próprios donos e suas famílias. Nas maiores manteve-se a pecuária, já não mais extensiva, com os proprietários vivendo nas cidades (NEVES, 2005, p. 185). Grifo nosso

Dessa forma foram lançadas as bases da constituição dessa parcela da sociedade

alto-sertaneja, principalmente daqueles que viviam da terra: de um lado, a consolidação

dos latifundiários e proprietários de terras, que, no processo de hereditariedade, transferem

o patrimônio para seus descendentes, estendendo seu poder também por meio da política

ou da escolarização, criando outras formas de domínio e controle; e, do outro, em sentido

inverso, a formação do campesinato, que se instala em pequenas propriedades e vai sofrer

o efeito inverso da hereditariedade, ou seja, a pequena propriedade será repartida com o

grande número de descendentes, promovendo a partilha e o aumento no número de

pequenas propriedades.

Em muitos casos, a terra restante se torna insuficiente para garantir a permanência

de toda a família na propriedade, o que vem a promover o êxodo das famílias para as

4 O termo Gleba é utilizado pelo autor para se referir a pequenas parcelas de terras, geralmente referentes a áreas que foram repartidas dentre dos grandes latifúndios.

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cidades, aumentando o contingente de trabalhadores sem-terra ou de trabalhadores rurais

disponíveis a vender sua força de trabalho no campo.

No que se refere ao tamanho das propriedades da época, Neves faz uma descrição

bastante interessante:

Por serem de regiões semi-áridas, serranas e pedregosas ou de baixios arenosos, pouco apropriados ou impróprios para a agricultura, áreas com até mil hectares, no início do século XIX, não se constituíam unidades agrárias de significado econômico, porque produziam pouco mais que a subsistência do proprietário ou arrendatário e sua família. Parece razoável considerar, para essa época (1819), áreas com até 500 hectares, pequenas propriedades, com 501 a mil, médias e a grande, com mais de mil hectares (NEVES, 2005, p.180).

O conceito de pequena propriedade ou latifúndio é muito relativo e a descrição

depende muito do contexto histórico. Atualmente o IBGE classifica como pequena

propriedade aquela que gira em torno de 100 hectares; como grande propriedade aquela

com mais de 1000 hectares, mesmo levando em consideração o estabelecimento dos

módulos rurais, como índices de medição de propriedades que têm tamanhos distintos para

as diferentes regiões.

Tendo em vista a quantidade de herdeiros, essas terras passaram a ser repartidas

com os descendentes dos proprietários, promovendo distribuição e parcelamento

espontâneo das terras entre membros das próprias famílias. Isso contribuiu para a

reafirmação e consolidação da minifundização no Alto Sertão da Bahia e o fim dos

domínios fundiários dos Guedes de Brito, como descreve Neves:

A partir dessa época, a Casa da Ponte vendeu até a liquidação final na década de 1830, todos os bens imóveis dos sertões da Bahia e Minas Gerais, e os transferiu aos arrendatários, para os quais parcelava pagamentos, ou a outros interessados. Desse modo, como já fazia desde final do século XVIII, definiu o perfil da estrutura fundiária do Alto Sertão da Bahia e suas vizinhanças no século XIX. Desde então, a propriedade fundiária fragmentou-se em sucessivas partilhas de inventários pós-morte, de tal modo, que a tendência contrária de concentração, através da compra não conseguiu reverter o processo de minifundização (NEVES, 2005, p.181).

Consolida-se, assim, a negação histórica do direito à terra para a grande massa de

excluídos, mestiços e pobres do Brasil, também, nos sertões da Bahia. Esse processo, com

o passar do tempo, foi se agravando, uma vez que a população crescia, e a terra, ou se

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concentrava nas mãos dos que detinham poder para comprá-la, ou ia sendo parcelada e

dividida, após a morte dos proprietários, entre os herdeiros.

O acesso à terra tornou-se ainda mais difícil depois da criação da Lei nº 601, de

setembro de 1850, a conhecida Lei de Terras. Foi objeto de debates durante muitos anos

antes de ser aprovada e teve como pilares duas concepções básicas discutidas na

Assembleia, como descreve Neves:

Na primeira formulação, tradicional, vislumbra-se a terra como domínio da Coroa, para ser doada principalmente como recompensa por serviços prestados; a sua propriedade significava essencialmente prestigio social. Na segunda elaboração, a moderna, a terra tornou-se domínio público, e converteu-se em mercadoria, acessível apenas aos possuidores dos meios necessários para explorá-la lucrativamente, e a sua propriedade significava essencialmente poder econômico. Nesse debate parlamentar de meados do século XIX, esteve sempre presente o empenho na preservação das velhas estruturas, inclusive a manutenção do trabalho escravo, a defesa da propriedade e outros princípios liberais, que deveriam preconizar a reforma de ordem social (NEVES, 2005, p. 188).

A Lei de Terras definiu, em linhas gerais, que o acesso à terra só seria possível

através da compra. A tramitação demorou cerca de sete anos – evidenciando os conflitos e

as contestações já naquele período da sua promulgação – e foi aprovada duas semanas

depois da extinção legal do tráfico de escravos, processo que já acenava para as mudanças

no sistema escravocrata, inclusive a abolição dos escravos, o que poderia gerar problemas

por disputas por terra.

Sobre este ponto, Germani afirma:

Se para o trabalhador livre, para o mestiço, esta lei significou o “cativeiro” da terra, para o capital significou sua liberdade. A terra já não estava disponível para ser ocupada, como um regime anterior, se não livre para ser transformada em mercadoria a ser adquirida pelos que tiveram condições para ela; ao final, estava livre para gerar a renda capitalista da terra. (GERMANI, 1997, p. 14).

Numa sociedade essencialmente desigual, a consolidação da terra como mercadoria

e o acesso a ela por meio da compra criam as condições para o aumento das disputas entre

as classes sociais pela terra, evidenciando a contradição básica da formação territorial do

Brasil, os conflitos e a expropriação. Como comenta Neves:

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A Lei de Terras determinara uma reforma da estrutura fundiária para expropriar camponeses e índios, porque fez “exigências de apresentação de títulos”, que estabeleceu “a compra como única forma de acesso legal a terra”. Em regiões de ocupação antiga, como formas tradicionais de exploração, causam perplexidade, ao determinar a definição de áreas não ocupadas, porque a idéia de ocupação teria contornos mais amplos que a titulação de propriedade (NEVES, 2005, p. 198).

A Lei de Terras representou, concretamente, o processo de cercamento e

aprisionamento da terra pelo capital, na condição de mercadoria, concentrada nas mãos das

classes dominantes e distante da grande massa de expropriados, já historicamente

destituídos da terra e do direito de nelas se instalarem. No Alto Sertão da Bahia, a Lei de

Terras reafirmou um processo que já havia se estabelecido com a venda das terras dos

Guedes de Brito, alguns anos antes, e representou uma forma concreta de inviabilizar o

acesso a terra àqueles que, historicamente, já estavam impedidos de se apossar da terra e

que, então, passaram a ser proibidos legalmente.

As legislações posteriores apenas reafirmaram esse princípio da concentração da

terra e da legitimidade da propriedade privada, além de lançarem as bases para a

consolidação dos grandes proprietários fundiários, que a tinham como principal meio de

produção. A minoria que concentrava as terras passou a controlar o poder político,

composto fundamentalmente pelos senhorios do poder agrário. Neves comenta sobre isso:

O regime republicano assegurou o domínio fundiário. O Regulamento da Terra de 1913, por exemplo, caracterizou-se como expressão típica da hegemonia agrária, na qual legitimou e consolidou uma estrutura fundiária que, continuamente, aumentava seu grau de concentração. A rígida estratificação social, a condensação econômica e a centralização política impediram a organização de movimentos sociais reivindicatórios, e aglutinou despossuídos e posseiros. As leis agrárias no Brasil sempre expressaram a incapacidade governamental, no Império e na República, de agir contra os interesses do grande domínio fundiário e traduziram o interesse de se postergarem todas as tentativas de se reformar o regime de propriedade, posse e uso da terra (NEVES, 2005, p. 199).

Todo esse processo reafirma a íntima e histórica relação entre os latifundiários e o

Estado e, mais que isso, sua inserção no poder central do país, seja no Executivo, seja no

Judiciário seja, sobretudo, no Legislativo. Esse processo ainda é bastante presente na

atualidade, e o exemplo claro disso é a permanência e a perpetuação de grupos ligados a

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terra, os ruralistas, posteriormente agrupados na UDR, e mais atualmente representados

pelos produtores rurais vinculados ao agronegócio.

No que tange à legislação sobre terras, foram feitas poucas alterações, como o que

ocorreu no período da República Velha, contexto em que foram mantidos os princípios do

direito privado da terra. Mudança significativa foi estabelecida na Constituição da I

República de 24 de fevereiro de 1891: a passagem das terras, antes sob o controle da

União, para o controle e gestão dos estados, ou seja, as terras devolutas passaram a ser de

domínio dos estados, ficando para a União as áreas de proteção das fronteiras e áreas de

ferrovias federais.

A transferência do controle das terras da União para os estados não alterou

significativamente o acesso à terra, sobretudo para aqueles que nunca não tiveram tal

acesso, uma vez que as legislações estavam sustentadas ainda nos princípios da Lei de

Terras, que, mesmo sem validade, constituíram um conceito do acesso e do direito à terra.

Nessa conjuntura também as concessões, a legitimação das posses e a validação dos

sexmos foram extintos. Outro instrumento legal que surgiu nesse período histórico foi o

usucapião, que dava direito à escritura das terras àqueles que nelas estivessem por pelo

menos dez anos. Esse era o propósito para regularizar as terras não regulamentadas pela

Lei de Terras.

Todo esse processo que ocorria em escala nacional também acontecia na formação

social, econômica e territorial do Alto Sertão da Bahia. Pois, com as vendas das

propriedades fundiárias dos Guedes de Brito, foram se formando caminhos e passagens de

comerciantes, tropeiros e boiadeiros, que, ao se instalarem, começavam a formar pequenos

núcleos e vilas, construindo uma verdadeira rede regional de comércio intrarregional,

contribuindo para constituição da estrutura fundiária, possibilitando um fluxo de pessoas e

mercadorias.

Como nos informa Neves:

Esses fluxos imigratórios estabeleceram uma população de arrendatários e de proprietários de médias e pequenas nesgas de chão, com o emprego do trabalho familiar, que formou, na sociedade escravista, um núcleo de produtores autônomos. Também se deslocaram nessas migrações, contingentes de desprovidos de recursos para a aquisição do principal meio de produção, a terra, que disponibilizaram mão-de-obra como meeiros e diaristas. Esses imigrantes integraram-se no desenvolvimento da pecuária e das policulturas agrícolas e formaram os incipientes mercados locais, conectados por tropeiros e boiadeiros aos circuitos de comercio inter-regionais (NEVES, 2005, p.205).

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Os municípios que compõem o campo da pesquisa, ou seja, os municípios de

Anagé e Belo Campo, foram se formando nesse período e tinham como elementos centrais

o Rio Gavião, que possibilitava a agricultura em suas margens, e também a localização,

pois ficavam em pontos de ligação intrarregionais, sobretudo Anagé, que ligava o Sertão

da Ressaca (terras próximas ao atual município de Vitória da Conquista) a partes da Serra

Geral e Médio São Francisco. Esse trajeto era utilizado para o transporte de gado e

mercadorias, pois era parte da ligação entre o sertão e o litoral.

No que se refere ao espaço agrário e à composição da estrutura fundiária, Neves vai

demonstrar que houve um considerável aumento no número de posseiros:

Quanto aos posseiros, inexistentes na fase inicial e que passaram a representar cerca de 13% e 10% nas duas metades do século XIX, deve-se considerar que não se trata de posses ilícitas (não toleradas pela Casa da Ponte), mas de herdeiros cujas terras, partilhadas juridicamente nos autos inventários de seus ancestrais, não foram demarcadas. Refere-se, pois, a proprietários de terras em comum, ocupadas aleatoriamente, pelos legítimos donos ou alguns deles, ou ainda posses dessa natureza adquiridas por compras (NEVES, 2005, p. 213).

A existência e permanência dos posseiros é uma característica fundamental dos

sujeitos sociais que atuam no campo no Sudoeste baiano, tanto assim que, na atualidade,

ainda existem conflitos e disputas entre senhores de terras e posseiros. Mais adiante Neves

faz um importante destaque:

Os registros paroquiais apresentam elevado índice de posseiros, porque assim denominavam os herdeiros de espólios partilhados judicialmente, mas não demarcados, um recurso usado para evitar custos, que muito representavam numa economia de pouca circulação monetária. O costume de herdeiros ocuparem glebas que julgassem de seu direito e explorarem eventualmente as parcelas dos que emigravam ocasionou freqüentes conflitos entre vizinhos e parentes (NEVES, 2005, p.255).

Acreditamos que esses posseiros foram construindo uma estrutura socialmente

camponesa nessas pequenas propriedades, sustentados pelo trabalho familiar na terra,

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conciliado com o trabalho nas grandes e médias fazendas, seja em forma de meação e

parceria, seja na venda de dias de serviço5. Sobre esse tema, Neves comenta:

Os sistemas de exploração da terra, desenvolvido a partir do século XVIII, que se consolidou no Alto Sertão da Bahia, corresponde ao que a Sociologia classifica de estrutura camponesa: 1) predomínio de pequenas e médias unidades produtoras; 2) emprego em maior escala do trabalho familiar, mas com a meação e o diarista em determinadas ocasiões; 3) dinâmica mercantil as articulada com o mercado regional, todavia exportava também para outras praças nacionais e exteriores. Uma estrutura econômica empreendida em várias partes do Brasil.[...] Esses espaços ampliavam-se, do mesmo modo que no Alto Sertão da Bahia, na proporção em que “famílias pobres e livres convertiam-se em camponeses”, com adoção de formas campesinas de produção e de coesão social, como alternativa para resistir a pressão da sociedade colonial (NEVES, 2005, p. 243).

Levando em consideração o número de propriedades e a extensão da pesquisa do

autor que analisou esse processo em todo o Alto Sertão da Bahia, inferimos que essa

realidade ocorreu em vários municípios, inclusive em Anagé e Belo Campo6. Acreditamos

que tenha sido o caso dos posseiros atingidos pela construção da Barragem de Anagé, que

expropriou cerca de 800 famílias camponesas, conforme relato de alguns entrevistados, em

sua quase totalidade posseiros, e que, por isso, não tiveram o direito a indenização pelas

terras que foram alagadas, recebendo apenas as indenizações referentes às benfeitorias. Em

pesquisa de campo, foi possível concluir que as famílias já viviam nessas áreas havia, pelo

menos um século, como fica evidente no depoimento de uma senhora de 72 anos que

nasceu e se criou nas barrancas do Rio Gavião:

Eu nasci aqui, me criei aqui, tive os filhos tudo aqui e criei tudo aqui, tive 10 filho, minha terra era aqui nessa estampa da barragem, eu perdi 11 hectares, só ficou esse pedaço de terra, mas eu não recebi nada, não me indenizou, nem benfeitoria, não recebi nada, eles ficou dizendo que era pra indenizar todo mundo e que em 10 meses tinha que sair todo mundo. Todo mundo aqui sempre morou aqui, meus avôs, e meu pai nasceu tudo aqui, inclusive meu pai morreu na época que construíram essa barragem. Eu tenho ao todo 10 irmão, ele todos trabalhavam aqui, depois da barragem todo mundo perdeu as terras que era uma terra boa. Inclusive

5 Regionalmente denomina-se de Dias de Serviço a forma de contratação de trabalhadores rurais contratados para trabalhar por alguns dias, sem se submeterem as relações de trabalho da conforme a CLT, o contratante paga apenas o valor referente ao dia, sem garantir direitos trabalhistas. 6 Estamos nos referindo apenas a dois municípios, tendo em vista que o município de Caraíbas foi criado com o desmembramento das terras de Belo Campo na década de 1990.

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essa terra que tô aqui eles diz que é o DNCOS, aqui nós plantava mandioca, abóbora, milho, feijão, melancia, até mamona nós já plantamos aqui, e hoje eu ainda continuo plantando, na época da chuva, milho, andu, feijão, melancia e abóbora, um pouco de mandioca (A.M., pesquisa de campo, 2008) Destaque nosso.

A existência de posseiros em grande número é um dado relevante em vários pontos

do Brasil e também no Alto Sertão da Bahia, processo esse que foi responsável pela

expropriação de centenas de pessoas, além de ser também motivo para muitos conflitos

pela terra, entre posseiros e supostos proprietários, e pela disputa entre agentes do Estado,

como foi a situação de Anagé, pois o agente questionador naquela situação foi o

Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS), que, por não reconhecer o

direito dos posseiros, promoveu a sua expropriação.

Na formação territorial do Alto Sertão da Bahia, houve, historicamente, uma

disputa pela terra, um processo de expropriação desde as terras dos indígenas, que foram

submetidos a um verdadeiro massacre.

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3 A AÇÃO DO ESTADO, O PLANEJAMENTO E AS TRANSFORMAÇÕES NO ESPAÇO AGRÁRIO

“A ordem burguesa, que no início do século colocou oEstado como sentinela diante da recém‐criada pequenapropriedade rural e a estrumou com louros, tornou‐seumvampiroquelhesugaosangueeosmioloseajoganocaldeirão alquímico do capital”. (Karl Marx: As lutas declassesnaFrançade1848a1850).

A Geografia é a ciência que tem como objeto a análise da relação da sociedade com

a natureza nos diversos tempos históricos, mediada pelo trabalho, e que tem como

expressão material o próprio espaço geográfico. Diante disso, é essencial compreendermos

o processo de apropriação da natureza pelas classes sociais antagônicas e os conflitos

sociais resultantes, tendo em vista a materialização desse processo, ou seja, a expressão

geográfica da essência capitalista.

Sobre o capitalismo, que é baseado na sociedade estruturada em classes,

concordamos com Lipietz:

A estruturação do espaço é a dimensão espacial das relações sociais, e, sendo estas lutas de classes, a estruturação do espaço é lutas de classes, não somente no sentido de que ela é produto delas, mas no de que ela é o que está em jogo e, mesmo, um meio delas (LIPIETZ, 1988, p.105).

O espaço é o resultado e a condição para a ação da sociedade em sua relação com a

natureza. Um espaço social na sociedade capitalista, que é desigual em sua essência,

produzirá um espaço também desigual.

Para uma melhor compreensão do processo de produção e transformação do espaço

geográfico, daremos maior atenção ao contexto histórico da consolidação do modo de

produção capitalista e às consequências nas transformações espaciais, tendo em vista que

as relações da sociedade com a natureza foram intensamente alteradas pelo capitalismo,

com ação mediadora e conciliadora do Estado.

Diante disso, pretendemos analisar o papel do Estado, entendido como um agente

que atua diretamente na produção e transformação do espaço geográfico, seja com as obras

públicas, a exemplo das barragens, seja com as políticas estatais. Toda ação estatal

prescinde de um planejamento, etapa de concepção e elaboração, por isso pretendemos

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discutir também o conceito de planejamento e as intencionalidades dos projetos de

intervenção do Estado que transformam o espaço e as relações sociais, sobretudo com a

construção de barragens, e a repercussão dessas obras no espaço agrário e nas disputas

territoriais.

A ação do Estado se expressa de formas diversas, seja de forma direta por meio de

seus organismos, seja por meio de entidades que desenvolvem ações mais indiretas. Todas

as ações resultam de projetos ou de um conjunto de políticas públicas, a exemplo dos

Planos de Desenvolvimento Nacional ou dos Planos Plurianuais, que estabelecem as

diretrizes e os interesses do Estado para um determinado período de tempo.

É importante analisarmos as obras estatais para compreender de que forma a

estrutura do Estado e os recursos públicos são utilizados e como essas intervenções se

processam direta ou indiretamente na sociedade e no espaço. Essa análise serve também

para discernir se as obras públicas contribuem para a melhoria das condições de vida da

sociedade ou se estão postas para atender os interesses imediatos das classes sociais

dominantes.

No caso do projeto da Barragem de Anagé, é essencial compreender as reais

intenções dessa obra e os interesses dos seus idealizadores. Será que esse projeto intentou

melhorar as condições de vida da população com o represamente da água? Ou foi

viabilizado para atender mais objetivamente a lógica capitalista, por meio de incentivo ao

desenvolvimento do agronegócio?

Esperamos, com a análise dos objetivos da construção da Barragem de Anagé,

compreender as contradições decorrentes dessa obra e verificar em que medida ela

modificou o espaço geográfico, as relações sociais e intensificou as disputas pela terra e

pela água. Julgamos ser fundamental partir da discussão do conceito de Estado e de

Planejamento para entender como essas ações se materializam e transformam o espaço.

Outro aspecto que deve ser analisado é o conceito de desenvolvimento, a fim de

percebermos o que representou, no caso da Barragem de Anagé, tendo em vista que foi na

lógica desenvolvimentista que tal projeto se efetivou. Tal conceito traz na sua gênese a

contradição de ser essencialmente desigual, levando em consideração que, sob a égide da

sociedade capitalista, não existe igualdade de condições, ou seja, para o progresso de

alguns, necessariamente há o retrocesso de outros.

Para Smith,

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O desenvolvimento desigual do capitalismo é antes estrutural que estatístico. Os padrões geográficos resultantes são completamente determinados (no sentido oposto de determinista) e são, assim, peculiares ao capitalismo. Basicamente, pretendo mostrar que o desenvolvimento desigual é a expressão geográfica sistemática das contradições inerentes à própria construção e estrutura do capital (SMITH, 1988, p. 16).

Por isso, para discutir políticas públicas de desenvolvimento, como as que foram

concebidas para projeto da Barragem de Anagé, temos de compreendê-las como um

conjunto de ações que modificam o espaço, transformam as relações sociais, promovem as

mudanças estruturais necessárias ao capital, melhoram as condições para sua realização. O

represamento da água e a apropriação da terra de forma capitalística foram essenciais para

a instalação das empresas vinculadas ao agronegócio e, para que essas modificações se

efetivassem plenamente, foi imprescindível que outras lógicas diferentes e contrárias aos

interesses capitalistas fossem destruídas e reduzidas – por isso, o processo de expropriação

dos camponeses de suas terras e a destruição do seu modo de vida e organização social.

Na prática, o desenvolvimento tende a se apropriar das diferenças e impor sua

hegemonia, pois a lógica do progresso busca impor uma concepção de avanço e evolução

que, para se concretizar, precisa romper o “atraso”, ou seja, tudo que não está vinculado ao

sistema capitalista precisa ser transformado e destruído por constituir empecilho aos seus

interesses.

Para que haja a realização do capital e o atendimento aos interesses das classes

sociais dominantes, é preciso que haja a exploração do trabalho, a expropriação ou a

subsunção do trabalho. Na realidade, o desenvolvimento se realiza nessa contradição.

No caso específico do projeto da Barragem de Anagé, para que os agricultores

vinculados ao agronegócio se instalassem às margens da barragem, a expropriação dos

camponeses de suas terras foi fundamental. Na prática, para garantir a territorialização do

capital, foi necessário desterritorializar o campesinato. A luta pela terra e pela água

representa, na realidade, a disputa pelo território, a expressão material da luta das classes

sociais, por isso a compreensão das transformações territoriais promovidas pela Barragem

de Anagé se dá pelo entendimento da luta das classes sociais e sua expressão geográfica.

No processo histórico de produção do espaço agrário, o Estado tem uma presença

constante e contraditória e deve ser concebido não apenas como um elemento de

conciliação ou de regulação da sociedade e dos conflitos característicos das classes sociais

no capitalismo, mas, eminentemente, como um representante e instrumento das classes

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sociais dominantes, tendo em vista que os interesses dessas classes foram sempre

preservados e atendidos em detrimento das demandas sociais.

É importante compreendermos que a contradição é uma característica fundamental

do Estado sob o modo de produção capitalista, pois a sua ação tem o propósito de justificar

e garantir a manutenção do sistema e, ao mesmo tempo, suprir as demandas e necessidades

sociais mais superficiais, porém sem alterar essencialmente as desigualdades sociais

estruturais.

Como afirma Lênin,

O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são irreconciliáveis (LÊNIN, 2007, p.23).

O Estado é, portanto, produtor dos antagonismos e contradições sociais derivados

do capitalismo e, nesse processo irreconciliável das classes sociais, assume o papel de

representar e garantir a manutenção da ordem social, posicionando-se a serviço da

burguesia e das elites locais, por conseguinte promovendo as condições necessárias à

acumulação do capital.

Na construção da Barragem de Anagé, essa assertiva se confirmou já que os

recursos públicos disponibilizados para essa ação foram utilizados para atender as

demandas da lógica capitalista e os interesses das classes sociais dominantes. A

implantação desse projeto tinha como intenção principal promover o “desenvolvimento

regional” das cidades beneficiadas pela represa, sem levar em consideração o processo de

expropriação da população que vivia nas terras havia mais de um século, conforme relato

dos entrevistados pela pesquisa.

A ação estatal foi dirigida para promover transformação no modo de vida e na

estrutura social, gerando mudanças no espaço geográfico e nas relações sociais, com a

expansão da agricultura irrigada, que expropriou os sertanejos de Anagé, para possibilitar a

edificação de outras formas de uso da terra e da água.

Concretamente substituíram-se as formas de trabalho e de uso da terra tipicamente

camponesas para atender os interesses mais específicos das pessoas com maior poder

aquisitivo, por meio do agronegócio. Nesse processo, o aparato do Estado prestou o papel

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de dar sustentação às contradições sociais com vistas a garantir a livre circulação e a

acumulação do capital.

Apesar de, em alguns momentos, o Estado assumir a função de mediador dos

conflitos das classes sociais, ao atender minimamente as reivindicações dos trabalhadores a

fim de sanar as mazelas e as contradições sociais e, dessa forma, desarticular as

mobilizações e contestações, não promove qualquer tipo de mudança estrutural.

Como concorda Maranhão,

Com efeito, o Estado é conteúdo na medida em que representa uma correlação, dinâmica e mutável convém salientar, de forças sociais. É, por assim dizer, a materialização dos conflitos de classes sociais que se enfrentam se realinham, se associam e se dissociam. Mas o Estado é também forma, na medida em que esses conflitos e associações, realinhamentos e dissociações, refletindo o movimento das classes sociais, se corporificam e se materializam em um aparato institucional, isto é, na medida em que se vão constituindo as várias instituições do Governo, entendido aqui em seu sentido mais genérico (MARANHÃO, 1984.p. 84).

No que se refere à questão agrária, a ação do Estado não é diferente, pois é, através

do seu aparato jurídico-institucional, que garante a propriedade privada da terra e permite a

apropriação de grandes porções de terras pelos latifundiários com vistas a garantir a

extração da renda da terra. Permite também ou concorda com a grilagem de terra, no

momento em que não fiscaliza ou pune os grileiros, que são os grandes proprietários.

A presença do Estado é marcante na produção do espaço agrário, pois produz e

permite a manutenção da estrutura fundiária, com suas contradições marcadas pelos

conflitos entre as classes no seu processo de produção e reprodução.

Esse processo pode ser percebido quando analisamos, por exemplo, as políticas

públicas de desenvolvimento da agricultura brasileira, sobretudo a partir da década de

1970. Esse “pacote” de medidas tem como ponto central a implantação de inovações

tecnológicas subsidiadas pelo Estado e por seus organismos, como ocorreu na “Revolução

Verde”, que foi um marco histórico na consolidação dos grandes latifúndios e na

legitimação da ocupação de terras públicas por grupos privados de empresários do

agronegócio. Terras que foram transformadas em grandes empresas agrícolas com alto

potencial produtivo, como pode ser percebido no Cerrado brasileiro e, mais

especificamente, no Oeste baiano nas grandes plantações de soja e outros grãos.

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A implantação de um “modelo” de desenvolvimento baseado na “modernização”

tem agravado a questão agrária, tendo em vista que esse desenvolvimento é desigualmente

combinado, ou seja, permite o crescimento econômico da burguesia e o aumento da

miséria e da exploração do trabalho.

O agronegócio se consolida como modelo ideal, sobretudo no contexto da

implantação das políticas neoliberais. Principalmente a partir da década de 1990, tem

representado o modelo de desenvolvimento adotado como ideal para o campo brasileiro,

levando-se em conta a possibilidade de geração de renda e a acumulação para capitalistas,

latifundiários e rentistas.

Essa concepção tem também a função de tornar os grandes latifúndios “produtivos”

e “rentáveis”, mascarando uma realidade – o caráter improdutivo da maior parte das

grandes propriedades –, o que permite que não sejam postas para desapropriação com fins

de reforma agrária. Mas objetivamente, no caso do Nordeste brasileiro, o Estado tem tido

também o papel do estimular o “desenvolvimento” por meio de políticas públicas e

projetos de desenvolvimento regional, que, na prática, se consolidam na transformação de

formas de organização e trabalho tradicionais em modelos de produção e organização

totalmente inseridos na lógica da acumulação capitalista.

No caso do projeto da Barragem de Anagé, o desenvolvimento do agronegócio a

partir da irrigação representou o ideário do progresso para justificar a sua execução. Na

prática, esse desenvolvimento beneficiou um pequeno número de pessoas, em grande parte

vindas de outras cidades e regiões, e permitiu a expropriação e a exploração do trabalho

dos atingidos.

As áreas onde hoje estão edificadas as empresas de fruticultura irrigada eram o

território camponês, espaços da antiga ocupação, onde se desenvolvia a agricultura de

subsistência, que utilizava o trabalho familiar e o cultivo de produtos voltados ao consumo

da família. A grande maioria desses camponeses era formada de posseiros que não tinham

o título de suas propriedades e concebiam a terra como a terra de trabalho, ou seja, a base

material que garantia a sobrevivência de suas famílias. Diferente da nova forma de uso que

passou a ser desenvolvida pelos empresários capitalistas, ou seja, a produção de valor,

através da renda da terra, e a acumulação de capital.

Essas transformações resultaram não apenas na mudança da paisagem, mas

concretamente em novas formas de uso da terra, intensificando as disputas pelo território.

Esses novos modelos de produção e uso da terra e da água têm o propósito de substituir o

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que era visto pelo Estado como atrasado e rudimentar, a agricultura camponesa, por não

estar totalmente inserida na lógica capitalista, por uma agricultura comercial ou de

mercado.

Essa concepção modernizante de agricultura traz em seu bojo um “pacote” de

políticas agrícolas que visam à implantação do agronegócio ou, mesmo, de sistemas de

produção integrados à lógica mercadológica, cujas transformações têm implicações diretas

no espaço agrário e na realidade social do campo e da cidade. Reafirmam-se alguns

processos típicos desse modelo, tais como a legitimação dos grandes latifúndios, tornando-

os “produtivos”, contribuindo para a concentração das terras e para os conflitos; o cultivo

de monoculturas em grandes áreas; a subordinação da produção ao mercado externo,

promovendo o encarecimento dos produtos ou o desabastecimento do mercado interno.

Além disso, estrutura agrícola altamente mecanizada requer o uso intenso de

inseticidas, grandes áreas de irrigação, expropriação de pequenos produtores com a sua

transformação em trabalhadores assalariados ou em trabalhadores submetidos a relações

precárias de trabalho, a exemplo dos boias-frias ou, ainda, a apropriação do trabalho e da

produção de classes não capitalistas, como ocorre com os camponeses por meio da

monopolização da produção, processo em que o capital controla a produção e a venda,

mesmo não se territorializando.

Para Oliveira, no campo, Esse efeito está igualmente marcado pela industrialização da agricultura, ou seja, pelo desenvolvimento da agricultura capitalista que abriu a possibilidade histórica aos proprietários de terras ou aos capitalistas-proprietários de terra para a apropriação da renda capitalista da terra, quer na sua forma diferencial e/ou absoluta. Está marcado, pois, pelo processo de territorialização do capital, sobretudo nos monopólios (OLIVEIRA, 2004, p. 40).

Esse modelo de “desenvolvimento” da agricultura, orquestrado com a tutela do

Estado, tem-se consolidado com a função de garantir a apropriação da terra pelo capital,

seja no controle da produção com a monopolização indireta, seja na aquisição de grandes

áreas, com a territorialização do capital no campo. Nesse modelo, o Estado tem

desempenhado um papel essencial na garantia da ampla investida do capital na agricultura.

Com a construção da Barragem de Anagé, novas formas de uso da terra e da água

passaram a ser desenvolvidas. A presença da água, dando a possibilidade de irrigar as

terras da caatinga, tem promovido a expansão das empresas capitalistas para as

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proximidades da barragem ou, mesmo, a instalação de sítios e chácaras nas margens da

barragem.

Assim o propósito de promover o “desenvolvimento”, a partir dessa ação estatal,

tem sido consolidado, ainda que não plenamente, conforme descreve o ex-deputado

Élquisson Soares, principal idealizador desse projeto:

Portanto, a barragem cresceu muito a possibilidade de desenvolvimento da região, criou as infraestruturas para esse desenvolvimento. A segunda finalidade da barragem era a piscicultura, a terceira era a irrigação, que aconteceu, mas muito pouco, foi muito restrito e até a própria piscicultura não se desenvolveu de forma organizada e estruturada, e a irrigação, que também não se desenvolveu, tem muito pouca coisa hoje, e poderia ter muito mais coisa. Mas a barragem é uma barragem grande, ela tem quarenta e seis quilômetros de extensão, uma profundidade média de quinze quilômetros, tem um volume de água considerável e que realmente alterou completamente as condições climáticas da região e possibilitou crescimento e o desenvolvimento da cidade de Anagé e da região (Entrevista de Campo, setembro de 2010).

No discurso do “idealizador” do projeto, mas que, na prática, desempenhou a

função de representante político que mais envidou esforços para que a barragem fosse

construída, captamos a reafirmação do ideário do desenvolvimento e a sua insatisfação ao

afirmar que a irrigação não se desenvolveu plenamente. Ou seja, o propósito de irrigar

todas as áreas próximas da barragem não foi cumprido; por certo a presença dos

camponeses que tiveram perdas parciais e que ainda vivem em suas terras representa o

atraso que a barragem não conseguiu acabar por inteiro. A resistência camponesa

inviabilizou a consolidação do agronegócio.

A territorialização do capital traz no seu bojo a sujeição das relações camponesas

históricas de produção dos pequenos produtores na dinâmica de sua transformação em

proletários rurais. Mas, em movimento contraditório, o capital também se apropria do

trabalho e da produção dos camponeses e, desse modo, se reproduz também através de

relações de produção não capitalistas, mesmo negando as relações tradicionalmente não

capitalistas de produção.

Para que tais projetos se concretizem, o planejamento desempenha um papel

crucial, já que a contradição social tem permanecido a partir da ação planejada do Estado,

cujo princípio norteador de suas ações é a reprodução do capital, ou seja, o aparato estatal

mostra-se subordinado ao modo capitalista de produção.

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Com a burguesia no centro do poder político da nação, a sua concepção de mundo e

de planejamento é dominante. Dessa forma, podemos dizer que o planejamento é intrínseco

ao próprio capital, isto é, quem elabora o planejamento é o capital, e o Estado é

encarregado apenas de executá-lo.

Como afirma Francisco de Oliveira,

O que o planejamento não pode realizar é a superação da contradição básica do sistema de produção capitalista, que instala no coração da própria mercadoria. [...] mas desde que o planejamento no sistema capitalista limita-se a recolocar no início do ciclo produtivo os elementos finais que estão no produto, isto é, limita-se a repor os pressupostos da produção capitalista, sua possibilidade torna-se perfeitamente plausível. O planejamento num sistema capitalista não é mais que forma de racionalização da reprodução ampliada do capital. Pode operar, exatamente neste sentido, na mudança da forma da mais-valia que deve ser reposta para continuidade do ciclo (OLIVEIRA, 1981, p.24).

É importante compreender que as políticas públicas são concebidas e implantadas

de maneira planejada pelo Estado, por isso o cerne da questão é analisar o próprio

planejamento, na sua gestação inicial, pois os resultados dessa ação são previamente

estabelecidos na sua concepção.

No caso do Nordeste brasileiro, a atuação do Departamento Nacional de Obras

Contra a Seca (DNOCS) merece destaque e um estudo mais específico, tendo em vista que

esse órgão tem implantado vários projetos, sobretudo nas políticas de aproveitamento

hídrico, através da construção de barragens e açudes para abastecimento humano, ou

mesmo nos projetos de utilização de água para fins de irrigação agrícola. Ou seja, as ações

desse órgão têm promovido transformações no espaço geográfico e novos rebatimentos

territoriais, cujo exemplo concreto é a construção da Barragem de Anagé.

O DNOCS7 foi criado com a função de executar projetos e obras de “combate à

seca”. Trata-se de um órgão federal que está presente em todo o país, mas com ação e

atenção voltadas ao Nordeste brasileiro, onde há a predominância do clima semiárido,

marcado por grandes períodos de estiagem. As principais obras realizadas por esse órgão

são barragens, cisternas, adutoras para transporte de água para abastecimento urbano e

7 O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) foi criado em outubro de 1909, inicialmente sob a denominação de Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) e foi o primeiro órgão a estudar a problemática do semiárido. Em 1919, recebeu o nome de Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS) e, em 1945, passou a ter a denominação atual, DNOCS.

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alguns projetos de irrigação, como o perímetro irrigado de Livramento de Nossa Senhora

no estado da Bahia. Após a criação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São

Francisco (CODEVASF), a atuação do DNOCS tem-se restringido à construção de

reservatórios para abastecimento humano, ficando sob a responsabilidade da Codevasf a

organização e desenvolvimento de políticas de “desenvolvimento” da agricultura irrigada

não apenas nas áreas da Bacia Hidrográfica do São Francisco, como também em áreas de

outras bacias hidrográficas.

As políticas públicas em grande medida resultam de forças, pressões e interesses

políticos de grupos ou classes sociais. Em muitos casos ocorre a cooptação ou

aparelhamento de instituições por grupos políticos ou classes sociais, que revertem as

ações desses órgãos em atendimento aos seus interesses mais imediatos.

Por isso é importante analisarmos alguns aspectos referentes à construção de

barragens e de algumas obras executadas pelo DNOCS, tendo em vista que as elites

regionais e também os grupos políticos locais utilizam historicamente o aparato estatal para

atender os seus interesses, não estando preocupados em promover mudanças e

transformações na realidade social e nas condições de vida da população. Como afirma

Maranhão, “No entanto, é necessário destacar que a atuação do DNOCS nada avançou no

sentido da transformação da estrutura econômico-social da região” (MARANHÃO, 1984,

p. 88).

As ações do DNOCS ocorrem como medidas paliativas de caráter emergencial ou

intencionalmente em épocas de eleições municipais ou estaduais, de maneira a servir os

interesses da burguesia regional e das elites políticas, aproveitando-se da estiagem e

reafirmando o principio de que a Seca é uma indústria de votos e de relações de submissão.

Dessa forma, algumas obras carregam, em sua essência, o princípio do assistencialismo

político e social.

Como afirma Maranhão, Destaque-se, de outra parte, que essas intervenções do Estado na economia eram de fato “protetoras” das classes dominantes regionalmente, não trazendo qualquer alteração nas relações sociais de produção, e por isso mesmo imobilizadora da expansão capitalista no Nordeste (MARANHÃO, 1984, p. 89).

Nessa conjuntura podemos afirmar que política e planejamento estão ligados, quer

dizer, as concepções políticas e ideológicas são incorporadas e reproduzidas no

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planejamento e, por conseguinte, na realidade social. Reproduzindo as contradições

centrais da sociedade capitalista, a relação capital-trabalho se reproduz de forma ampliada,

reafirmando as relações de opressão entre latifundiários e camponeses e trabalhadores sem-

terra, através da ação dirigida do Estado, que, diante dos conflitos sociais e da própria luta

de classes, se apresenta de forma contraditória.

Em virtude do duplo caráter de instrumento de classe e de mediador de conflitos sociais que possui o Estado brasileiro em sua atuação concreta no Nordeste, fortalece e viabiliza os interesses das classes dominantes nacional e regionalmente ao mesmo tempo em que, através das atividades de planejamento, procura manter e recriar uma ilusória comunidade regional. Mas concretamente, procuraremos mostrar como ao nível do discurso o planejamento se faz para o Nordeste, concebido em abstrato (sem diferenças sociais), comunitário, enquanto que as atividades concretas de planejamento e seus resultados correspondem aos projetos sociais de classes e grupos específicos (MARANHÃO, 1984.p. 86).

O planejamento desenvolvido pelo Estado, sobretudo no Nordeste, tem promovido

a manutenção das contradições sociais também no campo, contribuindo para o

agravamento da questão agrária, com a legitimação dos latifúndios e a mudança estrutural

dessas grandes porções de terras em empresas rurais capitalistas, organizadas no sistema

produtivo do agronegócio, com o intuito de garantir a extração da renda da terra. Em

movimento contrário, ocorre a ampliação da expropriação dos camponeses de suas terras,

ou a sujeição aos interesses capitalistas, por meio da monopolização da produção.

Como concorda Mendonça, A atitude de modernizar a agricultura pressupôs que os sujeitos sociais que habitavam essas áreas eram tradicionais e deveriam ser removidos e/ou extirpados para dar lugar ao progresso. Esse discurso é mais forte quando se trata dos trabalhadores/camponeses e dos que, em sua maioria, foram expulsos para as áreas urbanas e para as áreas de fronteira. Ao elegerem um objetivo – modernizar o latifúndio – elegeram um inimigo a ser extirpado – os trabalhadores/camponeses – que sofreram e sofrem conseqüências distintas diante da ação do capital. É como se não houvesse racionalidade nas formas de uso e exploração da terra apropriadas de forma tradicional (MENDONÇA, 2007, p. 5).

Algumas obras desenvolvidas na região Nordeste pelo Estado visam, em grande

medida, construir as condições necessárias à ampliação das relações capitalistas e à

consolidação do agronegócio como principal modelo de desenvolvimento no campo.

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Exemplo concreto disso é o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco, que

utiliza a justificativa de levar água às populações sertanejas que são penalizadas pelas

secas, mas, na prática, visa à irrigação das terras, tendo em vista que 70% das águas serão

utilizadas para irrigar plantações e monoculturas.

A construção da Barragem de Anagé é a concretização da ação planejada do

Estado, imbuída do mesmo ideário de progresso, baseado na transformação do uso da terra

e das relações sociais, em que o espaço geográfico é a expressão material dessa ação. A

barragem, ao ser construída, promoveu profundas transformações territoriais, com as novas

formas de uso da terra, que têm viabilizado a expansão das relações capitalistas de

produção por meio da ampliação do agronegócio, à custa da redução ou destruição das

relações camponesas de produção com a expropriação de suas terras ou do trabalho.

3.1 A CONSTRUÇÃO DE BARRAGENS, A EXPROPRIAÇÃO CAMPONESA E AS TRANSFORMAÇÕES NO ESPAÇO GEOGRÁFICO

O termo “barragem” significa represamento, tapume de cimento e pedra, que tem a

função de represar ou barrar o rio para formar represa ou reservatório de água. Trata-se de

uma técnica utilizada há séculos pela humanidade para construir reservatórios de águas

para abastecimento ou irrigação da agricultura.

A barragem tem finalidades múltiplas, desde o aproveitamento dos recursos

hídricos superficiais, com perenização dos rios intermitentes, ao represamento das águas na

época de suas cheias em reservatórios para o controle das enchentes, a geração de

hidroeletricidade, a irrigação de terras e, ainda, para o abastecimento humano.

No caso específico do Nordeste, as principais finalidades são a perenização dos

rios, a construção de reservatórios para o abastecimento humano, e, a partir da década de

1970, também foram construídas muitas barragens para a geração de energia. Uma mesma

barragem pode, inclusive, ser utilizada para múltiplos fins, a exemplo de Sobradinho, que

serve para geração de energia, abastecimento humano, irrigação, regularização do volume

de águas do São Francisco, sendo, contudo, a geração de energia sua principal finalidade.

As barragens, independente de sua extensão ou finalidade, geram impactos sociais,

ambientais, econômicos e culturais, transformam o espaço geográfico e as relações sociais,

seja pela expropriação dos atingidos, seja pela implementação de novas formas de uso da

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terra com a possibilidade do desenvolvimento da irrigação. Por isso o foco de análise deste

trabalho não serão os aspectos técnicos, mas as repercussões territoriais e sociais desses

empreendimentos, sobretudo para o espaço agrário, onde estão localizados.

A Ciência Geográfica pode contribuir bastante com o estudo das barragens, por

possibilitar a interpretação dos processos de transformação espacial e os rebatimentos

territoriais ocasionados por esse empreendimento. Corrobora ainda com a análise da

apropriação da natureza, mais objetivamente da água e da terra, promovida pelas

transformações espaciais que também modificam a paisagem.

A análise geográfica possibilita uma interpretação mais completa, pois amplia o

estudo das barragens para além dos aspectos técnicos, investigando, afora os processos de

ordem social, as mudanças e reconfigurações espaciais e territoriais, tendo em vista que

essas obras modificam o espaço e intensificam a questão agrária por meio da expropriação

dos atingidos, agravando as disputas territoriais.

Os aspectos essenciais desse processo de expansão dos agronegócios se consolidam territorialmente, de forma enfática, em várias porções do espaço, mas enfatizamos o que se passa especificamente à sua complexa expressão/composição canavieira, o que denominamos de Polígono do Agrohidronegócio (THOMAZ JÚNIOR, 2010, p. 94-95).

O processo de disputa pela terra e na terra é uma característica histórica do campo

brasileiro, que evidencia a expressão da luta das classes sociais pelo território e no

território, através dos conflitos e dos confrontos entre as classes sociais expropriadas desse

meio de produção e os latifundiários e rentistas. Tais conflitos são acirrados também pela

luta pela água e, mais precisamente, pela junção da terra e da água e pela potencialidade

agrícola que os espaços adquirem após a construção das barragens com a possibilidade de

irrigação. A disputa agora se dá pelo território conjugado da terra e da água. Tal processo

tem sido implantado em várias partes do território nacional, com destaque ao que Thomaz

Júnior (2010, p. 92) denomina “Polígono do Agrohidronegócio” ao se referir à

territorializacao do capital no campo:

O capital tem à disposição elementos imprescindíveis para a marcha expansionista dos seus negócios. Além de contar com os favorecimentos dos investimentos públicos e também privados, e por isso disputa apoios, cabe colocar em evidência que os bons resultados/retornos obtidos são complementados/potenciados pelo acesso às melhores terras (planas,

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férteis, localização favorável e logística de transportes adequada). Mas não somente, pois o sucesso do empreendimento como um todo requer a garantia de acesso a água, seja superficial (grandes rios, reservatórios de hidrelétricas, lagos), por meio de intervenções, via de regra, represamentos de cursos d’água [...] (THOMAZ JUNIOR, 2010, p 94).

Portanto, compreender uma barragem significa compreender a totalidade das

relações capitalistas, entender a relação que há entre a construção de uma barragem e o

capital barrageiro e, ainda, perceber a expansão do capitalismo no campo por meio de

agronegócio, tendo em vista que o represamento da água torna viável a instalação do

agrohidronegócio8, que se apropria da terra, da água, do trabalho precarizado e da

infraestrutura necessária à realização do capital. A intervenção do Estado, por meio de uma

obra com uma barragem, não se efetiva de forma desarticulada ou espontânea. Na

realidade, o objetivo e as intenções de tal empreendimento estão ligados aos interesses

capitalistas desde o planejamento, seja para produzir energia para atender a demanda

industrial, seja para garantir a edificação das empresas do agronegócio.

Antonio Thomaz Júnior tem desenvolvido pesquisas, sobretudo nas regiões Centro-

Oeste e Sudeste, onde os grandes empreendimentos agrícolas vêm se instalando desde a

década de 1970, com a produção de grãos, cana-de-açúcar e, mais recentemente, com o

cultivo do eucalipto, destinados, em sua maioria, à exportação.

A realidade investigada pelo autor está relativamente distante do nosso campo de

pesquisa e tem grandes diferenças da que estamos analisando, tanto do ponto de vista

social, como econômico, quanto natural. Contudo, a lógica que se processa naquelas

regiões não é diferente da que se estabelece no Nordeste.

Exemplo claro desse processo são os perímetros irrigados do Vale do Rio São

Francisco e, mais especificamente no Sudoeste da Bahia, nos municípios de Livramento de

Nossa Senhora e Dom Basílio, onde a fruticultura se desenvolve com a irrigação da água

canalizada da Barragem do Rio de Contas, localizada no município de mesmo nome. Da

8 O conceito Agrohidronegócio refere-se ao conjunto de ações que envolvem o complexo produtivo do agronegócio, conjugado com a territorialização do capital, que se apropria da terra, da água e do trabalho precarizado e promove, com sua expansão no campo, a expropriação camponesa e as formas tradicionais de uso da terra. Foi inicialmente concebido e apresentado por Marcelo Rodrigues Mendonça e Helena Angélica Mesquita, professores da UFG, campus Catalão, em textos publicados e apresentados em diversos eventos. Recentemente também tem sido utilizado por Antonio Thomaz Junior em texto publicado no ano de 2010. O termo é bastante apropriado e traz uma interpretação precisa do processo de expansão do capital no campo.

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mesma forma aconteceu após a construção da Barragem de Anagé, com a instalação da

fruticultura irrigada nas médias propriedades.

É necessário destacar que as barragens, mesmo sendo importantes para atenuar os

problemas inerentes à estiagem, por garantir o represamento da água para abastecimento da

população das cidades e para a agricultura irrigada, por isso repercutem no ideário da

população como o “progresso” e “desenvolvimento” principalmente para aqueles que são

diretamente beneficiados, contraditoriamente se efetivam como retrocesso para as

populações atingidas e mais diretamente para os camponeses/trabalhadores que são

expropriados para que se instalem as empresas do agronegócio.

Uma consequência direta da construção de uma barragem é a perda do território

camponês, ou seja, o espaço de reprodução da vida. Em outros casos, também ocorre a

perda de casas e lares, quando cidades inteiras são inundadas, submergindo as histórias e o

espaço de construção da vida das pessoas, com perdas também imateriais, que são as

referências espaciais, sociais e simbólicas, como ruas, igrejas e áreas de convivência

coletiva.

O clima semiárido é quase predominante na região Nordeste, por isso se

convencionou historicamente que as barragens são a única opção para atenuar os efeitos da

seca e garantir o represamento da água para atender a população. Entretanto, diante dos

efeitos e dos impactos que elas promovem e da ineficiência ou inversão de prioridade

dessas obras, é que se defendem alternativas menos impactantes, mais eficientes e baratas,

a exemplo das cisternas construídas pela Articulação do Semi-árido (ASA), que tem

garantido água para milhares de pessoas em todo o Nordeste.

Por conta desse discurso da hegemonia das barragens como única possibilidade é

que as ações do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) têm centrado

sua atuação na construção de represas e açudes, sem desenvolver outras formas de

aproveitamento hídrico e represamento de água, a exemplo das barragens subterrâneas e

das cisternas de produção, ambas desenvolvidas pela ASA.

Em relação ao DNOCS, algumas ponderações precisam ser feitas, por existirem

alguns equívocos no desenvolvimento de projetos por parte desse órgão: o primeiro está na

sua própria denominação – um órgão que desenvolve projetos e programas “contra a seca”

– e se sabe que a seca é um problema climático que não pode ser combatido. Não existem

projetos elaborados por esse órgão que sejam capazes de acabar com a seca. O que deveria

ter seriam projetos e ações que melhorassem as condições de vida da população e que

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implementassem as reformas estruturais necessárias, além de políticas de convívio com o

semiárido. Outro aspecto a se destacar é a relação que as oligarquias regionais têm com o

DNOCS, evidenciando o seu aparelhamento por parte dos políticos e das elites regionais

que, no caso nordestino, muitas vezes, se confundem. Esse fato pode ser comprovado pelo

grande número de represas e barragens em propriedades de lideranças políticas locais ou

grandes latifundiários, e que, mesmo sendo construídas com recursos públicos, são

apropriadas e utilizadas de maneira privada, reproduzindo relações de domínio, opressão e

troca de favores, impostas pelos donos da terra. Essas relações são muito utilizadas em

períodos de eleições locais. Assim a ação do Estado, via DNOCS, tem permitido a

reprodução das oligarquias e grupos políticos e a sua manutenção no poder.

Uma das principais consequências da construção de barragens é a expropriação das

famílias que ocupam a área onde as represas são construídas, processo que é marcado ou

pela perda total dos bens e das terras, ou pela perda parcial quando ocorre o desalojamento

ou deslocamento compulsório das famílias.

Muitas famílias camponesas atingidas perdem suas terras e benfeitorias sem direito

a nenhum tipo de indenização, uma vez que, em sua grande maioria, são posseiros, que não

possuem o título legal da terra, por isso o Estado não tem o dever legal de reassentá-los.

Frente a essa ação arbitrária do Estado, as famílias se organizam e resistem com o objetivo

de garantir a permanência na terra ou lutam pelo direito de serem reassentados para

continuar vivendo como camponeses em outras áreas.

O conceito de “atingido por barragem” é amplo, por isso é importante discuti-lo e

compreendê-lo dadas as especificidades e abrangência de sua interpretação.

Para Vainer,

Ao abordar o conceito de atingido, é necessário deixar claro o contexto e o sentido do debate, de modo a explicar o que é que está em jogo. Na verdade, embora o termo apareça em documentos técnicos e remeta a dimensões econômico-financeiras, a noção não é nem meramente técnica, nem estritamente econômica. Conceito em disputa, a noção de atingido diz respeito, ao fato, ao reconhecimento leia-se legitimação, de direitos e de seus detentores. Em outras palavras, estabelecer que foi determinado grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por certo empreendimento significa reconhecer como legítimo – e, em alguns casos, como legal – seu direito a algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou reparação não pecuniária. Isto explica que a abrangência do conceito seja, ela mesma, objeto de uma disputa (VAINER, 2009, p. 39).

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Por isso é difícil analisar as transformações territoriais e os impactos causados por

uma barragem do ponto de vista estritamente técnico, uma vez que as pessoas atingidas

passam por mudanças bruscas em suas vidas, na sua organização social, na sua base

territorial ou nas formas de trabalho e sobrevivência. É importante também ampliar o olhar

e o conceito de atingido, estendendo o debate para além dos atingidos por barragens, tendo

em vista que outros processos que vêm se desenvolvendo no campo têm expropriado um

considerável número de camponeses/trabalhadores que são atingidos também pelo

agronegócio, pelos parques ecológicos, pelas ferrovias, por projetos de transposição.

Atualmente no estado da Bahia, inúmeras pessoas estão sendo atingidas e

expropriadas, por algumas obras, a exemplo dos atingidos pelos canais da transposição do

Rio São Francisco ou os atingidos pela Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), pelos

parques nacionais e estaduais. Assim é importante partir do princípio de interpretação da

lógica que se opera em todos esses processos. Concretamente o fio condutor que abrange

todos os atingidos são as perdas territoriais, seja a terra, seja a água, sejam as casas; e o

agente expropriador, que é comum a todos, nesse caso, é o Estado, seja por meio de suas

obras, seja através das legislações.

O debate precisa ser feito por outras perspectivas, ou seja, se essas pessoas foram

ou estão sendo atingidas, indiscutivelmente estão sendo prejudicadas por tais ações, por

isso precisam ser reconhecidas para serem reparadas e indenizadas pelas perdas.

O fato agravante desses processos é a situação fundiária de muitas áreas onde tais

obras são executadas, tendo em vista que, a partir desses empreendimentos, revela-se o

caos fundiário, a condição dos posseiros, meeiros e os conflitos resultantes dessas ações.

Ao perceber a necessidade de regularização fundiária, o Estado age de forma indiferente,

antes da implantação desses projetos e, sobretudo, após as obras, promovendo a

expropriação das pessoas e deixando de realizar o reassentamento delas.

No processo de construção da barragem de Anagé, a localização da obra em área de

terras devolutas não foi uma escolha aleatória. A intenção de construir as obras em pontos

específicos do território por certo levou em consideração a situação fundiária, isto é, o

propósito de construí-las em área de terras devolutas, tidas como “públicas”, reduziria o

custo com as indenizações que seriam pagas apenas aos quatro proprietários que tinham o

título de suas terras, as mais de oitocentas famílias de posseiros que seriam atingidas

receberiam apenas o pagamento indenizatório referente às benfeitorias.

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Apesar de serem devolutas, essas terras não eram desabitadas. Muito pelo contrário,

havia uma ocupação secular, conforme dados obtidos na pesquisa de campo, e relato das

lideranças camponesas de que viviam nesse espaço cerca de oitocentas famílias.

No plano nacional, as barragens também têm tido outra função, sobretudo a partir

da década de 1970, com o plano de desenvolvimento adotado pelo Governo Militar, o

chamado “milagre econômico”. Com o intuito de impulsionar o “desenvolvimento” surgiu

a necessidade de aumentar as formas de geração de energia, por isso o Estado começou a

desenvolver projetos para construção de hidrelétricas. Iniciou-se, então, a construção de

grandes barragens, e se consolidou o modelo energético baseado na hidroeletricidade com

o discurso de ser uma forma “limpa” e “renovável” de gerar energia.

É fundamental desconstruir esse discurso de que a hidroeletricidade é uma forma

limpa de geração de energia, tendo em vista que, no processo de construção das barragens,

o impacto social e ambiental é incalculável. É preciso analisar o processo sem se restringir

à aparência ou à lógica técnica, ou seja, o movimento das turbinas e a produção de energia.

É importante compreender a essência da totalidade social em que esses projetos estão

inseridos e as consequências na vida das pessoas.

Como afirma Borges,

Os principais inventários das grandes bacias hidrográficas do Brasil foram elaborados nos anos 1960 e 1970, durante o regime de exceção. Naquele momento, o ideário do desenvolvimento, o discurso da excelência da engenharia nacional, o milagre econômico, entre outros aspectos, conformavam um cenário que forjava um consenso social sobre a necessidade de grandes obras para que o Brasil alcançasse a condição de país desenvolvido. Obras e projetos como a ponte Presidente Costa e Silva (Rio - Niterói), a companhia Vale do Rio Doce e grandes usinas hidrelétricas tais como Paulo Afonso, Tucuruí e Itaipu tornavam-se mais que simples intervenções governamentais. Constituíam-se símbolos da ordem e do progresso brasileiros (BORGES, 2007, p. 10).

O Estado, por meio das políticas de planejamento e organização territorial, garante

e pleno desenvolvimento do capitalismo, tendo em vista que os grandes projetos geram

lucros ao capital transnacional, que, além de receber altos pagamentos com a construção

dos projetos, promove a privatização dos recursos naturais do país, à custa da expropriação

de centenas de famílias camponesas que vivem do trabalho na terra.

Naquele contexto histórico, na década de 1982, foi construída a Hidrelétrica de

Itaipu, por meio de um convênio do governo brasileiro com o governo paraguaio,

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denominado Itaipu Binacional. Segundo Germani (2003, p. 21), o barramento do Rio

Paraná, que forma “um lago bastante ramificado, que se estenderá até a cidade de Guaíra,

com o comprimento de 170 km² e uma superfície total de 1.350 km²”, está localizado em

terras do estado do Paraná e em terras do Paraguai. Essa represa expropriou centenas de

famílias camponesas e tornou-se um marco na organização e na luta de resistência

camponesa contra a expropriação, o que possibilitou a criação de um movimento

denominado Justiça e Terra, organização que contribuiu para a articulação que,

posteriormente, daria base para a criação do Movimento dos Atingidos por Barragens

(MAB).

Para Germani, que acompanhou e fez uma pesquisa sobre esse processo,

Uma das funções do Estado capitalista moderno é criar as condições favoráveis para o desenvolvimento do processo de acumulação de capital. Cabe, assim, a esse Estado, realizar os grandes investimentos em infraestrutura, não assumidos diretamente pelo capital privado, quer seja pelo volume de capital necessário, quer pela lenta ou baixa taxa de retorno que esses investimentos proporcionam (GERMANI, 2003, p. 19).

No caso brasileiro, coube ao Estado destinar a riqueza socialmente produzida para a

construção das barragens, de modo a garantir a plena acumulação do capital e promover a

expropriação de centenas de famílias, sacrificando uma parcela da sociedade, para garantir

os interesses das classes sociais dominantes.

Em Itaipu isso também ocorreu, conforme relata Germani:

Esse processo de remoção ocasionou, no caso de Itaipu, um conflito. Conflito inserido no contexto da sociedade divida em classes, com interesses diferenciados, portanto, que vai contrapor o Estado – representado pela Itaipu Binacional e – a população que terá que deixar a área. Este conflito surgiu num momento bastante significativo, caracterizado por um forte envolvimento do Estado nos conflitos de terra – seja diretamente, seja indiretamente, através de empresas ou de leis de benefícios que favorecem ao grande capital em detrimento do pequeno produtor, cada vez mais expropriado de seu meio de produção fundamental – a terra – e por um processo crescente de resistência dos pequenos produtores, que começam a se organizar em todo o país, a expropriação (GERMANI, 2003, p. 19).

As barragens e os projetos das hidrelétricas se territorializaram em todo o país com

vistas a gerar energia para as diversas regiões, seja para abastecer as indústrias, seja, em

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menor escala, para viabilizar o consumo nas cidades e garantir a plena consolidação do

capitalismo no Brasil.

O Nordeste também passou por transformações espaciais e sofreu os rebatimentos

territoriais com a construção de vários projetos barrageiros, sobremaneira para geração de

energia, sendo as principais: Sobradinho, Moxotó, Paulo Afonso, Itaparica, Pedra do

Cavalo. Todos esses projetos foram elaborados e executados pela Companhia Hidroelétrica

do São Francisco (CHESF), empresa estatal subordinada ao Ministério de Minas e Energia.

O discurso para justificar a construção dessas represas não destacava a geração de

energia, mas a garantia de grandes reservatórios de água para suprir a necessidade hídrica

das populações sertanejas e possibilitar o desenvolvimento de projetos de irrigação, além

do abastecimento humano. Esse “discurso” garantia a execução dessas obras com alto

índice de aprovação por parte da sociedade sertaneja, que, historicamente, sofre com a

escassez da água.

Apesar de se sustentar na retórica da construção de grandes reservatórios de água, a

aceitação por parte da sociedade não era unânime, uma vez que as famílias camponesas e

os moradores das cidades que foram inundadas se mostravam contrários à forma como o

Estado executava e implantava essas obras, principalmente no que se refere ao processo de

expropriação, à política de reassentamento e ao tratamento dispensado a essas famílias –

sempre marcado pelo autoritarismo, com valores injustos das indenizações, quando essas

eram pagas –, pois é fato que centenas de famílias não receberam nenhum tipo de

reparação material ou pecuniária.

Na década de 1970 tiveram início as obras da construção da Barragem de

Sobradinho, que se tornou um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 4.214 km²,

sendo 350 km de extensão e de 10 a 40 km de largura. Esse projeto inundou quatro cidades

baianas: Casa Nova, Remanso, Sento Sé e Pilão Arcado e dezenas de povoados rurais,

atingindo cerca de doze mil famílias9. Em média setenta mil pessoas foram expropriadas

violentamente; desse total, cerca de 70% eram camponeses.

Outro grande projeto, a construção da Barragem de Itaparica na divisa dos estados

da Bahia e de Pernambuco, inundou três cidades: Petrolândia, Itacuruba e Rodelas, as duas

primeiras em Pernambuco e a última na Bahia, além de vários povoados e centenas de

pequenas propriedades camponesas. Com essa obra, foram atingidas cerca de cento e vinte

9 Dados obtidos na dissertação de PEREIRA, Lucas Batista: Velha Terra, Nova Raiz (A Barragem de Anagé: Transformações no Modo de Vida Sertanejo). São Paulo, 1993.

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mil pessoas direta ou indiretamente, dessas mais de cinco mil eram famílias de

camponeses, que foram expropriados de suas terras.

Segundo a Comissão Mundial de Barragens, mais de oitocentas mil barragens já

foram construídas no planeta, 45 mil de grande porte. Além disso, cerca de 1.600 barragens

estão atualmente em construção em todo o mundo, em um negócio que movimenta US$50

bilhões anuais. Estes empreendimentos provocam o deslocamento de quatro milhões de

pessoas a cada ano, além de causar enorme impacto na biodiversidade10.

O Brasil é um dos principais países a adotar as hidrelétricas como principal fonte de

geração de energia, responsável pela geração de 93% da energia consumida no país. Como

consequência desse modelo, dá-se o processo de expropriação das populações atingidas,

estimada, desde a década de 1970, em mais de 200 mil pessoas, em sua maioria, produtores

rurais e populações indígenas.

Segundo Mesquita, A Comissão Mundial de Barragens mostrou que a questão das populações atingidas nas barragens analisadas sempre foi mal resolvida. E no Brasil, de acordo com o movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) já foram deslocados mais de um milhão de pessoas e outro tanto se encontra ameaçado pela insistência de continuidade do modelo. E insistir na continuidade desse modelo em um país com o potencial em fontes alternativas de energia como o Brasil é, no mínimo, uma política de subserviência e entreguismo. Afinal, a energia e a água são bens essenciais à soberania de qualquer país e a privatização desses bens, com ocorreu no governo de Fernando Henrique Cardoso, compromete a soberania brasileira (MESQUITA, 2007. p. 06).

As Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras) preveem ainda a construção de 500

novas usinas hidrelétricas até 2015, muitas delas intensificadas pelo Programa de

Aceleração do Crescimento do Brasil (PAC), programa de incentivo ao crescimento

econômico, ancorado no discurso do “desenvolvimento do país”.

É necessário destacar que esses grandes projetos se sustentam em dois princípios:

garantir a produção de energia, elemento fundamental para a produção industrial, ou seja,

viabilizar permanente acumulação de capital por parte dos grandes capitalistas e a

lucratividade de grandes empresas do setor de construção civil; possibilitar a consolidação

do agronegócio, que se desenvolve com a irrigação das terras que margeiam esses

reservatórios.

10 Dados obtidos no Relatório Comissão Mundial das Barragens 1998 a 2000, Disponível em: http//:www.dams.org.

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Todo esse processo que se encontra em plena execução no Brasil tem garantido a

apropriação por parte de empresas multinacionais e do capital estrangeiro dos recursos

naturais do país, dominando, desse modo, a água – um bem que vem se tornando escasso

no mundo e, por isso, um recurso valioso –, e controlando a energia, que é vendida a altos

preços. Esse processo é também marcado pela constante expropriação de centenas de

famílias camponeses e indígenas de suas terras, o que tem agravado ainda mais a questão

agrária do país e, consequentemente, as desigualdades sociais.

Assim, fica evidente a opção do Estado em garantir o pleno “desenvolvimento” do

capital e de seus representantes, enquanto constrói as infraestruturas necessárias a sua

ampla reprodução, reafirmando, dessa forma, o seu caráter neoliberal e burguês.

O PAC, na realidade, tem-se revelado como um projeto de acumulação de capital,

uma vez que traz como objetivos centrais impulsionar o crescimento econômico, portanto

fortalecendo e financiando com recursos públicos a concentração de renda e ampliando o

capital das empresas privadas, enquanto as políticas sociais deixam de ser prioridade. Em

outras palavras, opta por viabilizar o crescimento econômico em detrimento da promoção

do desenvolvimento social e melhor distribuição de renda.

A construção das barragens no atual contexto tem provocado reações das

populações atingidas, que se organizam em todo o país com o intuito de garantir o

reassentamento e a criação de um novo modelo de geração e comercialização de energia,

com destaque para a ação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que está

organizado em 14 estados brasileiros.

O MAB tem garantido a paralisação de algumas obras no Brasil e, quando não

consegue impedir a construção da barragem, tenta garantir os direitos das populações

atingidas. O principal lema do MAB é “Águas para vida, não para a Morte”! Com esse

princípio visa debater a real importância da água para a vida e as consequências do mau

uso desse bem e o processo de mercatilização ao qual está sendo submetida.

Na Revista do Movimento, estão destacados alguns princípios:

Lutamos para combater as barragens e para que a energia esteja a serviço do povo brasileiro; Lutamos pelos nossos direitos: terra, água, moradia, luz, educação, saúde para todas as famílias que fazem parte de nossa organização. Mas nossa luta é bem maior, lutamos para mudar essa sociedade que privilegia uns poucos as custas de todo o povo trabalhador. Lutamos para que todos os pobres e oprimidos possam viver bem de uma forma digna. Nossa luta é para transformar essa sociedade é por isso que nossa luta se junta com outras organizações com os mesmos objetivos (REVISTA DO MAB, 2007, p.22).

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Esse movimento social, formado, em sua maioria, por camponeses que perderam e

estão perdendo suas terras em decorrência da construção das barragens, tem defendido

como princípios o reassentamento de todas as famílias e o pagamento justo das

indenizações e tem promovido um importante debate acerca do modelo energético

brasileiro, propondo discussões sobre formas alternativas de geração de energia, além de

questionar o valor cobrado pela energia, sobretudo, para as classes sociais oprimidas. O

debate promovido por esse movimento traz também à tona a questão da perda da

autonomia e da soberania nacional, além de denunciar o domínio estrangeiro e privado dos

recursos hídricos e naturais do país.

Percebe-se que o MAB, como movimento social, tem muitas características dos

movimentos camponeses organizados no campo e na cidade, a exemplo do Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e do Movimento dos Pequenos Agricultores

(MPA), que se organizam e protestam contra a política neoliberal implantada pelo Estado,

que tem o propósito de construir as condições necessárias para expansão das relações

capitalistas no campo. Mas especificamente, as bandeiras de luta do MAB trazem à tona o

debate da questão da água, que tem sido apropriada pelos grupos controladores do

agrohidronegócio. Outro tema importante que compõe a agenda de discussão do

movimento é a garantia e a permanência dos camponeses na terra, assumindo, portanto,

bandeiras de luta como: a reforma agrária e a transformação social.

Diante dessa realidade, é fundamental discutir também o processo de intervenção

estrangeira na autonomia e soberania nacional, como também o atual modelo energético do

país, tendo em vista que é produtor da desigualdade social e acirra a questão agrária

brasileira, uma vez que essas grandes obras expropriam centenas de famílias camponesas

que vivem nas áreas ribeirinhas.

Como afirma Mendonça,

A construção de barragens evidencia o território em disputa (camponeses, movimentos sociais e o capital barrageiro), provocada pela ação do capital transnacional, escudado nas políticas estatais que mascaram as conseqüências ambientais e sociais e a opção pelo modelo energético. A luta contra as barragens mobiliza diretamente os atingidos pelo barramento que, juntamente com o MAB – Movimentos dos Atingidos por Barragens e diversas instituições e entidades organizadas, constituíram um movimento popular de Re-Existência, apontando as deficiências do modelo energético brasileiro, precisamente nas áreas de Cerrado (MENDONÇA, 2007, p. 03).

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Os atingidos pelas barragens e as pessoas que estão sendo ameaçadas de perder

suas terras têm o papel fundamental de, inicialmente, construir um espaço de luta constante

e de mobilização e, ainda que não consigam paralisar as obras, garantir direitos mínimos a

exemplo das indenizações pelas benfeitorias. Outro papel fundamental dos movimentos

sociais é fazer o debate com toda a sociedade e denunciar as contradições decorrentes da

construção de barragens.

O MAB e outros movimentos sociais lutam contra o atual modelo de sociedade e

contra o capital, uma vez que os grandes empreendimentos materializam a lógica mercantil

do modo de produção capitalista, que transforma tudo em mercadoria.

Neste sentido, Oliveira afirma:

Os trabalhadores camponeses buscam, através da luta pela terra, a reafirmação de um projeto de vida que tem a terra como fundamento de um modo de ser, de pensar e de estar no mundo, ou seja, o universo simbólico vinculado ao ideário camponês. Neste ideário, o trabalho tem um significado mais amplo, visto que, trabalho, terra e família são indissociáveis. Quando falam sobre sua terra, referem-na como terra de trabalho, expressão que encerra um conjunto de significados morais e éticos. Ou seja, não é a terra em um sentido mercantil, mas sim como um projeto de vida baseado na autonomia e na liberdade. Isso não quer dizer que as atividades desses trabalhadores não estejam mercantilizadas, mas a sua entrada no mercado está ligada à sua subsistência que é uma lógica totalmente diferente das agroindústrias (OLIVEIRA, 2007, p. 03).

É preciso também analisar os grandes projetos de barramento de água com a

finalidade de garantir a irrigação e o abastecimento humano como ocorre com muita

frequência no Nordeste brasileiro. Por ser uma região semiárida e ter uma grande

quantidade de rios intermitentes, os barramentos têm o propósito de perenizá-los e,

também, o de represar as águas que drenam as áreas de baixa altimetria.

As barragens, apesar das suas contradições, dos impactos advindos do processo de

construção e dos jogos de interesses e consequências, após sua conclusão têm uma função

muito importante, pois garantem o abastecimento humano, o fornecimento de água para os

rebanhos e para a irrigação, por isso historicamente são focalizadas como uma das mais

importantes obras para amenizar os danos causados pelos longos períodos de estiagem.

Entretanto, a sua importância como reservatórios de água potável no semiárido não

pode justificar a sua execução a qualquer custo. Tendo em vista que a presença da água

transforma toda a realidade, no caso do sertão essa relação se altera profundamente, pois

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dela emergem conflitos não apenas pela terra, mas agora principalmente pela água, ou mais

especificamente pela capacidade produtiva dessas terras. Por isso precisamos conhecer o

processo histórico, analisar essas obras desde a concepção até a conclusão, buscando

compreender as transformações na organização social, na vida das pessoas que são

atingidas e, principalmente, as novas lógicas que se desenvolvem após a construção desses

lagos.

É nesse bojo que se espera analisar a construção da Barragem de Anagé, ao longo

de todo o processo histórico, desde a época em que se tratava apenas de um projeto,

tentando conhecer a história da construção, analisando a mobilização e resistência dos

camponeses atingidos, a postura do Estado em diversos momentos e, por fim, as

transformações sociais e territoriais decorrentes desse projeto, para que não haja uma visão

sectária ou superficial dessa importante ação do Estado na transformação espacial. Não é

objetivo deste trabalho posicionar-se contrária ou favoravelmente ao projeto, mas tentar

compreendê-lo no conjunto das contradições relacionados a sua construção. Os capítulos

seguintes serão destinados a compreender esse processo histórico.

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4 A CONSTRUÇÃO DA BARRAGEM DE ANAGÉ: LUTAS E RESISTÊNCIAS CAMPONESAS

PovounidoépovoforteNãocansamosdefalarÉporissoqueresolvemosMaisumavezaobraparáPoisqueremosnossaterraOunaleiounamarraVamosrecuperar.

NósvoltamosaquidenovoPranossahistóriacontarÉqueparamosaobraPranossaterraconquistarPorquesomostrabalhadoresColhedoresepastoresVivemosnestelugar.

AbarragemédestinadaAosgrandesemédiosfazendeirosPorissolutamosmuitosPorquesomosrendeiroseposseirosCatingueirosquenoiteediaFaçachuvafaçasolSustentaosbrasileiros.

AobraestáparadaApesardemuitadorIssoservepraensinarArespeitarotrabalhadorAidaquelesqueduvidaQueesmagaequepisaOpequenoprodutor11.

A análise das transformações do espaço geográfico e das relações sociais que,

historicamente, atuam na produção do espaço prescinde da compreensão do processo

histórico que promoveu as mudanças e as novas configurações espaciais, em que o

território é a expressão material.

Diante dessa perspectiva, é necessário fazermos uma análise da história da

construção da Barragem de Anagé, para que seja possível entendê-la em sua totalidade, o

que, na prática, representa um desafio, diante da sua complexidade e do próprio contexto

histórico. Esperamos, ao menos, compreender as questões centrais desse processo.

11 Trecho do manifesto elaborado pelos camponeses atingidos pela Barragem de Anagé em fevereiro de 1988.

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Este capítulo tem o intuito de reconstruir ou reviver essa história. Esta análise não é

o objetivo central do trabalho, mas tem uma relevância especial, para que possamos

entender melhor as transformações territoriais decorrentes dessa intervenção do Estado no

espaço geográfico.

O propósito deste capítulo, portanto, é compreender como se deu o processo de

construção da Barragem de Anagé, cujos elementos fundamentais para essa compreensão

são os depoimentos dos sujeitos sociais envolvidos diretamente no processo, além de dados

históricos disponíveis em diferentes fontes de pesquisa. Para isso, utilizamos, como

metodologia, a realização de entrevistas com os camponeses atingidos, com os

representantes do Estado, os militantes dos movimentos sociais envolvidos nas

mobilizações, membros da Igreja Católica, políticos com atuação na época, advogados e

membros da sociedade de uma forma geral que testemunharam e viveram essa importante

mobilização social.

Tal empreitada apresentou inúmeras dificuldades. Inicialmente, o fato de ter se

passado mais de vinte anos da construção da barragem tornou difícil encontrar os sujeitos

que vivenciaram essa manifestação de luta das classes sociais pelo território: de um lado os

camponeses posseiros em defesa de suas terras e do direito de continuarem existindo por

meio do seu trabalho; do outro, uma elite política local, que, em muitos casos, se confunde

com uma incipiente burguesia local em defesa da implantação de outras lógicas de uso da

terra e da água, baseados na lógica desenvolvimentista, que tem a agricultura comercial

como pilar principal.

A pesquisa histórica possibilitou conhecer uma realidade social, diversa, rica de

experiências, bela e singela, com o jeito simples de ser dos sertanejos ou, como eles

mesmos se intitulam, dos “catingueiros” 12, repleta de histórias de vida encantadoras que

refletem a importância e o valor da mobilização social. Permitiu também conhecer um

triste e trágico momento da vida de centenas de pessoas, com a ameaça de perderem suas

terras, suas casas e suas memórias e parte de suas histórias com a construção dessa

12 O termo “catingueiro” refere-se ao homem do campo que vive nas áreas de semiárido ou nas áreas do Bioma da Caatinga. Geralmente associa-se a pessoas simples, com pouca escolaridade, mas que têm pela ampla experiência de vida e formas muito peculiares de lidar com as adversidades do sertão nordestino. Acumulam saberes, práticas, conhecimentos derivados do cotidiano simples que lhes são transmitidos. Vivem num regime econômico e social muito especial, desde cedo se acostumam com os longos períodos de estiagem, o que os ensina a importância da preservação e conservação dos recursos e dos produtos colhidos nos períodos das chuvas das águas, para que, nos tempos de seca, tenham mantimentos para suprir as necessidades essenciais do grupo familiar.

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barragem. Essa situação impôs aos atingidos pela barragem a necessidade de se

organizarem para garantir o reassentamento e as indenizações. Eles resistiram na luta em

defesa do seu principal meio de produção, a terra, reafirmando a importância que esta tem

para quem nela trabalha e dela se realiza socialmente. Foi, também, possível conhecer os

discursos e as práticas dos políticos e dos representantes do Estado envolvidos nesse

processo e perceber que, apesar de tanto tempo, as práticas e posturas adotadas no contexto

da construção não mudaram ao longo desses mais de vinte anos e, concretamente, refletem

a postura de classe, evidenciando as contradições e os antagonismos ainda vivos nas

formas de uso da terra e da água.

Dito isso, é que se apresentam os fatos mais relevantes do processo de construção

da Barragem de Anagé, iniciando com os dados mais técnicos do projeto. Posteriormente,

analisamos o discurso, por meio do depoimento concedido em entrevistas realizadas no

trabalho de campo, do ex-deputado Élquisson Soares, um dos principais articuladores

políticos do projeto.

Importante, também, são os depoimentos concedidos ao longo da pesquisa de

campo por José de Souza Leitão, servidor do DNOCS, que foi designado para trabalhar

como topógrafo no processo de desapropriação dos atingidos e acompanhou todo o

processo da construção e as transformações que estão em curso após a efetivação da obra e

que ainda permanece como único responsável técnico pela Barragem de Anagé até os dias

atuais. José de Souza Leitão reside às margens da barragem, conforme delibera o órgão, a

partir de um decreto que determina que os servidores responsáveis pelas barragens e

açudes públicos do DNOCS devem residir nas proximidades dos lagos.

Dando continuidade, analisamos os depoimentos dos camponeses atingidos

parcialmente pelas águas e que ainda vivem nas faixas de terras que sobraram e de outros

que também foram atingidos e vivem em outras cidades ou lugares distantes da terra natal

e da barragem. Utilizamos ainda como referência os relatos de militantes dos movimentos

sociais que atuaram em defesa dos camponeses na época da construção da barragem, a

exemplo de Diacísio Rodrigues, atualmente membro da coordenação do Movimento dos

Pequenos Agricultores (MPA); do então Coordenador da Comissão Rural Diocesana,

Padre João Cardoso, importante apoiador dos atingidos; os valiosos relatos do advogado

Ruy Medeiros, cuja atuação foi essencial para garantir que os camponeses tivessem as

garantias mínimas, como o pagamento pelas benfeitorias e regularização das terras

restantes.

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78

Outras fontes de pesquisa, como dissertações, teses, monografias e artigos sobre a

barragem também contribuíram com dados e informações que foram fundamentais para

dimensionar as repercussões dessa obra para a vida das pessoas e possibilitar uma análise

das transformações territoriais ocorridas nas áreas próximas da barragem ao longo desses

vinte anos.

Essa reconstrução histórica torna-se importante para entender as contradições

decorrentes dessa intervenção estatal no espaço agrário, embora haja a consciência das

dificuldades em recontá-la, pois já se passaram mais de vinte anos e muitas pessoas que

atuaram naquele contexto não foram encontradas ou mesmo já faleceram, o que

inviabilizou a realização das entrevistas com todos. Acreditamos, porém, que aquelas que

foram entrevistas tiveram uma participação decisiva e muita ativa no processo, o que é

fundamental para seu entendimento.

4.1 LOCALIZAÇÃO E ASPECTOS TÉCNICOS DA BARRAGEM DE ANAGÉ

A Barragem de Anagé foi construída no médio curso do Rio Gavião, o maior rio

intermitente da Bahia, que corta áreas de treze municípios baianos, muitos dos quais

passaram a ter disponibilidade de água regularmente após a perenização desse rio,

sobretudo os municípios situados ao longo dos oitenta e oito quilômetros, a jusante do

lago. O Gavião é o principal afluente do Rio de Contas, sendo, portanto, seu principal

tributário, e, portanto integrante da sua bacia hidrográfica. Conforme demonstra a Figura

01 que apresenta, o Mapa da Bacia Hidrográfica do rio Gavião.

Com o barramento formou-se um lago de 37 quilômetros quadrados, que acumula

um volume médio de 367 milhões de metros cúbicos de água, represadas em uma área de

44 quilômetros de extensão. O lago formado atingiu áreas de Anagé, Caraíbas e Belo

Campo, municípios que pertencem ao Território de Identidade de Vitória da Conquista. O

açude dista cerca de oito quilômetros da sede do município de Anagé e 650 quilômetros da

capital do estado da Bahia.

O lago tem uma profundidade média de 57 metros e se localiza nas coordenadas 14º

37' S e 41º 11' W, conforme consta na Figura 02 - Localização da Barragem de Anagé.

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A represa inundou uma média de sete mil hectares de terras agricultáveis, utilizadas

produtivamente por mais de oitocentas famílias, que foram atingidas total ou parcialmente.

Muitas dessas pessoas viviam nessas áreas havia mais de cem anos, conforme relataram

alguns dos entrevistados, mas não tinham os títulos de suas terras registrados em cartório.

O projeto de construção da barragem foi planejado e elaborado pelo Departamento

Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), órgão federal subordinado ao Ministério da

Integração Nacional. Para a execução da obra, o DNOCS contratou os serviços da Empresa

de Engenharia Andrade Gutierrez e, para a elaboração do Relatório de Impacto

Socioambiental, foi contratada a empresa Tecnologia e Saneamento Ambiental Ltda.

(Tecnosan).

Estes eram os objetivos principais da barragem, segundo consta no projeto inicial:

perenizar um trecho do Rio Gavião, criar um reservatório de água a fim de garantir o

abastecimento de água para as cidades de Anagé e Caraíbas, possibilitar o

desenvolvimento da agricultura irrigada e criar as condições favoráveis à instalação da

piscicultura.

Entretanto, além desses propósitos, outros interesses estavam em jogo, como a

própria definição do local onde a barragem seria construída: inicialmente por ser uma área

de terras devolutas, mas também por ser uma área de agricultura camponesa, mas que,

pelas condições topográficas e pedológicas, poderia viabilizar o desenvolvimento da

agricultura irrigada.

Um projeto de intervenção de grandes proporções, que modifica toda a paisagem e

promove transformações territoriais em escala regional, não pode ser analisado

superficialmente e apenas nos seus aspectos técnicos. É importante analisá-lo por completo

ou, pelo menos, procurar entender os aspectos subjetivos e as contradições desde sua

elaboração, os interesses e as disputas decorrentes do empreendimento. Por isso, o tópico

seguinte é dedicado a essa análise para que algumas dessas questões possam ser

esclarecidas.

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4.2 A HISTÓRIA DOS SUJEITOS E DO PROJETO DA BARRAGEM DE ANAGÉ

A construção da Barragem no Rio Gavião sempre foi um sonho para a população

sertaneja local, até tornar-se realidade em 1988. Localizada no médio curso do Rio Gavião,

essa obra era uma promessa antiga e por muito tempo fez parte do imaginário da população

de Anagé e Caraíbas, representando, no ideário popular, a redenção e a solução para os

problemas de estiagem, de falta de água e uma alternativa para a superação do “atraso”.

Entretanto, a concretização do antigo sonho trouxe muitos problemas, sobretudo

para as populações que foram atingidas pela obra, pois a grande maioria era formada de

posseiros, que perderam as terras, por terem sido inundadas, sem direito ao

reassentamento, recebendo apenas as indenizações referentes às benfeitorias.

Os primeiros comentários sobre a construção de uma barragem no Rio Gavião

surgiram ainda na década de 1940, conforme relatam alguns sujeitos que foram

entrevistados, a exemplo do senhor Aurelino Marinho e do ex-deputado Élquisson Soares.

Segundo esses entrevistados, a obra seria construída nas proximidades da cidade de Anagé.

O relato do ex-deputado evidencia isso:

O vale do Rio de Contas teve um projeto criado pelo DNOCS, de aproveitamento de todo o Vale do Rio de Contas, e aí também implicava em Anagé, pois o principal tributário do Rio de Contas é o Rio Gavião. Então nessa época eles, do DNOCS, projetaram cerca de oito barragens no vale do Rio de Contas, sendo que três dessas barragens eram no vale do Rio Gavião, uma próxima a Condeúba, que não chegou a ser construída, sendo feito um açude. Nessa época também surgiu a Barragem de Anagé, a primeira verba que saiu no orçamento geral da União para a barragem, eu não sei na verdade dizer quem criou o projeto, na realidade foi o próprio DNOCS. Através de um deslocamento desses recursos que seriam para construir a Barragem de Anagé, para o açude na cidade de Tremedal, também no vale do Rio Gavião, no município de Tremedal, o Gavião passa lá. Isso foi na verdade na segunda metade da década de 1940 (E. S. pesquisa de campo, 2010).

Segundo Élquisson Soares13, o projeto esperou por mais de quarenta anos para se

concretizar e, somente após a década de 1970, voltou a ser discutido em âmbito

13 Élquisson Soares é natural de Anagé. Sempre ouviu comentários referentes à construção de uma barragem no Rio Gavião. Após concluir os estudos no Rio de Janeiro, graduando-se em Direto, retornou para Vitória da Conquista, onde passou a atuar como advogado e a militar no Movimento em Defesa da Redemocratização do País. Foi eleito vereador pelo MDB, em 1972; por ter uma atuação política em toda a região, se candidatou a deputado estadual, sendo eleito. Já no exercício

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institucional, quando ele, na condição de deputado estadual, tentou reativá-lo e refazê-lo.

Naquele contexto histórico, o país encontrava-se sob o Regime da Ditadura Militar, e o

deputado era membro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), portanto, oposição

ao regime, o que tornava o processo mais complicado e difícil. Após a sua eleição para a

Câmara Federal, a situação começou a tomar outro rumo, como fica evidente no seu

depoimento:

Em 1974 me elegi Deputado Estadual e fui para Salvador. Nesse mandato de estadual, é que de fato eu conheci o caminho da Barragem de Anagé. Todo mundo comentava, e povo de Anagé sempre quis e esperou esse projeto. Para que no Rio Gavião tivesse essa Barragem, eu, já na Assembléia, fui atrás e procurei conhecer, fui ao DNOCS, e nós reativamos essa luta pela barragem, e ele durou muito tempo. Só na Câmara Federal, em 1979, quando tomei posse como deputado federal é que a briga ficou mais fácil e voltei a trabalhar no projeto porque o DNOCS é um órgão federal. Então eu fui brigando pela Barragem, sempre discursava no plenário em defesa da Barragem e, após isso, conseguimos os primeiros recursos. Embora eu fosse do MDB, eu consegui esses recursos com Mário Andreazza, ministro do Interior, os recursos para os estudos iniciais para construir da Barragem. Ele me disse: “Olhe, deputado, o Rio Gavião é um rio baiano, por isso o DNOCS não tem autoridade nenhuma sobre ele, na verdade ele só tem competência para legislar em rios nacionais, e o Rio Gavião, nasce e morre na Bahia” (E. S. pesquisa de campo, 2010). Destaque nosso

O projeto de construção da barragem, na prática, passou a ser também a estratégia

política para atender os interesses das oligarquias regionais, por isso tanto empenho e

dedicação para que fosse concretizado.

A partir das discussões, mobilizações e articulações políticas na esfera federal é que

o projeto da Barragem de Anagé voltou a ser discutido e analisado, ficando em fase de

estudos até a década de 1980. Só em 1987, depois de José Sarney assumir a Presidência da

República, é que o projeto tornou-se mais real e possível de ser concretizado, já que ambos

eram do mesmo partido. Conforme relato de Élquisson Soares:

Sarney tinha assumido a presidência, foi que aí eu joguei duro com ele, disse toda a história da Barragem: “é uma coisa antiga, a população tem

do seu mandato, tentou refazer o projeto da Barragem, por meio dos órgãos estaduais, sem obter êxito. Anos depois foi eleito deputado federal e, nesse posto, passou a mobilizar esforços para viabilizar o projeto, mas, pelo fato de ter sido oposição ao Regime Militar, sempre encontrou problemas e resistências e sempre teve dificuldade em ter apoio para seu projeto. Somente após o fim do regime, com José Sarney na presidência da República é que pôde ter o apoio para concretizar o projeto.

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muita fé nessa obra, é desde a década de 1940 que se fala dessa barragem, é muito importante é vital para o município.”. E disse ainda: “para continuar no MDB e apoiando o seu governo, eu preciso que essa obra saia do papel, senão não vou poder ir mais a minha terra, porque antes eu dizia ao pessoal, ‘eu sou deputado de oposição ao Regime, eles dificultam tudo’”. Ele disse “essa obra vai sair logo”, depois me deu uma autorização para levar para Costa Couto, que era ministro na época. Então peguei o bilhetinho que dizia assim: “Ministro Costa Couto, o deputado Élquisson Soares tem interesse nessa barragem, e eu tenho interesse em atender ao pedido do deputado.”. Ele leu, e aí eu disse: “Ministro, gostaria de contar com sua ajuda para fazer essa obra.”. Então ele me disse: “olha, deputado, então eu vou ter que construir a barragem, o presidente está dizendo que tem interesse em lhe atender, o senhor agora está com a bola toda, e nós vamos lhe atender.”. Dito e feito, em dois anos a barragem saiu, em 1986, ela foi construída e inaugurada e encheu no ano seguinte, e já estava cumprindo suas funções (E. S. pesquisa de campo, 2010). Destaque nosso

O relato do ex-deputado demonstra o interesse e o empenho que teve para tornar

real esse projeto, que, ainda segundo ele, foi o maior feito de sua carreira como político.

Para ele a intenção era garantir água para as cidades da Bacia do Rio Gavião e promover a

modernização da agricultura, com a possibilidade de irrigação, visando ao

desenvolvimento regional, além de possibilitar a implantação da piscicultura como

alternativa de renda para a população local. Para isso, deveria ser construída uma grande

barragem, que, como ocorre em outros locais, tem grandes impactos sociais e ambientais.

No relato do ex-deputado sobre as mobilizações e articulações para viabilizar esse projeto,

fica evidente a intenção de fazer uma barragem com grande capacidade de represamento.

Ao se reunir com o ministro responsável pela liberação dos recursos, obteve a seguinte

resposta:

“Você vai ter que conseguir autorização com o Governo do Estado para autorizar a construção dessa barragem, se nós tivermos que fazer e de fato formos construir, mesmo assim vou lhe conseguir os recursos iniciais para os estudos”, como de fato deu. Aí eu vim a João Durval, que na época era Governador da Bahia, para mostrar a viabilidade e conveniência de delegar ao DNOCS a autorização para construir a barragem, e ele me disse: “Mas, deputado Élquisson , nós já temos o projeto de construir essa barragem, aliás, temos 25 barragens projetadas para a Bahia, inclusive a de Anagé.” Eu até brinquei com ele e disse: “Mas, Governador, o que o senhor quer construir é uma “cacimba”, uma barragem de 25 milhões de metros cúbicos de água é muito pouca coisa, na verdade é desperdiçar o rio, de mais a mais, o senhor, delegando ao DNOCS, vai ter uma barragem grande e sem gastar dinheiro, pois quem vai gastar é o governo federal.” Ele se convenceu e autorizou e delegou ao DNOCS. E o ministro Mário Andreazza, que tinha feito o compromisso, cumpriu (E. S. pesquisa de campo, 2010). Destaque nosso

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O depoimento evidencia o interesse do deputado em construir uma grande

barragem, que viabilizasse o desenvolvimento da agricultura irrigada, a criação de peixes,

a instalação de estruturas voltadas ao turismo. Para que esses projetos de realizassem, seria

preciso uma grande quantidade de água, e a justificativa de perenizar o rio e garantir o

abastecimento das cidades vizinhas era, na verdade, uma maneira de conseguir maior

aceitação e aprovação popular para o projeto.

Ao se referir ao cumprimento dos objetivos estabelecidos no projeto, Élquisson

Soares comenta:

Algumas coisas não aconteceram. Ela tinha quatro finalidades principais: abastecer as cidades da bacia, como Tremedal, Anagé, Belo Campo, Caraíbas. E aí, portanto, a barragem cresceu muito a possibilidade de desenvolvimento da região, criou a infraestrutura para esse desenvolvimento. A segundo finalidade da barragem era a piscicultura, a terceira era a irrigação, que aconteceu, mas muito pouco, foi muito restrito e até a própria piscicultura não se desenvolveu de forma organizada e estruturada. Alguma coisa surgiu, mas não foi plenamente, e a irrigação que também não se desenvolveu tem muito pouca coisa hoje, e poderia ter muito mais coisa (E. S. pesquisa de campo, 2010).

O discurso do deputado sobre a realidade atual das áreas que margeiam a barragem

deixa evidente que a sua intenção era construir uma grande barragem que viabilizasse um

projeto de desenvolvimento regional em grande escala. Esse, na realidade, era o propósito

fundamental do projeto. Mesmo tendo sido construída e ter sido garantida a perenização do

Rio Gavião a jusante e o abastecimento de água para as cidades de Caraíbas e Anagé, os

demais objetivos voltados diretamente à lógica de mercado, como a agricultura irrigada e a

piscicultura em grande escala, não se desenvolveram plenamente.

Os objetivos iniciais previstos pelo projeto se concretizaram, ainda que alguns

tenham sido implantados sob outra lógica, como é o caso da piscicultura, que se

estabeleceu por meio da organização e união de pequenos proprietários camponeses que

tiveram suas terras reduzidas ou mesmo como alternativa de trabalho para trabalhadores

rurais e urbanos, que encontram na pesca uma nova forma de reprodução social.

No caso da agricultura irrigada, que também se instalou nas proximidades da

barragem, ainda que não tenha sido em grandes proporções, tem promovido a expansão do

agronegócio e, consequentemente, a expropriação e a subordinação dos camponeses às

relações capitalistas de produção. Essas fazendas edificadas são em grande parte dirigidas

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por pessoas de outras regiões, que adquiriram terras após a construção da barragem, ou

mesmo antes da construção nas áreas que estariam mais próximas da água.

Muitos entrevistados relataram que várias pessoas que eram responsáveis pelo

projeto e que também estavam envolvidas no período das obras compraram terras nas

proximidades da barragem antes da construção e que, depois da construção, as venderam

muito bem valorizadas, como foi o caso da propriedade que atualmente se chama Fazenda

Umbuzeiro, cuja área foi comprada, por um dos principais articuladores da barragem, de

três irmãos, que, na época, eram posseiros. Isso ocorreu também com outras pessoas que

tiveram acesso às informações sobre o projeto da barragem antes mesmo do início das

obras.

No que se refere à piscicultura, de fato não se desenvolveu em grande escala, mas

atualmente a pesca artesanal e também a criação de peixes em tanques-rede representam

uma importante alternativa de renda para os camponeses que foram parcialmente atingidos,

pois as terras restantes não seriam suficientes para garantir a sobrevivência deles e de

outras pessoas que passaram sobreviver da pesca.

As consequências diretas da barragem foram a expropriação dos camponeses

atingidos, que perderam suas terras, sua única forma de sobrevivência, a transformação

deles em pescadores, em trabalhadores rurais assalariados ou boias-frias, como os que

foram trabalhar nas lavouras de café de Vitória da Conquista e Barra do Choça, ou em

trabalhadores urbanos na região, o agravamento da questão agrária na região e o aumento

da miséria. Quando questionado sobre a situação das pessoas que foram atingidas pela

barragem e a escolha do local, uma área de terras devolutas, o ex-deputado afirma:

Quando a barragem foi projetada, ela ficava muito mais próxima do município de Anagé, ficava próxima daquela ponte velha. Onde tem uma ponte nova hoje, mais abaixo daquela tem uma ponte antiga, mas, conforme esse projeto inicial, ela estava mais ou menos a um quilômetro da ponte antiga. A barragem nesse lugar era para ser uma cacimbinha, uma barragem pequenininha, que tava projetada pelo Governo de João Durval, que, na verdade, era o projeto antigo da década de 1940. Foi feito um reestudo e uma reformulação depois que o DNOCS foi à área e constatou que naquela área ela não oferecia tanta segurança, pois se tratava de uma barragem maior, também tinha uma questão de ordem econômica, como construir a barragem e não gastar tanto assim. Então veio um técnico, se não me engano um italiano e localizou onde ela está hoje e foi construída. Ela ficou amarrada com toda a pedra que foi usada na barragem, foi retirada das escavações, para fazer a barragem, e o técnico dizia “vai dar uma segurança maior” (E. S. pesquisa de campo, 2010).

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Ao se referir à questão de ordem econômica, é claro que seria em relação às

indenizações que seriam pagas às famílias que foram atingidas, pois a grande maioria dos

atingidos era formada de posseiros. Talvez essa localização tenha levado esse aspecto em

consideração, como de fato ocorreu. Para o ex-deputado, essa questão não tem grande

relevância, diante da importância da barragem, sendo, portanto, apenas um “detalhe”. Não

se pode negar a relevância da barragem e a melhoria das condições de vida da população,

mas a questão dos atingidos teve um impacto considerável na região.

Quando questionado sobre o processo de expropriação, ele afirma:

Houve, mas não foi assim como dizem. A população ribeirinha não era tão intensa, mas também não era uma área deserta, tinha pequenos proprietários, e essas terras eram todas devolutas. Na verdade na Bahia não teve uma organização melhor para tratar dessa questão. A situação fundiária na Bahia é muito precária, e ali naquela área não tinha praticamente nada, mas o DNOCS indenizou, não só construindo casas para as pessoas que foram afetadas, como também pagou para quem perdeu as terras, e a terra não tinha valor de nada, não valia coisa nenhum, e os proprietários vendiam por qualquer preço, porque na verdade eles não acreditavam que essa barragem ia sair. Quem queria comprar, eles vendiam mesmo a qualquer preço. Depois o PT, o povo do PT subiu muito na área da barragem porque era contra a barragem, eles mobilizaram muito para dizer que não era pra construir, eram contra e, na verdade, demonstraram falta de visão das coisas, não se dedicaram a fazer um estudo mais sério (E. S. pesquisa de campo, 2010).

A questão dos atingidos foi tão séria e gerou tantas manifestações que teve o apoio

de entidades sociais de toda a região, e o pagamento pelas benfeitorias e a construção de

novas casas para as pessoas que foram atingidas se efetivaram graças às mobilizações e à

organização dos camponeses que montaram acampamento e chegaram a paralisar a obra

inúmeras vezes.

É muito esclarecedor o depoimento do servidor José de Souza Leitão, topógrafo do

DNOCS, que foi designado para atuar nas negociações e nos processos de desapropriação.

Seus relatos confirmam o número de pessoas que foram atingidas e trazem muitos dados

relevantes para compreender essa história. Ele é uma testemunha de todo o processo, tendo

em vista que trabalhou na época da construção e acompanhou as transformações que

ocorreram nos últimos vinte anos nas proximidades da barragem.

Ao se referir a sua chegada em Anagé, relata:

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Na época eu vim para orientar, porque a Andrade Gutierrez foi quem construiu a obra e já tinha ganhado a concorrência para essa daqui. Então, todo mundo que veio e que estava construindo a obra lá no Ceará – o Açude do Serrote – veio para cá, tá certo? Aí quando chegaram aqui eles requisitaram os topógrafos daí de Salvador que vieram para cá, mas eles não tinham experiência nessa área de desapropriação. Aí me mandaram para cá para eu instruir eles, pra eu ensinar, e eu ia passar só esses 30 dias aí até hoje eu estou aqui (J. L., pesquisa de campo, 2010).

O depoimento do servidor confirma a história de que a intenção de construir a

Barragem de Anagé era antiga, informação que coincide com o relato de outros

entrevistados.

Então, segundo as informações das histórias do DNOCS esse requerimento aqui dessa barragem foi de 1940. O diretor do órgão aqui na Bahia tinha solicitado um projeto de uma barragem no Rio Gavião, não especificamente aqui nesse local, no Rio Gavião, que era da barra do Rio de Contas pra cá. O DNOCS na época fez o estudo, fez o projeto e até hoje ficou aí. Todos os anos na época, cada diretor pedia ao Ministério aquele recurso para fazer determinada barragem e aqui teve até uma politicagem que Élquisson Soares fez. Élquisson não arrumou coisa nenhuma, essa é verdade verdadeira. Eu não quero dizer que não houve influência de Élquisson Soares, jamais, mas alguém disse que ele é o pai da barragem, não tem nada de pai de barragem. Ele também ajudou, deu força e isso foi colocado no orçamento da União, porque naquela época... Mas é criação política querer ser o pai e a mãe da coisa. Eu sei que foi determinada essa barragem para o Rio Gavião, para a Bahia em 1987. Foi licitada a obra, e Gutierrez ganhou a concorrência e vieram para cá no começo de janeiro de 1987. Eu já vim no dia 23 de novembro de 87. Eles vieram primeiro fazer essa estrada. Não tinha nada, só tinha um caminho. Aí já era o desenvolvimento da coisa, da barragem (J. L., pesquisa de campo, 2010).

A história dos sujeitos envolvidos no projeto da Barragem de Anagé é repleta de

contradições. Para a maioria dos camponeses e para a população local, a obra é resultado

da atuação política do ex-deputado Élquisson Soares; para outros, a exemplo do servidor

do DNOCS, resulta da ação planejada do Estado. O aspecto mais importante é a análise da

concretização do projeto, para que seja possível entender como se deu a execução da obra,

com destaque para a ação do Estado e as práticas adotadas no que se refere ao respeito ao

direito dos atingidos.

A execução do projeto teve início em 1984 quando começaram os estudos

preliminares, que foram concluídos em 1985. A fase seguinte foi a de elaboração do

Relatório de Impacto Ambiental. A empresa responsável pela realização dessa etapa foi a

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Tecnosan. Nessas fases iniciais os moradores não sabiam ao certo qual a finalidade desses

trabalhos. Alguns ouviam dizer que seria para a construção da barragem, mas,

efetivamente, não sabiam onde seria construída e qual a sua localização exata.

Segundo os dados disponíveis no Relatório de Impacto Ambiental da Barragem de

Anagé, foram cadastradas 521 famílias14 diretamente atingidas pela obra, totalizando cerca

de 2.500 pessoas. Entre essas, em média 109 famílias tiveram suas casas alagadas pela

barragem e mais de 150 tiveram perdas totais de suas terras.

A diferença entre os dados oficiais e os números obtidos nos depoimentos de alguns

camponeses e das lideranças que apoiaram os posseiros se deve ao fato de que, para o

Estado, os atingidos são apenas as pessoas diretamente afetadas por esses

empreendimentos, não considerando, por exemplo, as que foram atingidas pelas estradas,

as que residiam a jusante da barragem e que, indiretamente, também foram prejudicadas

pela construção, ou mesmo aquelas que não foram reconhecidas como beneficiárias. Os

dados apresentados por Diacísio Ribeiro refletem essa diferença.

Embora as informações prestadas por Diacísio sejam diferentes das que estão

disponíveis nos relatórios, merecem confiança, pois ele foi um dos principais apoiadores

dos atingidos. Conforme seu relato:

A média de famílias expropriadas foi de 800 em todo o leito da barragem. Dessas, umas 150 famílias perderam a terra total, outras perderam parte de suas terras, outras perderam terra, mas ficaram com parte da terra chamada de segurança administrativa a área mais próxima da barragem. Esses que sobraram ficou com parte da área que sobrasse e podia ficar na área de servidão, que era do DNOCS. Muitos foram morar nas cidades e em outras localidades em terras de parentes. Foram construídas 97 casas, em Caraíbas, Anagé e próximo à barragem, outros foram embora diretamente para Belo Campo, Cândido Sales, Barra do Choça (D. R. R., pesquisa de campo, 2008).

As diferenças entre os dados do Relatório, que são apresentados por Pereira (1993),

e os relatos do servidor Leitão e de Diacísio devem-se à falta de dados oficiais. Em certo

momento, o Relatório apresenta 450 famílias atingidas diretamente; dessas, 150 tiveram

perdas totais de suas terras; entre essas, algumas perderam suas casas, outras perderam

parte de suas terras e as casas que estavam localizadas mais próximas ao leito do rio. Dessa

forma, trabalharemos com o número apresentado pelos camponeses, pois o Estado, em 14 Dados obtidos na Dissertação de Lucas Pereira, intitulada: Velha Raiz, Nova Morada. A Barragem de Anagé: Transformações no modo de vida sertanejo (1993).

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muitos casos, não considera todos os que são atingidos por obras públicas como no caso

das barragens.

O próprio conceito de atingido é digno de destaque e de uma discussão mais

aprofundada, dada a polêmica que provoca. A maioria dos relatórios de impacto ambiental

considera, para fins de indenização e reassentamento, apenas as pessoas que são atingidas

materialmente ou as que perdem as suas terras pelo alagamento. Mas o debate precisa

caminhar para ampliar o conceito, pois a construção de uma barragem pode provocar

impactos para além da área diretamente atingida, tanto a montante como a jusante, tanto

positiva como negativamente. Da mesma forma é preciso também considerar as perdas

imateriais provocadas por esses empreendimentos, que, raramente, são levadas em

consideração.

Por isso, mesmo com essa disparidade em relação aos números, optamos por

mantê-los, pois são resultantes de dados oficiais e de depoimentos: de um lado, dados

formais do Estado e, de outro, relatos de camponeses que vivenciaram a história e que têm,

de fato, a dimensão dos impactos dessa obra sobre a população local.

Na grande maioria dos casos, os atingidos são todas as pessoas que são

prejudicadas com a construção da barragem, seja de forma direta, seja de forma indireta.

Assim precisamos salientar que atingidos não são apenas aqueles que perdem suas terras

ou suas casas quando as águas se elevam, mas, também, aqueles que, embora residindo a

quilômetros de onde as barragens são construídas, são afetados pelas alterações nos ciclos

dos rios, pelas inundações, pelo isolamento, pela perda de contato e, ainda, pelos aspectos

imateriais e culturais que são afogados pelas águas.

Costuma-se também utilizar o termo “desalojado” para designar as pessoas que são

realocadas ou remanejadas de suas áreas em decorrência dos projetos de reassentamento.

Quando isso ocorre, também acontecem profundas transformações na organização social e

na relação com a natureza, pois, em muitos casos, essas pessoas são levadas para áreas

distantes das margens das barragens e dos rios, alterando os vínculos e as representações

imateriais, as expressões culturais e as práticas cotidianas. Perdem a identidade territorial

construída ao longo de toda uma história de vida.

No caso especifico da Barragem de Anagé, a primeira ação concreta, antes mesmo

do início das obras e da instalação do acampamento, foi a construção de uma estrada para

ligar a cidade de Anagé ao acampamento das obras, já que a barragem dista cerca de seis

quilômetros da sede do município. Essa ação provocou uma intensa insegurança e revolta

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dos camponeses, que tiveram cercas, roças, currais e demais benfeitorias destruídas pelas

máquinas, sem terem sido avisados com antecedência de que seria construída a estrada em

parte de suas terras. Pelo depoimento de uma pessoa que trabalhou na época da construção

da estrada, podemos entender melhor como isso ocorreu:

Meu pai trabalhava pra obra, eu era rapaz e ia mais ele. Ele ficava de noite marcando o ponto, onde a máquina ia passar pra abrir a estrada, porque tinha que ser de noite, se fosse de dia não conseguia, porque o pessoal protestava, ia derrubando as roças, as cercas, até curral que ficava na frente tirava tudo. Quando chegava de manhã, não tinha mais nada, só a estrada aberta (C.N, pesquisa de campo, 2010).

Tal ação causou muita revolta. A partir desse primeiro contato da empresa com a

população local, as pessoas passaram se mobilizar, por terem percebido que a prática do

Estado por meio do DNOCS seria arbitrária, pois, se para a construção da estrada foi

adotada aquela postura, como seria o tratamento durante as negociações para o pagamento

das indenizações? Essa prática de nem sempre considerar os direitos dos atingidos é

recorrente e demonstra uma imensa falta de respeito. Para o servidor do DNOCS, a

construção da estrada se deu em outro contexto.

Como aponta seu relato:

Eles vieram primeiro fazer essa estrada. Não tinha nada, só tinha um caminho. Aí já era o desenvolvimento da coisa, da barragem. É aqui só tinha um caminho que passava cavalo, jumento, égua ou qualquer animal aí. Mas estrada não tinha nem pra andar de bicicleta. A primeira coisa que Gutierrez fez foi a estrada até chegar aqui, para depois fazer o acampamento, para poder vir energia, porque aqui também não tinha. Tinha em Anagé, pois aqui não tinha nada (J. L., pesquisa de campo, 2010).

Não podemos desconsiderar a importância da estrada, tanto para o período da

construção como para os dias atuais. Mas é preciso analisar que os direitos fundamentais

não forma considerados, não houve um contato prévio com os moradores, os quais

souberam que estava sendo construída uma estrada naquele local apenas quando

perceberam as cercas no chão, os currais derrubados, as roças destruídas!

A versão do servidor do DNOCS confirma muitos depoimentos dos camponeses,

mas sem informar sobre as práticas adotadas e, principalmente, sobre aquelas ações

violentas e arbitrárias em relação aos atingidos. O seu depoimento apresenta números

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diferentes daqueles encontrados no Relatório de Impacto Ambiental e em documentos,

como dissertações e artigos e, ainda, nos depoimentos dos camponeses:

Na área alagada, foi desapropriada uma média de 474 propriedades. Só teve quatro que teve escritura pública registrada. Os outros eram todos posseiros. 474 propriedades. Foram quatro propriedades que teve escritura pública registrada, e que foi pago pelas terras e benfeitorias só foram quatro, que é onde estamos. Porque essas quatro pessoas que tinham escritura pública registrada, o DNOCS pagou terra e benfeitorias. As outras não tinham escritura, e a lei federal diz que o posseiro só tem direito de receber as benfeitorias, isso é inviolável (J. L., pesquisa de campo, 2010).

Quanto à disparidade em relação ao número de famílias que foram atingidas, como

informamos anteriormente, um aspecto que pode elucidar essa diferença se deve à situação

fundiária da região: muitas propriedades eram cultivadas por mais de uma família, por

serem terras de herdeiros. Nesses casos, levava-se em consideração apenas o chefe da

família ou o irmão mais velho. Como é costume na cultura sertaneja, na falta do pai ou da

mãe, cabe ao filho mais velho a responsabilidade pela família e, por conseguinte, pela

propriedade.

A expropriação dessas famílias foi, sem sombra de dúvidas, a principal

consequência negativa da barragem, sobretudo porque, das famílias atingidas, apenas

quatro tinham a escritura pública das terras, os outros eram posseiros, mas que ocupavam a

área desde o tempo dos avós. O fato de essas terras estarem localizadas no sertão, o que

reduz consideravelmente a capacidade de produção comercial, dada a pouca possibilidade

produtiva, explica não haver um processo de apropriação capitalista das propriedades. A

forma fundamental de uso baseava-se na produção familiar destinada à reprodução social

do grupo familiar e à comercialização do pequeno excedente nas feiras locais, por isso os

camponeses que nasceram nessas áreas e nela criaram os seus filhos não tinham a

preocupação em regularizar as terras, que, em sua maioria, foram recebidas por meio de

partilhas e heranças. Dessa forma tinha-se uma situação fundiária extremamente

desorganizada, sem registros e escrituras das propriedades. Em consequência, a maioria

quase absoluta dos atingidos pela obra encontrava-se na condição de posseiros e não

recebeu as indenizações pelas terras.

O relato do próprio servidor confirma isso ao dizer que:

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As pessoas me perguntavam: “Ô, Leitão, por que o DNOCS não pagou a terra?”. Eu dizia: “Não pagou a terra porque não tinha escritura pública, e o órgão só pode determinar pagar se tiver a escritura pública, porque o Ministério vai cobrar se tem ou não tem essa terra aqui, esse patrimônio todo.”. O patrimônio aqui é 173 hectares, nessas quatro propriedades, que tinham terras e benfeitorias deu um total de 173 hectares, esse foi pago pela terra e benfeitoria. Isso é patrimônio público e ninguém pode contestar. Agora o restante só foi pago as benfeitorias. Para você ter uma ideia para você ver como as pessoas tinham um descuido com as coisas, que teve gente que a gente pagou as benfeitorias que tinha 80 anos. Isso já tinha sido herdado do pai dele. Quer dizer, eles nunca procuraram regularizar para receber. Então, houve um certo tumulto dessa condição (J. L., pesquisa de campo, 2010). Destaque nosso

Mesmo tendo consciência de que as terras eram ocupadas por grupos familiares

havia duas ou três gerações, o DNOCS não se preocupou em regularizá-las, conforme

prevê a legislação, já que os atingidos teriam direito a requerer a usucapião. O mesmo

servidor que prestou essas informações foi o responsável pelo levantamento topográfico e

pelas negociações com os atingidos, mas, ainda assim, não atuou com o intuito de garantir

o direito dos posseiros.

A regularização fundiária não ocorreu antes da construção da barragem e não houve

interesse por parte do DNOCS de resolver essa questão, uma vez que o pagamento das

terras e das benfeitorias tornaria a obra muito cara. Conforme alguns relatos dos

camponeses, a escolha do local da barragem levou em consideração também a situação

fundiária, uma vez que foi construída em áreas de terras devolutas, apesar de serem

ocupadas havia mais de cem anos de forma produtiva.

No primeiro contato que tiveram com o DNOCS, ao serem informados de que

seriam atingidos, muitos camponeses ficaram sabendo que não receberiam nenhum tipo de

indenização, por isso o servidor faz referência ao tumulto ocorrido. Na realidade, o

“tumulto” foi a reação e a mobilização dos atingidos que se organizaram e protestaram

para que seus direitos fossem respeitados e suas benfeitorias indenizadas e, sobretudo, que

fossem reassentados.

Ao se referirem às mobilizações dos camponeses, o servidor relata:

Tumulto, porque assim na época muita gente protestou contra a barragem. Muitos protestaram porque não queriam perder a terra, muitos protestaram porque não queriam a barragem, que ia incomodar eles, e eles iriam ter de sair daí de dentro. Aquele tumulto que o próprio Rui

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Medeiros comandava. A gente fez umas reuniões aqui com a direção geral de Fortaleza, que estiveram aqui na época. Fizeram uma confusão aí dos diabos! Aí ficou certo que o DNOCS iria pagar terras e benfeitorias só dessas quatro propriedades de 173 hectares que tinham escritura, e os outros iriam para benfeitorias. Se eles providenciassem a documentação, o DNOCS, em qualquer tempo, poderia pagar pela terra, porque a gente tinha o mapa todo, a planta com as coordenadas direitinho, não é! O que aconteceu: depois que a barragem encheu, alguém disse a nós se tinha como a DNOCS pagar isso. Aí o DNOCS foi lá para ver se o Interba dava o título da terra, porque a gente entregou a planta toda para o Interba. Só que existe uma lei que diz que depois da área estar inundada o Interba não pode dar a contestação de uma área que ele não fez. Aí ficaram mesmo sem receber, e eu acho que nunca vai receber o dinheiro dessa terra. Agora as benfeitorias foram muito bem pagas. A tabela que a gente tinha do ministério era muito boa (J. L., pesquisa de campo, 2010).

A relação dos camponeses com o DNOCS foi marcada por muitos momentos de

embates, confrontos e atritos, sobretudo porque, em muitos casos, o Estado não considerou

as reivindicações dos camponeses e questionava a legitimidade dos atingidos. Essa postura

transformou a mobilização e a organização dos camponeses em um importante movimento

político que envolveu muitos setores da sociedade regional e tornou-se um marco na luta

camponesa no Sudoeste da Bahia contra a expropriação das terras e a lógica

desenvolvimentista que estava sendo gestada e implantada com a construção da barragem.

Essa parte da história será contada no tópico seguinte, dessa vez utilizando os depoimentos

dos próprios camponeses e das pessoas que os apoiaram.

4.3 A LUTA E RESISTÊNCIA CAMPONESA DOS EXPROPRIADOS PELA BARRAGEM DE ANAGÉ

A poesia-manifesto que inicia este capítulo foi escrita pelos camponeses atingidos

no contexto da construção da barragem e tenta expressar em versos os sentimentos e as

angústias causados pela intervenção do Estado no seu território. Alguns trechos são muito

apropriados para descrever a lógica que justificou a construção da barragem e a

consequência na vida dos atingidos. Na primeira estrofe, destaca-se a mobilização para

garantir as terras, “ou na lei, ou na marra, vamos recuperar”. Essa frase resulta do fato de

que, embora depois da primeira paralisação da obra o DNOCS tenha aceitado negociar o

pagamento das benfeitorias e das casas, como não havia firmado um acordo em relação às

terras que foram alagadas, a obra foi paralisada mais uma vez.

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Concretamente, a Barragem do Rio Gavião, antiga promessa e um sonho de muito

tempo, começou a se realizar em 15 de outubro de 1986, após a assinatura, pelo então

presidente da República José Sarney, do Decreto nº 93.411/1986, que “Declara de

Utilidade Publica e Interesse Social, para Fins de Desapropriação pelo Departamento

Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), Áreas de Terra Necessárias à Construção do

Açude de Anagé, nos Municípios de Anagé e Tremedal, Estado da Bahia, e dá Outras

Providências”.

Essa teria sido uma grande conquista para a população local, não fosse a

expropriação das famílias atingidas pelo decreto e as transformações nas formas de uso da

terra e no convívio, que foram profundamente alterados com a construção dessa obra.

Após a assinatura do decreto, começaram os primeiros estudos de ordem geológica,

assim como as pesquisas e o levantamento de informações sociais e econômicas das

famílias que residiam e trabalhavam nas terras que estavam no perímetro delimitado para a

construção da barragem.

Neste contexto, a população local já ouvia o comentário de que seria construída

uma barragem naquelas localidades e, com a chegada dos pesquisadores da Tecnosan, eles

tiveram a confirmação que, de fato, haveria uma grande obra do Governo Federal naquela

região. Apesar das tramitações já estarem bem estruturadas e as obras já se iniciando, as

famílias que seriam atingidas ainda não tinham nenhuma informação concreta sobre a obra

nem quais seriam atingidos.

Após a conclusão dos Relatórios de Impacto Ambiental, elaborados pela Tecnosan,

começaram as ações para dar início às obras. Até aquele momento, as famílias não tinham

sido informadas oficialmente sobre a localização exata da barragem, nem quais famílias

perderiam suas terras, casas e benfeitorias, não sabiam onde a água seria represada e qual o

curso que tomaria tampouco a extensão e profundidade do lago. Tal postura das empresas

que representam o interesse do Estado ocorreu em outros projetos de barragens e constitui

uma estratégia para evitar uma maior organização dos atingidos.

Em entrevista, uma das lideranças dos camponeses atingidos e que participou da

mobilização afirma:

Em 1986, começaram alguns estudos geológicos da área sem nenhum esclarecimento do pessoal e para aonde a água ia nem nada. A gente que já fazia parte das Comunidades Eclesiais de Base começou a sentir e saber de outros projetos como a Barragem de Sobradinho, Itaparica que

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vinha mais uma luta como a que teve lá nesse lugar. As informações começaram a chegar à gente de que seria mais um jogo de expulsão dos moradores do Rio Gavião. Aí, sabendo disso, a gente começa a fazer umas reuniões com famílias que morava na área do leito do rio e dos ribeirinhos, pra dizer que eles abrissem o olho que isso ia expulsar as famílias (D. R. R, pesquisa de campo, 2008).

O entrevistado era membro da Comissão Rural Diocesana da Diocese de Vitória da

Conquista, que, à época, organizava e apoiava as lutas dos camponeses e trabalhadores

rurais e tinha as mesmas funções da atual Comissão Pastoral da Terra (CPT). Em seu

depoimento, evidencia-se o papel fundamental de alguns setores da Igreja Católica naquele

período, sobremodo dos clérigos vinculados à Teologia da Libertação,15 e dos leigos que

participavam das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que sempre apoiaram a

organização e mobilização popular contra as mais diversas formas de opressão.

No caso dos atingidos por barragens no Estado da Bahia, esse apoio foi marcante,

como na construção das barragens de Sobradinho e Itaparica, servindo de exemplo e de

alerta diante da forma arbitrária e injusta adotada pelo Estado nos projetos já executados e

que, certamente, seria adotada no caso da construção da Barragem de Anagé.

Após as primeiras reuniões realizadas com o apoio da Comissão Rural Diocesana,

os camponeses foram informados sobre o processo de expropriação a que seriam

submetidos e, com isso, iniciaram-se as primeiras mobilizações daqueles que viviam nas

áreas onde a barragem seria construída e que eram contrários à postura do DNOCS no que

se refere ao tratamento e às negociações com as famílias que perderam suas terras.

Lutaram contra o processo de expropriação, pois, para a obra ter início, era necessário

“limpar a área”.

Com a preparação da área para a obra, a empresa começou a retirar todos os

camponeses de suas terras e começou a derrubar casas, cercas e destruir outras

benfeitorias, como currais e roças, para que os trabalhos de terraplanagem tivessem início,

da mesma forma como ocorreu no período da abertura da estrada, quando muitas roças,

currais e demais benfeitorias foram destruídas na calada da noite, sem o mínimo de

respeito para com os camponeses que, em muitos casos, sequer foram avisados.

Alguns meses após a assinatura do decreto e já depois de aberta a estrada que liga a

sede do município de Anagé ao local onde a barragem seria construída, chegaram os 15 A Teologia da Libertação refere-se a uma organização ocorrida na Igreja Católica, principalmente na América Latina, tendo como um dos principais representantes Frei Leonardo Boff. Baseava-se nos ideais marxistas, defendia a mobilização e a organização política da Igreja em apoio aos pobres, contra as diversas formas de opressão, perseguição e dominação.

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operários e fizeram a montagem do acampamento da obra, exatamente no dia 5 de janeiro

de 1987, numa fazenda na localidade Passagem do Chiqueiro (OLIVEIRA, 2003, p. 28). A

implantação do acampamento surpreendeu os moradores, pois ainda não haviam

conseguido negociar com o DNOCS, e a obra já estava sendo iniciada. A apreensão

aumentava, pois ainda não sabiam se seriam ressarcidos pelas perdas.

Diante dessa situação, os camponeses passaram a ter consciência de que a

realização do antigo sonho de ter acesso à água estava se efetivando como um pesadelo, a

perda da terra. Como relatou em entrevista uma camponesa atingida e que permanece na

área próxima à barragem até os dias atuais: “Não adianta chegar tanta água e nós perder

nossa terra. Antes ter as terras mesmo seca. O bom é ter a terra e ter a água”.

As Figuras 02 e 03 são imagens históricas do contexto da construção da barragem

no início da terraplanagem e dos primeiros barramentos:

Figura 04: Início das obras, maio de 1987

Fonte: Arquivo do DNOCS. 1987.

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A Figura 02 retrata o início das obras de escavação no mês de maio de 1987 e

mostra o processo de abertura do local onde foi construído o barramento para a formação

da barragem. Nela é possível perceber o transporte de materiais e o grande número de

caçambas e caminhões removendo pedras, terras para outros locais.

A Figura 03 retrata outro estágio, novembro de 1998, quando a obra já estava quase

finalizada e já é possível perceber que o barramento já havia sido feito e o lago já

começava a se formar, apesar de não ter represado uma quantidade significativa de água.

Podem ser percebidos ainda alguns remanescentes da vegetação local, que não foram

totalmente destruídos.

Figura 05: Início do enchimento da barragem

Fonte: José Silva, Jornal A TARDE, novembro de 1988.

Essas imagens históricas do período da construção mostram as transformações na

paisagem, as mudanças na estrutura geomorfológica da área e a alteração no curso do rio.

Para a população local, é a expressão material da transformação territorial que se

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concretizava, a destruição do lugar, a dimensão imaterial do espaço vivido, do território do

trabalho e da vida, que começou a ser inundado pelas águas do Rio Gavião.

Para desarticular as mobilizações e enfraquecer a resistência dos camponeses

atingidos e evitar que as obras paralisassem, os políticos e empresários locais que eram

favoráveis à construção da barragem, mesmo sem considerar a necessidade de garantir o

pagamento das benfeitorias ou o reassentamento e querendo que a obra fosse executada a

qualquer custo e com a maior rapidez possível, organizavam-se, pois estavam em defesa de

seus interesses políticos e econômicos mais diretos.

Essa parcela da população, com o apoio de deputados estaduais e federais, se aliou

aos políticos locais e se articulou com lideranças e alguns produtores rurais para aumentar

o contingente de apoiadores, utilizando o “discurso” de que a construção desse grande

reservatório de água solucionaria o problema da escassez ou, mesmo, falta de água para as

cidades próximas e para a agricultura, conseguindo, dessa forma, conquistar o apoio de

parte da população das cidades vizinhas.

O depoimento de um entrevistado demonstra como foi esse processo:

Aí em março ou abril de 1986, o ex-deputado Élquisson Soares fez uma reunião no eixo da barragem, na Passagem do Chiqueiro, e aí ele prometeu que o pessoal não tivesse nenhuma reação porque se as famílias viessem perder as terras iam ganhar outras propriedades melhores que as que eles tinham. Isso ele falou com o senhor Clemente Vieira, que era uma liderança dali e conseguisse acalmar o povo dali. E a gente entrou fazendo outro discurso, mostrando que as pessoas iam perder a terra total. Aí puxamos um movimento, mas um movimento não legal, era autônomo de CEBs e outras entidades, e começamos a discutir, mas nunca a gente sabia quem era responsável pela aquela obra, nós sabia que era o DNOCS e a empresa Andrade Gutierrez que foi a empresa contratada (D. R. R., pesquisa de campo, 2008).

Nesse primeiro momento, estabelece-se um dos principais conflitos: os favoráveis à

construção da barragem, que representariam o “progresso” e o “desenvolvimento” para a

região; e os contrários, que estavam emperrando a “modernização” e a melhoria das

condições de vida das pessoas das cidades vizinhas e da própria população local. A postura

dos políticos e representantes das classes dominantes foi, na verdade, uma grande

armadilha que teve o propósito de enfraquecer e descaracterizar a legitimidade da luta dos

camponeses que estavam prestes a perder suas terras, o espaço de reprodução de suas

vidas, onde tinham se constituído e reproduzido como camponeses por décadas. Entretanto,

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os camponeses, de forma unânime, afirmavam que não eram contrários à barragem, mas,

sim, à postura adotada pelo DNOCS e que estavam em defesa dos seus direitos.

Esse conflito reflete, claramente, a própria essência da luta das classes sociais e o

choque de interesses: de um lado trabalhadores camponeses lutando para continuar se

reproduzindo socialmente por meio do trabalho com a terra; do outro, o Estado e a pequena

burguesia interessada em se apropriar das terras, para implantar um “modelo” de

desenvolvimento agrícola baseado na monocultura irrigada, utilizando-se da força de

trabalho contratada para trabalhar nas empresas agrícolas que se estabeleceram.

Segundo uma das lideranças dos camponeses, D. R. R., a articulação foi tão bem

engendrada que os políticos locais e empresários, em parceria com os deputados, chegaram

a criar uma associação para congregar as pessoas que estavam a favor do DNOCS e da

construção da barragem a qualquer custo. Muitas delas não tinham consciência de que

também seriam prejudicadas com a barragem, inclusive com o risco de perderem suas

terras.

Como ele afirma:

Aí nasceu uma associação desse outro grupo ligado aos políticos de Caraíbas, de Anagé e de Tremedal e que no passado essa área era de Tremedal pra brigar contra a gente. Aí nós tava brigando contra o DNOCS, a Andrade Gutierrez e contra os políticos locais. E, para num fugir, nós também enfrentava uma briga com a paróquia de Anagé que era contra a nossa luta. Frei Adriano, que já é falecido hoje, era contrário a nossa luta, queimou a gente em alguns lugares, dizia que a gente tava impedindo o progresso chegar à região (D. R., pesquisa de campo, 2008).

Desde o início do processo de construção da barragem, os conflitos foram

marcantes, assim como a resistência e, principalmente, a luta das famílias camponesas,

que, mesmo diante de tantas forças contrárias, persistiram e se organizaram em um

movimento que reuniu diversas famílias durante todo o tempo de duração das obras, com

algumas ações que chegaram a paralisar os trabalhos, como ocupação do canteiro de obras

e dos acampamentos na área onde a água seria represada.

O manifesto-poesia que inicia este texto reflete o sentimento dos camponeses e

relata esse contexto como se observa nestas estrofes: “Povo unido é povo forte, não

cansamos de falar. É por isso que resolvemos, mais uma vez a obra parar, pois queremos

nossa terra ou na lei ou na marra, vamos recuperar.”.

Ao se referir à ocupação do canteiro de obras, o entrevistado relata:

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No dia 06 de março de 1987 nós ocupemo a área, com mais de 600 pessoas e paralisamos toda a obra e deixou só o setor de ar. Naquela época quem era o Governador da Bahia era o Waldir Pires. E tinha ido a Polícia Militar daqui de Conquista em seguida, quando ele tomou conhecimento, ele mandou retirar a polícia. Ele foi avisado pelo deputado Alcides Modesto do Partido dos Trabalhadores que a luta era para garantir a gente continuar vivendo na terra, e aí gerou um bocado de briga porque nós já sabia que ia perder a terra. A luta da gente era por moradia, por uma terra irrigada, casa, saúde, escola e ter qualidade de vida, essas coisas. E também pra saber até onde a água ia porque inda tinha gente no leito do rio, para garantir quem tava correndo risco. A coisa foi tão jogada que num inda tinha um estudo do projeto de até aonde ia a água (D. R., pesquisa de campo, 2008).

Com essa ação, os camponeses demonstraram sua capacidade de mobilização,

marcada pela disposição para a luta e pela resistência, pois tinham sido capazes de

paralisar a obra e continuavam dispostos a enfrentar tudo e todos em defesa de suas terras,

pois, para eles, as terras eram a base de sua reprodução social, por isso estavam, na

verdade, lutando para defender suas vidas, pois não é possível um camponês se realizar

materialmente sem sua terra.

Como expõe o Padre João Cardoso, na época coordenador da Comissão Rural

Diocesana, atual Comissão Pastoral da Terra (CPT):

O que nós queríamos era garantir que os camponeses não perdessem suas terras, porque a questão agrária na região Sudoeste já era complicada, e a barragem sendo construída provocaria a expropriação de muitas famílias, acirrando ainda mais os conflitos de terra aqui na região, porque a terra para o camponês é tudo, sem a terra o camponês não vive, por isso o apoio da Igreja tinha o propósito de defender a vida, como um bem supremo. Nós entendíamos que, ao garantirmos o direito à terra, estamos garantindo o direito à vida. Nós sabíamos que a principal bandeira de luta era garantir as indenizações, não apenas em dinheiro, mas, principalmente, em terra, tínhamos esse lema “terra por terra” (J.C., pesquisa de campo, 2008).

Ante essa situação, o DNOCS aceitou estabelecer um diálogo com os camponeses e

abriu espaço para a negociação, dispondo-se a ouvir as principais reivindicações das

famílias atingidas. Depois de analisá-las, comprometeu-se a atender os pleitos dos

camponeses, como o reassentamento, a construção das casas, o pagamento das benfeitorias

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e a concessão de cinco hectares de terra irrigada para todas as famílias16. Entretanto poucas

reivindicações foram atendidas de imediato, e, também, os representantes do Estado não

deram o tratamento correto à situação. Os camponeses, tendo consciência de que seria um

processo contínuo de luta e contestação, voltaram a se organizar e mais uma vez

paralisaram as obras para que fosse firmado um novo acordo.

Com muita pressão, depois da barragem mais ou menos já com seis metros de altura, começaram a fazer um estudo pra mostrar até onde a água ia chegar até aí, e desse jeito nós era obrigado a sair da área porque se ficasse a água ia acabar com tudo. A gente parou o primeiro momento por 15 dias ocupando na área, nós saiu, mas ficou acampando, mas já tinha muita benfeitoria perdida. Mas depois de quinze dias se eles não cumprisse o que tinha combinado nós ia voltar a mobilizar o pessoal e depois disso nós percebeu que eles não cumpriu o acordo nós voltamos e ocupamos por mais 90 dias. O DNOCS se comprometeu a pagar as benfeitorias e aí nós paramos a obra totalmente porque eles não honrou o compromisso. Eles foi levando a gente no cansaço, enrolando, mas achando que por nós ser camponês não ia ficar muito tempo resistindo. Mas eles esqueceram que ali tava os camponês em cima da sua propriedade e depois de quinze dias, sabendo que nós num ia sair mesmo, tentaram fazer uma forma de pressão com os operários, oferecendo trezentas horas de pagamento extra pra quem conseguisse tirar nós daquela área. Só que a maioria dos operários era da região mesmo e aí nós convenceu que essa terra era nossa, dos nossos avós, pais (D. R., pesquisa de campo, 2008).

O Estado utilizou diversas estratégias para desmobilizar os camponeses, seja de

forma direta por meio dos seus organismos, seja com a utilização das forças contratadas

para executar a obra, colocando os trabalhadores da empresa de engenharia contra os

trabalhadores rurais, como vimos no depoimento anterior. Uma estratégia perversa, pois

criou outro conflito entre os trabalhadores, como resgata Diacísio, então membro da

Comissão Rural Diocesana e atualmente membro da coordenação do Movimento dos

Pequenos Agricultores (MPA):

Só que a maioria dos operários era da região mesmo e aí nós convenceu que essa terra era nossa, dos nossos avós, pais. Mas teve muita jogada para tentar mobilizar eles ao nosso favor, aí nós disse que se nós saísse da área ia dizer que os pernambucanos e os cearenses enganou nós mesmo, porque botou nós contra nós mesmo e conseguiu tirar da terra (D. R., pesquisa de campo, 2008).

16 Essas informações foram obtidas no documento elaborado na época pelos camponeses e que foi entregue ao DNOCS, está disponível nos anexos da Dissertação de Lucas Pereira.

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Mesmo diante dos interesses econômicos, mas, contando com a capacidade de

convencimento, os camponeses conseguiram conscientizar alguns operários de que a luta

deles era justa e que eles também eram trabalhadores que estavam em defesa de suas terras

e do direito de continuarem sobrevivendo. Diante desse argumento, a consciência de classe

derrubou a estratégia do Estado de pagar um valor extra aos que conseguissem retirar os

camponeses da área.

Outro momento muito delicado ocorreu quando os camponeses estavam acampados

nas proximidades das obras, e o então prefeito de Anagé, Élbson Soares – Bibi, como é

popularmente conhecido –, que, por “coincidência”, está no seu quinto mandato, organizou

um movimento para destruir o acampamento dos camponeses, com o propósito de garantir

a continuidade das obras, sem levar em consideração a situação das famílias que seriam

atingidas. O depoimento de uma camponesa que foi parcialmente atingida e que ainda

permanece nas terras próximas à barragem expressa esse momento histórico:

Mas aí muita gente deu força pra nós de tudo que é lado, e aí com esse apoio nós ganhou, nós que não saiu de lá de cima, veio pra queimar os barracos que nós tava ficando lá em cima. Foi o povo de Bibi com a nação dele, veio dizendo que nós queremos a barragem, mas nós disse que nós não era contra a barragem. Nós queria garantir nossa terra, e veio um mutirão de gente para queimar os barracos. Aí foi os que tava a favor de nós ligou para Dom Celso, que era o bispo, panhou o povo para vim e as polícias veio, o policial cercou junto de nós e disse ao povo daqui vocês num passa um palmo. E tinha muita gente pra queimar, e eles vieram com força, tinha tanta gente, até criança, aí eles veio para queimar mesmo, quando eles estavam chegando, a polícia chegou antes deles, dali pra cima não passava nem um palmo, a polícia veio pra defender nós. Até hoje nós não gosta desse prefeito por conta disso, que ele veio botar fogo nos nossos barracos, mas nós parou a obra mais de duas vezes (A.M, pesquisa de Campo, 2011).

O movimento de resistência dos camponeses contou com o apoio de autoridades e

de entidades representativas, como a Comissão Rural Diocesana, atual Comissão Pastoral

da Terra; o Bispo da Diocese de Vitória da Conquista, Dom Celso José; os movimentos

sociais organizados, lideranças sindicais, advogados, a exemplo do Dr. Ruy Medeiros,

além de comunidades camponesas. Esses apoiadores contribuíram para que fosse montado

o acampamento na área da obra.

Por conta de todo esse apoio, o movimento de resistência dos camponeses de Anagé

tornou-se fato conhecido em toda a região e mobilizou grande número de pessoas de outras

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cidades e até de outras regiões do país, a exemplo dos bispos e padres de Aparecida do

Norte (SP), que vieram participar do ato religioso e político em defesa dos atingidos, o que

ficou conhecido como “Romaria da Terra para Anagé”17.

Essa importante ação pública marcou a mobilização dos camponeses e contou com

o apoio de centenas de pessoas, como relata o então coordenador da Comissão Rural

Diocesana, que discute também a importância desse movimento para a formação política

dos trabalhadores de maneira geral. Para ele, aquele momento foi muito importante:

Essa luta foi de grande politização num contexto muito importante para conscientização dos camponeses em geral não apenas daqueles que iriam perder suas terras, mas de todos sobre o processo de exploração do trabalho que há na sociedade, a que estavam submetidos todos os trabalhadores, tanto do campo como da cidade, pois esse processo foi divulgado em toda a região, e isso criou um movimento de solidariedade em toda a região. Onde entra o chamando desenvolvimento promovem-se grandes impactos não apenas no ecossistema físico e natural, mas, principalmente, contra o ser humano. Houve inclusive uma grande mobilização, que nós da Comissão Rural promovemos a Romaria da Terra para Anagé, e nós conseguimos mobilizar cerca de cinco mil pessoas, que foram caminhando de Anagé até onde é a Barragem hoje. Esse fato teve grande repercussão, tudo isso ajudou a pressionar o DNOCS, houve também muito embate com o poder local, o prefeito da época era Bibi, inclusive o Projeto da Barragem era de um deputado que era irmão dele, criaram aquela versão que os camponeses e todos aqueles que os apoiavam estavam atravancando o progresso. Por isso tínhamos que desconstruir a propaganda que aquela obra seria a redenção dessa região, pois aquela área teria diversos benéficos iria se modernizar com a construção da barragem (J. C, pesquisa de campo, 2008).

A Figura 04 traz uma foto histórica da Romaria da Terra para Anagé, que partiu da

sede do município para o local da obra. Por ter uma quantidade considerável de pessoas,

esse ato teve uma grande repercussão regional, ampliando a quantidade de apoiadores dos

camponeses e servindo como espaço de conscientização da grande maioria da sociedade

17 A Romaria da Terra para Anagé foi um grande ato que marcou as mobilizações e ações públicas promovidas em apoio aos atingidos, foi organizada pela Diocese de Vitória da Conquista com a participação de outros movimentos sociais. Esse ato foi a maior manifestação em apoio à luta dos camponeses de Anagé e teve uma grande repercussão na época, pois mobilizou centenas de pessoas de várias partes do país e dos diversos segmentos da sociedade. O principal articular desse ato foi o então Bispo da Diocese de Vitória da Conquista, Dom Celso José, que sempre foi um defensor dos camponeses. Além de atuar sempre em favor dos oprimidos e das mobilizações sociais, sua gestão à frente da Igreja Católica na região foi marcada por muitas ações políticas em apoio aos movimentos sociais e aos setores mais progressistas da sociedade.

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regional, que não tinha informações precisas do contexto de luta e resistência dos

camponeses contra a expropriação de suas terras.

Figura 06: Romaria da Terra para Anagé

Fonte: José Silva (Jornal A TARDE, 09/03/88).

A luta dos camponeses e dos seus apoiadores tinha o propósito de garantir os

direitos dos atingidos, mas, também, de alertar os camponeses sobre as mudanças que

ocorreriam após a construção da barragem, sobretudo com a instalação de fazendas de

fruticultura irrigada e áreas voltadas ao lazer, o que ocasionaria a chegada de novos

moradores e pessoas estranhas àquela população. O movimento de resistência também

contribuiu com a formação política e a conscientização dos camponeses e dos

trabalhadores da região.

Somente depois dessas inúmeras mobilizações e com o apoio de importantes

entidades e representantes da sociedade é que foi possível estabelecer um processo de

diálogo com o DNOCS, o que foi fundamental para garantir que algumas famílias tivessem

parte dos seus direitos reconhecidos. Ainda que nem todos os direitos fossem atendidos,

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algumas reivindicações foram cumpridas, a exemplo do pagamento das indenizações pelas

benfeitorias e das casas que foram alagadas.

O depoimento de uma camponesa retrata bem esse processo:

Aí veio os engenheiros, o Braga e Cordeiro chegou, eu mesmo falei, eles me deu boa tarde, nós quer que a senhora assina aqui porque tem o projeto da barragem é para vocês mesmo. Aí eu gritei: de minha casa eu não saio, não saio de jeito nenhum! Aí eles disse “oh, dona, a senhora vai sair sim, porque a água vai vim aqui”, aí eu perguntava para ele se eu sair se eles iam me dar outra casa, eles disse que não dava, “mas como é que vou fazer? Eu sou mãe de dez filhos como vou fazer com esses meninos?”. Nessa época o marido tava no mundo trabalhando para dar de comer aos filhos, eu tava sozinha em casa. Ele disse que não pagava nada, beneficio, não pagava terra, eu dizia “então, daqui eu não saio, de jeito nenhum”. Aí eles disse: “se você não sair, vai morrer afogada, porque a água vem aqui.”. Eu dizia que não vinha. Ai nós achou quem ensinasse nós a se reunir, a organizar as coisas e fazer a greve e parar a obra. E nós fechamos as casas e passamos quarenta e oito dias acampados debaixo das lonas. Veio gente de fora, ficar com nós. Trator vinha pra trabalhar e nós parava, jogava pedra e dizia “aqui vocês não passa, a gente só sai se vocês pagar os benefícios!”. Até que nós lutou, não só eu, mas a maioria que ficou lutando. Aí, quando eles viu que a luta tava pesada, eles assinou o documento garantindo que pagava casa por casa, e as benfeitoria, e a terra eles não pagava, como de fato minha terra eles não pagou, nós perdemos uns dois alqueires de terra. (A.M, pesquisa de Campo, 2011).

As mobilizações e a resistência dos camponeses garantiram ao menos o direito do

pagamento pelas benfeitorias e a construção de novas casas para aquelas pessoas que

tiveram suas casas inundadas, inclusive para outros camponeses que, inicialmente,

apoiaram o DNOCS e os políticos e que eram contrários ao movimento dos camponeses

que estavam se organizando e mobilizando contra as consequências da barragem.

Eu lembro quando o DNOCS chegou com aquela multidão de gente. Já tinha meus filhos tudo. Ele chegou fazendo a picada, eles veio cortando, medindo a terra, aí eles falava que ia construir uma barragem aqui no Rio do Gavião, nós tinha tanto medo, que, quando passava um carro aqui, nós corria tudo pensando de ser os povos do DNOCS, os carros de fora. Nós tinha o INCRA da terra, aí quando eles chegaram com um mundo de gente e de máquina. Aí já botou as máquinas pra derrubar pau, fazendo os barracos e acampamento e foi botando os piquetes e medindo. Aí eles disse isso tudo ia inundar e que eles ia pagar as indenizações de todo mundo aí nós ficou naquela mente. Aí quem alertou nós foi o povo que era de fora e disse que nós ficasse de olho porque essa firma vai levando a gente de conversa constroem a barragem e vai embora e vocês fica com

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a mão na cabeça. Aí veio Ednilton que é daqui da região e alertou nós porque ele é muito sabido, que era pra gente ficar de olho e ficar cobrando. Aí no final nós fez uns barraquinhos lá e já ficou pra ocupar a área da obra (A.M, pesquisa de Campo, 2011).

Os camponeses encontraram o apoio de diversos militantes, como é o caso de

Ednilton e Diacísio, que eram membros da Comissão Rural Diocesana, vinculada à Igreja

Católica. Outras organizações também apoiaram os camponeses, como a Central Única dos

Trabalhadores (CUT), alguns setores do Partido dos Trabalhadores (PT), movimentos

sociais. Esse apoio foi fundamental, pois eles foram os primeiros a informar os

camponeses das consequências dessa barragem, tiveram o papel de formadores de opinião

e contribuíram para a organização dos camponeses, que não tinham consciência da

gravidade da situação e da necessidade de mobilização e resistência para o enfrentamento

que se aproximava.

Após o primeiro momento, os camponeses procuraram a Paróquia de Anagé e a

Diocese de Vitória da Conquista, em busca de apoio. O bispo e os padres de Vitória da

Conquista, já tendo conhecimento da situação, deram apoio à reivindicação dos

camponeses e, junto com advogados e pessoas da sociedade civil, passaram a acompanhar

o desenrolar dos fatos. Essa atuação se deu seja com assessorias, como foi o caso dos

advogados, seja com a participação nas frentes de luta, nas ações de paralisação das obras,

com o objetivo de pressionar os responsáveis para atendimento às reivindicações dos

atingidos, sobremodo no que se referia às indenizações.

No contexto da construção da Barragem de Anagé, estávamos atuando também através das Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs, e participavam ativamente Diacísio e Ednilton, que também eram membros da Comissão Rural Diocesana. Eles eram de Anagé e estavam acompanhando mais de perto essa questão. Como nós nos reuníamos constantemente, tive essa informação da situação dos posseiros da barragem, ainda na fase dos estudos dos impactos sócio-ambientais, aí nós nos reunimos com os camponeses porque sabíamos que, se a barragem fosse construída, eles perderiam suas terras, por isso era fundamental estimular e apoiar a mobilização para que eles lutassem e resistissem (J. C, pesquisa de campo, 2008).

A partir de então, várias entidades e pessoas começaram a se aglutinar no local e

apoiar a luta dos camponeses, como a Comissão Rural Diocesana, lideranças camponesas,

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camponeses vizinhos, e outras Dioceses, além da de Vitória da Conquista, como a de

Caetité e de Tremedal.

Para o então coordenar da Comissão Rural Diocesana,

O papel da Diocese como um todo foi muito importante. Naquela época o Bispo era Dom Celso, ele se mostrou muito sensível à questão dos camponeses de Anagé. Inclusive esteve lá reunido com os camponeses, Eu, o Bispo e Dr. Ruy Medeiros. O Bispo se sentou no chão com todos nós, e, naquele contexto, Dom Celso fez uma pregação que me marcou muito, me lembro até hoje. Ele fez uma analogia da construção da barragem com o dilúvio, porque, entre os agricultores e posseiros, existia uma divisão: alguns viam na barragem a redenção, que a barragem resolveria todos os problemas, e, de outro lado, os camponeses que temiam perder suas terras e que precisavam lutar para garantir os seus direitos. O direito do reassentamento e dos pagamentos das indenizações, aí ele se fundamentou num texto de Gênesis que trata do dilúvio. Então disse aos camponeses: “olhem, vocês estão vendo que vem um grande dilúvio aí, as águas vão chegar, por isso é preciso se organizar. Façam como fez Noé, que, enquanto as pessoas comiam e viviam normalmente, Noé construiu a arca junto com sua família para garantir a sobrevivência. E aí é preciso que vocês construam uma arca para preservar a cultura e toda a história de vida de vocês, que vai desaparecer e serão afogadas nas águas dessa barragem, por isso é fundamental que vocês se organizem e lutem para garantir os seus direitos” (J. C, pesquisa de campo, 2008).

A construção da Barragem de Anagé mobilizou diversos setores da sociedade que

se mostraram sensíveis à reivindicação dos camponeses na luta para garantir, além do

pagamento das indenizações, o direito ao reassentamento, ou seja, terra por terra. Outro

aspecto relevante se refere ao tratamento arbitrário dispensado aos camponeses pelo

Estado, neste caso representado pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, o

que já havia se tornado uma prática constante nos projetos de construção de outras

barragens, naquele contexto histórico em outras regiões do país.

Diante da capacidade de organização e resistência dos camponeses, o DNOCS

começou a fazer alguns acordos com as famílias: construiu algumas casas em locais que

não seriam inundados, pagou benfeitorias a alguns camponeses. No entanto, o grande

problema enfrentado pelos posseiros era o fato de a maioria das famílias deter apenas a

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posse da terra, mas não ter a propriedade legalmente reconhecida18, embora já estivesse na

área havia décadas, o que constitucionalmente deveria garantir o direito de usucapião.

Como resgata dona Ana Marinho, que perdeu a maior parte de sua terra, ficando

apenas com um pequeno sítio de mais ou menos dois mil m² na área próxima à entrada do

sangradouro da barragem, essa terra onde vive com seus familiares não pertence a ela,

pois, segundo o DNOCS, é de propriedade do Estado, pois está na área de segurança

nacional. Por não ter sido reassentada e não ter condição de adquirir outra terra com o

pequeno valor da indenização que recebeu, ela e sua família permanecem no pequeno

pedaço de terra que restou, onde sempre viveu e de onde ela garante sua sobrevivência.

Conforme seu relato:

Eu nasci aqui, me criei aqui, tive os filhos tudo aqui e criei tudo aqui. Tive dez filhos, minha terra era aqui nessa estampa da barragem. Eu perdi 11 hectares, só ficou esse pedaço de terra, mas eu não recebi nada, não me indenizou, nem benfeitoria, não recebi nada. Eles ficou dizendo que era pra indenizar todo mundo e que em dez meses tinha que sair todo mundo. Que ia dar terra e fazer casa pra nós, mas, pra eles construir essas casas e pagar as indenização, nós teve que reunir o protestar. Veio muita gente apoiar, padre de fora, advogado, até o bispo, veio muitos padres de Nossa Senhora Aparecida veio onze padres para ajudar e falar pra eles que eles tinha que indenizar nós, da terra por terra, e casa por casa. Só não fez a minha e de Aurelino, que é irmão meu, e no tempo dessa barragem nós saiu de nossas casinhas para ficar lá ocupado, para não perder as terras. Nós não era contra a barragem, nós não queria ficar de trouxa em baixo de pé de pau, sem uma casa pra morar e sem um pedaço de terra, sem achar onde morar porque nós não tinha condição de comprar outro pedaço de terra pra trabalhar (A. M, pesquisa de campo, 2011).

O depoimento de dona Ana Marinho é bastante ilustrativo da situação das famílias

que foram atingidas: perderam suas casas, suas terras e, principalmente, as condições para

continuarem trabalhando e vivendo. Algumas famílias que foram parcialmente atingidas

tiveram a garantia de novas casas e o pagamento de algumas benfeitorias, mas um número

considerável de pessoas perdeu toda a terra, e o valor que recebeu das indenizações foi

irrisório, insuficiente para comprar outras terras. Para essas pessoas a única alternativa foi

18 Ainda de acordo com o advogado Ruy Medeiros, as forças sociais tentaram via Interba garantir a titulação das terras para os camponeses, apresentando-se com uma conivência com as práticas do DNOCS, mas eles recusaram.

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se mudar para as periferias das cidades vizinhas, para outros estados19, ou, mesmo, passar a

trabalhar nas propriedades rurais de outras pessoas como boias-frias ou diaristas.

Percebemos, nesse caso, uma realidade que ocorreu com dezenas de famílias: a

ação planejada do Estado retirou o direito à vida por meio do trabalho com a terra, para

garantir a lógica do desenvolvimento capitalista, com a consolidação de um modelo de

agricultura excludente e contraditório, baseado na monocultura e fundado nas relações de

trabalho assalariado, ou nas formas precarizadas de trabalho.

Nesse processo fica evidente a postura conservadora do Estado, que, para garantir a

apropriação da mais valia e da renda da terra, destrói o território do trabalho livre,

autônomo, como é o caso do trabalho familiar camponês, para substituí-lo pela lógica de

mercado, pela imposição da carga horária fixa de trabalho. Retira, dessa forma, a liberdade

de viver e de trabalhar com a terra, livre da lógica do capital, como se comprova no relato

de uma camponesa atingida que permanece no pedaço de terra que restou:

Minha casinha é essa mesma, na época meu marido tava morando em São Paulo, ele foi caçar jeito de mandar um dinheiro porque precisava garantir o pão de cada dia pra mandar pra gente. Depois da barragem nós perdeu a terra que é onde nós trabalhava, eles derrubou mandioca, cerca, roça de milho e tudo que tinha de árvore, umbuzeiro. Aí ficou com a barragem sem nós ter onde trabalhar. Eu ficava aqui de dia e, de noite, eu ia pra lá, porque o povo dizia que se eu não fosse não ia conseguir a indenização. Como eles indenizou os outros, eu pensei que eles ia me indenizar, era sessenta e pouco cruzeiros. Quando veio, eu só ganhei dois cruzeiros. Todo mundo aqui sempre morou aqui, meus avôs, e meu pai nasceu tudo aqui, inclusive meu pai morreu na época que construíram essa barragem. Eu tenho ao todo dez irmãos, eles todos trabalhavam aqui. Depois da barragem, todo mundo perdeu as terras que era uma terra boa, inclusive essa terra que tô que eles diz que é do DNOCS. Aqui nós plantava, mandioca, abóbora, milho, feijão, melancia. Hoje eu ainda continuo plantando, na época da chuva, milho, andu, feijão, melancia e abóbora, um pouco de mandioca, porque o que nós recebe do aposento é pouco, tem que procurar jeito de comer o que nós planta, né? Mas o que planto já dá pra comer e pra dá aos filhos, uma abóbora, um cozido de feijão, porque eles não têm salário certo, vive dos dias de serviço que ganha, quando acha um lugar certo pra trabalhar (A. M., pesquisa de campo 2011).

19 A transformação na vida dos camponeses foi intensa, muitos pais de família tiveram que migrar para outras regiões e estados, como para São Paulo, tendo em vista que perderam a base material e precisavam garantir o sustento dos familiares. Este foi o caso do esposo de dona Ana Marinho, que, não tendo mais como sustentar a família no ínfimo pedaço de terra que restou, deixou sua família e partiu para a cidade grande para garantir as mínimas condições de vida para sua esposa e seus filhos.

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Após a construção da barragem, as únicas alternativas que restaram para os

camponeses inteiramente atingidos foram: comprar casa na periferia das cidades vizinhas;

continuar no pedaço de terra que restou, sobrevivendo da venda da força de trabalho nas

fazendas irrigadas que se instalaram na região; encontrar novas formas de trabalho, a exemplo

da pesca, que passou também a ser uma importante fonte de renda, uma possibilidade que

surgiu depois da construção da barragem.

Os atingidos pela Barragem de Anagé perderam o espaço de reprodução da vida – a

terra –, e com ela parte de sua história, mas não perderam sua identidade, tendo em vista que,

mesmo se tornando um “sem-terra”, continuam sobrevivendo do trabalho com a terra, em

terras alheias, vendendo sua força de trabalho, ou nos sistemas de meia, parceria ou

arrendamentos. Os que foram parcialmente atingidos agora sobrevivem tanto como

camponeses, como pescadores, quanto como comerciantes. São os mesmos sujeitos, com

novas faces, novas formas de organização social.

Com as obras concluídas, parte dos camponeses já havia saído de suas terras, outros

tantos tinham ido para as cidades vizinhas. Como o DNOCS sempre afirmava que a barragem

demoraria pelo menos dez anos para encher totalmente, muitos camponeses que tinham

permanecido na área continuaram cultivando algumas lavouras nas beiras da barragem.

A questão central que percebemos, ao tentar compreender a trajetória histórica da

construção da barragem e a vida dos sujeitos envolvidos no processo, é que essa obra

promoveu intensas transformações na vida e na realidade das famílias camponesas,

construindo novos territórios, produzidos por novas relações sociais.

O território de vida, do trabalho livre, onde os camponeses se realizavam

materialmente e se reproduziam como classe social, foi e está sendo substituído pelo território

do domínio do capital, com as contradições da apropriação do campo pelo capital, o processo

de produção para o mercado, a lógica do trabalho alienado, da dominação do patrão sobre a

vida e as horas do trabalhador. Ou seja: concretamente, tem-se verificado a substituição de

formas não capitalistas de produção pelo uso da terra e da água segundo a lógica capitalista.

Para além dessa mudança estrutural, há, no cerne desse processo, a essência do conflito capital-

trabalho. A compreensão e a análise desse processo serão abordadas no capítulo seguinte, que

tem como objetivo central a compreensão das transformações territoriais resultantes da

construção da barragem.

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5 OS TERRITÓRIOS EM DISPUTA NAS MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ

Eu acho que não conseguiria viver sem terra e nem sem água, porque a gente tano na terra tem como achar o alimento, é a vida da gente. Sé nós perdesse a terra, a gente perdia a vida, porque o dinheiro acaba e a terra não acaba (Anelina Marinho, camponesa de Anagé, pesquisa de campo, 2011).

As transformações territoriais recentes, materializadas no entorno da Barragem de

Anagé, só podem ser entendidas como produto da expansão das relações capitalistas de

produção, mais especificamente do processo de reestruturação do sistema de produção do

capital, a partir de sua inserção na agricultura, consorciado com as mudanças tecnológicas

e a apropriação, pelo capital, das terras e da água da barragem, representado,

principalmente, por fazendas irrigadas que se instalaram nas margens do Rio Gavião. A

territorialização do capital vem promovendo o que se convencionou denominar

“modernização da agricultura”20.

Esse processo deve ser compreendido como uma transformação na estrutura social

de produção, com o intuito de garantir a acumulação do capital, planejada e ancorada nas

ações do Estado,21 que, nesse processo, cumpriu sua missão de “parceiro” do capital,

cabendo-lhe a função de construir as condições essenciais para garantir a sua reprodução.

Essa “parceria” se concretizou na mudança nas formas de uso da terra e da água,

amparadas na ideologia do desenvolvimento regional e local, por meio de obras de

modernização agrícola, com a edificação de infraestruturas básicas para a instalação de

empreendimentos agrícolas.

20 A modernização agrícola é entendida como o processo de expansão das relações capitalistas no campo, marcada pela instalação dos complexos agroindustriais que se estabeleceram no Brasil, no contexto da denominada Revolução Verde, que teve como características fundamentais a utilização de pacotes tecnológicos voltados à produção de monoculturas destinadas a exportação, resultando no processo de expropriação camponesa, grilagens de terras e conflitos e resistências do campesinato. 21Compreende-se o Estado, a partir de uma reflexão critica, concebendo-o, como sendo o elemento irreconciliável das classes sociais antagônicas, que é apropriado pelos interesses das classes sociais dominantes que no modo de produção capitalista, entende-se como sendo a burguesia, conforme apontam Lênin (1981), em O Estado e a Revolução e David Harvey (2001), na produção capitalista do Espaço.

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A construção da Barragem de Anagé22 é um exemplo bem ilustrativo dessa lógica,

pois foi concebida, de acordo com o discurso oficial apregoado pelo Estado, para ser um

reservatório de água capaz de perenizar o Rio Gavião com capacidade para abastecer as

cidades de Anagé e Caraíbas, garantir o desenvolvimento da piscicultura e instalar a

agricultura irrigada.

Considerando a realidade atual do entorno da barragem, verificamos que, entre os

objetivos traçados pelo Estado para justificar a sua construção, a agricultura irrigada é a

atividade que mais se destaca entre as ações que estão sendo desenvolvidas. Porém,

diferentemente do discurso ancorado nas pequenas unidades de produção, o que

observamos é a agricultura de mercado, altamente mecanizada e nos moldes empresarias

que interessam ao processo de reprodução ampliada do capital no campo, evidenciando a

“lógica de desenvolvimento” priorizada pelo Estado.

Ao analisar a relação entre Estado e capital segundo a lógica do desenvolvimento,

Conceição e Lima (2009, p. 1) afirmam:

Compreende-se que o anunciado desenvolvimento local/territorial oculta a mobilidade do capital, que se faz pela territorialização aproveitando-se de suas vantagens específicas, como valor da força de trabalho e dotação de infra-estrutura, com a finalidade de se (re)produzir. Sob o engodo da autonomia, da capacidade endógena de desenvolver-se, o capital, personificado na ação do Estado, difunde o entendimento sobre o território como área dinâmica, cujo potencial econômico deve ser explorado. Sendo assim o capital apropria-se do lugar, engendrando um rearranjo produtivo que ofereça as melhores ofertas à acumulação. O desenvolvimento territorial, portanto, é utilizado com um embuste que legitima as relações capitalistas de produção e assegura a apropriação/subordinação de áreas à reprodução ampliada do capital.

Tais mudanças impulsionadas pela ação do Estado tiveram como intenção essencial

a transformação das relações não capitalistas, sobremodo as camponesas, em formas

capitalistas de uso da terra, da água e do trabalho, com a subordinação dessa classe social,

a camponesa, à lógica do capital. Esse processo representa os sistemas de mediações

analisados por Antunes (2002), tomando por base os estudos realizados Meszárós (2002),

22 O processo de construção da barragem de Anagé foi discutido no terceiro capítulo dessa dissertação, bem com a leitura sobre planejamento e desenvolvimento regional, onde apontamos nossa abordagem sobre esses conceitos a partir de autores como Francisco de Oliveira e Silvio Maranhão.

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que se evidencia com a superação dos elementos fundamentais do sistema de mediação de

primeira ordem para viabilizar a realização do sistema de mediação de segunda ordem.

Para Antunes, no sistema de mediação de primeira ordem:

Os indivíduos devem reproduzir sua existência por meio de funções primárias de mediações, estabelecidas entre eles e no intercâmbio e interação com a natureza, dadas pela ontologia singularmente humana do trabalho, pelo qual a autoprodução e a reprodução societal se desenvolvem (ANTUNES, 2002, p. 20).

Considerando a realidade em estudo, esse sistema de mediação de primeira ordem

se efetivava nas propriedades camponesas que estavam localizadas às margens do Rio

Gavião, pois utilizavam a terra e a água como condições essenciais para garantir sua

reprodução social e material, empregando o trabalho familiar e concebendo a terra como

um meio de produção ou a base material de sobrevivência. A apropriação da natureza

estava orientada pelo seu valor de uso, uma lógica que ainda é a base de sustentação das

famílias que resistem nas porções de terras que restaram após a construção da barragem,

apesar de terem passado por intensas mudanças na organização social e no modo de vida.

Com a construção da barragem, outra lógica vem se efetivando consoante a

expansão das relações capitalistas, que promoveram e ainda promovem a expropriação de

uma parcela dos camponeses do seu principal meio de produção – a terra. Aqueles que

foram expropriados, tanto os que foram atingidos pela construção da obra, como os que

venderam suas propriedades, encontram-se, em sua maioria, desprovidos de seu principal

meio de produção e passaram à condição de trabalhadores alienados à lógica capitalista:

subordinam-se ao assalariamento ou à condição de trabalhadores precarizados, como os

boias-frias, enquanto aqueles que permanecem na terra se organizam na tentativa de resistir

e lutar para continuar existindo como camponeses.

A principal consequência dessa obra foi a expropriação das famílias camponesas,

tanto as que foram parcialmente atingidas quanto e, principalmente, as que tiveram perda

total de suas terras, conforme já foi apresentado no capítulo anterior. Uma parcela das

famílias que continuou com uma porção de terra segue resistindo e continua utilizando a

terra e água como condições essenciais para produzir sua existência por meio do

autoconsumo ou da agricultura de abundância. Houve ainda um considerável grupo de

camponeses que, após a redução das suas terras, optou pela venda da propriedade, por

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acreditar que a quantidade de terras restante não seria suficiente para viabilizar o trabalho e

a sobrevivência de todo o grupo familiar ou por ter sofrido diversas formas de aliciamento

e convencimento dos especuladores imobiliários, que tiveram uma forte atuação na área

depois da construção da barragem.

Com a territorialização do capital,23 outras racionalidades de uso da terra e da água

se estabeleceram com base nas relações capitalistas de produção, fundamentadas nos

princípios do sistema de mediação de segunda ordem, quando o valor de troca passa a ser o

elemento estruturante das relações de produção e das relações sociais. Esse uso se

consolidou com a edificação de cerca de quarenta propriedades de médio e grande porte,

que passaram a utilizar as águas da barragem para a agricultura irrigada, implantando-se,

assim, a lógica do agronegócio, em que a terra assume a condição da terra de negócio24.

O capital também tem se estabelecido por meio do processo de monopolização da

produção, marcado pela sujeição da renda da terra camponesa aos capitalistas, que se

apropriam da produção camponesa. Para Antunes, no sistema de mediação de segunda

ordem:

A explicação disso está na sua finalidade essencial, que não é outra senão “expandir constantemente o valor de troca, ao qual todos os demais – desde as mais básicas e mais intimas necessidades dos indivíduos até as mais variadas atividades de produção, materiais e culturais, - devem estar estritamente subordinadas”. Desse modo a completa subordinação das necessidades humanas à reprodução do valor de troca – no interesse da auto-realização expansiva do capital – tem sido o traço mais notável do sistema do capital desde sua origem. Ou seja, para converter a produção do capital em propósito da humanidade era preciso separar valor de uso e valor de troca, subordinando o primeiro ao segundo (ANTUNES, 2002, p. 21).

23O conceito de territorialização do capital, formulado por Ariovaldo Umbelino de Oliveira, conforme define o autor: “ao processo contraditório de desenvolvimento capitalista no campo revela é que o capital territorializa-se. Estamos, portanto, diante do processo de territorialização do capital monopolista na agricultura. 1996, p. 24 – 25). Portanto, esse processo é marcado pela instalação de empresas do agronegócio que se apropriam da terra e da água, se estabelecem fisicamente em complexos produtivos, dominam as terras, a água e utilizam o trabalho alienado. 24 O conceito de Terra de Negócio formulado por Martins (1981) refere-se ao processo de apropriação da terra pelos capitalistas, conforme analisa o autor: “Quando o capitalista se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio, quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. Ou a terra serve para explorar o trabalhado de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço a quem dela precisa para trabalhar e não a tem”. (MARTINS, 1991, p. 55).

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No Sudoeste baiano, a modernização agrícola teve seu apogeu com a expansão do

cultivo do café, que passou a se desenvolver a partir da crise vivenciada pela cafeicultura

na Região Sudeste do país, o que possibilitou a ampliação do capital agrário para novas

áreas, em busca de melhores condições de produção, baixo valor das terras, força de

trabalho disponível e apoio do Estado com empréstimos bancários e outras formas de

incentivo. Conforme análise de Souza:

Até o ano de 1981, o governo estadual passa a dotar a Região Sudoeste da Bahia (basicamente os municípios de Vitória da Conquista e Barra do Choça) de uma série de incentivos para a expansão da cultura cafeeira, após este período, o governo deixa de financiar os encargos e incentivos, que daí por diante passam a ser assumidos pelo produtor. Apesar de parte das abordagens acadêmicas destacarem que com a implantação do pólo cafeeiro, e dado crescimento urbano apresentado por Vitória da Conquista, grande parte da população deixa o campo em busca de novas oportunidades na cidade, na realidade, a maioria das famílias não dispõem desta opção, quando são expulsas de suas terras, ou das terras dos fazendeiros, onde, até então, viviam desenvolvendo atividades não-capitalistas de produção, como a parceria e a meação (SOUZA, 2008, p. 394).

Essa inserção do capital no campo se concretizou com a expropriação dos

camponeses e o apoio das ações e incentivos do Estado, que construiu a infraestrutura

necessária à consolidação do agronegócio como principal atividade produtiva e econômica.

A inserção da cafeicultura transformou e reestruturou a realidade agrária do

Sudoeste da Bahia não somente nas áreas mais úmidas, onde o café se estabeleceu, mas

também nas áreas mais áridas do planalto e nas escarpas das serras.

Nas porções semiáridas, o agronegócio se efetivou na criação de bovinos em

grandes e médias propriedades e na construção de reservatórios de água para o

desenvolvimento da agricultura irrigada, que se estabeleceu em diversos projetos na

Região Sudoeste da Bahia, em que se destacam os perímetros irrigados de Livramento de

Nossa Senhora e Dom Basílio e as margens da Barragem de Anagé. Esses projetos foram

implantados e são gerenciados pelo DNOCS.

O principal rebatimento dessa “modernização”, implementada pelo Estado é a

valorização das terras e a expropriação de camponeses proprietários de pequenas parcelas

de terras e outros trabalhadores rurais, submetidos a diferentes regimes de trabalho no

campo. Esse novo modelo de produção agrícola repercutiu em diversas formas de conflito

e resistência na terra e pela terra e se concretizou com a transformação de uma parcela

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considerável da agricultura camponesa em agricultura comercial, vinculada ao

agronegócio, visando ao “desenvolvimento regional” dessas áreas.

Ao se referir ao desenvolvimento capitalista no Nordeste brasileiro e no Sudoeste

baiano, Souza afirma:

O discurso da superação da condição de “atraso” passa a se apoiar na elaboração de projetos e execução de programas de irrigação, a fim de que se pudesse “sanar” as “deficiências” hídricas. Todas as condições para inserir a região no circuito de reprodução do capital são criadas e as elites locais, passam a estabelecer diversas formas de aliança com os projetos do capital, sejam estes vinculados as empresas nacionais ou internacionais. As terras sofrem um processo de valorização e os grandes latifundiários passam a auferir maiores rendas, nos locais onde foram implementados tais projetos voltados ao “desenvolvimento”. Portanto, os verdadeiros beneficiários não foram aqueles que viviam da agricultura de sequeiro, mas os grandes latifundiários, que ocupando cargos públicos passam a desenvolver projetos voltados aos seus próprios benefícios e de seus apadrinhados. Assim sendo, para se compreender “o discurso do Nordeste atrasado” e a quem este interessa há que se considerar quem foram os seus verdadeiros beneficiados, e a forma como o Nordeste passa a ser inserido, em diversos momentos, no circuito do capital (SOUZA, 2008, p. 262).

Por esse prisma é que analisamos os rebatimentos territoriais e as principais

transformações espaciais advindas com a construção da Barragem de Anagé ao longo de

mais de vinte anos de concretização. Procuramos compreendê-lo como um projeto de

“desenvolvimento regional”, cujo propulsor do agronegócio é a economia. Por isso a

discussão histórica realizada no capítulo anterior deste trabalho apresentou o panorama e a

contextualização do processo de construção e, também, uma análise das formas de uso da

terra e da água, das relações sociais e das condições de vida antes da construção da

barragem. Informações necessárias para compreendermos as mudanças e a forma como se

deram as transformações territoriais promovidas por essa intervenção do Estado.

Este capítulo está estruturado em quatro itens que discutem processos distintos que

passaram a se desenvolver nas margens da Barragem de Anagé. Inicialmente, analisamos a

permanência e a resistência na terra, empreendidas por camponeses que foram atingidos

parcialmente pela construção do lago no período das obras, mas que continuaram em

pequenas porções de terra nas proximidades da barragem, conciliando o trabalho na terra,

com o cultivo de policulturas, com o trabalho na água, com a pesca e a criação de peixes.

Outra realidade analisada é a de uma parcela de camponeses que ainda está sendo

expropriada e atingida indiretamente pelo processo de modernização da agricultura que

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vem se consolidando também no Sudoeste baiano, não diferente do que ocorre em todo o

país. Essa parcela do campesinato, apesar das investidas do capital e dos proprietários

fundiários, tem lutado e resistido. Foi ela que compôs a marcha dos trabalhadores na luta

pela terra, que se concretizou na área da pesquisa, quando cerca de 23 famílias ocuparam,

por mais de seis anos, as terras de “segurança nacional” ou “área de servidão”, sob a

responsabilidade do DNOCS, e construíram um acampamento designado “Acampamento

Ojeferson”. Estes são os que estão lutando para retornar à terra.

A consolidação da agricultura irrigada, ou melhor, das monoculturas irrigadas,

constitui um aspecto a ser também analisado, mais especificamente nas áreas próximas à

Barragem de Anagé. Essa modernização agrícola só se efetivou com a construção da

barragem, pois a disponibilidade de água representou uma possibilidade real de produzir e

gerar maior renda da terra. Na prática, essa condição foi essencial para a expansão do

capital nessa porção do espaço agrário baiano, cuja atividade econômica de destaque é o

agronegócio. Essa transformação tem sido marcada pela concentração e valorização das

terras, principalmente, por meio da compra, pela transformação de camponeses em

trabalhadores assalariados e boias-frias e a redefinição nas relações sociais e culturais nas

áreas vizinhas à barragem.

Outro aspecto a considerarmos é o processo de apropriação da terra e da água, com

a finalidade de lazer e entretenimento, ou seja, o capital se apossa dos espaços para a

edificação de estruturas voltadas à diversão da pequena burguesia regional e local, que se

utiliza das terras que se encontram nas bordas do lago e da água para passeios e pesca

esportiva.

5.1 RESISTÊNCIA E PERMANÊNCIA CAMPONESA NAS MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ. O TERRITÓRIO DE TERRA E ÁGUA DE TRABALHO

A citação que inicia o capítulo é bem ilustrativa da relação que os camponeses

atingidos pela Barragem de Anagé têm com a terra, reflete o sentimento que fortaleceu e

alimentou a luta contra a expropriação de suas terras, mas também a resistência para que

continuassem na terra e tivessem acesso à água, enfim, uma mobilização para garantir a

permanência e re-existência como classe social que vive do trabalho na terra.

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Os camponeses que permanecem nas terras e seguem resistindo e vivendo do

trabalho na terra e na água se apropriam desses recursos naturais pelo seu valor de uso. A

relação desse grupo social com a natureza é bem distinta de outras lógicas que se

estabeleceram após a construção da obra. A água e a terra representam os meios que

garantem a sobrevivência e a reprodução material e imaterial desses camponeses. Para

designar esse processo, passamos a usar a expressão “Território de terra e água de

trabalho” 25.

Compreendemos o território como expressão material dos conflitos e das disputas

das classes sociais pelo uso e apropriação da natureza, ou seja, a ideia de disputa, luta e

conflito são essenciais para a compreensão das relações de poder que se dão nas diversas

formas de territorialização das classes sociais. Nesse aspecto, analisamos a territorialização

camponesa como uma forma de resistência e permanência de uma classe social que se

apropria da natureza, sobretudo da terra e da água, como condição essencial para garantir a

reprodução da vida.

A construção da Barragem de Anagé sustentou-se no discurso do seu objetivo

principal: a perenização do Rio Gavião. A garantia da água poderia possibilitar a

permanência dos camponeses em suas terras, o que traria o desenvolvimento da agricultura

irrigada, da piscicultura e a melhoria das condições de vida e de trabalho no campo para

aquelas famílias que vivam, havia décadas, às margens do maior rio intermitente do estado

da Bahia. Por isso a obra era esperada por uma parcela da população que acreditou que

esse projeto, fundamentado na lógica do desenvolvimentismo, seria a solução do problema

de acesso à água e a melhoria das condições de vida.

Com a concretização do projeto, parte dessas famílias camponesas que acreditavam

que teriam acesso à água se deparou com outra situação, a ameaça de perderem suas terras.

Assim o antigo anseio de acabar com a seca, foi se transformando num processo de

expropriação de suas terras, de destruição das roças, das benfeitorias, das casas, além da

perda dos aspectos imateriais, que se afogaram nas águas da barragem.

Para eles, ter acesso à água era essencial e representava a garantia de um direito

fundamental, mas, sem a terra, nada adiantaria, pois não teriam condição de produzir. Por

25 O Conceito de Território de Terra e Água fundamenta-se na formulação de terra de trabalho, elaborada por Martins (1980), ao se referir às terras cultivadas por camponeses. Neste caso, ampliamos o conceito correlacionando-o com o uso da água e da terra, ou seja, a apropriação do espaço, a partir de relações fundamentadas no valor de uso, por camponeses que vivem sob relações não capitalistas: terra e água de trabalho.

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conta dessa ameaça de perder suas terras é que muitos camponeses se organizaram, se

mobilizaram e resistiram contra a ação arbitraria do Estado. Eles eram favoráveis à

construção da barragem, mas eram contrários à expropriação de suas terras; queriam, sim,

ter acesso à água, mas, sobretudo, queriam permanecer na terra e ter condições de produzir.

Com a construção do lago, uma área de mais de sete mil hectares de terras foi

inundada, terras essas que eram ocupadas e principal meio de produção de centenas de

famílias. Do total de atingidos pela barragem, apenas quatro eram proprietários e detinham

o título de proprietário, conforme consta no Relatório de Impactos Ambientais, elaborado

pela Tecnosan, informação essa retificada pelo servidor do DNOCS em entrevista. Essas

propriedades correspondiam a cerca de 170 hectares de terra.

Após a construção da barragem, muitos camponeses permaneceram na área, mesmo

tendo suas terras reduzidas, mas passaram a desenvolver novas estratégias para garantir a

sobrevivência, substituindo práticas produtivas por novas formas de uso da terra e da água,

diferentes do modo de vida sertanejo a que estavam acostumados, como a criação de

caprinos, atividade produtiva muito comum em todo o sertão nordestino, mas, que, com a

construção do empreendimento, praticamente deixou de existir, sobretudo nas

proximidades do lago. Outro processo que se consolidou foi o cercamento das terras,

evidenciando outra lógica, a da propriedade privada desse meio de produção, aliado ao

processo de valorização das terras. Com a “melhoria” nas condições de produção, essas

mudanças ficaram claras como se constata neste depoimento:

Antigamente não tinha cerca, era tudo solto, eu mesmo já cheguei a criar cem a cento e cinquenta cabritos. Nesse tempo nós trabalhava demais, pegava uma capoeira, derrubava mato pra fazer roça e soltava a criação, e eles ia parar em Anagé, Caraíbas. Naquele tempo, não tinha a barragem e nem cerca em canto nenhum. E hoje não, pra fazer uma rocinha desse tamanho tem que fazer a cerca, mas também não tem mais criação de bode e gado. Aqui não sei quem criou a lei de três fios de arame, eu mesmo criava cabra, ovelha, porco, mas depois dessa lei, não criei mais nada porque não tem como fazer tanta cerca. Quem tinha uma fazenda de dez alqueires podia cercar e criar, mas eu mesmo tinha só um alqueire, aí não podia criar os bichos (C. M, Pesquisa de campo, 2011). Grifo nosso.

As alterações no modo de vida e na organização social após a construção da

barragem foram intensas, sobretudo nas atividades agrícolas, em que a criação de caprinos,

ovinos, suínos é apenas um exemplo, além das transformações na estrutura fundiária e no

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uso da terra. Antes do surgimento da “lei de três fios de arame”,26 o sistema de criação era

a “solta”: os animais eram criados em áreas coletivas, sem a demarcação por cercas, e a

distinção se dava apenas por meio de cortes ou marcas nos animais. Tal processo também

tem se verificado em outras regiões da Bahia, sobretudo no Norte e Nordeste do estado.

Conforme relato dos entrevistados, esse processo de demarcação das propriedades

com o cercamento foi impulsionado pela valorização das terras, pelas novas formas de uso

da terra, que passaram a ser desenvolvidas no Sudoeste Bahia. A partir da década de 1970,

ocorreram muitos processos de grilagens de terras. Essas transformações repercutiram em

diversas formas de conflitos, como a resistência dos posseiros contra os grileiros

decorrentes da ação do Estado, pois este, como agente regulador, na prática, atuou como

instrumento das classes sociais dominantes, agindo em algumas situações para beneficiar

os grileiros.

Esses conflitos tornaram-se comuns em muitas áreas do Planalto da Conquista,

sobretudo, a partir da expansão do capital para o campo, conforme pondera Souza:

A “chegada do café” e a titulação de terras fazem com que muitas áreas que antes eram utilizadas, por décadas, por comunidades camponesas passem a ser disputadas por estes posseiros e os ditos “proprietários” que utilizam documentos, muitas vezes, duvidosos na comprovação das referidas terras. Contudo, um dos maiores conflitos por terra no Planalto da Conquista ocorre nas terras denominadas Matas de Pau-Brasil, localizada entre os municípios de Vitória da Conquista e Barra do Choça, onde posseiros habitavam a terra há décadas e cuja propriedade passa a ser reclamada por um suposto “proprietário”. De acordo com documentos arquivados na Comissão Pastoral da Terra (CPT), nas terras de Matas de Pau Brasil, comunidades camponesas faziam o uso da terra desde o século 19; no entanto, no início da década de 1970 um pretenso “dono da terra” passa a reclamar o “direito à propriedade”, acirrando um forte conflito de classe na região (SOUZA, 2008, p. 415).

A formação territorial do Sudoeste baiano foi marcada por muitos conflitos e

disputas: de um lado uma diversidade de camponeses proprietários e muitos sem-terra, que

26 Regionalmente, a expressão “Lei de três fios de arame” refere-se ao processo de regulamentação da propriedade privada da terra, que obrigou os pequenos produtores a cercar suas terras para evitar que os animais criados invadissem as propriedades alheias. Isso provocou a destruição de uma tradição no uso da terra, o sistema de solta, baseado no uso comum da terra, principalmente para a criação de caprinos e ovinos, processo que ainda se observa com muita frequência na Região Nordeste do Estado da Bahia, denominada de “fundo de pasto”. Tal realidade vem sendo analisada por pesquisadores do Grupo de Pesquisa “A Geografia dos Assentamentos na Área Rural (GeografAR)”, com destaque para as pesquisas de Cirlene Santos e Santos, Denílson Moreira de Alcântara e Guiomar Inez Germani.

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viviam da venda de sua força de trabalho no campo e usavam a terra de diversas formas;

em sentido oposto, grileiros e latifundiários, que, usando a terra como mercadoria ou como

forma de garantir a extração da renda da terra, se baseavam nos subterfúgios da lei do

Estado para garantir o direito, muitas vezes questionável, das suas propriedades, o que é

ainda uma característica muito comum em outras regiões do país.

Outra transformação impulsionada pela construção da Barragem de Anagé foi a

alteração do perfil dos ocupantes das terras, marcada pela chegada de pessoas estranhas ao

local e com alto poder aquisitivo. Na área onde foi construída a barragem, predominavam

de grupos da mesma família, que vivia nas margens do Rio Gavião havia mais de um

século, conforme relato dos camponeses entrevistados, com destaque para a Família

Marinho, que teve um papel preponderante na ocupação dessas terras.

Isso fica evidente, por exemplo, nos relatos de alguns senhores de mais de setenta

anos de idade que afirmam que seus avôs viveram nessas terras, ou seja, mais de cento e

cinquenta anos de ocupação efetiva desse território camponês.

Meus avós nasceram tudo aqui, mas viviam mais na parte onde hoje é o início da Barragem. Meu avô foi nascido aqui, aí ele foi ficando idoso, e os filhos foram ficando aqui e criando tudo aqui. Mas naquela época as coisas eram fáceis, iam passando de pai para filho. Antigamente aqui não tinha cerca, os animais eram criados tudo no tempo, solto, tinha o ferro para diferenciar de quem era cada um. Aí foi mudando, cercando e criou uma lei de três fios de arame. No tempo do meu pai era assim, vocês passou naquela ladeira subindo assim, pra cima era do meu pai, tinha um homem muito grileiro de terra, pegou as terras de meu pai, e tinha dois pés: um de umburana, que ela brota fácil, e outro de aroeira, aí eles colocou aquela divisa por ali, e ficou com aquela conversa daquela divisa por ali, e disse que foi ele, foi ficando até que tomou a terra. Aí meu pai não importou e num quis mais brigar, e ficou no fim pra ele mesmo. Perdeu um alqueire de terra. O velho mesmo que tomou chamava Terêncio, aí ele ponhô a filha no lugar, o marido chama Gabriel e vendeu depois para Pedro Gusmão, e nos tá vivendo em nossa terra por cá (A.N. M., Pesquisa de Campo, 2011).

Com a construção da barragem, houve um intenso processo de valorização das

terras e de especulação imobiliária, o que ocasionou outra forma de expropriação indireta

dos camponeses: a venda de suas propriedades. Com a redução do tamanho das terras,

muitos, acreditando que a parcela restante não seria suficiente para produzir e viver com

toda a família, venderam-na e migraram para as cidades vizinhas ou se transformaram em

assalariados nas fazendas de fruticultura irrigada, ou, ainda, se tornaram catadores de café.

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Como afirma um dos camponeses entrevistados:

Hoje a terra tá valorizada demais, mas só na beira da água; para cá pra cima, não. Eu achei vinte e cinco mil por hectare e não vendi não, na área que é pegado na água, mas aqui no seco ninguém quer dar nem mil reais na hectares. Se achar desse preço tá bem vendida. O velho Pedro Gusmão mesmo comprou um bocado dessas terras aí, mas só que a água chegou perto, mas não encostou dentro das terras dele. Aí eu até cedi um pedacinho de terra para ele ter acesso à água e colocar a bomba. Teve muita gente que vendeu, porque quase todo mundo sobrou um pedacinho de terra aqui na beira da água, mas vendeu tudo, tem mais quem vendeu do que quem não vendeu, tudo baratinho naquela época, uns mudou para Barra do Choça, outros para Conquista, Anagé mesmo para trabalhar no café, mas muitos mora no comércio, na cidade e trabalha nas roças de café. Muitos venderam a terra e hoje não tem condição de voltar para ter uma terra (L. M., Pesquisa de Campo, 2011).

Do período da construção até os dias de hoje, tem havido um processo de migração

e expropriação que tem alterado a composição dos grupos sociais e familiares do entorno

da barragem. Muitas pessoas foram morar em outras cidades, e, segundo relatos, alguns

passaram a ter problemas de saúde por terem deixado suas terras; outros chegaram a óbito

por complicações da saúde, tais como depressão, alcoolismo, hipertensão; muitas famílias,

por terem sido separadas pelas águas, perderem o contato com vizinhos e amigos. Essas

alterações na vida dos atingidos jamais poderão ser recompensadas ou reparadas e se

englobam nas perdas imateriais promovidas pela obra.

No sentido inverso, tem ocorrido também a migração de muitas pessoas de outras

cidades e estados para o entorno da barragem, pessoas que passaram a comprar terras para

construir sítios, fazendas ou mesmo para lazer nos finais de semana, o que também vem

alterando as relações sociais, as manifestações culturais e o modo de vida simples dos

camponeses.

Conforme o próprio relato de um dos entrevistados:

Todo mundo que veio de fora, vieram depois da barragem, tem muita gente que veio comprando essas terras a preço barato. Pedro Gusmão mesmo foi um, e Élquisson Soares também, foi assim que fez, naquela crise, os coitadinhos saíam pelo mundo procurando jeito de viver e quando chegava aqui pegava os documentos arrumava, foi laçando tudo e quando o DNOCS chegou, já tava tudo arrumado. Élquisson mesmo comprou muito pelo lado de lá de Caraíbas, onde hoje tem muitas fazendas por lá (A. L. M, Pesquisa de Campo, 2011).

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Esse relato revela um processo que ocorre com muita frequência em obras públicas

e de infraestrutura em todo o país: pessoas que tiveram acesso privilegiado às informações

se beneficiam ou aproveitam desse conhecimento. No caso em estudo, acredita-se que

muitas dessas pessoas sabiam qual seria o traçado da barragem e compraram muitas terras,

antes da construção, ou mesmo grilaram ou fizeram a regularização fundiária das

propriedades.

As transformações ocorridas nas disputas territoriais e na apropriação desigual da

terra e da água e dos meios de produção ficam muito evidentes. Vejamos imagens, nas

Figuras 05 e 06, de duas residências: a primeira é de uma família camponesa; e a segunda é

a construção de um sítio localizado às margens do lago.

Figura 07: Residência de uma família camponesa.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.

Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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Figura 08. Casa construída após a barragem.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

A análise geográfica precisa compreender as transformações espaciais para além da

aparência; é fundamental entender a essência dos processos sociais que se materializam.

Porém nem sempre as formas espaciais refletem o seu verdadeiro conteúdo social, por isso

a análise dialética torna-se importante na compreensão do espaço geográfico na

perspectiva da totalidade.

Ao fazermos uma análise das imagens das construções localizadas nas

proximidades da barragem, podemos chegar a uma conclusão equivocada, ao perceber, por

exemplo, apenas uma realidade: associada à miséria, no caso da primeira imagem, a casa

da família camponesa; e a progresso e riqueza, no caso da casa construída pós-barragem,

com toda a infraestrutura de lazer edificada por pessoas que se instalaram na região.

Essa contradição expressa materialmente retrata o processo de desenvolvimento

desigual e combinado que se estabeleceu nas proximidades da barragem após sua

construção. Ou seja: é preciso desconstruir o discurso de progresso e desenvolvimento que

seriam promovidos pela barragem, que, concretamente, não são extensivos a todos. A

apropriação da água, da terra e da infraestrutura se dá de forma desigual, pois é o poder do

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capital que vai definir como serão as estruturas espaciais, por isso essas contradições são a

expressão territorial do conflito e das disputas das classes sociais antagônicas pelo espaço e

no espaço.

No entanto, não podemos desconsiderar que a disponibilidade de água, a chegada

da energia elétrica nas proximidades da barragem e a construção de estradas têm

repercutido em melhorias nas condições de vida das famílias camponesas. Esses fatores

têm contribuído para a permanência dos camponeses e para o retorno dos filhos e netos

para o campo, ainda que esses “benefícios” tenham sido construídos para atender outros

grupos, como as empresas do agronegócio e os proprietários dos sítios. Hoje muitos

camponeses afirmam que não existe nada melhor que continuar em suas terras.

O depoimento um dos entrevistados, expressa esse processo:

Hoje melhorou nem só por ter água, hoje quem trabalhava fora sossegou, trabalha em riba do que é seu, tem gente que era daqui foi embora e depois da barragem voltou, tá morando porque tem como sobreviver. Também por causa da barragem porque tudo que a gente planta na beira da água molhando produz, também tem a energia, hoje também tem estrada, os meninos que estuda em Anagé tem o carro que pega na porta. Eu mesmo falo direto: só saio daqui para cidade de pé junto. Tem gente que chega aí querendo comprar meu pedacinho de terra, eu não vendo, eu falo: aqui é dos meus filhos trabalhar, nunca vendo. Tem até um exemplo: meu filho já comprou um pedaço de terra fora dessa área, com o que ganhou aqui nessa terra, eu não comprei porque graças a Deus tenho minha terra já tô no fim da vida (C. M., Pesquisa de Campo, 2011).

A possibilidade de produzir e ter melhores condições de vida tem reforçado a

defesa do “território” e da terra como meio de produção para os camponeses. Com essa

estrutura, suas terras e suas casas são o melhor lugar para continuarem vivendo. Ao serem

questionados sobre a vontade e o desejo de mudarem para a cidade ou para outros lugares,

afirmam:

Nós fica aqui na terra, porque nós nasceu e criou aqui, nosso amor ta é aqui, nossa raiz tá nessa terra. Foi por isso que nós não saiu e nem sai, meus filhos tudo vive é daqui. De que adianta eu sair daqui e ir para cidade, fechar minha casinha? Aqui é meu, derramei suor pra fazer, criei meu rebanho de filho tudo aqui e tô nessa idade, e ainda trabalho e ainda quero viver muitos anos aqui ainda. Como é que posso sair dessa terra, que me dá tudo? Eu trabalho com pamonha e adoro fazer, tiro o milho é daqui, como é que vou embora daqui? A terrinha nossa aqui é amada, adorada, é tudo para nós! Eu falava para os chefões e os engenheiros: a gente cavaca areia aqui com a unha, para fazer as

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cacimbas pra ter água, agora que vai chegar o beneficio da água e da luz a gente vai sair para quê? Hoje eu tô rica, graças a Deus, família criada, água encanada, luz, não dou um passo aqui para pegar água, tô aposentada, meu marido aposentado, debaixo do meu teto, comida na mesa todo dia (A. M., pesquisa de campo, 2011).

O vínculo com a terra ultrapassa a questão material. Além de ser o principal meio

de produção, é o espaço apropriado historicamente por eles, onde foram construídas suas

famílias, é o território onde suas referências foram formadas, é a terra onde passaram

grande parte de suas vidas, onde se deu a construção da sua identidade política e social. É o

espaço onde resistiram e se organizaram politicamente, foi por ela que acamparam e

fizeram manifestações, em defesa da vida. A permanência nessas terras é, acima de tudo, a

defesa da sua existência como camponeses27, reforçada nos vínculos da racionalidade

camponesa baseada no tripé terra-trabalho-família, como elementos centrais para a

reprodução social na terra com o trabalho da família.

A terra e a água representam a possibilidade de continuarem sobrevivendo e

trabalhando de forma relativamente autônoma e independente, por isso a defesa da

permanência do seu modo de vida e organização social. O território da terra e água de

trabalho não se mensura pelo valor de mercado; não se usam a terra e a água como

mercadorias, mas como meio e condição para a sua reprodução social, onde se constroem

suas re-existências, a garantia da condição de vida para seus herdeiros. Como nos relata

uma camponesa entrevistada:

Eu acho que não conseguiria viver sem terra e nem sem água, porque a gente, tano na terra, tem como achar o alimento. É a vida da gente. Se nós perdesse a terra, a gente perdia a vida, porque o dinheiro acaba, e a terra não acaba. Quem vendeu as terras aqui mesmo, hoje tá sem o dinheiro, sem a terra e sem a casa. Meus cunhados que foram embora para Barra do Choça arrependeram tudo de ter saído daqui, hoje quer voltar e não pode. Aqui, para pessoa trabalhar, não precisa de ter muita terra não, qualquer hectares ou tarefa de terra a gente trabalha e dá pra viver. É bom você chega na roça na época da seca e ver a água caindo e molhando as plantação. Você precisa de ver cada espiga de milho que dá, para fazer as pamonhas (A. M, Pesquisa de Campo, 2011).

27 A permanência do campesinato é tema de estudo de importantes teóricos no mundo e no Brasil, com destaque para Teodor Shanin, em âmbito mundial; Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em âmbito nacional, com destaque a esse processo no Sudeste do país, Eliane Tomiasi Paulino no sul do Brasil, Alexandria Luz Conceição, Guiomar Inez Germani e Suzane Tosta de Souza que analisam a realidade do nordeste brasileiro, sobremodo na Bahia em Sergipe e Marcelo Rodrigues Mendonça e Helena Angélica Mesquita, que analisam as formas de resistência e permanência no campesinato no Cerrado, sobretudo, no estado de Goiás. Além de tantos outros profissionais das mais diversas áreas do conhecimento que se debruçam para compreender o campo brasileiro na atualidade.

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A concepção da articulação da terra e da água, fundamentada no valor de uso fica

evidente nesse depoimento. Na prática eles buscam um pedaço de terra onde seja possível

garantir a sobrevivência, ou seja, a ambição por grandes propriedades não existe, tampouco

a busca por monoculturas. A terra e a água são apropriadas para garantir a sobrevivência

imediata, por isso a opção por cultivar alimentos como milho, feijão, andu, mandioca e

hortaliças é primordial, apesar de também produzirem para comercialização nas feiras

livres.

Com a fragmentação das terras e a redução das propriedades, que têm acontecido

seja por venda, seja por aluguel de parte das terras, os camponeses passaram a desenvolver

novas estratégias de sobrevivência, conciliando diversas atividades. Trabalham tanto na

terra, como agricultores, quanto na água, como pescadores, além de parte deles exercer a

atividade de comerciantes nos finais de semana, nas barracas construídas nas margens do

lago, na localidade conhecida como “Prainha de Anagé”, ou venderem a força de trabalho

como diaristas nos períodos de safra ou de colheita nas propriedades.

Na prática, esse processo é reflexo da contradição, do acirramento das condições de

sobrevivência e da redução das condições de trabalho e produtividade, que vem sendo

impostos aos camponeses, que, para garantir condições mínimas de vida, precisam

desempenhar múltiplas tarefas. Esse acúmulo de funções não é uma escolha dos

camponeses, mas uma necessidade para garantir a sobrevivência.

5.2 CAMPONESES, PESCADORES, COMERCIANTES, TRABALHADORES PRECARIZADOS: MESMA CLASSE SOCIAL, NOVAS FORMAS DE TRABALHO

A construção de barragens tem promovido intensas transformações territoriais nas

áreas onde são edificadas em todo o país, com mudanças de ordem social, natural, material

e imaterial: desde a alteração do curso de um rio, com represamento, perenização ou, até

mesmo, a sua extinção, após a construção do lago, como também na biogeografia, com o

surgimento de microclimas, transformações na fauna e flora, enfim, alteram-se

completamente os ciclos naturais.

Entretanto, as modificações mais significativas são de ordem social e econômica,

pois, em grande medida, tais obras são construídas para atender interesses exógenos e

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estranhos às pessoas que são atingidas. Com a construção de um lago, são alagadas terras

férteis, casas, cemitérios, roças, currais, estradas e caminhos e, sobretudo, memórias,

histórias e as referências imateriais de uma grande quantidade de pessoas que foram e estão

sendo atingidas pelas barragens. Essas alterações jamais poderão ser recuperadas,

indenizadas, tampouco mensuradas, por isso costuma-se dizer que, após a construção de

uma grande obra, como as barragens, há uma transformação total da realidade em seu

entorno.

No caso específico da Barragem de Anagé, onde, aproximadamente, duas mil

pessoas foram atingidas diretamente, muita coisa mudou. A grande maioria dos atingidos

perdeu seu principal meio de produção, - a terra; alguns que permaneceram na área tiveram

uma redução considerável de suas propriedades; outros venderam a parcela de terra

restante e mudaram para outras cidades; alguns ainda retornaram às áreas para trabalhar

como empregados das fazendas, ou para contratos temporários nas fazendas nos períodos

de safra, enfim, depois da barragem, nada é como antes.

Entre tantas transformações, vamos discutir as mudanças ocorridas nas formas de

uso da terra e da água, que passaram a ser desenvolvidas pelos camponeses que foram

atingidos parcialmente, analisando as estratégias de sobrevivência adotadas para

continuarem produzindo e sobrevivendo, mesmo após a redução de suas terras, como

também as novas alternativas de trabalho que se tornaram possíveis em decorrência da

disponibilidade de água.

Essa obra do Estado transformou a realidade de centenas de camponeses,

acostumados à vida no sertão, com práticas sociais históricas, como a organização da

produção e os plantios de culturas de sequeiro, criação de animais, que se adequavam aos

ciclos naturais, como o período “das chuvas das águas”, compreendido entre os meses de

setembro a março, o período seco, de abril a agosto, dependendo muito de cada ano, pois

existem anos mais chuvosos e anos mais secos, o que altera a duração e a intensidade das

precipitações. Enfim, os sertanejos se adequaram historicamente a essas condições naturais

e passaram a desenvolver estratégias de sobrevivências e práticas sociais apropriadas às

intempéries da natureza.

Os entrevistados afirmaram que era muito comum nos períodos secos ocorrer a

migração, sobremodo da população masculina, para outros centros em busca de empregos

temporários ou sazonais, sobretudo, como boias-frias, tendo como principais destinos São

Paulo ou, mesmo, cidades vizinhas, como Vitória da Conquista e Barra do Choça, onde

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trabalhavam nas lavouras de café. Isso se comprova, por exemplo, quando muitos

entrevistados relataram que, no período de construção da barragem, muitos pais de famílias

encontravam-se distantes de suas residências, tendo deixado em casa filhos e esposa.

No caso mais específico da área em estudo, existia um vínculo muito forte com o

Rio Gavião, relacionado com o ciclo do próprio rio, que era intermitente. Assim, a época

de riqueza e alegria referia-se aos períodos de chuva, quando as águas corriam no leito do

rio; da mesma forma, a época das secas era motivo de tristeza e preocupação.

Nessas condições, os camponeses praticavam essencialmente a agricultura de

sequeiro, onde cultivavam essencialmente os produtos de consumo direto, como feijão,

milho, mandioca, melancia, abóbora, feijão andu, entre outros, como também a criação de

caprinos, ovinos, bovinos e suínos. A criação de animais representava uma espécie de

“poupança” ou reserva de valor para épocas mais difíceis. Quando a situação se

complicava, apelavam para a venda desses animais, sobretudo os caprinos. Outra estratégia

muito utilizada pelo povo do sertão, não apenas o de Anagé, é a estocagem de parte da

produção para consumo nos períodos secos do ano e a reserva de sementes para serem

plantadas quando a chuva cair no chão e molhar as terras secas.

Ao analisar essas características dos sertanejos de Anagé que viviam às margens do

Rio Gavião, Pereira analisa:

Se existe semelhança dos moradores do sertão quanto ao espaço que habitam, não significa que não exista área com identidade própria. Os moradores da área em estudo sempre tiveram como referência simbólica o rio Gavião. A convivência com o rio ora seco, ora corrente, e ora em explosão, fez da população local uma espécie própria de gente. Gente que tem sua forma própria de pensar, sentir e organizar a vida (PEREIRA, 1993, p. 151).

Essa forma própria de pensar, sentir e organizar a vida, como destaca o autor, foi

intensamente alterada com a construção da barragem. Atualmente os camponeses

desenvolvem a agricultura de sequeiro em pequena quantidade, pois as terras foram

reduzidas consideravelmente, apesar de desenvolverem outras formas de agricultura, por

meio da irrigação, onde produzem hortaliças, frutas e alimentos, que só eram cultivadas em

épocas de chuvas, como o milho doce e o feijão de corda28. Entretanto, não é mais possível

28 Feijão, que recebe algumas denominações, como feijão de arranque, feijão macaco, cultivado principalmente no Nordeste brasileiro, sobretudo na época das chuvas, ou mesmo em todo o ano nas áreas mais úmidas. É base para a produção de pratos regionais, como o Baião de Dois e o

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a criação de animais, principalmente caprinos e bovinos, pois esses necessitam de maiores

áreas, por serem criados no regime de pastoreio.

Outra importante atividade que passou a ser desenvolvida após a construção da

barragem foi à piscicultura, que, inclusive, estava prevista como um dos principais

objetivos do projeto inicial, idealizada para a produção de peixes em grande escala, ou

seja, a pesca comercial e controlada por médios e grandes grupos. Ainda que não fosse o

objetivo fundamental do projeto, a pesca passou a representar uma importante alternativa

de renda para os camponeses e outros trabalhadores, que nela encontraram uma forma de

trabalho não alienado, que tem garantido a reprodução material de inúmeras pessoas.

Na realidade a pesca foi concebida para ser uma atividade de grande porte, portanto

a forma como vem sendo desenvolvida contraria a sua concepção inicial. O relato do ex-

deputado Élquisson Soares, um dos idealizadores da barragem, expressa bem essa

mudança e revela sua inquietação:

E aí, portanto, a barragem cresceu muito a possibilidade de desenvolvimento da região, criou as infraestruturas para esse desenvolvimento. A segunda finalidade da barragem era a piscicultura, a terceira era a irrigação, que aconteceu, mas muito pouco, foi muito restrito. Até a própria piscicultura não se desenvolveu de forma organizada e estruturada. Aconteceu até no certo momento um peixamento da barragem com um pescado do Piauí, mas alguma coisa surgiu, mas não foi plenamente. A irrigação também não se desenvolveu, tem muito pouca coisa hoje, e poderia ter muito mais coisa (Entrevista de Campo. E. S, 2011).

O relato do idealizador do projeto reflete os seus reais propósitos e a verdadeira

intenção da barragem, que era construir as infraestruturas necessárias para instalação de

formas capitalistas de apropriação da terra e da água, tanto na agricultura irrigada, que será

analisada no tópico seguinte, como no desenvolvimento da pesca comercial em grande

escala, que realmente não se estabeleceu.

Feijão tropeiro. É consumido quando está verde, acompanhado sempre de carne do sol frita ou costela suína, é muito comum nas feiras livres em toda essa região. O milho doce é uma espécie de milho cultivado nessa região, no período de chuvas, utilizado na produção de canjica, curau, pamonha. Leva esse nome pelo sabor adocicado, é consumido principalmente quando está verde. Geralmente esperara-se secar uma parte para guardar como semente para consumir em outros períodos do ano e também para semear na terra depois das chuvas de São José, que é comemorado dia 19 de março. Essa data é rigorosamente seguida pelos sertanejos, e a colheita coincide com a as festas juninas, que celebram Santo Antônio, São João e São Pedro, época de muita festa no Nordeste.

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A pesca que se desenvolveu está baseada em outras racionalidades que não

meramente capitalistas, passando a ser uma importante alternativa de renda para os

camponeses que, também passaram a ser pescadores. Essa atividade é voltada ao

abastecimento direto das famílias, praticada de forma artesanal e também de maneira mais

estruturada, com a criação e engorda de peixes no sistema de tanques-rede, onde a

produção é utilizada para a alimentação dos pescadores e para comercialização.

A piscicultura representa uma importante fonte de renda para população que vive

nas proximidades do lago, sobretudo os camponeses que tiveram uma redução no tamanho

de suas propriedades e que fazem da pesca mais uma alternativa de trabalho. Essa

atividade também passou a ser uma alternativa de trabalho para pessoas que vivem nas

cidades de Caraíbas e Anagé, que, diante do agravamento das condições de trabalho e da

dificuldade de encontrar emprego, utilizam a pesca como atividade autônoma, para

conseguir se realizar materialmente de forma independente.

Ao se referir as mudanças ocorridas após a construção da barragem, o presidente da

Associação dos Pescadores de Anagé, relata:

Eu nasci e criei aqui. Tô com 55 anos de idade. Antes da barragem aqui, era problema, era feio; depois da barragem pra cá para mim tá sendo muito bom. Agora tem o peixe, o emprego ficou mais fácil, a minha vida antes da barragem era só para São Paulo, ninguém me via dentro de casa. Depois da barragem, só saio seis vezes a serviço da pescaria, buscar material de pesca, e hoje nós já tem dois projetos de engorda de peixe. Graças a Deus, pra nós tá sendo muito bom, até hoje nunca vi ninguém falar mal da barragem. Pra quem nasceu e criou aqui, sempre falava só de bem, porque antigamente a seca aqui era danada e complicava demais pra nós (Entrevista de Campo, S. S, 2011).

Esse depoimento reflete a mudança na forma de uso da água, possibilitada com a

construção da barragem e em que a pesca é uma nova forma de trabalho e uma importante

fonte de renda. Passaram a conciliar a atividade na água e na terra como uma necessidade

para sobreviver, uma vez que as terras se tornaram pequenas para garantir a sobrevivência

de todos os membros da família. Os camponeses se apropriaram da infraestrutura existente,

embora não tenha sido criada para atendê-los. Essa prática evidencia a importância da

resistência e da permanência na terra e na água.

Vejamos o relato de um dos camponeses entrevistados, ao se referir ao processo de

construção da barragem e aos rebatimentos da obra para sua família:

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Aqui eram 90 hectares de terra, meu pai tinha oito filhos, ficou aqui depois da barragem umas trinta e poucas hectares de terra e o restante ficou debaixo da água. Cada qual ficou com seu pedacinho, não tem mais porque uns venderam, mas hoje tem três irmãos que vivem do trabalho na terra. Nós perdemos muita terra e não recebemos a indenização da terra, só as benfeitorias, mesmo assim, hoje tá melhor. Naquele tempo antes da barragem, um hectare de terra, se você vendesse por dez contos era caro, hoje tá trinta, quarenta, cinquenta mil, um pedacinho de terra. Hoje eu trabalho na agricultura e na pesca, antigamente a gente nem sabia o que era pescar. Eu mesmo só sabia pescar de anzol, meu pai foi pescador e ele sempre dizia: olhe meus filhos, vocês ainda vão sobreviver aqui de peixe. A gente dava risada da cara dele, porque desde muito tempo tinha o projeto da barragem, mas nós tudo pivete num sabia de nada. Hoje tem 23 anos que eu como, visto, bebo, tudo daí de dentro, não sei o que é trabalhar um dia de serviço pra ninguém, em roça de ninguém, vivo mesmo do meu trabalho (Entrevista de Campo, S. S, 2011).

Contraditoriamente, as águas que alagaram as terras dessa família trouxeram a

possibilidade de pescar, quer dizer, mais uma maneira de garantir a permanência desses

camponeses/pescadores nos territórios de terra e água de trabalho. Nesse caso, a

apropriação da terra e da água garante a reprodução material dessa classe social, por meio

do trabalho não alienado; é uma apropriação da natureza fundamentada no valor de uso.

Visando a uma melhor organização das atividades para garantir melhores condições

de produção e comercialização dos pescados, foram criadas duas associações de

pescadores: a Associação de Pescadores e Piscicultores de Anagé (APPA) e a Associação

de Pescadores de Caraíbas, com sedes e estatutos próprios em cada município.

As Figuras 07 e 08 exibem as imagens da sede da Associação de Anagé: a primeira

mostra a placa na entrada da sede; e a segunda, a estrutura interna, onde são realizados os

serviços de limpeza e tratamento dos peixes.

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Figura 09: Placa da Sede da Associação de Pescadores de Anagé.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

Figura 10: Estrutura da interna da associação.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011 Autor: PAIVA SILVA, Gedeval

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A APPA conta com uma média de 68 associados, que desenvolvem atividades de

pesca artesanal e participam do projeto de criação de peixe. A pesca artesanal é feita com

anzóis, com redes de três mares ou tarrafas, em canoas e barcos médios.

Entre os associados, uma média de quinze pessoas aderiu ao projeto de criação e

engorda de peixes em tanques-rede, que produzem em média dois mil quilos de tilápias

semanalmente e que são comercializados nas cidades da região, a um preço médio de cinco

reais por quilo. Para as famílias, essa renda obtida através da engorda dos peixes passou a

ser essencial para a sua sobrevivência, sobretudo nos períodos de estiagem, quando a

produção agrícola é reduzida. Essencial também pela redução das terras e pela

possibilidade de continuarem reproduzindo a sobrevivência de todo o grupo familiar em

pequenas extensões de terras.

Ao se referir à produção da associação, o presidente comenta:

A gente ta fazendo uma abate por semana, a gente vende aqui para Anagé, Conquista, Barra do Choça, Poções, Candido Sales e Piripá, ta saindo uma média de dois mil quilos de peixe por semana, a gente vende a uma média de cinco reais o quilo. Aqui a gente, abate o peixe todo no gelo é um choque térmico, aí em trinta quarenta minutos a gente trata. Ele não estressa muito, por isso a qualidade da carne é outra, ele não dá o gosto de lama, porque o gosto de lama ele não é da lama, é da alga que ele prende no peixe. Aí depois quando a gente pega essa peixe a gente deixa de quatro a cinco dias numa caixa de cimento para voltar ao normal e sair esse gosto de lama se não a gente perde o peixe. Quando a gente não vende na semana, guarda no frízer, mas a gente ta correndo atrás de uma câmara fria pequena a gente não quer uma grande não, a gente quer sonhar, mas sonhar pequeno, a gente começou com quarenta gaiolas, hoje a gente tá com noventa, ninguém sabe com quantas a gente vai ter daqui a um ano ou dois anos (Entrevista de Campo, S. S, 2011).

Os associados, em sua maioria, são camponeses que residem nas proximidades da

barragem, ou são filhos dos camponeses que foram atingidos pela obra, como é o caso do

entrevistado que atualmente é presidente da Associação de Pescadores de Anagé, ou

mesmo pessoas que voltaram a viver nessas áreas após a possibilidade da pesca. Existem

ainda algumas pessoas que eram trabalhadores assalariados nas cidades, ou diaristas nas

fazendas da região e que passaram a ser pescadores e tiveram, com a pesca, a possibilidade

de sobreviver do trabalho, voltando a ter a liberdade de serem donos do seu próprio tempo.

O relato de um senhor de sessenta anos de idade é o exemplo desse processo de

mobilidade e de precarização das formas de trabalho. Depois de desenvolver diversas

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tarefas em lugares distintos, encontrou uma forma de sobrevivência na atividade pesqueira

em Anagé, como fica claro neste depoimento sobre a sua trajetória de vida:

Eu era vaqueiro em Itambé, depois fui para o Pará, trabalhar de vaqueiro também. Depois fui para Barra do Choça limpar café. Aí, na época da colheita, o dono da fazenda perguntou se eu queria ir para Anagé secar café, eu disse vou. Aí cheguei, fiquei um ano, depois arrumei uma noiva e casei e fiquei por aqui, fui trabalhar na cooperativa, depois fui trabalhar em Conquista numa firma de café, depois saí do emprego porque a poeira do café tava me prejudicando com a tosse danada. Aí já tinha feito a barragem aqui, vim pra cá pescar por conta própria. Depois que criou a associação, a gente tirou a carteira e depois desse tempo eu vivo da pesca, há mais de dez anos. A vida de pescador é melhor porque na vida de vaqueiro você tem que trabalhar todo dia, porque tá empregado, e pescador não, você pesca no dia que você quiser, quando precisar, e na lida de vaqueiro não tem dia de folga, acordar de madrugada se o carro do leite passasse e não tivesse terminado o leite, tinha que pagar o prejuízo com o salário. Hoje dá pra viver tranquilo, com a pesca (Entrevista de Campo F. S., 2011).

A barragem que, no processo de construção, promoveu a expropriação de muitos

camponeses de suas terras, transformando-os em trabalhadores precarizados e camponeses

sem-terra, possibilitou também a criação de novas formas de sobrevivência, em que o

trabalho é a garantia da reprodução material para quem o realiza. A pesca criou as

condições para que muitos trabalhadores encontrassem no trabalho pesqueiro os meios e os

instrumentos para garantir a “autonomia” sobre o seu tempo e sua vida, diferente da lógica

capitalista, que se apropria da força de trabalho e controla o tempo e o destino do

indivíduo.

Esse processo de criação de uma alternativa de trabalho autônomo ocorreu em

maior escala em Caraíbas, tendo em vista que a maioria das pessoas envolvidas com a

atividade pesqueira é formada de trabalhadores urbanos, boias-frias ou diaristas nas

fazendas da região, mas, na prática, não eram essencialmente agricultores, como as pessoas

de Anagé. Eles vivem na cidade ou vieram de outros municípios para trabalhar como

pescadores, a exemplo do atual presidente da Associação, que é natural de Vitória da

Conquista e se estabeleceu nesse município após a construção da barragem. Outro aspecto

que também contribui para esse perfil dos pescadores de Caraíbas é a proximidade do

espelho d’água com o sítio urbano; as águas margeiam a cidade, o que contribui para que

muitas pessoas optem pelo trabalho com a pesca.

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A Associação de Pescadores de Caraíbas também pratica as duas formas de

pescaria, tanto a artesanal, quanto a criação de peixes em tanques-rede, mas tem um

número menor de associados e, consequentemente, uma produção também mais reduzida

em relação a APPA. Atualmente tem uma média de 42 associados; destes, cerca de dez

pessoas participam do projeto de criação e engorda de peixes em tanques-rede, tendo como

produção uma média de quatro mil quilos de peixes por mês, recebendo o valor de cinco

reais pelo quilo do produto, sujo mercado consumidor são os municípios do Sudoeste

baiano.

As Figuras 09 e 10 ilustram os dois sistemas de pesca utilizados pelos pescadores

de Anagé e Caraíbas: a primeira mostra o processo de pesca artesanal, realizado em canoas

a remo como meio de locomoção e redes de tarrafas; a segunda, o sistema de criação e

engorda de tilápias em tanques que ficam nas águas da barragem.

Figura 11: Pesca Artesanal em Anagé.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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Figura 12: Tanques-rede de Anagé. Fonte: Pesquisa de Campo, 2011 Autor: PAIVA SILVA, Gedeval

As formas de pescaria praticadas variam segundo as necessidades dos pescadores

ou o tempo disponível para essa atividade. As pessoas que utilizam a pesca em pequena

escala e voltada principalmente para o consumo das famílias utilizam recursos como os

anzóis, as tarrafas e as redes, em horários alternados com o trabalho com a terra, sendo a

pesca, portanto, a atividade que fica em segundo plano. Ao passo que as pessoas que

comercializam o pescado semanalmente dão mais atenção a essa atividade do que ao

trabalho com a terra. Ou seja, a quantidade de terra e a disponibilidade de tempo vão

determinar a relação dessas pessoas, ora dando maior prioridade ao trabalho na terra, ora se

concentrando no trabalho na água.

O mais importante é que, em ambos os casos, esses camponeses/pescadores, ou

pescadores/camponeses, utilizam a terra e a água de forma articulada, com vistas a garantir

a reprodução material da família. Por isso essa relação está baseada no apossamento do

território de terra e água de trabalho, orientado pelo valor de uso. Isso, portanto, exige uma

compreensão de que o território nessa situação não se restringe a terras, mas, também, a

água. É a apropriação da terra e da água que viabiliza a sobrevivência dessas pessoas, é

nessa junção de atividades que se forjam as formas de realização social e reprodução

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material, ou seja, uma classe social que não pode ser entendida separada não apenas como

agricultores, ou pescadores, simplesmente uma classe social que vive do trabalho

autônomo e livre na terra e na água.

Essas pessoas desenvolvem outra forma de trabalho que representa também uma

alternativa de complementação de renda, geralmente desenvolvida nos finais de semana e

nos feriados, é a atividade comercial estabelecida nas margens da barragem,

principalmente nas barracas localizadas na área conhecida como “Prainha de Anagé”.

Nesse local, são comercializados os frutos do trabalho na terra, a exemplo de fruta, coco,

feijão, farinha, milho, abóbora, galinha caipira, entre outros, que são servidos

acompanhados de peixes, ou seja, o fruto do trabalho nas águas. Dessa forma o comércio

representa a transformação do fruto do trabalho em moeda, que será convertida em outras

mercadorias, que não são produzidas nas propriedades.

Os principais frequentadores desses locais são as pessoas dos municípios vizinhos,

que buscam nessas áreas formas de lazer, seja para banhar-se nas águas da barragem, seja

para fazer passeios de barco, jet-ski, pesca, entre outras atividades, ou mesmo aquelas que

buscam um lugar diferente para almoçar, numa área que tem uma bela paisagem.

Assim, se desenvolveu, nessa área, uma espécie de turismo local, ainda incipiente e

controlado, em sua maioria, por trabalhadores familiares. Existe uma média de seis

barracas fixas de alvenaria, localizadas nas margens da “Prainha de Anagé”, próximas do

espelho d’água, todas gerenciadas por pessoas das proximidades e que conciliam o

trabalho na terra, na água e no comércio nos finais de semana e feriados. No lado da

barragem que margeia a cidade de Caraíbas, ocorre o mesmo processo; contudo, nessa

área, não há a mesma relação de venda do fruto do trabalho direto dos camponeses e

pescadores. A atividade é essencialmente comercial.

As Figuras 11 e 12 são da “Prainha de Anagé”. Na primeira, é possível ver a

barraca bem próxima ao lago, enquanto a segunda mostra o espaço utilizado para o banho

dos visitantes. Essa proximidade da água é que torna o espaço atrativo para pessoas de

outras cidades que buscam a área para diversão.

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Figura 13: Barracas próximas à barragem.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011 Autor: PAIVA SILVA, Gedeval

Figura 14: Prainha de Anagé.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.

Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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A família do senhor Tonico Marinho foi atingida parcialmente pela barragem e

atualmente permanece na área remanescente. Por conta da redução das terras, vive

conciliando os trabalhos na terra, na água e no comércio. Ele, além de agricultor e

pescador, é proprietário de uma barraca nas proximidades da “Prainha de Anagé”.

Ao se referir a sua história de vida, o senhor Tonico relata as mudanças ocorridas

após a construção da barragem:

Nasci aqui e morei aqui até meus vinte anos, depois fui pra São Paulo trabalhar e fiquei lá seis anos e depois voltei. Depois da barragem, eu toco minha vida aqui. Se for comparar hoje com antigamente, é incomparável. As dificuldades que a gente teve no passado não têm hoje. A vida da gente não é de alto padrão, mas não é uma vida ruim, tudo que a gente tinha vontade de ter fora de época, hoje nós temos, como milho, feijão, abóbora, limão, manga, mamão, enfim, tudo de hortaliças nós temos aqui, só tinha uma vez no ano, nas épocas das chuvas, com as mudanças que a terra proporciona (Entrevista de Campo T. M., 2011)

O depoimento do entrevistado reflete uma opinião muito comum em pessoas da

mesma faixa etária, que passaram a infância e parte da adolescência na realidade anterior à

barragem e que, hoje, vivenciam as mudanças e transformações, sobretudo pela

disponibilidade de água e pelas novas possibilidades de trabalho no seu lugar de origem,

sem ter que migrar para outras regiões. Assim, a barragem que promoveu a expropriação e

a migração de muitas pessoas, permitiu também o retorno de outras para suas terras e seu

local de origem.

O turismo que se desenvolveu nas margens da barragem evidencia também a

contradição da apropriação desigual dessa estrutura, vez que é utilizada por trabalhadores e

pessoas de menor poder aquisitivo, enquanto os sítios e as chácaras são espaços de

utilização privada e pertencem às pessoas com alto poder aquisitivo, com estruturas

milionárias, como mansões que chegam a custar mais de um milhão de reais. Dessa forma,

até a diversão reflete o conteúdo de classe, as desigualdades e os antagonismos da

sociedade capitalista.

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5.3 MESMA TERRA, NOVAS LUTAS. A LUTA PELA TERRA ÀS MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ – O ACAMPAMENTO OJEFERSON

A produção do espaço geográfico se dá no movimento histórico da sociedade, na

apropriação da natureza, materializando os conflitos e as lutas resultantes das relações

entre classes sociais antagônicas, que estabelecem diferentes racionalidades na apropriação

da natureza. Por isso o território é a expressão material da disputa pelos meios de produção

e pela natureza que as distintas classes estabelecem, como afirma Oliveira:

O processo de construção do território é simultaneamente construção/destruição/manutenção/transformação. Em síntese é a sociedade, é a unidade dialética, portanto contraditória, da espacialidade que a sociedade tem e desenvolve. Logo, a construção do território é contraditoriamente o desenvolvimento desigual, simultâneo e combinado, o que quer dizer: valorização, produção e reprodução. O território é assim produto concreto da luta de classes travada pela sociedade no processo de reprodução de sua existência. Sociedade capitalista que está assentada em três classes sociais fundamentais: proletariado, burguesia e proprietários de terra (OLIVEIRA, 1999, p. 75).

O território, como categoria geográfica, é essencial para a compreensão do processo

de luta que se estabeleceu e se estabelece às margens da Barragem de Anagé, em dois

períodos distintos: o primeiro momento, representado pela luta na terra, empreendida pelos

camponeses contra o processo de expropriação que estava por se estabelecer com a

construção da barragem; e o segundo momento, representado pela luta pela terra, em que

vinte e três famílias, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST), ocuparam durante seis anos uma área de cerca de 170 hectares às margens da

barragem, na faixa denominada “área de segurança”, ou “área de servidão”, sob a

responsabilidade do DNOCS.

O primeiro contato com o “Acampamento Ojeferson” ocorreu no período da

realização da nossa pesquisa monográfica em 2008, quando fizemos algumas entrevistas e

procuramos conhecer um pouco da realidade das pessoas que estavam acampadas.

Acompanhamos também uma visita de graduandos do curso de Geografia da

Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em uma atividade de campo, no ano

de 2008, quando foi possível estabelecer um contato mais próximo com as famílias e

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também colaborar com o professor da disciplina, já que tínhamos uma relação com a área

em estudo.

A análise dessa realidade permitiu compreender que a produção do espaço é

dinâmica e está em constante movimento, como expressão da sociedade que o produz. Por

isso o espaço onde se estabeleceu a resistência dos camponeses atingidos pela barragem,

que lutavam para garantir sua permanência na terra foi, também, o espaço ocupado pelos

camponeses sem-terra, que buscavam garantir, por meio da ocupação, terra e água para

produzirem e se reproduzirem socialmente.

Em 2008, ocupavam a área vinte e três famílias, que eram originárias, em sua

maioria, de cidades vizinhas, onde viviam nas periferias urbanas, sem condições de

sobreviver por não encontrarem trabalho, ou que sobreviviam no campo com a venda da

sua força de trabalho nas fazendas irrigadas. Por isso estavam na luta pela terra, por

vislumbrarem uma possibilidade de se reproduzirem por meio do trabalho na terra.

A possibilidade de ter uma terra representava uma condição fundamental para

continuarem sobrevivendo como camponeses “livres”, apesar de não se constituir em uma

liberdade plena, tendo em vista que ainda continuavam sujeitados às contradições do modo

de produção capitalista. No entanto, a luta pela garantia da terra representava uma

alternativa concreta para esses trabalhadores, para que não permanecessem submissos

unicamente ao assalariamento e às condições degradantes do trabalho precarizado, seja no

campo, seja na cidade. Na terra seria possível envolver a família no trabalho e na produção,

garantindo a sobrevivência e o controle parcial de suas vidas e a “liberdade” retirada deles

pelo capital.

As Figuras 12 e 13 são fotos tiradas no “Acampamento Ojeferson” em 2008: na

primeira imagem, é possível ver a entrada do acampamento, com a divisão e separação das

ruas com rochas, que foram colocadas pelos acampados, demonstrando o cuidado e o zelo

na organização do acampamento; a segunda imagem mostra uma das barracas construídas

e a entrada do acampamento.

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Figura 15: Vista Panorâmica do Acampamento Ojeferson em 2008 (antes do despejo)

Fonte: Pesquisa de Campo, 2008.

Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

Figura 16: Entrada do Acampamento Ojeferson em 2008 (antes do despejo)

Fonte: Pesquisa de Campo, 2008.

Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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Quando retornamos à área para o trabalho de campo em 2010, fomos surpreendidos

com a notícia de que os camponeses, que tinham ficado acampados por mais de seis anos,

tinham sido despejados em decorrência de uma ação judicial de reintegração de posse,

impetrada pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS).

Ao chegarmos ao local, encontramos apenas as ruínas dos restos dos barracos e os

sinais de onde era o acampamento. Emocionamo-nos bastante ao constatarmos que o

espaço de luta e resistência onde muitos camponeses estavam sobrevivendo do trabalho

com a terra, estava “desocupado” e destruído para atender a uma ação judicial, que

defendia, acima de tudo, a lógica do Estado democrático de direito, onde a legalidade

supera a legitimidade.

As Figuras 14 e 15 refletem a violência do despejo e do processo de destruição do

território de luta, o espaço de mobilização, onde algumas famílias camponesas

alimentaram o sonho de serem assentados e, por isso, resistiram por anos, estando

atualmente cercada e sem nenhum uso produtivo.

Figura 17: Ruínas de um barraco do Acampamento em 2011 (após o despejo)

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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Figura 18: Estrada do local onde estava o Acampamento 2011 (após o despejo)

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

Algumas dessas famílias foram expropriadas das mais diferentes formas: em

virtude da construção de obras públicas, a exemplo da Barragem de Anagé; por terem sido

expulsas do campo, com a expansão do capital na agricultura; por conta da consolidação da

propriedade privada da terra. Entretanto, agora estavam na marcha de retorno ao campo,

pela via da ocupação e da luta.

A opção do Estado em viabilizar e apoiar a lógica do agronegócio em grandes

propriedades, como modelo de desenvolvimento rural, não leva em consideração a grande

massa de despossuídos da terra que se organizam nas fileiras de trabalhadores sem-terra,

que têm na ocupação uma estratégia para pressionar o Estado para a necessidade de

implantar a reforma agrária e uma política de assentamento efetivo.

Essa é uma realidade nacional, que também ocorre na Bahia e no Sudoeste baiano,

em que o “Acampamento Ojeferson” é um exemplo empírico.

O depoimento de um camponês que estava acampado em 2008 reflete essa

realidade:

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Aí tamo aqui na luta, mas já cansado de esperar. Já tô mais estressado aqui do que na cidade, porque não tem decisão, a gente vê conversa que não vai sair a terra, porque nossa esperança aqui era de conseguir o pedaço de terra, pra puder viver. Mas tá vendo a hora de ter que sair de deixar tudo que nós plantamos aí e né só eu, não, todo mundo que tem terra aqui, tá arriscado acontecer isso. Já tem um prazo pra tirar nós daqui de dentro, aí vem agora uma proposta que hoje acabou de endoidar ainda mais disse que nós pode plantar nas outras áreas de terra, só que nós já sabe que vai plantar mais pra largar aí, pra outros. Mas a gente já tá trabalhando direto, sem saber se vai continuar aqui (E. S., pesquisa de campo, 2008).

O depoimento desse acampado já refletia, quase três anos atrás, a ansiedade e o

medo de terem que sair da terra e perderem as lavouras e o seu trabalho. A preocupação

advinha da incerteza da continuidade na terra. Os camponeses permaneceram acampados

por mais de seis anos até que, em julho de 2010, quando o processo de reintegração foi

expedido, eles saíram da área para evitar o processo de despejo, geralmente realizado com

força policial e repressão, quando há resistência.

A reivindicação dos acampados era que essa área que pertence à União e está sob a

jurisdição do Ministério da Integração Regional, mais diretamente do Departamento

Nacional de Obras Contra a Seca, fosse transferida para o INCRA, para que fosse

desapropriada e nela se instalasse um Assentamento de Reforma Agrária. Isso, entretanto,

não se efetivou. Com a mudança de Ministro, quando assumiu o Sr. Gedel Vieira Lima, a

situação agravou-se, pois foi em sua gestão que o DNOCS acionou a justiça com o pedido

de reintegração de posse.

Ao comentar as mudanças na direção do Ministério da Integração Nacional e

Coordenação Estadual do DNOCS, o servidor do órgão relata as mudanças ocorridas após

as alterações na estrutura administrativa:

Nessa época, a diretora do DNOCS na Bahia era Fátima Nunes, uma grevista do PT, que dá valor aos sem terras, inclusive ela veio aí na época, apoiou, “rodou a baiana” lá mais eles, tá entendendo? A Fátima Nunes e pronto ficou nisso. Fazer o quê! Foi ai que eu pedi mais ajuda a Deus, que, quando eu vi a coordenadora apoiar, o que seria de mim? Mas, graças a Deus, ela saiu e entrou Dr. Hosanã, que hoje está lá, foi colocado por Gedel Vieira Lima. Aí ele requereu a reintegração da posse lá em Salvador, porque aqui não tinha a Justiça Federal. Aí o juiz federal me pediu as coordenadas do local do acampamento, eu mandei, depois me pediram as pessoas que estavam ocupando, eu mandei. Depois eles pediram para me dizer quantos barracos tinha, eu dei (J. L., pesquisa de campo, 2011).

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Mesmo se tratando do mesmo grupo de apoio ao Governo Federal, a postura dos

gerentes do órgão reflete uma sutil diferença no tratamento dos movimentos sociais. A

presença da Coordenadora Estadual do DNOCS no assentamento e sua relação “amigável”

com os acampados foram vistas de forma surpreendente e revoltante pelos representantes

do órgão na região. Quando mudou o coordenador estadual, a sua primeira atitude diante

da situação foi requerer imediatamente a reintegração de posse, refletindo a visão que tem

dos movimentos sociais e a prática que adota para essas ocupações, ou seja, a

criminalização e a aplicação da implacável legalidade, ainda que não seja legítima.

Os camponeses, seguindo um princípio do Movimento, ocuparam a terra, resistiram

bravamente por seis anos e produziram, mesmo não tendo a certeza de que seriam

assentados nessa área. Cultivaram na terra, tanto em áreas individuais, como na área de

produção coletiva, com o plantio de alimentos básicos, como feijão, milho, abóbora,

melancia, andu; criavam galinhas, porcos; alguns chegaram a criar algumas cabeças de

gado bovino, tudo fruto do trabalho deles e suas famílias com a terra, conforme relato de

um camponês que estava acampado desde o início:

Nossa roça deu uma boa safra, colhemos muito, abóbora, andu, feijão, batata. A área dá pra nós viver. Eu queria dizer uma coisa pro Governo ou qualquer pessoa deles: “eu não quero nada, de recurso nem projeto, eu quero é uma terra pra plantar e pra viver, só uma terra pra produzir o que comer e viver o resta da vida com minha família.”. Quando eu cheguei, aqui não tinha nada, nem recurso pra comprar a lona nem nada, hoje já tenho 07 porcos, 70 cabeças de galinha, tudo tirado daqui dessa terra, com o trabalho meu e de minha família, nunca peguei nada do governo (E. S., pesquisa de campo, 2008).

Ainda que não tivessem a certeza de que a terra seria desapropriada e que seriam

assentados, os camponeses sem-terra viveram durante os seis anos retirando o sustento e

garantindo a sobrevivência da família através do trabalho nessa terra, pois retiravam da

terra não apenas os alimentos, mas, também, a dignidade e a “liberdade”, a felicidade de

poder colher os frutos do seu trabalho. As Figuras 17 e 18 mostram as áreas de produção

coletiva e individual e imagens de alguns camponeses que estavam acampados à época.

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Figura 19: Área de Produção Coletiva do Acampamento Ojeferson.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2008. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

Figura 20: Alguns Camponeses do Acampamento Ojeferson na área de produção.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2008. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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A terra onde se localizava o acampamento atualmente está sem uso, abandonada e

sem cumprir sua função essencial, produzir. Foi cercada recentemente pelo DNOCS, para

evitar que outros “invasores” a ocupem, conforme relato dos representantes do órgão. No

local ficaram apenas as marcas do espaço de luta e resistência e, em nossa memória, as

histórias de vida, as alegrias, as tristezas, a esperança, e, sobremodo, os ensinamentos

construídos ao longo da convivência que estabelecemos com aqueles homens e mulheres,

com passados diferentes e com um futuro incerto, mas com destino pré-definido, o da

continuidade na luta pela terra, ou de voltarem à condição de trabalhadores precarizados,

no campo e na cidade.

Após o despejo, não conseguimos restabelecer o contato com os acampados e não

sabemos onde nem como estão atualmente, o que nos preocupa e entristece. De certo que

estão resistindo e lutando em busca de um pedaço de terra, nas estradas desse Brasil afora,

ou retornaram à condição de trabalhadores precarizados, sobrevivendo da venda da força

de trabalho.

A resistência na terra representa não apenas o direito à terra, mas também o direito

à vida, ao trabalho como camponeses, cuja força de trabalho é voltada à reprodução

material da família.

5.4 O ESTADO E AS CONTRADIÇÕES DA TERRITORIALIZAÇÃO DO CAPITAL NAS MARGENS DA BARRAGEM DE ANAGÉ

O projeto inicial da Barragem de Anagé previa múltiplas finalidades, como já foi

comentado anteriormente. Entre elas, destacam-se como principais: a perenização do Rio

Gavião, o abastecimento humano das cidades próximas ao lago ou banhadas pela bacia, o

desenvolvimento da piscicultura e, principalmente, a instalação da agricultura irrigada em

grande escala. Constava desse projeto a meta de irrigar, em média, dez mil hectares. Havia

o intento de implantar um grande projeto de irrigação, voltado à produção de monoculturas

destinadas à exportação, com destaque para o cultivo de frutas.

Processo semelhante se desenvolveu nos municípios de Livramento de Nossa

Senhora e Dom Basílio, onde se estabeleceu um polo fruticultura, com a construção da

Barragem do Rio Brumado. Houve a estruturação de um grande projeto de irrigação,

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dividido em lotes individuais, pelas condições topográficas e tipo de solo favoráveis a essa

atividade.

No caso das áreas próximas à Barragem de Anagé, a meta não foi atingida

plenamente em decorrência das condições dos solos e da topografia da área onde foram

instalados os médios e grandes empreendimentos – uma área de 900 hectares irrigados,

proporção bem inferior ao objetivo estabelecido inicialmente, conforme demonstra

Oliveira (2007), que analisou as implicações ambientais da Barragem de Anagé:

O investimento em fruticultura irrigada representa o cultivo de maior expressividade, sendo que os produtos mais cultivados são a manga, o coco, a pinha, a goiaba e a banana. Desses produtos, até este momento, o que ocupa maior área de terra utilizada na produção é a manga, destinada principalmente ao mercado externo. Anualmente vêm sendo exportadas em média cinco mil toneladas de manga, que ocupa uma área de 490 hectares plantados. 242 hectares de terra estão sendo ocupados pelo cultivo do coco, enquanto a pinha é plantada numa área de 100 hectares. 50 hectares são destinados à goiaba e por último a banana que também tem 50 hectares ocupados. Mesmo que todos esses produtos tenham boa aceitação no mercado, observa-se que a manga, por ser exportada para o exterior, vem recebendo a maior parte dos investimentos. São no total 898 hectares destinados à fruticultura e, baseado nos cálculos da Frutgav, ainda existem três mil hectares em boas condições de se investir nessas culturas (OLIVEIRA, M. 2007, p. 103).

O agronegócio com a agricultura irrigada não se efetivou plenamente em Anagé e

Caraíbas, em decorrência de muitos fatores. Acredita-se que o mais relevante foi a

permanência e a resistência camponesas, sobretudo das pessoas que foram atingidas

parcialmente e que ainda vivem nessas terras. Resistiram às tentativas de venda de suas

pequenas propriedades, por entenderem que essas são as terras de trabalho. Outro elemento

também a se considerar são as condições físicas, como qualidade do solo, topografia e os

custos para irrigação.

Tanto nas áreas irrigadas com as águas da Barragem do Rio Brumado, como nas

áreas próximas à Barragem de Anagé, foi essencial redefinir por completo as formas

tradicionais de uso da terra e da água para que o projeto de apropriação capitalista da terra

e da água se estabelecesse. Em Livramento de Nossa Senhora, foram destruídos e

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abandonados os sistemas seculares de “irrigação por regos”29, utilizados por pequenos

produtores, para a produção de alimentos básicos, como feijão, arroz, milho, entre outros.

Nesse caso, a expansão das relações capitalistas de produção se efetivou com

substituição das técnicas seculares utilizadas pelos camponeses pela irrigação, aliada ao

controle privado da terra pelo Estado, através do DNOCS, que gerencia esse perímetro

irrigado, promovendo a valorização das terras e a expropriação indireta dos camponeses,

para garantir a consolidação do uso da terra e da água para a produção de frutas destinadas

à exportação.

É importante salientar que, nos dois projetos, coube ao próprio Estado a tarefa de

criar a infraestrutura e imobilizar capital a fim de garantir as condições para a

territorialização do capital, a extração da renda da terra e a expropriação de camponeses

dos seus meios fundamentais de produção, sobremodo da terra e da água.

O Estado Capitalista não pode ser outra coisa que não instrumento de dominação de classe, pois organiza-se para sustentar a relação básica capital e trabalho. Se fosse diferente, o capitalismo não se sustentaria por muito tempo. Além disso, como o capital é essencialmente antagônico ao trabalho, Marx considera o Estado burguês, necessariamente, veículo por meio do qual a violência coletiva da classe burguesa oprime o trabalho (HARVEY, 2001, p. 85).

Mais uma vez nesse caso é possível perceber que o Estado se posicionou como

instrumento a serviço dos interesses de uma classe, nesse caso, a classe social dominante,

viabilizando principalmente as condições fundamentais para a acumulação do capital.

Esse processo de aparelhamento do Estado e da apropriação privada dos recursos

públicos se ancorou no discurso de que tais projetos visavam ao desenvolvimento regional

e à melhoria das condições de vida da população. Mas, na prática, tem se revestido no

processo de transformação da natureza em mercadoria, por meio da apropriação da terra e

da água, sob a lógica do valor de troca, para se estabelecer a produção de mercadorias, a

extração da renda da terra e a exploração do trabalho alheio, ou seja, a instauração da

agricultura capitalista.

29 Sistema de irrigação também conhecido por sulcos ou canais de irrigação: são abertos canais entre as plantações, e a água é liberada por gravidade, sendo o excesso captado por uma vala corretora. Trata-se de uma técnica muito comum no Nordeste em pequenas propriedades camponesas, em decorrência do baixo custo para sua manutenção.

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A expansão do capitalismo no campo, sobremodo no Sudoeste baiano, tem sido

consolidada também em razão do desenvolvimento da agricultura irrigada, possibilitada

pela apropriação da terra, da água e do trabalho pelo capital, seja por meio da

territorialização seja pela monopolização da produção. Ambas se sustentam com a

expropriação dos camponeses, a extinção de formas não capitalistas no campo. Tal

processo não se estabeleceu plenamente por conta da permanência e resistência dos

camponeses, que lutam na terra em defesa da continuidade de suas formas de organização

social e dos valores camponeses.

Para Martins, a transformação capitalista da agricultura é possível uma vez que:

A instauração do divórcio entre trabalhador e as coisas de que necessita para trabalhar – a terra, as ferramentas, as máquinas, as matérias-primas – é a primeira condição e o primeiro passo para que se instaure, por sua vez, o reino do capital e a expansão do capitalismo. Essa separação, esse divórcio, é o que tecnicamente se chama de expropriação, o trabalhador perde o que lhe é próprio, perde a propriedade dos seus instrumentos de trabalho. Para trabalhar, terá de vender a sua força de trabalho ao capitalista, que é quem tem agora esses instrumentos (MARTINS, 1991, p. 51). Grifo nosso.

Precisamos entender as transformações territoriais promovidas pela Barragem de

Anagé como uma expressão material da disputa pelo território, resultado da luta das classes

sociais pela apropriação da natureza, com vistas a suprir as suas necessidades. Essas

relações são balizadas por racionalidades diferentes. Para o capital, o princípio

fundamental é o valor de troca, a mercantilização da natureza; para o camponês, a essência

dessa relação está fundamentada no valor de uso, possibilidade de reprodução material.

Quando o capitalista se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio, quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro. Quando o capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito do lucro, direto e indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalhado de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço a quem dela precisa para trabalhar e não a tem. Por isso, nem sempre a apropriação da terra pelo capital se deve a vontade do capitalista de se dedicar à agricultura (MARTINS, 1991, p. 55).

A apropriação capitalista da terra e da água, que se estabeleceu às margens da

Barragem de Anagé, só foi possível pela ação do Estado, que agiu em momentos distintos

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e em duas frentes: no primeiro momento, ao elaborar e executar o projeto, quando muitos

camponeses foram expropriados, e como a grande maioria era constituída por posseiros,

ocorreu a perda de suas terras de trabalho; no segundo momento, ao viabilizar a instalação

de médias e grandes propriedades com disponibilização de água para a irrigação, de

estradas para escoar a produção, além de incentivos fiscais e financiamentos públicos nos

bancos estatais.

A Figura 29 traz o Mapa 04, que apresenta as áreas com cultivos de grande e médio

porte que passaram a se estabelecer após a construção da barragem. Este mapa evidencia

também algumas pequenas represas de propriedades particulares que são abastecidas com

as águas da Barragem de Anagé, para garantir a irrigação durante todo o dia. A análise do

mapa permite compreender a expansão das áreas cultivadas nas terras dos três municípios

que margeiam o lago com destaque para os municípios de Caraíbas e Anagé, onde o

processo se estabeleceu com mais intensidade.

A expansão das áreas de cultivos, sobretudo da agricultura irrigada, não tem uma

repercussão direta no aumento da oferta de alimento, já que os principais cultivos são

destinados, em sua maioria, à exportação. O uso da terra e da água, portanto, é destinado

para atender interesses de grupos sociais externos à realidade regional.

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A evidência disso é que essas novas formas de uso da terra e da água repercutem

diretamente na produção agrícola dos municípios margeados pela barragem, com destaque

para o município de Anagé, que, após a construção da barragem, teve uma considerável

redução na produção de sequeiro, sobretudo na produção de alimentos de consumo básico,

como milho, feijão e mandioca, entre outros, conforme dados apresentados no Gráfico 01:

GRÁFICO 01: PRODUÇÃO DA AGRICULTURA DE SEQUEIRO

Elaboração: PAIVA SILVA, Gedeval. Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), 2011.

Já na produção de frutas que são irrigadas pelas águas da barragem, se constatou

um aumento significativo. São produtos voltados para abastecer o mercado externo e

interno, ou seja, a melhoria das condições gerais de produção no campo beneficiou

concretamente as empresas capitalistas e repercutiu na redução da oferta de alimentos de

consumo básico da população local. Na realidade o desenvolvimento da fruticultura

irrigada só se estabeleceu pela possibilidade de apropriação da terra e da água. Conforme

mostra o Gráfico 02.

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GRÁFICO 02: PRODUÇÃO DA FRUTICULTURA IRRIGADA

Elaboração: PAIVA SILVA, Gedeval. Fonte: Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), 2011.

As mudanças nas formas de uso da terra e da água revelam claramente que a lógica

do valor de uso da terra de trabalho, ocupada por camponeses, tem sido suprimida pela

lógica do valor de troca, apesar de uma parcela do campesinato continuar existindo e

resistindo.

A nova forma de produção, representada pela ampliação das formas capitalistas de

uso da terra, ou seja, a transformação dessas terras de trabalho em terras de negócio, além

de promover a expropriação dos camponeses, redefine a estrutura fundiária, contribuindo

com a ampliação das relações de trabalho capitalistas, tanto com o assalariamento, que

exige cada vez mais qualificação, quanto com a ampliação de formas precárias de trabalho,

como os boias-frias e os trabalhos sazonais.

A lógica do capital, com o aval e apoio do Estado, tem contribuído para a escassez

e o encarecimento de produtos de consumo diário típicos da dieta dos sertanejos. Altera-se

não somente o modelo agrícola, mas, também, o conteúdo e a função social da terra.

A expansão das relações capitalistas de produção agrícola nas proximidades do lago

se concretizou com a territorialização do capital, por meio de empresas de agronegócio que

se instalaram às margens da barragem e na área a jusante do barramento. Segundo dados

obtidos junto ao DNOCS, após a conclusão da obra, em média setenta fazendas de médio

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porte se estabeleceram nas proximidades da barragem, controladas em sua maioria por

pessoas de outras cidades ou de outros estados.

Na pesquisa de campo, focamos nossa atenção em duas empresas por terem sido

umas das primeiras a se estabelecer: a “Agro frutas” e a “Fazenda Umbuzeiro”, que

produzem frutas voltadas à comercialização no mercado regional e para outros estados,

tendo inclusive destinado a sua produção em momentos anteriores à exportação para outros

países, processo que se encerrou em decorrência da queda do valor do dólar e do euro.

A Fazenda Umbuzeiro se estabeleceu nas margens da barragem em 1996, ocupando

uma área de 120 hectares. Desse total, uma média de 80 hectares está em produção com o

cultivado de pinha, uva, banana e mamão.

Segundo as informações prestadas pelos representantes da empresa nas entrevistas

concedidas, a fazenda tem em torno de cinquenta funcionários fixos, com carteira assinada.

Há também uma variação no número de pessoas envolvidas nas atividades, conforme as

épocas de plantio, colheita, limpeza e polinização artificial das flores dos frutos. Nesse

caso são contratados sob regime de contrato de safra ou colheita, ou, simplesmente,

recebem o pagamento referente aos dias trabalhados, sem a garantia dos direitos

trabalhistas básicos.

A expansão da produção se desenvolve com base na ampliação de formas

precarizadas de trabalho. Dessa forma a geração da riqueza e do lucro do capitalista

aumenta na medida em que se acirram as formas de exploração do trabalho, evidenciando a

questão central da relação capital versus trabalho.

Nas Figuras 19 e 20 veem-se algumas imagens dos plantios da Fazenda Umbuzeiro,

com destaque para a produção de uvas em pleno semiárido e da pinha, produtos que nunca

tinham sido cultivados na região. Segundo relatos de alguns entrevistados, eles nunca

tinham visto uma plantação de uva ou de pinha e que o primeiro contato com esses cultivos

se deu com o trabalho nessa empresa.

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Figura 22: Plantação de Uvas da Fazenda Umbuzeiro

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval

Figura 23: Plantação de Pinhas da Fazenda Umbuzeiro

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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160

No caso especifico da Fazenda Umbuzeiro, um aspecto também merece ser

analisado mais aprofundadamente – a origem da terra onde se estabeleceu a empresa –,

pois, segundo o proprietário atual, essas terras foram compradas de herdeiros

(possivelmente posseiros), antes da construção da barragem, pelo ex-deputado Élquisson

Soares, que, após a construção, a vendera para uma pessoa de Vitória da Conquista, que,

posteriormente, a vendeu para o atual proprietário.

O depoimento do dono da fazenda ilustra bem a contradição entre o uso capitalista

da terra e o uso camponês, como também o uso privilegiado de informações das pessoas

que estavam envolvidas no processo de construção. Ao se referir à extensão da terra e à

capacidade produtiva, ele afirma:

Essa terra era uma herança de um pessoal aqui, mas esses herdeiros venderam para um ex-deputado, Élquisson Soares, que vendeu para um ex-vereador de Vitória da Conquista, e ele me vendeu. Élquisson comprou isso aqui antes da construção da barragem. Essa área era de muitos herdeiros, era pequena para tanta gente, eles venderam e dividiram o dinheiro, porque assim fica mais fácil, uns foram pra São Paulo, outros pra Anagé, Caraíbas. Élquisson Soares não fez nada, deixou a terra aí, vendeu para Paulo Brito, que também não fez nada. Antes dessa barragem aqui a única opção do pessoal era ir pra São Paulo. Hoje a pessoa encontra emprego aqui mesmo na região, aqui a propriedade é pequena, mas empregamos cinquenta pessoas, e tem outras propriedades que têm a mesma situação (J.J., Pesquisa de Campo, 2011).

O relato do entrevistado elucida a lógica contraditória da apropriação da terra e da

água: para a reprodução camponesa dos herdeiros, antigos proprietários, a terra era

pequena, insuficiente para garantir a sobrevivência da família, por isso o melhor caminho

era a venda; para exploração capitalista da terra da água e do trabalho, é viável, pois, além

de gerar muito lucro, cria novos empregos na região. Ou seja, a viabilidade está

relacionada à capacidade de extrair a renda da terra e de auferir o lucro, não a possibilidade

de garantir a reprodução material das famílias camponesas, por meio da agricultura do

autoconsumo. O depoimento revela outro processo que também ocorreu nas áreas

próximas ao lago: a utilização de informações privilegiadas das pessoas envolvidas na

construção da barragem, como a localização e a possibilidade de irrigar, o que facilitou a

apropriação de terras a um custo baixo, que se valorizaram após a disponibilidade da água.

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A outra empresa denominada “Agro frutas” está sediada na Fazenda Santa Clara,

que tem sede financeira em Brasília. Esta empresa se instalou na área há mais ou menos

oito anos. A propriedade ocupa uma área de 240 hectares, onde existem, aproximadamente,

14 mil pés de manga, 13 mil pés de coco-da-baía e dois mil pés de pinha.

O destino da produção era a Europa e os Estados Unidos, mas, após a crise, a

empresa passou a comercializar seus produtos no mercado interno, sobretudo em Brasília,

São Paulo e Santa Catarina.

Nas Figuras 21 e 22, podemos observar áreas de produção de manga e coco

respectivamente.

Figura 24: Plantação de Manga da Fazenda Santa Clara.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011.

Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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Figura 25: Plantação de Coco da Fazenda Santa Clara.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

A empresa se estabeleceu nessa área em decorrência de dois fatores: a

disponibilidade de água para irrigar sem cobrança de taxas pelo consumo nem controle da

quantidade de água utilizada, ou seja, é possível irrigar durante todo o dia ao longo de um

ano inteiro; e o valor baixo das terras em comparação com as de outros lugares, a exemplo

do perímetro irrigado de Livramento, onde há cobrança da água utilizada nos lotes para a

irrigação, e o processo de valorização das terras está mais consolidado.

Outro aspecto que motivou a aquisição dessa propriedade foi a vontade de ampliar

a produção e exportar apenas os frutos cultivados pelas fazendas do grupo, pois a empresa

também atua como exportadora.

A empresa conta também com outra estrutura em Livramento de Nossa Senhora,

conforme relato concedido em entrevista:

Nós também temos empresa em Livramento de Nossa Senhora, aqui nessa fazenda nós temos 240 hectares, produzimos manga, coco e pinha, atualmente temos 13 mil pés de manga, coco são 12 mil, e pinha 3 mil pés. A produção é toda irrigada no sistema de micro aspersão, cada área

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tem um horário específico de molhação, tudo controlado pelo sistema informatizado. Isso garante a nossa produção durante todo o ano, o coco, por exemplo, produz o ano inteiro, a manga durante uns oito meses, e a pinha são duas safras anuais (A. T., Pesquisa de Campo, 2011).

A instalação das empresas capitalistas no entorno da Barragem de Anagé promoveu

e está promovendo diferentes formas de sujeição da renda da terra ao capital, seja por meio

do processo de exploração do trabalho, com os trabalhos precarizados, das contratações

temporárias que não garantem os direitos trabalhistas, seja por meio do controle da terra e

água, quando ocorre o processo de territorialização do capital, seja ainda pela

monopolização da produção, quando o capital se apropria da renda camponesa, por meio

da apropriação e controle da produção dos camponeses.

De acordo com os dados coletados em entrevistas, essa empresa mantém cerca de

vinte e oito trabalhadores assalariados e, na época de colheita, chega a contratar cem

trabalhadores, subordinados a relações precarizadas de trabalho, pois não recebem nenhum

direito trabalhista, apenas o valor do dia de serviço. Ou seja, o capital intensifica o

processo de exploração do trabalhador, para garantir maior extração da renda da terra.

Como relata o representante da empresa:

Na safra temos uns cem trabalhadores em média; fora da safra são 28 pessoas devido à cultura do coco que não para. No coco é colhendo e acompanhando a irrigação o ano inteiro. Nós estamos aqui há seis anos, e não temos nenhum tipo de incentivo, do poder público local ou estadual, a forma de colheita ainda é manual. São os trabalhadores sazonais que mantêm a produção. Nós temos uma equipe própria de técnicos para dar manutenção ao maquinário. Quando chegamos aqui e compramos essa fazenda, já encontramos tudo plantado e todo o sistema de irrigação instalado. Nós temos uma outorga do DNOCS para ter acesso à água, aí nós estamos apenas utilizando, até eles inventarem uma cobrança de taxa por enquanto não pagamos nada (A. T., pesquisa de campo, 2011). Destaque nosso.

O relato do pessoal da empresa revela também o processo de apropriação da terra e,

sobretudo, da água pelo capital, uma vez que todas as empresas irrigantes utilizam a água

de forma indiscriminada, sem nenhum tipo de controle nem pagamento, apenas outorgas

sem prazo de validade estabelecido – tanto as concedidas pelo DNOCS, para o caso das

pessoas que retiram a água diretamente da barragem, quanto as concedidas pelos órgãos

estaduais, para quem utiliza a água a jusante do barramento, ou seja, a parte perenizada do

Rio Gavião.

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Essa realidade desmascara o discurso de que a função principal dessa obra era

atender a maioria da população. Na realidade quem se apossa de grande parte da água são

as empresas privadas, que só se estabeleceram na área por causa da oferta de água,

disponibilizada gratuitamente. Caso sejam instituídas cobranças pela quantidade de água

utilizada, muitas empresas irão migrar para outras áreas, conforme depoimentos dos

responsáveis pelas empresas, ou seja, o capital privatiza um bem público que deveria ser

um direito de todos, - a água -, além de aproveitar dos investimentos de toda a sociedade

por meio do Estado e dos recursos públicos.

O objetivo principal da barragem, que era represar a água para abastecer as cidades

vizinhas e perenizar o Rio Gavião, na realidade serviu como justificativa para conseguir

apoio e aprovação da sociedade. O que a realidade revela é um processo de

instrumentalização do Estado para atender os interesses das classes dominantes, sobretudo

dos empresários do agronegócio que se estabeleceram na área.

Como afirmam Marx e Engels:

O uso do Estado como instrumento de dominação de classe cria uma contradição adicional: a classe dirigente tem de exercer seu poder em seu próprio interesse de classe, enquanto afirma que suas ações são para o bem de todo (MARX e ENGELS, apud HARVEY, 2001, p. 106).

O Estado desempenha, nesse processo, uma função essencial: a de garantir as

condições para a instalação e manutenção de empresas capitalistas, mediante a construção

da barragem e a possibilidade de retirar a água indiscriminadamente e sem custo. Essa

relação evidencia a parceria que se firmou entre o Estado e o capital, ficando a cargo do

Estado dotar esses espaços com as infraestruturas necessárias para a reprodução do capital.

Percebemos, desse modo, quem concretamente se beneficiou com o barramento do Rio

Gavião.

Conforme analisa Souza, que estudou as transformações territoriais do campo no

Sudoeste baiano, entre elas a Barragem de Anagé:

A ótica do planejamento estatal desrespeita a vida e, em geral, passa por cima dos direitos dos trabalhadores. Estes são os principais penalizados pelo discurso do “progresso” e do “desenvolvimento” objetivado pelo Estado. No âmbito do planejamento, a construção das barragens nem sempre respeita as condições ambientes, e os estudos técnicos realizados, no processo anterior a barragem, muitas vezes, não é posto em prática.

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Esta é uma realidade no que se refere à barragem de Anagé, pois os propósitos iniciais de elaboração do projeto previam uma série de questões que não foram contempladas, a exemplo do abastecimento humano o do acesso a água e a irrigação para as comunidades locais. Desta forma, a construção desta barragem não priorizou atender a população como um todo, mas garantiu possibilidades crescentes da extração da renda da terra para os proprietários fundiários que se estabeleceram, posteriormente, em suas bordas, atendendo ainda os interesses eleitoreiros dos políticos locais (SOUZA, 2008, p. 111).

A mobilização dos camponeses e de seus apoiadores ocorreu porque eles eram

contrários a esse modelo de apropriação da terra e da água, essencialmente desigual. Esse

padrão de desenvolvimento, em que inúmeras pessoas perdem a condição mínima de

sobrevivência, o seu principal meio de produção - a terra- e, com ela, a liberdade e a

autonomia em relação ao seu tempo e a sua condição de trabalhador, não interessava aos

camponeses.

5.5 LAZER E TURISMO: A TERRA E ÁGUA DE ENTRETENIMENTO COM A INSTALAÇÃO DOS SÍTIOS E CHÁCARAS NAS BORDAS DO LAGO

As classes sociais dominantes também desenvolveram outras formas de

territorialização nas margens da Barragem de Anagé, com a apropriação da terra e da água

para fins de lazer e entretenimento, edificando sítios e chácaras que são utilizados para

veraneio. Tais empreendimentos pertencem a pessoas com alto poder aquisitivo, sobretudo

de Vitória da Conquista, que construíram grandes estruturas, inclusive com píeres, cais,

onde são ancorados lanchas, barcos e jet-skis. Nesses casos a utilização da água é

basicamente para passeios com esses instrumentos e também para a prática da pesca

esportiva.

Essa forma de uso da terra e da água está relacionada à apropriação da paisagem

como dimensão bucólica, como espaço artificializado, área com potencialidade paisagística

e de entretenimento.

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Para Marques, essa lógica está fundamentada da seguinte forma:

O contraste de imagens entre o rural e o urbano é reforçado ainda mais com a transformação da paisagem rural em objeto de consumo e a tendência crescente de elaboração e/ou valorização de identidades rurais para atender a exigências mercadológicas. Estas mudanças observadas de modo mais significativo em países desenvolvidos como a França levam à passagem da imagem do campo ligada à produção, à atividade agrícola, para a imagem-consumo. O olhar torna-se mais importante que o fato econômico, o campo é hoje uma paisagem em primeiro lugar (MARQUES, 2001, p. 6).

Tais construções, em sua maioria, encontram-se nas bordas do lago, ocupando áreas

que deveriam ser preservadas, pois, segundo a Resolução do Conselho Nacional do Meio

Ambiente (CONAMA), as faixas de cem metros das margens de rios e barragens devem

ser preservadas como Área de Proteção Permanente (APP). Essas construções apresentam

outra ilegalidade, pois foram edificadas na área de segurança nacional ou área de servidão

do DNOCS. Apesar dessas irregularidades já terem sido denunciadas, nada foi feito,

diferente do que aconteceu com os camponeses, que também ocuparam porção da área de

segurança e que foram expulsos, por força de um processo de reintegração de posse. Ou

seja, na prática a lei é aplicada conforme as conveniências, ou o poder aquisitivo, ou a

classe social, revelando a postura do aparato burocrático do Estado a serviço da classe

social dominante. Essa realidade pode ser comprovada pela estrutura das mansões

apresentadas nas imagens das Figuras 23 e 24:

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Figura 26: Casas de Veraneios nas margens da Barragem de Anagé.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

Figura 27: Casas de Veraneios nas margens da Barragem de Anagé com píer.

Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Autor: PAIVA SILVA, Gedeval.

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168

As terras que antes da barragem se constituíam no espaço de trabalho de centenas

de famílias camponesas, ocupado historicamente para a reprodução desses sujeitos sociais,

atualmente são áreas de entretenimento utilizadas apenas nos finais de semana. Promoveu-

se a expropriação dos trabalhadores de suas terras para construir possibilidades de turismo

privativo.

O relato do membro da Comissão Rural Diocesana da Diocese de Vitória da

Conquista, na época da construção da barragem e que esteve ao lado dos camponeses

atingidos, já alertava para esse processo mesmo no período da construção:

Por isso tínhamos que desconstruir a propaganda que aquela área teria diversos benefícios, iria se modernizar. Mas hoje a gente percebe que toda aquela área virou um espaço de lazer, hoje as pessoas de classe média alta compram lotes ali pra ter um sítio para passar fins de semana, e outros, com áreas maiores, plantam manga, coco, pinha, a lógica de mercado muito presente ali. Então, todo aquele processo transformou drasticamente a vida das famílias camponesas, direta e indiretamente, e as consequências estão visíveis hoje. Mas todo aquele processo de luta e resistência foi fundamental para que organizássemos os camponeses e todos os trabalhadores para continuarem contestando e lutando contra as desigualdades sociais (J. C., pesquisa de campo, 2008).

Essas transformações espaciais revelam o conteúdo das classes e a forma como elas

se apropriam da terra e da água. Assim o território é a expressão material do

desenvolvimento desigual e combinado do espaço geográfico, materializando as

contradições e as desigualdades promovidas por essa obra planejada pelo Estado.

O propósito deste capítulo foi compreender as transformações territoriais

promovidas pela Barragem de Anagé, destacando as diversas contradições decorrentes

dessa obra realizada pelo Estado. Dessa forma foi possível perceber que na prática esse

processo evidencia a centralidade da relação capital versus trabalho, tendo como expressão

espacial o território em disputa. O território, como categoria central e norteadora desse

capítulo, fundamenta-se no entendimento do processo de lutas, disputas e conflitos das

diferentes classes sociais no processo de apropriação da natureza. Nossa análise baseou-se

no sistema de mediação de primeira e segunda ordens formulado por Antunes (2002), para

compreender como as diferentes classes sociais se apropriam da terra e da água.

Para os capitalistas, essa mediação é baseada no valor de troca, constituindo o que

se convencionou denominar “Território de Terra e Água de Negócio”, processo em que o

capital se apossa da terra e da água, visando à acumulação do capital. Verificou-se isso na

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169

instalação das empresas do agronegócio que passaram a desenvolver a agricultura irrigada,

que tem transformado as formas de uso da terra e da água, e na expansão de formas

capitalistas de produção agrícola, baseadas no trabalho alienado, com aumento da

precarização das relações de trabalho, contratos por safra ou pagamento pelos dias de

serviço prestado. A presença das classes sociais dominantes também se deu na construção

de sítios e chácaras, nas áreas próximas à barragem, voltados ao lazer e ao entretenimento

nos finais de semana.

Baseado em outros princípios e sob outras racionalidades, houve também a

territorialização camponesa, expressa no uso da terra e da água como meio e condição de

reprodução social de um grupo que luta pela permanência e resistência na terra e na água.

Para designar esse processo, formulou-se o conceito “Território de Terra e Água de

Trabalho”, em que o uso da terra e da água se dá baseado no valor de uso, ou seja, como

garantia de sobrevivência. Dessa forma, este grupo social concilia o trabalho na terra com

o trabalho na água como meio de garantir sua reprodução social.

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170

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As transformações recentes no espaço geográfico do entorno da Barragem de

Anagé são expressões materiais dos conflitos das classes sociais antagônicas no processo

de apropriação da natureza, que se refletem no desenvolvimento desigual e combinado,

expresso nas contradições que explicitam territórios em disputa.

Nesse processo, o papel do Estado é crucial. Inicialmente, seu discurso é de

mediador dos conflitos, mas, ao se concretizar, revela sua outra face ─ a de instrumento de

classe ─, assumindo a condição de parceiro das classes sociais dominantes, pois, na

maioria das vezes, suas ações são concebidas e executadas para corroborar e garantir a

plena acumulação do capital. No caso mais direto do espaço agrário, há o exemplo da

construção de barragens e da modernização da agricultura, projetos concebidos e

executados pelo Estado, que acirram os conflitos das classes sociais, com agravamento da

questão agrária e precarização das formas de trabalho e das condições de vida da “classe

que vive do trabalho”.

A construção da Barragem de Anagé se insere nesse mesmo processo. Na

realização da pesquisa, pudemos constatar muitas contradições decorrentes dessa obra:

inicialmente revelou-se o caráter de instrumento de classe assumido pelo Estado, que, ao

elaborar o projeto de construção da barragem, já estabelecia, entre seus objetivos

principais, a construção de infraestruturas essenciais à implantação de formas capitalistas

de apropriação da terra e da água, por meio da agricultura irrigada. Tal projeto de

modernização tinha como requisito inicial a destruição e destituição de formas camponesas

de uso da terra e da água, por isso ocorreu, já no início da obra, a expropriação de centenas

de famílias camponesas.

A construção dessa barragem realizada pelo DNOCS representou uma forma

concreta de transformação espacial. O propósito inicial da obra foi represar o Rio Gavião,

maior rio intermitente da Bahia, um dos principais afluentes do Rio de Contas, para torná-

lo perene. Enfim, esse objetivo se concretizou. Após o barramento, o rio foi perenizado no

trecho a jusante da barragem, percorrendo 88 quilômetros, beneficiando milhares de

pessoas.

Assim essa barragem cumpre regionalmente um papel essencial, por ser um

reservatório hídrico de grande porte, em uma porção semiárida do sertão baiano, por isso

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sua importância é inegável. Contudo, é preciso compreendê-la não apenas como um lago,

ou uma obra meramente técnica, já que a sua execução promoveu transformações

econômicas, sociais, culturais e territoriais. Com esse projeto, não mudaram apenas o curso

do rio, transformaram-se as histórias de vidas, a base territorial de muitas pessoas, as

memórias, as relações de convivência, enfim as águas não afogaram apenas as terras, mas,

sobretudo, as relações sociais, as condições de trabalho, o espaço de vida.

Após a barragem “nada é como antes”. Esta expressão foi repetida por inúmeras

pessoas que foram entrevistadas ao longo da pesquisa. Muitos se foram, outros tantos

chegaram, ─ tudo mudou ─, as condições de produção, a paisagem e, principalmente, os

ocupantes das terras, as relações sociais de produção e o conteúdo social.

A concretização do projeto e a construção da obra foram permeadas de

contradições. Já no período da construção, expropriou centenas de camponeses, tendo em

vista que o local escolhido para construir a barragem era de terras devolutas, apesar de

serem ocupadas por décadas por um grande número de pessoas. Algumas dessas famílias

que foram entrevistas durante o trabalho de campo relataram que essas terras já eram

trabalhadas havia mais de quatro gerações, ou seja, uma ocupação secular. Por isso, a

consequência imediata desse projeto foi a inundação de mais de 7 mil hectares de terras,

localizadas às margens do Rio Gavião, terras que eram ocupadas e trabalhadas por mais de

centenas de famílias camponesas.

A maior parte dos camponeses foi atingida parcialmente, o que resultou na grande

redução de suas terras. Outra grande parcela considerável dos camponeses tiveram perdas

totais de suas terras, ou seja, perderam a única condição de trabalho e vida, tendo que

tentar reconstruir a vida, como trabalhadores precarizados, ou simplesmente

marginalizados nas periferias das cidades.

Com o processo de construção da barragem e a ameaça da perda das terras, os

camponeses se mobilizaram para lutar e resistir, assumindo a sua condição de classe social,

ou seja, se forjaram como classe social – quando a consciência de classes emerge, na

defesa de suas terras, a força e a capacidade de luta e resistência se expressam. Nesse

momento se organizaram e foram para o embate e enfrentamento contra os agentes

hegemônicos representados pelo Estado. Entre as estratégias de luta, destaca-se a

paralisação da obra, por causa de um acampamento que construíram na área central das

obras. Essa forma de pressão garantiu aos camponeses o atendimento de algumas

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reivindicações, sobretudo o pagamento das indenizações pelas benfeitorias e a construção

de novas moradias para as famílias que tiveram suas casas inundadas.

Esse processo de mobilização e resistência teve um papel importante na

reorganização dos camponeses e trabalhadores rurais não apenas nas proximidades da obra,

mas em todo o Sudoeste baiano. Contribuiu para a formação e consolidação de

movimentos sociais sediados nessa região, com destaque para o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos Pequenos Agricultores

(MPA), nos quais militam algumas lideranças que tiveram participação direta no contexto

da Barragem de Anagé, a exemplo de Diacísio Ribeiro, que foi um dos protagonistas na

luta dos camponeses de Anagé, e é um dos coordenadores do MPA na Região Sudoeste.

Esse engajamento político contribuiu para a formação de uma consciência dos

camponeses na organização pela resistência na terra, sobretudo daqueles que foram

atingidos parcialmente e que permanecem em suas terras de trabalho. A permanência

camponesa, constatada durante a realização da pesquisa, tem-se desenvolvido de forma

consorciada com outras atividades, como a pesca e pequenos comércios nas barracas

localizadas às margens da barragem. Essas diversificações nas formas de trabalho na terra

e na água são estratégias que evidenciam a necessidade de continuarem sobrevivendo no

campo, após a redução das propriedades e do processo de parcelamento das terras

camponesas com seus descendentes.

Apropriação da terra e da água pelos camponeses/pescadores é orientada pelo valor

de uso, sob uma racionalidade eminentemente não capitalista, constituindo-se o que se

conceitua como território de terra e água de trabalho. Isto é formulado a partir do conceito

de terra de trabalho elaborado por José de Souza Martins (1981), ao se referir às terras

trabalhadas por camponeses, onde não se estabelecem formas de trabalho alienado ou

exploração do trabalho alheio.

Analisamos, também, o processo de luta pela terra, organizado com apoio do MST,

que, em 2005, estabeleceu às margens da barragem um acampamento de trabalhadores

rurais sem-terra. Chegaram ao local naquele período cerca de 80 famílias, que ocuparam a

área por mais de seis anos, até que, em 2010, foi impetrada uma ação de reintegração de

posse, que desalojou as 23 famílias que resistiram durante todo o período da ocupação.

A principal reivindicação do movimento era a transferência de uma área de 270

hectares (denominada área de segurança nacional), sob a responsabilidade do Ministério de

Integração Nacional, órgão do qual o DNOCS é subordinado, para o Instituto Nacional de

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Colonização de Reforma Agrária (INCRA), para que fosse constituído um Assentamento

de Reforma Agrária. Infelizmente isso não ocorreu, e as famílias também não foram

assentadas até a conclusão da pesquisa. Seguem, entretanto, na marcha de luta pela terra

em outras trincheiras de resistência.

A construção da barragem criou ainda as condições para a instalação de

empreendimentos do agronegócio, via agricultura irrigada, que se apossam da terra e da

água, sob a racionalidade capitalista, ou seja, concebem esses elementos da natureza como

mercadoria ou como possibilidade de extrair a renda da terra, por meio da exploração da

força de trabalho alheio. Essa lógica vem constituindo o que entendemos como território de

terra e água de negócio, onde o capital se apossa da terra e da água para explorar a força de

trabalho alheia. No que se refere à água, essa apropriação se dá de forma constante,

irrestrita e sem custos, tendo em vista que a grande maioria das outorgas não tem prazo de

validade estabelecido, além de ser isenta de taxas pela utilização desse recurso, que é

captado vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano.

Outra expressão da territorialização do capital verificada é a apropriação da terra e

da água para fins de entretenimento e lazer, com a instalação de pousadas, hotéis e,

principalmente, de sítios e chácaras, utilizados como casas de veraneio. Essas estruturas

estão edificadas às margens da barragem nas terras que outrora eram à base de reprodução

de camponeses. Tais empreendimentos pertencem a pessoas com alto poder aquisitivo,

originárias, em sua maioria, de cidades vizinhas, principalmente de Vitória da Conquista.

Esses sítios dispõem de uma infraestrutura completa com pequenos cais e píeres, onde são

atracados lanchas, barcos e jet-ski. Algumas construções chegam a custar mais de

R$1.000.000 (um milhão de reais), segundo informações prestadas em entrevistas

realizadas em 2011, a exemplo do depoimento do servidor do DNOCS.

A realização da pesquisa permitiu compreender a expressão material das disputas

das classes sociais pelo e no território, como resultado dos antagonismos das relações

capitalistas de produção. Esses processos revelam as diferentes racionalidades no uso e na

apropriação da terra e da água: de um lado, a permanência camponesa, utilizando-se desses

elementos da natureza como meio e condição de reprodução material, seja na terra, como

agricultores, seja na água, como pescadores. Trata-se de uma apropriação fundamentada no

valor de uso; no sentido inverso, o apossamento da terra e da água, como mercadoria que

possibilita a realização do capital no seu processo produtivo, condição concreta de extração

da renda da terra.

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Ao concluir, podemos eleger a contradição existente no discurso e na prática do

Estado como uma questão fundamental no contexto da pesquisa realizada. O Estado

concebeu o Projeto da Barragem de Anagé como uma ação promotora do desenvolvimento

regional com a difusão do agronegócio, mas que está se efetivando com a expropriação

camponesa, realidade ainda em curso. Há, nessa lógica estatal, o claro propósito de

consolidar e ampliar as formas capitalistas de uso da terra e da água, processo em que as

formas de trabalho alienado, extremante precarizado são essenciais para que se estabeleça

a territorialização do capital.

Realizar esta pesquisa nos permitiu repensar conceitos e práticas, mudar a forma de

ver e analisar o mundo. Assim como a realidade em estudo se transformou com essa obra,

também o pesquisador transforma tanto os seus conceitos previamente estabelecidos, como

a forma de entender a relação teoria-prática. Após a conclusão de um estudo como este,

não somos mais o mesmo, e o que mais nos modificou foi conhecer mais de perto a forma

de vida dos camponeses: humilde, simples, solidária e acolhedora, um jeito de simples de

viver, que demonstra também a coragem, a força, a disposição para a luta e,

principalmente, o amor à terra, que se constitui muito mais que a base de reprodução

material, como disse dona Anelina, “a minha terra é a minha vida”, pois sem a terra não se

pode viver.

Esses ensinamentos e princípios vivenciados em campo evidenciam lógicas contra-

hegemônicas, relações não capitalistas de produção, ainda que inseridas no sistema

capitalista de produção, sistemas de mediação de primeira ordem, onde o trabalho é a

garantia direta da vida, o trabalhador não se estranha com o fruto do seu trabalho. Essa

forma de organização social, permeada de usos e racionalidades distintos da nossa

realidade, parece-nos estranha, impossível de existir, para nós acostumados à lógica

capitalista, extremamente mercenária que sempre visa ao lucro, por isso muitas vezes não

compreendemos esse modo de vida que prioriza a vida, em detrimento do dinheiro.

A permanência e a resistência do campesinato no Brasil evidenciam a negação do

discurso da homogeneização da lógica hegemônica do capital, sobretudo, no campo, como

também a corrente de pensamento que acredita ser o capitalismo a única possibilidade para

a sociedade e para quem vive no campo. Reafirmamos a importância e a atualidade da

questão agrária, com a premência não apenas de uma reforma agrária, mas de uma

reorganização territorial no Brasil, como condição para minorar os problemas sociais,

sobretudo a miséria.

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Dessa forma, a permanência e a resistência do campesinato, pelo simples fato de

ainda continuar existindo nas contradições do capital, evidenciam que outra forma de

organização social é possível, necessária e real. Manter-se desvinculado do mundo do

dinheiro, do lucro e do consumo é por si só revolucionário, num mundo onde o ter passa a

ser mais importante do que o ser.

Aquilo que, para muitos, é visto como arcaico, atrasado, tradicional, na realidade é

a expressão da possibilidade histórica de construção de outra sociedade, baseada na

solidariedade, na ajuda mútua, na forma de uso e apropriação da terra e da água como

condição de garantia da vida, onde o trabalho se reveste na sobrevivência, realização

material e imaterial, e a autonomia representa um entrave à implantação plena do capital

no campo.

A convivência e a vivência com essas pessoas simples, humildes, trabalhadoras e

lutadoras nos animam a continuar lutando e contribuindo com a produção e socialização de

um conhecimento que se referencia na realidade concreta, que pretende ter compromisso

social e político, portanto, não é neutro ou imparcial. Esperamos que esse trabalho colabore

para a compreensão da realidade de um pedaço da Bahia, entender esse lugar e

compreender nele o conteúdo de mundo, ver o geral no particular, o global no local,

perceber que os processos mais amplos de configuram em realidades geográficas muito

particulares, únicas.

Esta não é uma conclusão, pois a realidade não é estática, o movimento é o motor

da história. A sociedade vai se transformando continuamente, produzindo e transformando

o espaço. Assim, o que analisamos foram as temporalidade e espacialidades do contexto

histórico em que vivemos, enfim, uma barragem entre tantas construídas Brasil afora. Essa

obra mudou a vida, o espaço e os rumos de centenas de pessoas, mas muita coisa ainda está

por ser transformada, o que, certamente, suscitará novas investigações e análises.

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