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ANO 22 N 41 2018.2 ISSN 1516-0173 ORGS. ANTÔNIA PEREIRA BEZERRA MARIANA BERLANGA GAYON ANA FLÁVIA HAMAD E DIVERSIDADE

GÊNERO, ARTE E DIVERSIDADE - ppgac.tea.ufba.br · do PSOL eleita com 46.502 mil votos na segunda maior cidade do Brasil, Marielle tinha uma carreira política promissora e estava

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GNERO, ARTE

ANO 22N 41

2018.2

ISSN 1516-0173

OrgS. ANtNIA PereIrA BezerrA MArIANA BerlANgA gAyON ANA FlvIA HAMAd

E DIVERSIDADE

ISSN 1516-0173

SAlvAdOr

ANO 22N 41

P 1-1492018.2

AutOreS

Antonia Pereira, Brbara Pontes, Felipe Henrique Monteiro Oliveira, Joyce Sangolete Chaimsohn, Jnia Cristina Pereira, Laila Rosa, Mariana Berlanga Gayn, Onisaj, Simon Cavalcanti, Simone Requio, Vanessa Ribeiro, Yasmin Nogueira

OrgANIzAO

Antnia Pereira Bezerra, Mariana Berlanga Gayon e Ana Flvia Hamad

cOMISSO cIeNtFIcA

Antnia Pereira Bezerra, Mariana Berlanga Gayon, Ana Flvia Hamad e Laila Rosa

edIO

Daniel Becker Denovaro

GNERO, ARTE E DIVERSIDADE

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA (UFBA)

REITOR

Joo Carlos Salles Pires da Silva

VICE-REITOR

Paulo Csar Miguez de Oliveira

PR-REITOR DE ENSINO DE PS-GRADUAO

Thierry Correa Petit Lobo

PR-REITOR DE PESQUISA, CRIAO E INOVAO

Thierry Correa Petit Lobo

DIRETOR DA ESCOLA DE TEATRO

Luiz Cludio Cajaba

COORDENAO PPGAC

Meran Muniz da Costa Vargens

VICE-COORDENAO

Denise Maria Barreto Coutinho

CONSELHO EDITORIAL

Andr Carreira (UDESC); Antonia Pereira (UFBA); Beti Rabetti

(UNIRIO); Christine Douxami (Univ. Franche Comt); Ciane Fernandes

(UFBA); Denise Coutinho (UFBA); Eliana Rodrigues Silva (UFBA);

Fernando Mencarelli (UFMG); Gilberto Icle (UFRGS); Joo de Jesus

Paes Loureiro (UFPA); Jorge das Graas Veloso (UnB); Makrios Naia

Barbosa (UFRN); Srgio Farias (UFBA).

REVISO

Andrea Rabelo

PROJETO GRFICO E EDITORAO

Nando CordeiroCadernos do GIPE-CIT: Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extenso em

Contemporaneiade, Imaginrio e Teatralidade / Universidade Federal da Bahia.

Escola de Teatro. Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas No. 41,

dezembro, 2018.2. Salvador(BA): UFBA/PPGAC.

149p.;

Periodicidade semestral

ISSN 1516-0173

1. Teatro. 2. Dana. 3. Arte Cnicas. I. Universidade Federal da Bahia.

Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas. II. Gnero.

PPGAC/UFBA/Escola de Teatro

Avenida Arajo Pinho, 292 Campus do Canela

CEP: 40110-150 Salvador/Bahia/BRASIL

Telefone 55 71 3283 7858 [email protected]

www.ppgac.tea.ufba.br

Os Cadernos do GIPE-CIT so uma publicao do Programa de Ps

Graduao em Artes Cnicas, lanado pelo Grupo Interdisciplinar

de Pesquisa e Extenso em Contemporaneidade, Imaginrio e

Teatralidade, criado em 1994. Este grupo de pesquisa deu origem ao

programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da UFBA, em 1997, e

Associao Brasileira de Pesquisa e Ps Graduao em Artes Cnicas

ABRACE, em 1998. Prope-se a divulgar resultados parciais de

pesquisas de seus pesquisadores efetivos e associados, professo-

res e estudantes. Com apoio do CNPq (1997/1999), FAPEX e UNEB

(1999/2000), e, desde 2004, do PPGAC-UFBA e do PROAP- CAPES, os

Cadernos do GIPE- CIT so encontrados em bibliotecas especializadas

e nos endereos acima citados.

Ficha Catalogrfica por Biblioteca Nelson de Arajo - TEATRO/UFBA

2018, Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da UFBA.

Qualquer parte desta revista poder ser reproduzida, desde que cita-

da a fonte.

Os conceitos emitidos em textos assinados so de responsabilidade

exclusiva de seus autores.

O Caderno do GIPE-CIT conta com apoio financeiro da Coordenao

de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior - CAPES - Brasil.

http://www.ppgac.tea.ufba.br

SUMRIO

EDITORIAL 4Antonia Pereira Bezerra1

POTICAS SONORAS DE DISSIDNCIAS E REXISTNCIAS: os (trans)feminicdios e racismos epistmicos e musicais no Brasil 7Laila Rosa

O CORPO ANCESTRAL DA ATRIZ NEGRA NAS ARTES CNICAS DA CIDADE DE SALVADOR 34Yasmin Nogueira, Onisaj (Fernanda Jlia)

PRETRITO DO PRESENTE NA ORDEM PATRIARCAL 50Brbara Pontes, Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti

EL ESPECTCULO DE LA VIOLENCIA O LA POLTICA DEL MIEDO: De los feminicidios a la violencia generalizada en Mxico 68Mariana Berlanga Gayn

TEATRO NO CRCERE FEMININO 82Simone Requio

ENCENANDO GNERO EM ESPAO DE CONFIANA: Experincias pedaggicas do teatro com adolescentes no Colgio Estadual Thales de Azevedo 100Joyce Sangolete Chaimsohn, Antonia Pereira

JUDITH E SUA SOMBRA DE MENINO: recepo de espetculo teatral em escolas de ensino fundamental de Dourados/MS 114Jnia Cristina Pereira

CORPOS DIFERENCIADOS EM PERFORMANCE: Corpo, Diferena e Artivismo 131Felipe Henrique Monteiro Oliveira

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A presente edio dos Cadernos do GIPE-CIT traz importantes e oportunos temas e questes amplamente debatidos, por ocasio do I Encontro sobre Arte, Gnero e Diversidade, que teve lugar no Terreiro da Casa Branca, em Salvador, nos dias 26, 27 e 28 de julho de 2018. O evento envolveu docentes e discentes do Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA), do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA), do Instituto de Humanidades, Artes e Cincias (IHAC/UFBA), do Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM/UFBA), da Universidade Catlica do Salvador (UCSAL) e da Universidade Nacional Autnoma da Cidade do Mxico (UNACM).

Honrando a diversidade reivindicada no ttulo, o evento contou, ainda, com a participao, em mesas redondas e rodas de conversas, de representantes do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas/Salvador (GRUMAP), representantes do Terreiro da Casa Branca/Salvador, alm de reconhecidas atrizes da cena soteropolitana. Essa primeira verso do Arte Gnero e Diversidade teve apoio do Programa de Ps-graduao em Artes Cnicas, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPQ) e da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES/PROEX). Diverso no s no contedo, mas tambm em seu formato de organizao, o I Encontro sobre Arte, Gnero e Diversidade acolheu conferncias sobre (trans)feminicdios, riso, cena e feminilidade, negritude, oficinas de corpo, msica e gnero, performances cnicas e musicais, reunindo terica(o)s, artistas e ativistas de questes to oportunas e emergentes acerca da identidade de gnero.

EDITORIAL

ANTONIA PEREIRA BEZERRA1

1 Atriz e dramaturga, graduada em Licenciatura em Artes Cnicas pela Universidade Federal da Bahia (1992); Mestre (DEA) em Litterature Franaise pela Universit de Toulouse II, Le Mirail (1994); Doutora em Lettres Modernes pela Universit de Toulouse II, Le Mirail (1999) e Ps-Doutora em Dramaturgia pela Universit du Qubec Montral - UQAM (2006). Coordenou o Programa de Ps-Graduao em Artes Cnicas (PPGAC/UFBA) por duas gestes consecu-tivas - binios 2007/2009 e 2009/2011;Coordenou a rea de Artes/Msica na CAPES de abril de 2011 a abril de 2018.Atualmente professora Associada IV da Universidade Federal da Bahia, integra os Grupos de Pesquisa DRAMATIS e GIPE-CIT.

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Nesse esprito, nas pginas que se seguem, o leitor se deparar com abordagens sobre gnero e identidade de gnero, problematizadas na perspectiva dos debates feministas contemporneos, impulsionadas por importantes dilogos com universos distintos; favorecendo profcuos intercm-bios com terica(o)s e/ou profissionais da msica, do teatro e da performance.

Assim, logo no primeiro captulo, a pesquisadora feminista, musicista e compositora, Laila Rosa, nos presenteia com suas Poticas sonoras de dissidncias e reXistncias, examinando criti-camente os (trans)feminicdios e racismos epistmicos e musicais no brasil; nos convidando a discutir a relevncia das abordagens e vivncias reXistentes de corpos perifricos que foram e continuam deslocados e fronteirios, compondo espaos de reXistncia ao racismo e (trans)feminicdios epistmicos em msica. Em seguida, O Corpo ancestral da atriz negra nas artes cnicas da cidade de Salvador, Yasmin Nogueira e Onisaj (Fernanda Jlia), ambas doutorandas do PPGAC/UFBA, exortam reflexo sobre a incmoda invisibilidade das atrizes negras na cena teatral da cidade de Salvador. Interrogando o Pretrito do presente na ordem patriarcal, Brbara Pontes, Doutora pela UCSAL e Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti, Docente e Pesquisadora da UCSAL, dissecam o conceito de patriarcado, considerando a polissemia que o reveste e as va-riaes do mesmo em diversos autores e teorias.

Em El Espectculo de la violencia o la poltica del miedo: de los feminicidios a la violencia gene-ralizada en Mxico, Mariana Berlanga Gayon, Professora da Universidade Autnoma da Cidade de Mxico, nos relata a propagao da violncia naquele pas, nos ltimos dez anos, ressaltando o assassinato de mulheres da Cidade Juarz, Chihuahua e evidenciando a reproduo da violncia sobre os corpos mais frgeis, como ponto alvo para se propagar uma poltica do medo.

J Simone Requio, Doutoranda do PPGAC/UFBA, em Teatro no Crcere Feminino, discute a diversidade e singularidade das relaes interpessoais no espao de restrio em Salvador: Conjunto Penal Feminino (CPF), dialogando com e sobre as mulheres presas na perspectiva po-ltico-criativa do Teatro das Oprimidas (Brbara Santos e Augusto Boal). Com Encenando g-nero em espao de confiana, de Joice Sangolete, Mestre pelo PPGAC/UFBA e Antonia Pereira, Docente e Pesquisadora do PPGAC/UFBA, o leitor se aproxima de experincias pedaggicas do teatro com adolescentes a partir da aplicao de tcnicas do Teatro do Oprimido, em dilogo com questes de gnero, sexualidade e raa, bem como com a problematizao de conceitos como transexualidade, gnero e identidade.

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No penltimo captulo, a Doutoranda Jnia Pereira (PPGAC/UFBA e FGD) analisa a montagem de Judith e sua sombra de menino e reflete sobre a recepo de espetculo teatral em escolas de ensino fundamental de Dourados/MS, questionando as dificuldades e procurando perceber no s os limites, mas tambm as possibilidades da abordagem de questes de gnero nas escolas. Finalmente, em Corpos diferenciados em Performance, Felipe Monteiro, Doutor pelo PPGAC/UFBA, examina os conceitos de corpo, diferena e artivismo, e nos lembra da importncia da participao e presena insubordinada dos performers com corpos diferenciados, enquanto criadores, criaturas e criaes no campo da arte da performance.

Interrogando a noo de gnero em sua interseccionalidade e diversidade, como repetio de atos, gestos e signos do mbito sociocultural que reforam a construo dos corpos para alm do binarismo masculino e feminino, a presente verso dos Cadernos do GIPE-CIT fornece uma significativa amostragem das reflexes e problemticas encampadas por pesquisadoras, artistas e ativistas de questes to oportunas e emergentes, nos sinalizando, com suas reflexes, que:

Gnero e identidade no so criaes ideolgi-cas, so constructos sociolgicos e culturais;

A violncia contra os corpos que escapam dos padres regulat-rios e das tecnologias hegemnicas do poder existe e, quando no ani-quila, condena excluso muitos homens e mulheres;

A violncia contra o gnero no causa apenas excluso e opres-so, mas tambm aniquilamento de sujeitos e de suas identidades.

Proporcionar ao leitor uma amostragem desses importantes debates, cristalizados aqui, na forma de artigos, poder fornecer, se no ferramentas concretas, no mnimo elementos e motivao para refletir sobre polticas e condutas de enfrentamento das diversas opresses de gnero e de identidade. O aporte destas discusses e a consequente exortao reflexo legitimam e tornam e oportuna a presente edio dos Cadernos do GIPE-CIT.

POTICAS SONORAS DE DISSIDNCIAS E REXISTNCIAS: os (trans)feminicdios e racismos epistmicos e musicais no Brasil

LAILA ROSA

Musicista, compositora, cantora, instrumentista e pesquisadora pernambucana. Graduada em Licenciatura em Msica pela Universidade Federal de Pernambuco (2002), mestre (2005) e doutora em Msica - etnomusicolo-gia pela Universidade Federal da Bahia (2009), com bolsa CAPES de doutorado sanduche de 1 ano realizado na New York University (Nova York, 2007-2008), onde esteve vinculada ao Center for Latin American and Caribbean Studies (CLACS) e ao Programa de Ps-Graduao em msica. Desde 2010 professora adjunta da Escola de Msica, do Programa de Ps-Graduao em Msica, onde tambm coordenadora desde 2016, e do Programa de Ps-Graduao em Estudos sobre Gnero, Mulheres e Feminismo, ambos da UFBA. pesquisadora permanente do NEIM/UFBA (Ncleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher), e tambm pesquisadora dos grupos GEMBA (Grupo de Estudo e Pesquisa de Msica na Bahia)/UFBA e do Grupo Estudos de Gnero, Corpo e Msica/UFRGS. coorde-nadora da Feminaria Musical: grupo de pesquisa e experimentos sonoros, que integra a linha da pesquisa Gnero, Cultura e Arte do NEIM.

RESUMO

A expresso reXistncia utilizada pela ativista e transfeminista Viviane Vergueiro (2016) cai como uma luva para compreender de que forma os estudos feministas, queer e decoloniais tm a contribuir sobre o debate de gnero numa perspectiva interseccional que permeia o campo da materialidade musical, dos artivismos feministas e tambm o campo da produo de conhecimento sobre msica no Brasil.A mesma considera as articulaes entre a categoria gnero e as relaes tnicorraciais, dissidncias sexuais e demais marcadores sociais da diferena, tais quais, classe social, gerao, acessibilidade, dentre tantos outros. Estas elaboram e so elaboradas por produes de conhecimento e engajamentos com sujeitxs, comunidades e grupos dissidentes que permanecem invisibilizados no campo dos estudos sobre msica no Brasil. Deste modo, interessa aqui discutir sobre a relevncia das abordagens e vivncias reXistentes de corpos perifricos que foram e continuam deslocados e fronteirios, compondo espaos de reXistncia ao racismo e (trans)feminicdios epistmicos em msica, seja atravs dos seus artivismos, seja atravs de sua produo de conhecimento de cunho mais terico.

PALAVRAS-CHAVE:

(Trans)Feminismos decoloniais.

Racismo epistmico em msica no Brasil.

Artivismos feministas.

ABSTRACT

The expression reXistence used by the activist and transfeminist Viviane Vergueiro (2016) contributes to understand how the Feminist, Queer and Decolonial studies have deal with the gender debate, under an intersectional approach that permeates the field of musical materiality, and specifically, the knowledge production on Music in Brazil. It considers the articulation between the category of gender and ethnic-racial perspective, sexual dissidences and other social markers of difference, such as social class, generation, accessibility, among others. Those categories elaborate and are elaborated by knowledge production and political engagements towards/with communities and dissident groups that remain invisible in the field of the knowledge production on Music in Brazil. In this way, it is interesting to discuss the relevance - from the existing theoretical approaches to the musical and creative strategies of these peripheric bodies that have been and continue to be displaced and frontier, composing spaces of rexistence against racism and (trans) feminicide epistemologies in music, both in its Arctvism and Knowledge Production in terms of theoretical approaches.

KEYWORDS:

Decolonial (Trans)Feminicides.

Epistemological (Trans)Feminicide and Racism in Music.

Feminist Arctivism.

Eu no consigo falar de amor:das dissidncias e reXistncias para o (trans)feminicdio como

categoria musical1

Eu no consigo falar de amor/ No consigo/ Isso me sufoca/ Isso me faz perder o ar/

Me faz perder o eixo/ Me exortar

Eu no consigo falar de amor/ Estou imersa na desgraa/ O amor que consigo gritar/ para mandar se fuder/ querer a Guerra/ At me perder/ Entre lanas e farpas/ Trincheiras e armas/ falar de amor que di

Eu no consigo mais gritar o amor/ Por que o amor que eu conheo/ Sangra/

Arranca do meu peito o pulsar/ Eu quero falar desse amor Que o amor que conheo/

Eu no sei me dissolver/ Nesse amor romntico/ Mas eu sinto/ Tranbordo aqui/ Em mim/Eu mar

Esse jeito infernal/ De equilibrar no sentido entre o amor e odiar/ Entre a ausncia de armas/ E a vontade de atirar/ Entre amor perdido/E o dio sucumbido/ Entre a verdade rasgada/ O sonho perdido/ Entre os desejos anulados/ E os abusos cometidos/ Entre o jogo roubado

Aqui no pulsa mais um corao/Pulsa uma cova/ Uma alcva coberta de rancor/

Que desaprendeu acreditar/ Na desgraa do amor.

Letcia Argolo

1 Antes de iniciar esta leitu-ra, ouamos o Hino Nacional cantado na lngua Tikuna por Djuena Tikuna, cantora indgena, para uma escuta--respiro de esperana. *Antes de iniciar esta leitura, oua-mos o Hino Nacional cantado na lngua Tikuna por Djuena Tikuna, cantora indgena, para uma escuta-respiro de esperana. Disponvel em: . Acesso em: 20 ago. 2018.

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10Em performance realizada durante o 3o Encontro

Novembro Negro nas Artes2, a poetisa e ativista negra baiana, Letcia Argolo, declarou que a poe-sia a sua rea de pesquisa cotidiana. Letcia, que professora da Rede Pblica de ensino em Salvador, majoritariamente negra e perifrica, afirma que a nica forma de no perder a placa a poesia, que no me faz silenciar, a poesia, que esse lugar de resistncia....Naquela manh, a performance de Letcia foi propositadamente gritante e incmoda por sua visceralidade que sabe das coisas. Dela exalava sangue e indignao. Os poros de sua poesia sangravam denun-ciando o racismo, o sexismo e as LGBTTQI-fobias que matam a cada dia.

forte gritar no consigo falar de amor ou que desaprendeu a acreditar na desgraa do amor..., mas, infelizmente, uma verdade que no podemos abrir mo quando falamos sobre experincias dolorosas de violncia em suas diversas faces. o luto. O grito. O desabafo. A catarse potica. preciso ter coragem e leveza para falar sobre as reXistncias de cada dia, sobre os (trans)femini-cdios que se estruturam numa lgica de extermnio fsico, psicolgico e tambm simblico, que inclui o musical3. A poesia de Letcia , portanto, catarse necessria de enfrentamento, assim como a militncia no campo dos direitos humanos: indgenas, das populaes negras, das mulheres em sua diversidade, das pessoas LGBTTQI, dentre tantas outras. Estas materializam experincias musicais e artivistas diversas que esto ancoradas pelas epistemologias feministas decoloniais, antirracistas e queer em msica. So dissidncias e reXistncias que nutrem e fortalecem uma produo de conhecimento engajada em relao a questes que gritam violentamente aos nossos tmpanos, reverberam em nossos corpos e nos atingem de maneira desigual4.

Esta produo de conhecimento dissidente e reXistente em msica no prope dar voz, mui-to menos empoderar um grupo ou movimento, pois cada um/a possui sua voz, se empodera, canta, toca e grita. As dissidncias existiram e existem, lutaram e lutam por condies sociais e polticas justas desde sempre. Ao mesmo tempo, cada um/a silencia ou pode ser silenciada/o particularmente, individualmente enquanto sujeita/o, pois o (trans)feminicdio atinge o plano f-sico, matando e silenciando a ns mulheres cis e trans, diariamente. Contudo, as nossas causas e engajamentos coletivxs operam como poderosas sementes da esperana e do engajamento pela renovao e reXistncia dentro destas interlocues dissidentes5.

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Ao mesmo tempo em que, no Brasil, estamos vivendo uma onda de terror poltico e caa s bruxas atualizada pelo Programa e agora projeto de lei Escola sem Partido6, considerado pelas Naes Unidas como ameaa aos direitos humanos e protagonizada pelos setores conservado-res de ultra-direita, que se engajam na suposta luta contra a Ideologia de gnero7 . A mesma atravessada pela censura liberdade de ensino, pelo sexismo e LGBTTQI-fobias, ignorando a realidade dos (trans)feminicdios e racismos como estruturantes da sociedade brasileira.

O Escola Sem Partido emprega o conceito de gnero de maneira profundamente distorcida, adicionando ideologia de gnero, sem considerar a historicidade terica e poltica do termo para o campo dos direitos humanos como um todo. O conceito de gnero problematiza as relaes de poder e desigualdade de direitos imbricadas nas mais diversas culturas e sociedades (SCOTT, 1990).8 Diante deste panorama aterrorizante, ainda mais importante falarmos sobre gnero numa perspectiva interseccional enquanto agenda social, poltica, cultural e artstica/artivista coletivas.

Em relao ao campo da materialidade musical, especificamente, antes de haver som, msica, h um corpo. Este corpo histrica e politicamente situado em termos de identidade de gnero, tnicorracial, orientao sexual, classe social, acessibilidade, regionalidade, nacionalidade, reli-gio, etc... que conferem a sua materialidade sonora, representando (ou no) corpos considera-dos dissidentes. E assim tambm me situo nos termos dos saberes localizados, propostos por Donna Haraway (1995), para tecer uma escrita musical corporificada9 dentre corpos, sonoridades e corpus tericos dissidentes em relao s hegemonias branca, masculina, heterossexual, cis-gnera, capacitista, etarista, etc.10, na esperana de que construamos uma sociedade e Estado de direitos e justia social, que no atual momento poltico no Brasil, encontra-se claramente ameaada, inclusive, o direito vida e expresso para todxs.

Celebro o bem viver trazido pelas mulheres negras em Marcha e no apenas o sobreviver11. E nesta perspectiva que a expresso reXistncia utilizada pela transfeminista Viviane Vergueiro (2016) contribui para pensarmos sobre o seu potencial de fortalecimento das redes por serem afetivas e polticas.

De todas maneiras, se neste caminho aponto enfaticamente que a efetividade

(poltica, em particular) dos conhecimentos que se constituem como

estudos queer tem apresentado limitaes, fao-o no sentido de respeitar

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profundamente a genealogia destes estudos, em suas rexistncias, em suas

criticidades e contribuies crticas para re+definies e transformaes

no campo de gneros e sexualidades, especialmente em termos da esfera

acadmica, no caso. Suas proposies inspiram, em diferentes maneiras,

atuaes mais veementes em relao aos cistemas acadmicos. Portanto,

mesmo entre desconsideraes nos estudos queer em relao a algumas

questes institucionalizadas de cistemas dominantes de gnero e perspectivas

acrticas relativas a injustias epistmicas interseccionais que estruturam os

cistemas acadmicos, considero necessrio fazer estes apontamentos crticos

concomitantemente ao reconhecimento das vrias importncias que os estudos

queer tiveram durante o desenvolvimento deste trabalho. Importncias que se

expressaram no somente do ponto de vista mais diretamente terico+poltico,

mas tambm enquanto possibilidade de construo de redes afetivas de

solidariedade e aliana. (VERGUEIRO, 2015, p.99, grifos meus).

A autora considera as rexistncias como enfrentamentos aos cistemas12, e nestes termos que proponho uma ampliao para uma escuta musical/sonora inclusiva, que no apenas reconhea protagonismos musicais de corpos dissidentes, como se comprometa com uma produo de conhecimento e artivismo antissexista, antirracista e pelo respeito diversidade humana.

A invisibilizao, geralmente pautada pela desqualificao ancorada na perspectiva do temtico e do especfico em detrimento do geral e universal, consiste em (trans)feminicdio e racismo epistmicos e musicais, visto que hierarquiza as opresses, invisibilizando sujeitxs e protagonis-mos musicais subalternizados. Defendo, portanto, que (trans)feminicdio deve ser compreendido tambm como categoria musical para debatermos tais dissidncias e reXistncias que esto para alm do conceitual.

Estas contemplam corpos, identidades, vivncias, histrias de vida, enfrentamentos diversos. Contemplam ainda a materialidade musical atravs de temas, afetividades, sonoridades, repre-sentatividades, repertrios musicais, produes artsticas, artivismos, etc,13 se arriscando por caminhos terico-metodolgicos e processos criativos corporificados experimentais e colabo-rativos, problematizando o lugar de autoridade masculina branca e heterossexual da autoria e de suas formataes hegemnicas que se pretendem universalizantes e neutras.

Amoras de rio nas mars que vm: silenciamento x invisibilizao14

Que nossas redes e coletividades formem amoras cada vez mais intensas e significativas, em

resistncia a todas normatividades.

Amoras de rio./ So lgrimas o que trago/ Meio a risos de desagravo/

Junta a guas de indignaes.

No estou mais somente na ausncia do indizvel/ Na morte do filho idealizado/ Nem tampouco nos corpos que retratam/ Retalhados em vidas e mortes.

Rio de nome/ Rio de nomes/ Rios de nomes/ Rios que me atravessam a vida/

Me navegam em tristezas e alegrias/ E alguns deles agora fazem a mulher em mim,

Em solidariedades e rexistncias./ Somos atlnticas/ Juntas s mars que vm.

Viviane Vergueiro (2016, p.225-6)

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Inspirada pelas mars que vm de Viviane Vergueiro (2016), proponho o aprofundamento e navegao nesta importante e transformadora interlocuo que busca as articulaes entre a categoria gnero e as relaes tnicorraciais, dissidncias sexuais e demais marcadores sociais da diferena no campo do sonoro, do musical.

O debate sobre gnero fundamental, considerando que a sua diversidade, especificidade e ca-rter social, cultural e poltico so estruturantes para compreendermos o musical e fortalecermos interlocues de maneira mais equnime, buscando estratgias criativas para abordarmos estas questes atravs da materialidade de nossos artivismos, elaborando outras perguntas, metodo-logias e processos criativos, sobretudo pautados pela horizontalidade e cocriao. Este dever incluir as mulheres (em sua diversidade) e as identidades de gnero e sexualidades dissidentes como importantes questes, presenas, corporalidades a serem ouvidas, sentidas, debatidas e aprofundadas com as pessoas que vivem cotidianamente esta realidade de ser dissidentes num contexto de nao patriarcal heterossexual, classista e racista.

No campo dos estudos sobre msica e antropologia musical, a questo do multiculturalismo presente, priorizando a perspectiva da etnicidade, classe social e da diferena. Contudo, h uma forte relao com o que a autora dominicana Ochy Curiel15 define como regime heteros-sexual. Ao abordar o contexto colombiano, a mesma problematiza que embora a perspectiva do multiculturalismo tenha permitido um espao poltico, social e cultural a grupos sociais antes invisibilizados, como tambm o caso no Brasil, por outro lado, fortaleceu uma retrica de au-tenticidade cultural com vistas ao reconhecimento pelo Estado, atravs de polticas pblicas, que impactam negativamente a vida das mulheres e lsbicas, especificamente (CURIEL, 2013, p.162 e 164), invisibilizando estas agendas.

Aprendi com a intelectual negra Anni Carneiro16 que no h, nem nunca houve silenciamento no seu sentido estrito. Embora exeram um poder significativo atravs de suas estruturantes violn-cias, a sociedade, a academia, a colonialidade de saber e de poder e o capitalismo no calaram as vozes dissidentes, no caso das mulheres negras. As mesmas sempre ecoaram e foram para o enfrentamento sem pedir licena de ocupar espaos que tambm so seus por direito, ainda que historicamente negados.

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A partir desta perspectiva, chegamos ao princpio da anterioridade, de saberes e passos que vm de longe (WERNECK et al., 2005). Nestes passos, as mulheres e sujeitxs dissidentes desde sempre se colocaram e sim, falaram, gritaram, escreveram livros e poemas, compuseram can-es, lideraram comunidades inteiras e se engajaram politicamente. No h um silenciamento, portanto, e sim uma invisibilizao contnua de toda esta produo de conhecimento, cultural, cosmolgica, sagrada, artstica, musical que englobam vivncias e histrias de vida que j existe h muito tempo.

Os movimentos sociais que vm transformando a academia ao trazer novas perspectivas e aes afirmativas17 como os estudos de gnero e diversidade, bem como, de uma produo artstica engajada feminista antirracista e LGBTTQI com a expressiva (e ainda invisibilizada) produo de artistas e compositoras negras, indgenas e LGBTTQI, vm traduzindo pautas identitrias, afetivas e polticas em escolhas estticas dissidentes.

Claro que muito h de ser feito ainda, mas j existe em grande amplitude. Por que seguir igno-rando esta produo, estes corpos, estas experincias, especificamente? Por que falar sobre mulheres e/ou pessoas trans e suas produes e protagonismos musicais significa falar de parte e no do todo, quando representamos mais da metade da populao e a maioria esmagadora das produes, citaes, repertrios e referncias, ainda marcadamente masculina, bran-ca, cisgnera e heterossexual e se pretende universalizante? Como mudar esta perspectiva? Talvez um primeiro passo seja buscar reconhecer o que j existe a respeito, toda uma produo significativa de conhecimento e arte engajada, feminista, antirracista e queer. Onde esto as mulheres, sujeitxs dissidentes e seus protagonismos? Onde esto as autoras? Quantas delas so negras e/ou indgenas? Quantas delas so pessoas LGBTTQI? So algumas perguntas que seguem ecoando...

Avante ecoando...: reconheo e honro as memrias de Cludia,

Dandara, Mayara e Marielle: o que estes corpos tm em comum?18

Nove tiros em uma quarta

Nove, nmero sagrado daquela que

faz da insegurana a sua fora e do risco de morrer,

seu alimento

Nove, dela,

a que transita em dois mundos

O il de quem no dorme.

#MariellePresente

Emanuelle Aduni Ges

http://#MariellePresente

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Enquanto escrevo este artigo no Vale do Capo, Chapada Diamantina, com acesso precrio internet, recebo a seguinte mensagem de uma querida amiga, compositora negra e recifense que h alguns anos reside em Nova York, Syrlane Albuquerque:

- Laila eu estou horrorizada, com tanta dor pela morte de Marielle como eu posso

ajudar para que isso pare? Estou desolada!

E eu, sem nem saber ainda da histria, de Marielle Franco19, respondi:

- Amiga linda e querida, nessas horas a gente se firma na luz e no nosso

propsito divino aqui, que igualmente poltico. Como ajudar? Seguimos unidas

em movimento. As mulheres unidas sempre assustaram e ainda asssustam

pelo poder que elas tm quando se unem e se articulam, levando e praticando

mensagens de conscincia e justia social pelos nossos direitos. Voc j faz parte

deste movimento. seguir com confiana. Deixa a tristeza vir, limpa o corao,

deixa a tristeza ir e procure se ancorar na energia do grau mais elevado do seu

ser. Existe muita maldade no mundo, mas tambm existe muito amor, muitas

transformaes e muitas curas. A gente abala, balana, mas no verga. Como o

bambu. Seguimos firmes, flexiveis e frgeis tambm. A vida uma grande escola

de amor e de resilincia. Vamos firmar nossos passos em caminhos de flor. Luz e

amor para Marielle e sua famlia. Te envio energias de cura e de amor desde o Vale

do Capo, onde estou vivenciando um profundo processo de cura. Te amo. Xero.

Quando saio de casa, ainda sem saber quem era Marielle e o que realmente aconteceu, encon-tro minha vizinha, Aline, plida e chorosa, compartilhando que estava arrasada, que a conhecia, Marielle costumava frequentar sua casa. Cogitei entrar nas redes sociais para saber detalhes do acontecido, mas optei por me resguardar naquele momento. Estava sozinha no meio do mato em profundo processo de meditao, limpeza e cura e sabia que seria mais um caso brutal de femi-nicdio, e no somente, est claro que foi um caso de feminicdio, lesbofobia e racismo polticos. Alm do mais, estas no so questes temticas e inditas de pesquisa, so materialidades em corpos femininos, negros, indgenas e/ou dissidentes continuamente violadas, exterminadas e invisibilizadas que nos atingem e abalam profundamente.

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Quando falamos sobre o tema da violncia, falamos de corpos e da empatia poderia ter sido eu tambm, embora reconhea que os privilgios da branquitude, da classe social, da cisgeneridade e da heteronorma me preservam cotidianamente de muita violncia. Por outro lado, os mesmos me posicionam num lugar de conscincia deste privilgio e do que fao com ele para que real-mente construamos uma produo de conhecimento e artstica/artivista pela transformao social que inclua os direitos humanos e das mulheres. Estou falando do lugar da corresponsabi-lidade e da empatia

Deste lugar decidi escrever aqui sobre Marielle, mulher negra, lsbica e perifrica, liderana poltica, ativista dos direitos humanos, vereadora e tantas outras credenciais, assassinada por denunciar a violncia policial e do trfico nos morros do Rio de Janeiro. Trago tambm as memrias da mu-sicista branca Mayara Amaral, pesquisadora sobre mulheres compositoras para violo, estuprada e assassinada por trs homens, claramente um caso de feminicdio; Cludia Ferreira da Silva, mulher negra, auxiliar de limpeza brutalmente morta e arrastada por um carro da Poltica Militar e Dandara dos Santos, travesti brutalmente assassinada, cujo assassinato, claramente, foi movido por transfeminicdio, tendo sido registrado e postado nas redes sociais. Os resumos das hist-rias de violncia vivenciadas por estas mulheres seguem por ordem cronolgica na tentativa de mostrar como as questes levantadas at aqui se materializam em nossas vidas cotidianamente e a importncia de nos colocarmos diante delas de maneira consciente e engajada20.

2015 - Cludia Ferreira da Silva Ferreira, 38 anos, auxiliar de limpeza, morta arrastada por carro da PMTexto de Camilla de Magalhes Gomes21.

2014 ainda est no incio, mas, aps trs meses, parecem proliferar as notcias

que criam em ns a sensao de: nunca vi coisa to horrvel. Nunca vi, at

que a prxima barbrie seja cometida e nos convena que isso deve mesmo

ser apenas parte do cotidiano. Nesse caminho, ficamos anestesiados e

acostumados, at que no se tenha mais nada a dizer, apenas um suspiro e um

muxoxo: mais um.

Na manh do dia 17 de maro, comea a ser divulgado na internet o link de um

vdeo com o ttulo: Viatura da PM arrasta mulher por rua da Zona Norte do Rio.

Apertei o play e no passei de dois segundos. No recomendo. Mas a leitura da

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notcia essencial. Mais do que isso: a leitura crtica do que ela representa

essencial.

Na descrio:

Eram cerca de 9h desse domingo, quando uma viatura do 9 BPM (Rocha Miranda)

descia a Estrada Intendente Magalhes, no sentido Marechal Hermes, na Zona

Norte do Rio, com o porta-malas aberto. Depois de rolar l de dentro e ficar

pendurado no para-choque do veculo apenas por um pedao de roupa, o corpo

de uma mulher foi arrastado por cerca de 250 metros, batendo contra o asfalto

conforme o veculo fazia ultrapassagens. Apesar de alertados por pedestres e

motoristas, os PMs no pararam. Um cinegrafista amador que passava pelo local

registrou a cena num vdeo.

A mulher arrastada era Claudia Silva Ferreira, de 38 anos, baleada durante

uma troca de tiros entre policiais do 9 BPM e traficantes do Morro da Congonha,

em Madureira, enquanto ia comprar po. Em depoimento Polcia Civil, os PMs

disseram que a mulher foi socorrida por eles ainda com vida, e levada para o

Hospital Carlos Chagas, em Marechal Hermes, mas no resistiu. J a secretaria

Estadual de Sade informou que a paciente j chegou unidade morta. Ela levou

um tiro no pescoo e outro nas costas. (Grifos meus).

2016 Dandara dos SantosNo dia 15 de fevereiro de 2017, Dandara dos Santos , de 42 anos, foi assassinada

de maneira violenta por cinco homens na cidade de Fortaleza, no Cear .

Em vdeo compartilhado nas redes sociais por um dos agressores, a travesti

aparece sendo espancada com tapas, chutes, alm de receber pauladas por

todo o corpo. Um ano depois, o promotor de Justia Marcus Renan Palcio, da 1

Promotoria do Jri, afirma que os rus iro a jri popular.

Nas imagens chocantes do assassinato da travesti, ainda possvel ver que

os agressores tentam obrig-la a subir em um carrinho de mo, o que Dandara

no consegue fazer por causa dos ferimentos. O caso dela gerou repercusso

internacional e j considerado uma exceo da Justia, uma vez que menos

de 10% dos homicdios neste universo so investigados, segundo aponta

Palcio.22 (Grifos meus).

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2017 - Mayara AmaralQuem Mayara Amaral?

Minha irm caula, mulher, violonista com mestrado pela UFG e uma dissertao

incrvel sobre mulheres compositoras para violo. Desde ontem Mayara Amaral

tambm vtima de uma violncia que parece cada vez mais banal na nossa

sociedade. Crime de dio contra as mulheres, contra um gnero considerado

frgil e, para alguns, inferior e digno de ter sua vida tirada apenas por ser

jovem, talentosa, bonita... por ser mulher. Mais uma vez a sociedade falhou e

uma mulher, uma jovem professora de msica de 27 anos, foi outra vtima da

barbrie de homens que no podem nem serem considerados humanos. Foram

trs, trs homens contra uma jovem mulher. Um deles, Luis Alberto Bastos

Barbosa, 29 anos, por quem ela estava cegamente apaixonada, atraiu-a para

um motel, levando consigo um martelo na mochila. L, ele encontrou um de

seus comparsas. Em uma das matrias que noticiaram o crime, os suspeitos

dizem que mantiveram relaes sexuais com minha irm com o consentimento

dela. Para que o martelo, ento, se era consentido? Estranhamente, nenhuma

das matrias aparece a palavra ESTUPRO, apesar de todas as evidncias. s

vezes tenho a sensao de que setores da imprensa esto tomando como

verdade a palavra desses assassinos. O tratamento que do ao caso me

indigna profundamente. Quando escrevem que Mayara era a mulher achada

carbonizada que foi ensaiar com a banda, ela est em uma foto como uma

menina. Quando a suspeita envolvia namorado, hipersexualizam a imagem

dela. Quando a notcia fala que a cena do crime um motel, minha irm aparece

vulnervel, molhada na praia. Quando falam da inspirao de Mayara, associam-

na com a histria do pai e av e a foto muda: ela com o violo, porm com sua

face cortada. Esse tipo de tratamento no representa quem minha irm foi. Isso

desumanizao. Por favor, tenham cuidado, colegas jornalistas. Para nossa

tristeza, grande parte das notcias d bastante voz aos assassinos e fazem coro

falsa ideia de que os acusados s queriam roubar um carro. Um carro que foi

vendido por mil reais. Mil reais. Um Gol quadrado, ano 1992. Se eles quisessem

s roub-la, no precisariam atra-la para um motel. Um dos assassinos, Lus,

de famlia rica, vai tentar se livrar de uma condenao alegando privao

momentnea dos sentidos por conta de uso de drogas. No bastando matar a

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minha irm da forma que fizeram, agora querem destruir sua reputao. Eis a

verso do monstro: minha irm consentiu em ser violada por eles, elas decidiram

roub-la, ela reagiu fisicamente e eles, sob o efeito de drogas, golpearam-na

com o martelo e ela morreu por acidente. Pela memria da minha irm, e pela

de outras mulheres que passaram por esta mesma violncia, no propaguem

essa mentira! Confio que a Polcia e o Ministrio Pblico no aceitaro esta

narrativa covarde, e peo a solidariedade e vigilncia de todos para que a

justia seja feita. Na delegacia disseram minha me que uma outra jovem

j havia registrado uma denncia contra Lus por tentativa de abuso sexual...

Investiguem! Se essa informao proceder, este mais um crime pelo qual ele

deve responder. E uma prova de como a justia tem tratado as queixas feitas

por ns, mulheres. Se naquela ocasio ele tivesse sido punido exemplarmente,

talvez minha irm no tivesse sofrido este destino. Foi tudo premeditado: ela foi

estuprada por dois desumanos. O terceiro comparsa no menos monstruoso

ajudou a levar o corpo da minha irm para um lugar ermo, e l atearam fogo

nela, como se a brutalidade das marteladas no crnio j no fosse crueldade

demais. Minha irm foi encontrada com o corpo ainda em chamas, apenas de

calcinha e uma de suas mos foi a nica parte de seu corpo que sobrou para

que meu pai fizesse o reconhecimento no IML. Parece que ela fazia uma nota

com os dedos, disse meu pai pelo telefone. A confirmao veio logo depois, com

o resultado do exame de DNA. Era ela mesmo e eu gritei um choro sufocado. Eu

vou dedicar o meu luto memria da minha irm, e a no permitir que ela seja

vilipendiada pela verso imunda de seus algozes. Como tantas outras vtimas de

violncia, a Mayara merece JUSTIA no que isso v diminuir nossa dor, mas

porque s isso pode ajudar a curar uma sociedade doente, e a proteger outras

mulheres do mesmo destino. (Grifos meus).

Pauliane Amaral23.

2018 - Marielle FrancoNOTA URGENTE | ANISTIA INTERNACIONAL

O Estado, atravs dos diversos rgos competentes, deve garantir uma

investigao imediata e rigorosa do assassinato da vereadora do Rio de Janeiro

e defensora dos direitos humanos Marielle Franco. Marielle foi morta a tiros

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na noite desta quarta feira, 14 de maro, no bairro do Estcio na cidade do Rio

de Janeiro. Marielle Franco reconhecida por sua histrica luta por direitos

humanos, especialmente em defesa dos direitos das mulheres negras e

moradores de favelas e periferias e na denncia da violncia policial. No podem

restar dvidas a respeito do contexto, motivao e autoria do assassinato de

Marielle Franco. (Grifos meus).

#JustiaParaMarielle24

Nota do Neim/UFBA sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes

O Neim/UFBA (Ncleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher) vem a

pblico manifestar sua indignao, tristeza, repdio e profundo pesar diante dos

assassinatos de Marielle Franco e de Anderson Gomes. As mortes, execues

premeditadas, ocorreram na ltima quarta-feira (14/03) e nos faltam palavras

para descrever tamanha brutalidade. Como nos despedirmos dessa mulher

negra, feminista, bissexual, vinda da comunidade da Mar, de esquerda socialista,

que lutava cotidianamente em defesa da populao favelada e acreditava em

um mundo livre de desigualdades? Uma mulher que ousou ocupar um espao

na poltica institucional, to pouco afeito presena de pessoas que no sejam

brancas, heterossexuais, homens e cisgneros, para pautar os direitos humanos.

A morte de Marielle entra nas estatsticas da guerra contra os pobres que leva ao

genocdio da populao negra. H quatro anos, nessa mesma semana e tambm

no Rio de Janeiro, Claudia Silva Ferreira foi baleada e morta ao ser arrastada por

um carro da Polcia Militar. Um levantamento feito em novembro de 2017 pelas

Naes Unidas demonstrou que a cada 23 minutos um jovem negro assassinado

no Brasil. E tudo isso acontece em um contexto de interveno militar federal,

cuja tendncia ampliar ainda mais essa violncia Marielle se posicionou

veementemente contra a medida e era relatora da comisso que fiscalizaria a ao.

Ao mesmo tempo, esse assassinato um crime contra a democracia. Vereadora

do PSOL eleita com 46.502 mil votos na segunda maior cidade do Brasil, Marielle

tinha uma carreira poltica promissora e estava em rpida ascenso. Num Rio

de Janeiro que tem sido o laboratrio do que h de pior no golpe parlamentar-

jurdico-miditico, sua voz, potente, ecoava em defesa dos subalternizados e dos

excludos. Em tempos de fascistizao social, sua presena fsica impactava o

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parlamento dessa to incompleta, frgil e agora suspensa democracia. Era uma

ferida aberta e insistente para que os de baixo no fossem esquecidos.

Marielle Franco, em seu pronunciamento no 8 de Maro desse ano, havia citado

a escritora estadunidense, negra e lsbica Audre Lorde: No sou livre enquanto

outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das

minhas. Ns no descansaremos, Marielle. Sua memria, fora e inspirao

permanecem. Seguiremos em luta at que todas sejamos livres. (Grifos meus).

Mara Kubik, diretora do NEIM/UFBA.

Estas so histrias dissidentes de corpos femininos cis e trans diferentes e desiguais que igual-mente foram exterminados como corpos e vidas a menos que no importam. Existem vrias outras. As estatsticas so alarmantes e o Brasil assume um lugar campeo em dados de (trans)feminicdio, sendo as mulheres negras, mulheres trans e travestis as mais vitimizadas. Honro aqui essas memrias que nos mobilizam a seguir questionando e criando estratgias de enfren-tamentos cada vez mais fortalecidas e articuladas. Luto/a. Silncio. Msica25.

(TRANS)FEMINICDIOS MUSICAIS ENQUANTO CONFINAMENTOS EPISTMICOSNuma engajada proposta antirracista, Jos Jorge

de Carvalho (2005) alerta para uma estrutura de confinamento racial nas universidades brasilei-ras em relao a real incluso de pessoas negras no seu corpus docente e discente, mostrando dados alarmantes que refletem um verdadeiro apartheid sociorracial26.

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Numa perspectiva feminista interseccional de produo de conhecimento e justia social, pro-ponho exercitarmos uma substituio do termo relaes raciais para relaes de gnero e das sexualidades dissidentes para compreendermos que o confinamento ainda maior se articu-lamos as categorias de gnero, raa/etnia, sexualidade, gerao, acessibilidade, classe social, dentre demais marcadores sociais. Se no h representatividade negra que realmente reflita a sociedade brasileira em termos numricos, dado irrefutvel do mito da democracia racial, h um confinamento epistmico sobre uma perspectiva da sociedade brasileira em sua diversidade e desigualdade de gnero tambm.

A produo de conhecimento das autoras negras e indgenas, por exemplo, continua invisibi-lizada nos campos hegemnicos; e as autoras trans, ainda mais, considerando que falar sobre mulheres (cis e/ou trans) em sua diversidade tnico-racial temtico e/ou especfico, ne-gando que falamos de grande parte da sociedade brasileira que permanece invisibilizada, sendo diariamente exterminada e tendo os seus direitos violados material e simbolicamente. Ou seja, tal confinamento androcntrico, hetero e cisgnero, pois no reconhece que o sexismo, a he-terossexualidade e a cisgeneridade so tambm estruturantes na sociedade brasileira, como igualmente na academia brasileira e no meio artstico, tal qual o racismo.

Compreender a interseccionalidade fundamental para criarmos estratgias de enfrentamento s matrizes de desigualdades com interlocues pautadas pela conscincia, gratido, guiana e tambm pelo acolhimento e redes afetivas que constroem a potente e revolucionria poltica dos afetos e da amorosidade.

Talvez parea arrivismo para algumas pessoas, porm acredito que enquanto

queerizar a academia no significar, efetivamente, uma sabotagem epistmica

uma fechao babado em relao s caretices e miradas colonialistas

e exotificantes em relao s diversidades corporais e de identidades de

gnero, nossas rexistncias nos cistemas acadmicos enquanto refgio

no deixam de ser criminosas: bandidas, de nomes sociais precrios e

ilegais em um mundo que nos odeia e delimita, ousamos na posio de

pesquisadoras ao performatizar uma funo ininteligvel, ao estudar temas

a partir de perspectivas que incomodam, ao propor comunidades ao invs

de campos de pesquisa. Que truques dar no cistema, para que ele seja um

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espao efetivamente transformador das realidades que nos circundam?

Como sobreviver nele, sabendo dos boicotes, panelas e cordialidades

convenientes? Como fazer as epistemologias cisnormativas des+aprenderem

suas miradas, epistemologias, metodologias? Conforme as manadas

precrias e epistemicamente injustiadas fizermos valer nossas perspectivas

diversas, nossas demandas, nossos sonhos, poderemos ir desmantelando as

estruturas supremacistas na academia, de maneira a provocar transformaes

interseccionais nela. (VERGUEIRO, 2016, p.98)

Em relao produo de conhecimento e artstica no campo dos estudos sobre msica no Brasil, lugar de onde eu falo, h ainda um hiato, um silncio cortante ou, seu oposto, a crtica e a desqualificao que impossibilitam falar de amor... E, ainda que no seja de amor, e ressalto que acredito na militncia amorosa em sua radicalidade, falar sobre estas questes se torna uma ruptura epistmica dissidente necessria na atual conjuntura poltica do Brasil. Significa uma fissura na (hetero)norma e tambm da branquitude que cotidianamente me conferem privilgios. desde este lugar que falo tambm.

Interessa aqui discutir sobre a relevncia das abordagens (r)existentes sobre as estratgias mu-sicais e criativas destes corpos perifricos, incluindo o meu, em alguma medida, que foram e continuam desde sempre deslocadas e fronteirias, compondo espaos de reXistncia ao racismo e (trans)feminicdio epistmicos em msica.Esta a proposta por onde estas notas emergiram. As mesmas compem tambm reflexes sobre possibilidades de aes e produ-es tericas e artsticas/artivistas como estratgias de interlocues necessrias para o for-talecimento do campo, na construo de uma perspectiva realmente inclusiva, considerando a dimenso humana (e no humana) em sua diversidade musical que profundamente desigual. Por fim, deixo aqui, em aberto, poticas sonoras de dissidncias e reXistncias. O que voc faz com isso, a partir de agora?

Desejos dissidentes:

O subjetivo COMO poltico.

Epistemicdio. Racismo. (Trans)feminicdio.

Invisibilizao tentativa (consciente ou no) de silenciamento.

A invisibilizao no silenciamento...

A invisibilizao (Trans)Feminicdio musical.

Racismo. Epistemicdio.

Laila Rosa

s rexistncias, mltiplas e eternas (deleuzianamente),

Daquelas pessoas entre ns que no sobreviveram. []

quelas tantas cosmogonias, percepes, contaes, formas

de viver nossas histrias, formas de expressar nossas vidas.

Exterminadas. Em extermnio.[]

Seguimos abaixo, e s esquerdas: em corpas, identidades de gnero, sexualidades, raas-etnias, culturas, ancestralidades diversas: em inflexes decoloniais.

Viviane Vergueiro (2016, p.6).

Feminaria Musical Roda de encerramento do 3o ENNA (Terreiro Gantois): por polticas de reXistncias,

artivismos e afetividades.

Eu sou Laila (Rosa) e a minha palavra gratido.

Eu sou Bruna (de Jesus) e a minha palavra amor.

Eu sou Nzinga (Mbandi) e a minha palavra doura.

Eu sou Cristiane (Lima) e a minha palavra liberdade.

Eu sou Ariana (Silva) e a minha palavra sabedoria.

Eu sou Ana Paula (Anjos Fiuza) e aminha frase amor ao sagrado.

Eu sou Marluce Silva e a minha palavra amor.

Eu sou Fran Ribeiro e a minha palavra irmandade.

Eu sou Dineia Brito e a minha palavra paz.

Eu sou Thalita Batuk e a minha palavra irmandade.

Eu sou Alexandra Martins e a minha palavra paz.

Eu sou Maria (Orfinger) e a minha palavra unio.

Eu sou Janana (Casanova) e a minha palavra afeto.

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REFERNCIAS CARVALHO, Jos Jorge de. O confinamento racial do mundo acadmico brasileiro. REVISTA

USP, So Paulo, 2005-2006. N.68, p.88-103, dezembro/fevereiro.

CRENSHAW WILLIAMS, Kimberl. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color. In: FINEMAN, Martha Albertson, MYKITIUK, Rixanne (org.). The Public Nature of Private Violence. New York: Routledge, 1994. p.93-118.

CURIEL, Ochy. La Nacin Heterosexual: Anlisis del discurso jurdico y el rgimen heterosexual desde la antropologia de la dominacin. Bogot: Brecha Lsbica y En la frontera, 2013.

HARAWAY, Donna. Saberes Localizados: a questo da cincia para o feminismo e o privilgio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5), 1995. p.7-41.

LHNING, Angela; TUGNY, Rosngela. Introduo e organizao. Etnomusicologia no Brasil. Salvador: EDUFBA, 2017. p.19-46.

ROSA, Laila. Msica e violncia: narrativas do divino e feminicdio. In: SARDENBERG, Ceclia M. B.; TAVARES, Mrcia S. (org.). Violncia de gnero contra mulheres: suas diferentes faces e estratgias de enfrentamento e monitoramento. Coleo Baianas, NEIM.Salvador: EDUFBA, 2016. p.293-326.

ROSA, Laila. Pode performance ser no feminino?. ICTUS: Revista do Programa de Ps-Graduao em Msica da UFBA, 2010. p. 83-99. Disponvel em: .

ROSA, Laila. As juremeiras da nao Xamb (Olinda, PE): msicas, performances, representaes de feminino e relaes de gnero na jurema sagrada. Tese (Doutorado em Msica). PPGM/UFBA, Salvador, 2009. Disponvel em: .

ROSA, Laila; BARRETO, Caroline de Lima; PASSOS, Iuri; 3o Encontro Novembro Negro nas Artes (ENNA):reflexes sobre o racismo e (trans)feminicdios epistmicos e musicais. Projeto de extenso. Universidade Federal da Bahia. Realizado no Terreiro do Gantois, Salvador, Bahia, 12-14 de dezembro de 2017,

http://www.ictus.ufba.br/index.php/ictus/article/viewFile/218/234http://www.ictus.ufba.br/index.php/ictus/article/viewFile/218/234http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3600http://www.bibliotecadigital.ufba.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=3600

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SCOTT, Joan. Gnero: uma categoria til para anlise histrica. Traduo de Christine Rufino Dabat e Maria Betnia vila, 1990, p.1-27. Do texto original: Gender: An Useful Category of Historical Analyses. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1989.

VERGUEIRO, Viviane. Por inflexes decoloniais de corpos e identidades de gnero inconformes: uma anlise autoetnogrfica da cisgeneridade como normatividade. 2016. Dissertao (mestrado) Salvador: Universidade Federal da Bahia Instituto de Humanidades, Artes e Cincias Professor Milton Santos, 2016.

WERNECK, J.; MENDONA, M.; Hite. E. (org.) O livro da sade das mulheres negras: nossos passos vm, de longe. 2.ed. Rio de Janeiro: Pallas/Criola, 2006.

Notas

2 O 3oEncontro Novembro Negro nas Artes (ENNA):reflexes sobre o racismo e (trans)feminicdios epistmicos e musicais aconteceu entre 12 a 14 de dezembro de 2017. O ENNA consiste em celebrar o ms da Conscincia Negra a partir do dilogo interdisciplinar entre diferentes campos das linguagens artsticas, educao, estudos das relaes tnico-raciais e os estudos feministas, com foco em msica. O mesmo organizado pela Feminaria Musical: grupo de pesquisa e experimentos sonoros, grupo da Escola de Msica e Programa de Ps-Graduao em Msica eintegra a linha de pesquisa Gnero, Arte e Cultura do Ncleo de Estudos Interdisciplinares da Mulher (NEIM/UFBA). Em suas edies anteriores (2013, 2014 e 2015) o evento reuniu pesquisadoras/es dos estudos sobre gnero, raa e sexualidades em msica(s) no Brasil e EUA, artistas de outras lin-guagens, tais quais, moda e artes visuais, bem como, mestras da cultura popular e militantes dos movimentos sociais. Nesta edio, alm das parcerias entre a Escola de Msica, o Programa de Ps-Graduao em Msica (PPGMUS/UFBA) e o Ncleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a Mulher (NEIM/UFBA), o ENNA articula tambm parcerias importantes com o Programa de Ps-Graduao do Mestrado Profissional(PPGPROM/UFBA), o Curso de Msica Popular, Curso de Licenciatura em Msica (PIBID) da Escola de Msica e o histricoIl Iy Omin Ax Iy Mass, mais conhecido como Terreiro do Gantois, local onde foram realizadas todas as atividades (ROSA; BARRETO e PASSOS, 2017). Performance disponvel em: . Acesso em: 20 ago. 2018.

3 Em outro momento, escrevendo sobre msica e violncia no contexto religioso da Jurema Sagrada em Pernambuco, discu-ti sobre o conceito de feminicdio e de transfeminicdio como importantes categorias para pensar sobre o campo do musical. Igualmente, tentei problematizar como, de modo geral, o campo dos estudos sobre msica ainda no se deu conta da desi-gual e estruturante maneira de como raa, classe social e gnero operam no nosso pas de forma interseccionada.

4 Normalmente em alguns trabalhos politicamente engajados esto vigentes as categorias de classe social e etnicidade para debates sobre polticas pblicas, desigualdades e periferias, como no caso de algumas pesquisas sobre msica no campo da etnomusicologia brasileira (LHNING; TUGNY, 2017). Contudo, pouco se problematiza as questes de gnero e das dissidn-cias sexuais (ROSA, 2016).

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5 O I Encontro sobre Arte, Gnero e Diversidade, realizado no histrico Terreiro da Casa Branca (2018), do qual esta publi-cao fruto das palestras, discusses, rodas de conversa, oficinas e performances ali presentes, representou importante exemplo destas importantes interlocues dissidentes de fortalecimento coletivx pela arte e pelo artivismo.

6 O Programa Escola Sem Partido defende uma suposta neutralidade poltica das escolas estabelecendo deveres docentes que, em sua perspectiva, esto proibidos de propagar doutrinao ideolgica. O mesmo surge de movimento politico criado em 2004 no Brasil, divulgado em todo o pas pelo advogado Miguel Nagib. Ele e os defensores do movimento afirmam repre-sentar pais e estudantes contrrios ao que chamam de doutrinao ideolgica nas escolas e tem Alexandre Frota, ex-ator porn e agora deputado eleito por So Paulo (PSL), um dos seus principais interlocutores (www.wikipedia.org), defendendo o projeto de lei Contra o abuso da liberdade de ensinar . Acesso em: 10 out. 2016.

7 Um dos debates centrais do Programa Escola Sem Partido o ataque liberdade de ensino e, principalmente, ao deba-te sobre gnero nas escolas que chamam de ideologia de gnero. Encontrei o texto O perigo da ideologia de gnero nas escolas por Jefferson Viana*, publicado em 18 de junho de 2015, numa tentativa de se posicionar contra a incluso to am-plamente debatida e defendida pelos movimentos de mulheres, feministas e LGBTTQI, do conceito dos Planos Municipal de Educao: A ideologia de gnero no nada mais que a negao de que existem sexos ao nascimento, com a afirmao que a sexualidade uma construo social, onde a pessoa escolheria o que deseja ser. tambm implantada na linguagem, com a negao de gnero nas palavras, com a substituio das letras o e a pela letra x; para dar um exemplo, a palavra menino, ou a sua variao no feminino, que seria a palavra menina, transformam-se em meninx, visando a neutralidade. A ideologia de gnero, na verdade, tem suas origens nas ideias dos pais do comunismo, Karl Marx e Friedrich Engels. [...] Tal ideologia um crime em vrios aspectos [...] o gnero um conceito ideolgico que tenta anular as diferenas e aptides naturais de cada sexo; e h ainda o quarto aspecto, que consiste em ignorar o indivduo em prol da formao de militncia e blocos coletivos. No podemos deixar que o Estado tente definir o que melhor para os nossos filhos em matria de educao. tarefa e direi-to dos prprios pais definir como esse tema ser abordado e tratado nas famlias. (Grifos meus). Disponvel em: . Acesso em: 20 ago. 2018.

8 Vale destacar que a chamada ideologia de gnero tem tido cada vez mais espao dentro do atual governo brasileiro, o que preocupa a todas ns feministas e movimentos LGBTTQI enquanto militantes dos direitos humanos. O mesmo se aplica em relao s questes tnicorraciais, trazendo a dimenso interseccional de gnero e raa/etnia. Por outro lado, sentimos um fortalecimento dos movimentos sociais em suas articulaes e marchas, produes artsticas e artivismos diversos que ques-tionam a violenta e conservadora ordem posta de ultra-direita.

9 Enquanto feminista, mulher cis, filha de unio interracial (me branca e pai negro) cujo corpo lido como branco na nossa sociedade racista e patriarcal, heterossexual que ideologicamente se considera bissexual, de origem perifrica, pernambu-cana, nordestina oriunda de classe popular, yogini, vegana, pessoa que h alguns anos se engaja numa produo de conhe-cimento e interlocues feministas, indgenas, negras e queer pelo bem viver, como bem defendeu a Marcha das Mulheres Negras em 2016.

10 A este respeito, Kimberl Crenshaw Williams (1994, p.94) destaca a importncia de reconhecer as identidades polticas de forma social e sistmicas, como um caminho para o fortalecimento destas identidades enquanto comunidades, seu desen-volvimento intelectual e por fim, na busca por estratgias especficas para suas situaes especficas de tripla subordinao e violncia (gnero, raa e classe) que, ainda representa uma realidade contempornea enfrentada cotidianamente.

11 Em 2015 foi realizada a Marcha das Mulheres Negras 2015 contra o Racismo e a Violncia e pelo Bem Viver que apresen-tou o seguinte manifesto: Ns, mulheres negras brasileiras, descendentes das aguerridas quilombolas e que lutam pela vida, vimos neste 25 de Julho Dia da Mulher Afrolatinoamericana e Afrocaribenha denunciar a ao sistemtica do racismo e do sexismo com que somos atingidas diariamente mediante a conivncia do poder pblico e da sociedade, com a manuteno

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de uma rede de privilgios e de vantagens que nos expropriam oportunidades de condio e plena participao da vida so-cial. Disponvel em: . Acesso em: 20 ago.2018.

12 A autora usa o termo Cistema como anlogo sistema, mas denunciando que o sistema cisgnero, racista e transfemi-nicida (VERGUEIRO, 2016).

13 Questes que venho discutindo desde outros trabalhos tericos (ROSA 2016, 2010, 2009, etc.) e tambm com as minhas prprias produes artsticas e artivistas, tais quais, o CD autoral gua viva: um Disco Liquido (2013) www.soundcloud/laila-rosa; na composio e direo das trilhas sonoras dos espetculos X ou Y: algumas questes sobre gnero (2015) e Histrias Delas: questes de gnero? (2017), que integram parte da trilogia de autoria de Dinah Pereira, tendo contado com as colaboraes das compositoras e musicistas Laura Cardoso (2015) e Neila Khad (2015 e 2017); Trilha Sonora para o Desfile da Coleo Vozes, de Carol Barreto, apresentada em Luanda e Paris; bem como da trilha da Coleo As, apresentada ao vivo em residncia artstica em Nova York, NY (2017) e Williamsburg, Virgnia (2018); Por fim, posso destacar ainda todas as aes e performances potico-musicais que so pensadas coletivamente pela Feminaria Musical: grupo de pesquisa e experimen-tos sonoros que desde sua criao, em 2012, firma interlocues com diversos grupos dos movimentos sociais de mulheres e LGBTTQIs, tais quais o Kiu! Grupo de gnero e diversidade da UFBA, Grupo de Mulheres do Alto das Pombas - GRUMAP, reali-zando eventos em parceria com o Terreiro do Gantois e, neste ano, com Nzinga, grupo de Capoeira Angola, no Alto da Sereia (2018), dentre outras aes.

14 Ouamos Lia de Itamarac, cirandeira pernambucana negra, para uma escuta-respiro de esperana. Disponvel em: . Acesso em: 20 de ago. 2018.

15 Ativista lsbica e negra integrante do Grupo Latinoamericano de Estudio, Formacin y Accin Feminista (GLEFAS). Disponvel em: . Acesso em: 20 de ago.2018.

16 Profa Mestra, terapeuta e doutoranda do PPGNEIM/UFBA, e tutora da Feminaria Musical.

17 Tais quais as cotas para pessoas negras, indgenas, quilombolas e trans (agora tambm no mbito dos Programas de Ps-Graduao da UFBA, por exemplo).

18 *Ouamos Carolina Maria de Jesus, escritora e compositora negra, para uma escuta-respiro de esperana. Disponvel em: . Acesso em: 20 ago. 2018.

19 Mulher negra e lsbica, ativista dos direitos humanos, uma das vereadoras mais votadas do Rio de Janeiro pelo PSOL.

20 Apresento diferentes fontes, tais quais, manchetes de jornais online a notas de repdio e textos publicados e amplamente compartilhados pelo Facebook.

21 Disponvel em: . Acessado em 20 ago. 2018.

22 Fonte: ltimo Segundo - iG @ . Acesso em: 20 ago. 2018.

23 Irm de Mayara Amaral. Postagem de 27 de julho de 2017. Disponvel em: . Acesso em: 20 de ago. 2018

https://www.geledes.org.br/manifesto-da-marcha-das-mulheres-negras-2015-contra-o-racismo-e-violencia-e-pelo-bem-viver/https://www.geledes.org.br/manifesto-da-marcha-das-mulheres-negras-2015-contra-o-racismo-e-violencia-e-pelo-bem-viver/https://www.youtube.com/watch?v=Srl2DaTrnsQhttp://glefas.orghttps://www.youtube.com/watch?v=t3dzlAr4euohttp://blogueirasfeministas.com/2014/03/claudia-silva-ferreira-38-anos-auxiliar-de-limpeza-mhttp://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2018-02-16/dandara-travesti-reus-juri.htmlhttps://www.facebook.com/photo.php?fbid=1637173466326965&set=a.884418651602454.1073741829.100001029836854&type=3&theaterhttps://www.facebook.com/photo.php?fbid=1637173466326965&set=a.884418651602454.1073741829.100001029836854&type=3&theater

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24 Disponvel em: . Acesso em: 20 ago. 2018.

25 Ouamos as Bahias e a Cozinha Mineira, banda protagonizada pelas vozes de Raquel Virgnia e Assucena Assucena, canto-ras trans negras, para uma escuta-respiro de esperana.Disponvel em: . Acesso em: 25 ago.2018.

26 Esse confinamento especialmente problemtico para as cincias sociais, que pretendem explicar o pas para todos. A situao mais comum, at agora, nos cursos de Sociologia, Antropologia, Cincia Poltica, Histria que professores e alunos brancos discutam os modelos de relaes raciais formulados por autores brancos, partindo do princpio de que esses mode-los e interpretaes falem da sociedade brasileira. Que esses discursos representem apenas a viso branca da sociedade brasileira at agora no tem sido colocado por quase nenhum de ns. (CARVALHO, 2005-2006, p.100).

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O CORPO ANCESTRAL DA ATRIZ NEGRA NAS ARTES CNICAS DA CIDADE DE SALVADOR

YASMIN NOGUEIRA

Graduada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Recncavo da Bahia- UFRB. Mestra em Cultura e Sociedade - Ps Cultura - IHAC - UFBA na linha de pesquisa Cultura e Arte sob orientao da Prof. Dr Edilene Dias Matos. Doutoranda em Artes Cnicas-PPGAC-UFBA sob orientao da Prof. Dr Suzana Maria Coelho Martins. Atualmente Professora subs-tituta no Curso de Design da Universidade Federal de Sergipe-UFS. Integra o Coletivo entrecho, premiado no Salo de Artes Visuais da Bahia em 2013

ONISAJ (FERNANDA JLIA)

yakeker (me pequena) do Il Ax Oy L ad Inan, possui graduao em Direo Teatral pela Universidade Federal da Bahia (2010), Mestre em Artes cnicas pelo Programa de Ps Graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal da Bahia - PPGAC - UFBA, com a dissertao Ancestralidade em Cena: Candombl e Teatro na Formao de uma Encenadora (2016) . diretora artstica do NATA - Ncleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas (1999). Tem experi-ncia na rea de Artes, com nfase em Direo Teatral, pesquisadora sobre o Candombl.

RESUMO

O presente artigo reflete sobre a invisibilidade das atrizes negras na cena teatral da cidade de Salvador e exemplifica como os corpos das mulheres negras tm buscado provocar e desestabilizar as epistemologias dominantes por meio da produo cnica. Herdeiras de um patrimnio ancestral de luta, elas vm conferindo visibilidade s suas histrias e de outras, buscando novas configuraes de conhecimento e de poder, restituindo humanidades negadas.

PALAVRAS-CHAVE:

Mulheres negras.

Artes cnicas.

Visibilidade.

Corpo ancestral.

ABSTRACT

This article reflects on the invisibility of black actresses in the theatrical scene of the city of Salvador and exemplifies how the bodies of the black women have sought to provoke and to destabilize the dominant epistemologies through scenic production. Heirs of an ancestral patrimony of struggle, they have been giving visibility to their histories and of others, seeking new configurations of knowledge and power and restoring denied humanities.

KEYWORDS:

Black women.

Performing arts.

Visibility.

Ancestral body.

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meio para ter voz, uma maneira de, por meio de nossos corpos, fazer com que emerjam e ecoem histrias de sujeitos historicamente silenciados. Pensando dentro da lgica de representao, as mulheres negras diversas vezes foram representadas por esteretipos racistas e sexistas e em raras oportunidades estiveram em condies de representar-se numa perspectiva artstica, seja como criadoras, performers ou autoras. Um corpo negro em cena que utiliza a autobiografia enquanto ferramenta para um conhecimento de si perpassa os encontros e desencontros com outras, busca as subjetividades, as experincias vividas como um local para o entendimento de identidades diversas. O pessoal se converte em coletivo, pois no se trata de um mero acesso ao privado de um indivduo, fala-se e expressa-se por vrias, pelos antepassados, pelas mulheres que anteriormente no foram escutadas, silenciadas pela mscara de flandres.

As folhas de flandres ou flandres, material laminado estanhado, composto por ferro e ao, hoje utilizado na fabricao de latas para acondicionar alimentos, alm de utenslios domsticos e in-dustriais devido sua alta resistncia corroso, corroa a boca, a voz, o alimentar-se da figura ancestral da Anastcia1. A mscara usada no perodo da escravido no Brasil, para impedir que os escravos ingerissem alimentos, bebidas ou terra ao realizada com o intuito de provocar infeco por verme e incapacitar o indivduo era trancada com um cadeado atrs da cabea, possuindo orifcios para os olhos e nariz, mas impedindo totalmente o acesso boca. Para Kilomba

A boca um rgo muito especial, ela simboliza a fala e a enunciao. No mbito

do racismo, ela se torna o rgo da opresso por excelncia, pois o rgo que

enuncia certas verdades desagradveis e precisa, portanto, ser severamente

confinada, controlada e colonizada. (2016, p.02)

Dessa maneira, o ato da fala torna-se inexequvel, no que no houvessem tentativas, mas essas vozes constantemente eram/so silenciadas por meio do sistema racista. Ainda no sculo XIX, a Nova-iorquina Sojouner Truth (1797-1883), abolicionista afro-americana e ativista dos direitos da mulher, exemplifica como a luta das mulheres negras para serem sujeitos polticos, produzin-do discursos contra-hegemnicos no algo recente em nossa histria. Em seu discurso mais conhecido, No sou uma mulher?, pronunciado em 1851, na Conveno dos Direitos da Mulher

1 Mulher escravizada que teria sido uma princesa africana aprisionada e, segundo relatos, tornou--se aps sua morte, uma grande promotora de milagres, por ter sofrido martrios extremos em sua condio de cativa. Anastcia foi imortaliza-da na gravura intitulada Chtiment des esclaves (Castigo dos escravos), produzida por volta de 1817, em que utiliza a mscara de flandres.

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em Akron, Ohio, traz tona as problemticas do feminismo com a universalizao da categoria mulher, em que a falsa homogeneidade implica uma falta de capacidade de escuta de outras mulheres diferentes das mulheres brancas, pois no atenta para alm do gnero, questes como raa, sexualidade e classe, no dissociando os diferentes eixos de subordinao.

Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra que alguma coisa

deve estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as

mulheres do norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito

em breve, ficaro em apuros. Mas em torno de que toda essa falao? Aquele

homem ali diz que preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem,

preciso carregar elas quando atravessam um lamaal e elas devem ocupar

sempre os melhores lugares. Nunca ningum me ajuda a subir numa carruagem,

a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E no sou uma mulher?

Olhem para mim! Olhem para meu brao! Eu capinei, eu plantei, juntei palha

nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E no sou uma mulher?

Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem quando tinha o que

comer e tambm aguentei as chicotadas! E no sou uma mulher? Pari cinco

filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha

dor de me, ningum, a no ser Jesus, me ouviu! E no sou uma mulher? E da

eles falam sobre aquela coisa que tem na cabea, como mesmo que chamam?

(uma pessoa da plateia murmura: intelecto) isto a, meu bem. O que que

isto tem a ver com os direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha

caneca no est toda cheia, no seria mesquinho da sua parte no completar a

minha medida? Ento aquele homenzinho vestido de preto diz que as mulheres

no podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo no era mulher!

Mas de onde que vem seu cristo? De onde foi que cristo veio? De Deus e de

uma mulher! O homem no teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher que

Deus criou foi suficientemente forte para sozinha, virar o mundo de cabea

para baixo, ento todas as mulheres, juntas, conseguiro mudar a situao

e pr novamente o mundo de cabea para cima E agora elas esto pedindo

para fazer isto. melhor que os homens no se metam. Obrigada por me ouvir

e agora a velha Sojourner no tem mais coisas para dizer. (TRUTH, 1851 apud

RIBEIRO, 2017, p.20-21)

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Pensando a temporalidade do discurso de Truth, vemos que as histrias de resistncias vm a muito tempo sendo construdas pelas mulheres negras, o que faltou e falta a capacidade de escuta, a visibilidade de nossas pautas.

Kilomba (2016, p.3) entende o falar e silenciar como um projeto anlogo, uma espcie de acordo entre sujeito falante e seus ouvintes. Falamos se nossa voz for ouvida, porm, ser ouvida est para alm desta dialtica, significa tambm pertencer. Dessa maneira, aqueles/as que perten-cem so ouvidos, e aqueles/as que no so ouvidos no pertencem. Tal ideia demarca quem so os sujeitos autorizados a falar, quem so esses sujeitos que so ouvidos, assim como marca a fronteira entre o eu e o outro.

Para Silva (2000), a afirmao das identidades e das diferenas traduz a vontade dos grupos sociais de assegurar o acesso privilegiado aos bens sociais. Afirmar as identidades marcar uma fronteira que separa ns e eles, definem quem se situa dentro e quem fica fora. As tais demarcaes e distines supem e reafirmam relaes de poder. Tal diviso do mundo social, significa classificar e hierarquizar. O estabelecimento de determinadas identidades como norma uma das formas privilegiadas de hierarquizao, um dos processos sutis pelos quais o poder se manifesta.

Normalizar , ento, selecionar as identidades que funcionam como parmetro em relao s de-mais. Branquitude, masculinidade, cisgeneridade, heterossexualidade, entre outras caractersticas, so vistas como normas, que estabelecem privilgios sociais. Desse modo, quanto mais afastados esto os sujeitos de tais normas, mais esses corpos e modos de vida so considerados abjetos.

A homogeneidade do feminismo denunciada por Truth traz como norma a mulher branca, pen-sando as dissociaes binrias entre homens e mulheres. Para a filsofa francesa Simone de Beauvoir, essa mulher enquadra-se na categoria do Outro, em que a relao que os homens mantm com as mulheres de submisso e dominao. Em suas reflexes sobre a categoria de gnero, entende que a mulher no definida em si mesma, mas em relao ao homem e atravs do olhar do homem. Este olhar coloca a mulher em uma posio submissa em que no h reciprocidade. Kilomba retoma a ideia do Outro de Beauvoir e a amplia, entendendo que se a mulher (branca) o Outro, a mulher negra seria o Outro do Outro, posio que a coloca num local de mais difcil reciprocidade.

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Por no serem nem brancas nem homens, as mulheres negras ocupam um lugar difcil na so-ciedade supremacista branca, a anttese da branquitude e da masculinidade. Para Kilomba, o status das mulheres brancas oscilante, pois so mulheres, mas so brancas, do mesmo modo, faz a anlise em relao aos homens negros, pois esses so negros, mas homens. Mulheres negras, nessa perspectiva, no so nem brancas e nem homens e exercem, ento, a funo de Outro do Outro.

Diante do racismo e do sexismo, ser a anttese da branquitude e da masculinidade, o Outro do Outro, no pertencer s normas que estabelecem privilgios sociais, retomam a questo do di-reito fala ou da possibilidade de escuta. A mscara de Flandres no pode ser esquecida, Ela foi uma pea muito concreta, um instrumento real que se tornou parte do projeto colonial euro-peu por mais de 300 anos (KILOMBA, 2016, p.1). Por meio da figura da mscara, a pesquisadora portuguesa questiona quem pode falar e quem no pode e sobre o que podemos falar. Por que a boca do sujeito Negro, sobretudo ns, mulheres negras, tem que ser calada? O que poderamos dizer se essa boca no estivesse tampada? E o que que o sujeito branco teria que ouvir? Vozes como a de Truth no s questionam a histria dominante do feminismo, elas falam atravs da mscara, produzem insurgncias e promovem disputas de narrativas.

Possuir o privilgio social tambm possuir o privilgio epistmico, uma vez que o modelo valo-rizado e universal de cincia no neutro, e sim branco. Segundo a pensadora e feminista negra Llia Gonzalez (1984), essa hierarquizao legitimou como superior a epistemologia eurocntri-ca e concedeu ao pensamento moderno ocidental o lugar do conhecimento vlido, tornando-o dominante e inviabilizando outras experincias do conhecimento. Esses conhecimentos outros, tomaram assim o lugar de marginal, de desprestgio, do subjetivo, pessoal e invlido. A estipulao de uma epistemologia universal desconsidera saberes de parteiras, das Ialorixs e Babalorixs, dos movimentos sociais, irmandades negras, a escrita de si.

Nossos corpos, nossas bocas, nossas vozes tm buscado provocar e desestabilizar as epistemo-logias dominantes, ocupando o lugar de produtoras de conhecimento, temos provocado fissuras na velha mscara, evidenciando nosso legado de luta, os enfrentamentos ao racismo e sexismo, partilhamos processos de resistncias. As mulheres negras foram historicamente construdas como ligadas ao corpo sensual, erotizado, animalesco e no ao pensar, ao criar, isso implica em sermos vistas constantemente em um lugar que no nos cabe.

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A autodefinio enquanto mulheres negras uma premissa importante, necessrio evidenciar nossas experincias, rechaar o olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes e produes. No havendo produes neutras e universais, sempre localizada em algum lugar e escrita por algum, reivindicamos esse lugar. Herdeiras de um patrimnio ancestral de luta, por meio da criao cnica, mulheres negras vm conferindo visibilidade s histrias suas e de outras, pelas que gritaram em ouvidos surdos, por Anastcia e Sourjouner Thruth, busca-se novas configu-raes de conhecimento e de poder, restituindo humanidades negadas.

Um exemplo da efervescncia e urgncia dessas produes pde ser visto no Frum Obnrin, ocupao artstica, feminista e negra no Espao Cultural da Barroquinha, em Salvador-Bahia de maio a julho de 2018. O evento contou com espetculos, performances, exposio, conferncias e residncia artstica, com objetivo de criar um espao para experimentao de artistas negras da Amrica Latina e do Caribe, seja no teatro, na dana ou na performance.Idealizado e coorde-nado pela Alrnj2 Las Machado, que objetivou visibilizar produes contemporneas de artistas negras, bem como discutir o apagamento histrico de mulheres negras que foram relevantes no cenrio cultural e poltico da cidade, alm de propor novas redes entre artistas afrodiaspricas brasileiras e do territrio latino americano.

O espao cultural da Barroquinha um lugar que evoca uma ancestralidade negra e feminina, local em que no sculo XVIII, tem-se o primeiro registro de candombl da nao Ketu como conhecido atualmente, fundado por trs mulheres negras, Iy Nass, Iy Det e Iy Kal, cujas histrias de resistncia foram apagadas.

Um corpo de mulher negra convida, dedica a todas as mulheres mortas, roubadas, apagadas, silenciadas para uma revanche. Um corpo outro est soterrado, encoberto, sufocado. Grandes punhados de areia ocultam boca, olhos, face. Um corpo alto, forte e emudecido pela mscara de flandres, tem sua genitlia ora coberta com cdigo de barras, ora por um crucifixo e dana uma geometria da dor. Outra, ainda, cultua figuras annimas com alimentos dos quais tambm se nutre e oferta s pessoas presentes.

Em tais criaes exibidas ou concebidas no Frum Obnrin, esses corpos em cena so corpos polticos que tem como potncia os mesmos marcadores sociais de gnero e raa. Para as artis-tas negras, a cena o espao de fala, no s da fala por meio da voz que se escuta, mas a fala

2 Termo em Iorub cuja traduo possvel aquela que canta e fala enquanto caminha, uti-lizado pela artista para designar sua atividade artstica transdiscipli-nar em canto, atuao e performance.

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do corpo, da ao, desse corpo negro como centro, que no pode, no deve ser interrompido, que preenche lacunas como a ausncia de atrizes, autoras, textos e personagens negras, livres de esteretipos e da objetificao. Contestam papis que no lhe contemplam, no cabem suas urgncias, assim, muitas dessas mulheres recorrem criao autoral, com suas questes que so tanto pessoais e subjetivas, quanto polticas e coletivas.

Nas performances e espetculos teatrais solo, o corpo ancestral no est somente na convoca-o, no rememorar, no desenterrar, mas na prpria presena desse corpo. Ao traz-lo, trazemos a carga de muitas outras, o que somos so um resultado de outros passos, outras histrias e corpos negros.

O espetculo solo Obsessiva Dantesca3, de Las Machado4, expe situaes dirias de racis-mo e sexismo por meio de fragmentos autobiogrficos, bem como explana situaes polticas atuais. Em Obsessiva, as mulheres de ontem e de hoje, sobretudo negras, so convocadas para um desagravo coletivo, um grande momento de compartilhamento, mesclando show musical e ritualizao - a performer expe temas e situaes-tabu referentes condio da mulher negra atravs de msicas autorais e improvisao, jogando com a vulnerabilizao da mulher com a ingesto de bebidas alcolicas ofertadas pelo pblico.

O espetculo exibe a obsesso, problematizando como as mulheres negras so constantemente apontadas, vistas comumente como monotemticas ao expor suas questes. A produo apre-senta a necessidade de falar sempre mais uma vez, j exauridas de didatismo, nos tornamos mesmo dantescas.

Na performance Tempo 15, Ina Moreira6 apresenta um corpo negro horizontal, cujo rosto aterrado, silenciado, asfixiado, busca a superfcie, livrar-se da apneia. Lentamente move-se, desencova, se mostra, verticaliza, dana. De deslocamentos sutis em solo ao plano alto. Retira- se do apa-gamento, do oculto, esse corpo de mulher negra, suas histrias e das demais desconhecidas, de narrativas impalpveis. Tempo 1 consubstancia o resgate das vozes esquecidas, abafadas, na tentativa de livrar-se da opresso colonial.

Nas palavras da artista:

3 Espetculo Obsessiva dantesca, de Las Machado, apresentado no Frum Obnrin, Espao Cultural da Barroquinha, Salvador -BA, 2018.

4 Atriz, pesquisadora, cr-tica e produtora formada pela ETUFBA. Alrnj. Feminista. Membro fundadora da RK Plataforma de Pesquisa Criao e Produo em Artes. Ex-Integrante do Teatro Base: Grupo de Pesquisas sobre o Mtodo do Atriz (2011-2017). Membro fundadora da Revista Barril - Crtica das artes cnicas, onde atuou como colunista e designer (2016-2017).

5 Performance de Ine Moreira, Tempo 01, apre-sentado na VIII Mostra de Performance. Arte Negra, Imagem e Anonimato. Galeria Caizares, 2018

6 Formada em dana pela escola de dana da Fundao Cultural do Estado da Bahia- Funceb. Licenciada em Dana pela Universidade Federal da Bahia e profissional de circo pela Escuela de Artes Urbanas de Rosrio Argentina.

CAD.GIPECIT

Salvador

ano 22

n 41

p 34-41

2018.2

42

TEMPO 1 revela uma margem do Atlntico Negro, ecoando as vozes das

mulheres de antes, e das que hoje se movimentam na base da pirmide social

para subverter racismos cotidianos.

No primeiro tempo imagens contribuem para desmoronar silenciamentos.

Atravs de uma dana prpria venho ruir a arquitetura da opresso colonial

e impulsionar um sonho de liberdade profundamente necessrio no Brasil,

fazendo escoar vrias camadas sobrepostas, desmoronando aquilo que a

oprime e objetifica, transcendendo a constante sensao de no pertencer, no

merecer, no poder, no ser. TEMPO1 sobre a arquitetura da excluso, um

grito, uma tomada de ar, um ato de coragem.

No solo Entrelinhas7 a mscara de flandres materializada no rosto da interprete criadora Jack Elesbo, personificando todo o processo de silenciamento histrico das mulheres negras. O projeto colonial faz desse corpo emudecido e a falta de fala evidenciada pela tentativa de comunicao por gestos que se assemelham lngua brasileira de sinais. A dor coreografada, silenciamento, animalizao, coisificao, violao e mercantilizao de nossos corpos. O forte corpo da artista em cena marcado tambm por outros cones que encobrem sua vagina, como um grande crucifixo ou um cdigo de barras. O movimento do corpo e uma respirao profunda, que torna visvel uma compresso extrema do diafragma, traz um sufoco, um engasgo, um grito abafado que, juntamente com o conjunto do espetculo, penetra na ferida histrica ainda no cicatrizada.

Um pequeno altar coberto com rendas brancas, imagens histricas de mulheres negras anni-mas do sculo XIX pregadas na parede. Uma mulher negra trajando um longo vestido branco se aproxima com pequeno nag (tigela de barro) com uvas frescas, o coloca sob o altar, se afasta e retorna portando outro com mas, depois tangerinas, bananas, pedaos de rapaduras, velas brancas. Acende as velas, que ilumina as imagens. Se afasta e retorna com um grande nag com todos os alimentos anteriores. Senta-se e pacientemente se alimenta, posteriormente oferece ao pblico que a observa.

Na performance Ajeum para Ancestrais8 Yasmin Nogueira busca friccionar