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Coleção PSICOLOGIA SOCIAL Coordenadores Pedrinha Arcides Guareschi Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do (PUCRS) Sandra Jovchelovitch London School of Economics and Politicas Science (LSE) Londres Tanta M.ara Galli Fonseca Conseho Editolia! Robert M. Fan London Schoo] of Economics and Po]itica] Science(LSE) Denise Jodelet L'École des hautes Études em Science Sociaies Paras Sílvia Lane PontiHcia Universidade Católica de São Paulo(PUCSP) Resina melena de Frestas Campos Universidade Federal de Minas Gerais (U}'MG) Angela Amada Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ) Tânia Galli Fonseca - Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS) Leõncio Camino Universidade Federal da Paraíba(UFPA) onares GENERO, suBJETIVlnAnE E TRABALHO Obras da Coleção Psicologia Social Psicologia sacia! contemporânea(Livro-texto) Valias autores As raízes da psicologia social modems - Robert M. Fan Representando a alteridade - Angela Airuda (Org.) Pala(ügmas em psicologia social Regida melena de Freiras e Pediinho A. GumescN (orgs.) Género, subjeüüdade e Uabaho Ténia GaHI Fonseca Psicologia social comunitária Relha Heiena de Eleitas Campos e outros Textos em representações sociais Pedihho A. Guaíesch e Sandra Jovcheloütch As artimanhas da exclusão - Bader Sawaía(org.) Representações sociais e esfera pública - a construção simbólica dos espaços públicos no Brasa! - Sandra Jovchelovítch Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(CIP) (Câmara Brasileira do Livro. SP, Brasil) Fonseca. Tanta Mala Galli Gênero, subjétívidade e trabalho/ Tanta Mala Gatil Fonseca Vozes, 2000. Petrópolis, RJ ISBN 85.326.2369-7 1 . Psicologia social 2. Mulheres Brasil 1. Título Trabalho - Brasil 3. Mulheres - Educação CDD 305.420981 Índices para catálogo sistemático 1. Mulheres: Trabalho: Brasil 305.420981 eg;g« 2. Mulheres: Educação: Brasa! 370.190981 Bibliotecáha responsável: Viviane Castanho - CRB-10/1130 Petrópolis 2000

Gênero, Subjetividade e Trabalho [ Tania Mara Galli Fonseca ]

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Page 1: Gênero, Subjetividade e Trabalho [ Tania Mara Galli Fonseca ]

Coleção PSICOLOGIA SOCIAL

CoordenadoresPedrinha Arcides Guareschi Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande doSÜ (PUCRS)Sandra Jovchelovitch London School of Economics and Politicas Science (LSE)Londres

Tanta M.ara Galli Fonseca

Conseho Editolia!Robert M. Fan London Schoo] of Economics and Po]itica] Science(LSE)

Denise Jodelet L'École des hautes Études em Science Sociaies ParasSílvia Lane PontiHcia Universidade Católica de São Paulo(PUCSP)Resina melena de Frestas Campos Universidade Federal de Minas Gerais (U}'MG)Angela Amada Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ)Tânia Galli Fonseca - Universidade Federal do Rio Grande do Sul(UFRGS)Leõncio Camino Universidade Federal da Paraíba(UFPA)

onares GENERO,suBJETIVlnAnE E

TRABALHOObras da Coleção Psicologia SocialPsicologia sacia! contemporânea(Livro-texto) Valias autoresAs raízes da psicologia social modems - Robert M. FanRepresentando a alteridade - Angela Airuda (Org.)Pala(ügmas em psicologia social Regida melena de Freiras e PediinhoA. GumescN (orgs.)Género, subjeüüdade e Uabaho Ténia GaHI FonsecaPsicologia social comunitária Relha Heiena de Eleitas Campos e outrosTextos em representações sociais Pedihho A. Guaíesch e SandraJovcheloütchAs artimanhas da exclusão - Bader Sawaía(org.)Representações sociais e esfera pública - a construção simbólica dos espaçospúblicos no Brasa! - Sandra Jovchelovítch

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação(CIP)(Câmara Brasileira do Livro. SP, Brasil)

Fonseca. Tanta Mala Galli

Gênero, subjétívidade e trabalho/ Tanta Mala Gatil FonsecaVozes, 2000.

Petrópolis, RJ

ISBN 85.326.2369-7

1 . Psicologia social 2. MulheresBrasil 1. Título

Trabalho - Brasil 3. Mulheres - Educação

CDD 305.420981

Índices para catálogo sistemático1. Mulheres: Trabalho: Brasil 305.420981 'ê eg;g«2. Mulheres: Educação: Brasa! 370.190981

Bibliotecáha responsável: Viviane Castanho - CRB-10/1130Petrópolis

2000

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) l à i.C' ;lid ! ltt eC

© 2000. Editora Vozes Leda.Rua Frei Luís, 100

25689-900 Petrópolis, RJInternet: http://www.vozes.com.br

Brasil

AGRADECIMENTOS

Este livro tomou se possível graças aoestímulo e apoio do Prof. Dr. Pedrinha A.Guareschi e da posterior dedicação deminha colega, a mestranda Cleuza Mana deOliveira Bueno, que realizou a revisão eeditoração final do texto. Funda-se na minhatese de doutoramento junto ao programa dePós-graduação da Universidade Federal doRio Grande do Sul. sob a orientação daProsa. Dra. Guacira Lopes Louro.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderáser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou

quaisquer meios (eletrõnico ou mecânico, incluindo fotocópia egravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de

dados sem pemüssão escrita da Editora.

ISBN 85.326.2369 7

A todos o meu agradecimento

Dedicatória

Para Paulo e Gustavo, pontos de luz emminha existência.

Este limo foi composto e impresso pela Editora Vozes Leda

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SUMÁRIO

Prefácio, 9

Apresentação, 13

Introdução, 17

Capítulo l Para além da produção de fios e vestuário, 27

1. Mulheres: A mão de obra "ideal", 27

2. A Fábrica como materialidade educativa, 62

Capítulo 2 (Re)Produzindo mulheres trabalhadoras. 87

1. Trabalhos de mulheres, 92

2. Práticas de gestão como práticas educativas, 120

3. Modos de ensinar no e para o trabalho, 133

4. Nos tempos de uma grande íamüa, 169

5. Nos tempos de uma grande empresa: da Proássionabzação àQualidade Total, 181

Capítulo 3 Deuses/as, vítimas ou cyborgs?, 195

Referências bibliográficas. 207

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PREFÁCIO

A apresentação de um livro pode tomar muitas fom)as: podesugerir uma ótica para a leitura, suscitar curiosidade, traçar umplano, esboçar um sumário ou mesmo organizar um roteiro de'destaques"(como se faz nas visitas turísticas guiadas aos museus)Mas, como acontece, quase sempre, quando somos conduzidospelas rotas preparadas. nosso olhar se desvia e se demora naquiloque não tinha sido destacado no programa, ou nosso interesse eemoção acabam mobilizados por situações que talvez não tives-sem sido consideradas. pela guia. como as mais relevantes

Descubro-me, de certo modo, nesse papel. Com o aval - e ohonroso convite - da Autora, devo apresentar aos leitores e leito-sas Género, subleüüdade e üabaüo. Mas, apesar dessa licença.não me pemlito exercer, aqui, as tarefas de guia. Acredito no pra-zer das descoberl;as, aposto nas multiplicidades de sentido quepodemos atribuir aos textos e, por isso, desisto de sugerir a ótica e,muito menos, esboçar um plano

Para apresentar o livro, decido falai um pouco sobre a trajetória de Tanta na produção deste texto. Nessa trajetória, penso quefui uma testemunha privilegiada e, em alguns momentos. uma par-ceira. Acompanhei o árduo trabalho de elaboração de sua tese dedoutorado, que hoje ganha a versão de livro. Renovo, então. al-guns dos comentários que fiz por ocasião de sua defesa.

Meu encontro afetivo e acadêmico com Tanta transcende. demuito, os anos de doutorado e se âncora em espaços e experiênciasbem mais largas do que a relação orientadora orientanda. Funda-se em nossa convivência como colegas de mestrado, continuapor um acompanhamento às vezes à distância - das trajetóriaspessoais e profissionais que seguimos, e se adensa. de um modoespecial, nas nossas reuniões no GEERGE (Grupo de Estudos deEducação e Relações de Gênero/UFRGS). Assim. a situação deorientação de tese foi um episódio - importante e valorizado pornós duas mas um episódio que é apenas uma parte de um conví-

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vio mais intenso. Desde o início era para mim muito claro que "orientar" significava, nesse caso, debater com uma profissional ma-dura e séria, com uma colega absolutamente comprometida com oobjeto de seu estudo, enfim com uma parceira.

Se rigor e sensibilidade eram características de algum modoesperadas, surpreendi-me ao perceber em Tanta uma grande capacidade de ira (que talvez ela usualmente mostre de uma formamais domesticadas. Na verdade, esta tese é. como ela mesma afia

ma, movida e atravessada por um sentimento de ira. Daí que seutexto é, sem dúvida, apaixonado e também parcial, no sentido deestar claramente comprometido com uma causa. Herdeiro, porisso mesmo, dos escritos feministas

Isso não significa dizer que foi fácil esse processo, nem mes-mo que concordamos sempre. Discutimos, problematizamos mui-to, construímos e desconstruímos trajetos e análises. mas sempreconvergimos em nossas preocupações e no engajamento políticosupostos pelos estudos de gênero.

Sua ousadia foi tentar articular estudos críticos de três campos: da Educação. do mundo do trabalho e dos estudos de gêneroTrês campos que não gozam de uma mesma tradição teórica. trêscampos que têm trajetóüas acadêmicas muito diversas, tanto sob oponto de vista da quantidade na produção como de abordagens eperspectivas. Joan Scott (em seu artigo já clássico "0 gênero comocategoria útil de análise histórica", 1990) discute a articulação dascategorias classe, raça e gênero e afirma que recita las como uma lilama parece sugerir "uma paridade entre os três termos, mas jquelna verdade eles não têm um estatuto equivalente". Acredito queesse pensamento também pode ser aplicado aqui. Trabaho, educação e género certamente não gozam de um mesmo estatuto acadêmuco. Várias razões poderiam ser apontadas para isso. Deparamonos. em um extremo. com uma área com uma tradição sólida e lonÇJa - a do trabalho; no outro. com uma área bastante recente e polêmica - a dos gênerosl e, em meio a isso, com a Educação. As teorizações que circulam e sustentam esses campos têm, de fato, histó-rias muito distintas. Elas são, pois, reconhecidas como detentorasde diferentes "graus" de respeitabilidade e mobilizam cientistas eprofissionais que, por sua vez, usufruem de posições acadêmicasdesiguais. Dispor de "pais" ou teorias fundadoras - a favor ou contra os quais se colocar - ou, ao contrário, refletir em meio à críticaàs grandes narrativas implica distintas formas de problematizar einvestigar. Implica, enfim, disposições disciplinares diversas. Ta -nia buscou diferentes tradições acadêmicas. Acredito que seuempenho foi bem sucedido. Espero que vocês. leitores e leitosasfaçam, agora, suas próprias descobertas e que demorem o orarnas situações e momentos que, para um, faz mais sentido. Estoucerta de que aproveitarão a caminhadas

A temática e as perspectivas analíticas implicadas nos Estádos Feministas talvez sejam particularmente sugestivas para aconstrução de solidariedades e cumplicidades entre aqueles eaquelas que aí efetivamente se envolvem. Isso fica evidente quan-do as pessoas se dispõem a uma aproximação não meramente in-telectual, mas são capazes de se deixar perturbar por todas as im-plicações que esses estudos podem Ihe trazer. Essa característicamuito própria dos estudos de gênero, aliada à especificidade doobjeto de pesquisa escolhido por Tanta a transformação de mu-lheres em operárias acabou por leva-la a uma relação muito intensa e até mesmo apaixonada com o estudo.

A psicóloga - que foi capaz de se e>dlar da Psicologia, de seaproximar e experimentar o gosto de outros campos disciplinarese de retornar à sua casa, ressignificando-a fez uso de sua sensibi-lidade e de seu agudo senso de observação para conduzir a nós,suas leitosas e leitores, através das portas da fábrica até suas uni-dades de produção e, especialmente, até o encontro com aquelasque ali experimentam um processo educativo particular. E assimque ela nos íaz parar na bateira das portarias com seus controlessobre os visitantes que é, afinal, o que somos para. somente de-pois desse exame, nos conduzir pelos áridos pátios, sem qualquervegetação, até as imensas salas de pesadas máquinas ou às ofici-nas de costura, com suas janelas altas. que impedem de reconhe-cer o momento do dia ou a estação do ano. A materialidade educa-tiva cia fábrica é analisada, rigorosa e minuciosamente, desde asua arquitetura e distribuição de espaços, suas determinações dostempos e dos movimentos de trabalho, até os múltiplos dispositi-vos e práticas que permitirão a intemalização pelos sujeitos do es-pírito da empresa(dos tempos de uma grande íamíüa até os anuaistempos da (maldade rota/)

Guacira Lopes Louro

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APRESENTAÇÃO

Tem sido recorrente a associação da feitura de uma produção eschita com a gestação e o parco. Embora se reconheça que tais proces-sos possam ser comparados quanto aos longos tempos de preparação e maturação imphcacios, e mesmo a respeito das preocupações eansiedades que os perconem, parece claro que os conteúdos quepemlitem tal analogia ainda não foram de todo problematizados.

Em princípio, os sentidos que aüiculam os processos aludidossão tomados conentemente desde sua finalidade principal, quejustificaria de per se todas as exigências, imposições e expectati-vas neles depositadas. Gerar filhos/as e escritos parece resultarem produtos finais em si compensadores e recompensadores- Oque permanece encoberto é o fato de que toda a produção humana- biológica, cultural. científica e artística se imbrica na proble-mática da matriz reprodutiva.

Biológica e culturalmente. produzem-se herdeiros e herdeirasque não se fazem isentos/as e transcendentes às forças estrutu-rantes implicadas em suas heranças. Filhos/as e obras escritas sãoherdeiros/as de uma particular situação que, por sua vez, se tem-poraliza e $e regula desde contextos sociais mais amplos. Na verdade, nada é criado que já não esteja anunciado como possívelDessa forma. tornam-se humanos/as os/as figos/as, e tomam-sehumanizados os livros. Contextualizados, rigorosamente expres-sivos de um tempo social, claramente inscritos nas paixões deuma existência, os livros - como os/as filhos/as - são feitos porqueancoram expectativas prospectivas. Longe, contudo. se achamdos desejos onipotentes que possam alimentar os "ideais" deseus/suas geradores/as

Muitas vezes, mais do que comandado pela mão que escreveé o escrito que a dirige e instiga, levando a pensar para além do esperado e planejado. Este certamente não é um processo calculistaexclusivamente movido por questões racionais e objetivas. Equando prontos/maturados/as e paridos/as filhos/as e os escri

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tos -, mostram faces não de todo familiares: revelam-se capazesde causar estranhamentos. mão-de-obra feminina nele empregada, bem como apresento. de

forma analítica, a fábrica como materialidade educativaHistoricizados/as e, portanto, presos/as às amarras de sua

época, de suas chances e dos limites de suas esperanças, filhos/ase escritos podem. entretanto, ser vistos/as como continuidade ecomo ruptura daquele património que lhes foi conferido como he-rança. Ambos podem ser associados/as à medida em que supostamente implicam, desde suas particularidades, responsabilidadessociais que não se extinguem com seu nascimento. Trata-se, pois.de examinar os produtos dos corpos e das mentes como herdeirose herdeiras que podem ser cultivados/as na melhor das intençõese no melhor da humildade. Tais como filhos/as, o$ escritos, as te-ses, os livros. mostram com muita clareza a finitude humana esocial, pois nunca se inscrevem no eterno.

No segundo, intitulado (Re)Produzindo muüeres üabaJhadoras. faço uma discussão pormenorizada das práticas de gestãocomo práticas educativas e dos modos de ensinar no e para o trabalho. enfatizando a implicação dessas práticas no processo detransformação das mulheres em operárias

Finalmente, em Deuses/as, wtímas ou wborgsP apresentouma espécie de "análise da análise realizada", com algumas reflexões a respeito das possbilidades e limitações implicadas nos referenciais teóricos utilizados

A lógica que estruturca este livro não permite. é verdade, nenhum triunfallsmo intelectual. nem, tampouco, alguma celebraçâo viLorioí;a. Antes de apontar soluções e prescrições, ele serve al)rol)(5f;Idos de demarcação de um modo crítico de pensamento e(]e apreciação. que se encontra distante da utopia redentora e to-talizante para os (des)caminhos da sociedade, das ciências e dasprofissões. Força o reconhecimento da estreita ligação do fazeracadêmico com as práticas e lutas sociais. Por isso, à medida queadentro o tempo, faz-se e desfaz se enquanto conhecimento produzido e comprometido intelectualmente, fazendo suar a quem oproduziu. para mantê-lo fértil, historicizado e crítico.

Supondo o conteúdo deste livro, herdeiro e tributário de ummodo de pensar e cie apreciar o mundo social, ele pode ser visto comoum trabalho aberto. como um trabalho que necessita ser analisado doponto de vista de sua "hereditariedade cütural e acadêmica'

Afinal, por que escrevemos? Para quê? Para quem? Trata-sede necessárias indagações que, mesmo não produzindo imediatasrespostas pontuais, remetem o conhecimento nelas produzido aoâmbito das responsabilidades éticas e sociais.

Género, subÚetlwdade e üabaüo apresenta um estudo realiza-do por ocasião da minha tese de doutorado em educação pelaUFRGS. Enraizado em minha trajetória e fundado nas inquieta-ções tanto do ser mulher quanto do ser psicóloga e professora de-dicada à área do Trabalho, ele é tributário dos múltiplos desdobra-mentos críticos que o originaram e que o constituíram enquantoproblemática social e de educação. O que aqui foi escrito pode serconsiderado um dos efeitos de longos anos de reflexões e críticas arespeito do ordenamento social instituído, das funções sociais epolíticas do conhecimento científico, e de sua aplicação aos campos de atuação prática e profissional.

Não realizei esse estudo para dar nem para ter sossego. O quequestiono através dele, apesar de suas lacunas e limites, se colocapara mim como condição para que me mantenha politicamenteimplicada com a transformação social. Tendo surgido de inquieta-ções, mobilizou outras mais. denotando que, apesar de se ter decolocar limites às utopias, são elas que fundamentam as possibilidades da "ira" social e pessoal frente a um mundo que, não seconstituindo fora das relações de poder, necessita, sem dúvida, dealguma espécie de "cura" , representada pela capacidade conjuntade luta de todos/as aqueles/as que. a seu modo e a seu tempo, ain-da podem sentir-se "irados/as

No primeiro capítulo, sob o título Para a/ém da produção deóos e vestuário, considero aspectos característicos do complexoindustrial têxtil estudado por ocasião da tese, focalizando as unijades selecionadas para o estudo e abordando peculiaridades desua história e processo de trabalho. Priorizo particularidades da

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INTRODUÇÃO

Problematizar as condições da existência social das mulheres,sua constituição enquanto gênero feminino e sua posterior transformação em operárias signihca deixar de conceber e apreciarcomo naturais. fenómenos sociais e humanos forjados na históriae na concretude das condições materiais e simbólicas da ordemsocial. Implica um esforço para desfatalizar algumas das tramasnas quais se enredem os/as agentes e se constroem as evidênciasda "ncatllralizaçào" do arbitrário. possibilitando, quem sabe, fazerllti Ir. t;ol) Of; afeitos das "asas da história". mais do (lue o peso det.orinlnisLico de destinos sociais biologicizados e essencializados,lustificadores e legitimadores de desigualdades e injustiças entreos gêneros e as classes (categorias aqui contempladas).

Este texto baseia-se numa pesquisa realizada em uma empre-sa industrial têxtil do Rio Grande do Sul, que procurava focalizar asdiversas maneiras por ela utilizadas no intuito explícito ou não,escolarizado ou não de educar as mulheres para o trabalho têxtile a costura industrial. Enfoca. enfim, as formas pelas quais umaempresa transforma em operárias as mulheres convocadas para otrabalho industrial

C) permanente diálogo entre o capital e os gêneros é realizadoatravés dos referenciais da educação, em seus sentidos lato e esfrito. Faço aqui uma interseção dos campos do Trabalho, da Edu-cação e do Gênero, apontando, a partir de uma fábrica específica,algumas das tramas que se desenvolvem para a transformação demulheres em operárias.

No particular campo da Educação, lanço mão dos pressupos-tos da Sociologia Crítica da Educação, representada, prioritáriamente. pela teoria da reprodução de Pierre Bourdieu, na qual seencontram os conceitos de capital, poder e violência simbólicos, eo de habitas. Recentes estudos de Bourdieu relacionados à domi-nação masculina e à formação do habitua sexuado/sexuante sãoincorporados à$ discussões, fornecendo-se importantes subsídios

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às análises do tornar-se mulher a partir de prescrições culturaisque impregnam de poder a$ relações sociais.

O conceito de educação, por sua vez, é visto a partir de umaperspectiva mais ampla do que a da sala de aula, evidenciando-sedesde a materialidade da arquitetura e da disposição espacial aocontrole dos tempos e gestos, íatores essenciais no arranjo capita-lista do trabalho industrial. As circunstâncias concretas da vidasocial e cultural dos agentes e a utilização do que Bourdieu chamade senso prático tornam se. nesta abordagem, fundamentais àcompreensão de uma ordem de "aprendizagens" sociais que nãose incluem, propriamente, no estatuto da consciência e do plane-jamento racional.

como equipamento social desapegado do arranjo social capitalista e da hierarquização da força de trabalho. Trabalho e educaçãorevelam-se capazes de alianças e cumplicidades enquanto conjugam teses de dominação e exclusão social. Nessa abordagem,nem a educação nem tampouco o trabalho mostram se como possibilidades de transformação e mobilidade sociais

Este estudo encontra-se profundamente marcado pelas características do processo de trabalho capitalista, nomeando, dando vida, atribuindo ações, julgamentos e sentimentos aos pensovagens que encenam a dramaturgia do trabalho industrial. O capi-talismo encarna se nas relações entre trabalhadores/as, entre esLes/as e os gestores/as, e destes/as entre si próprios/as. Por isso, ocapital ganha um modo de vida e uma corporeidade particularmostrando-se arraigado nas mentes e no$ corpos dos/as agentesestudados/as, fazendo deles/as casos exemplares de sua força inculcadora e de convencimento. Inscreve-se, aqui, o campo da procaução industrial tanto na economia da produção de bens e produlos como na da produção de subjetividades, sendo que a economia do poder simbólico se encontra avivada na fábrica como o necessário respaldo à efetivação de processos educativos que visamà transformação da força de trabalho em trabalhadores/as

Aprender, nesse sentido, significa deixar se conformar, semdeliberação consciente, às regras dos jogos socialmente instituí-dos. Ensinar, por sua vez, implica, além da inconsciência do ato,prescrições e nomeações feitas em nome do poder simbólico, quedesigualam os sujeitos enquanto os constituem através de efeitosincorporados e duradouros, que assumem feições de uma nature-za cultivada ou de uma segunda natureza.

De algum modo, as aprendizagens da vida e do trabalho -.movidas pelo senso prático, mostram-se como constituidoras dospróprios agentes, que, por meio da incorporação dos princípios reguladores das estruturas objetivas, realizam, desde suas própriasações e "escolhas". o destino social que lhes está reservado enquanto classe e gênero. Homens e mulheres reproduzem, dessamaneira, a ordem social e cultural na qual se engendram, podendoreelaborá la e recria-la desde contextos e conjunturas específicas,sem deixar, contudo, espaço para a celebração do ideário triunfalista de uma educação "libertadora'

A fábrica, nesse sentido. revela-se como um lugar no qual otrabalho pode apresentar toda sua positividade. um local inspira-do na intenção da sujeição do próprio trabalho. um lugar que. tohavia, para ser entendido, deve ser enfocado para além da lógicado económico, da eficácia e da produtividade. A fábrica, paramuito além de um acontecimento tecnológico, deve ser vista comoum campo social permeado de lutas e tensões entre gestores etrabalhadores/as. com vistas ao domínio do controle da produção, que deve, em última instância, ser centralizado nas mãos docapital. A pluralidade de seus procedimentos para organizar eadministrar o trabalho mostra se como expressão da necessidadedo capital de alargar seu controle e poder sobre o conjunto de trabalhadores/as. suas práticas e experiências acumuladas duranteas atividades produtivas. A fábrica não se coloca como conceitoinocente, neutro e apolítico

Do ponto de vista das instituições sociais. família, escola e íábreca constituem um conjunto educativo solidário no qual cadauma das instâncias - a seu modo e a seu tempo - consolida a do-minação de classes e de gêneros com a devida adesão dos/as do-minados/as. Embora amplie o escopo de suas análises educativaspara além do contexto escolar propriamente dito, neste trabalhoenfoco a escola, quer como instância chamada a contribuir com osinteresses do capitalismo. quer como instância representada deforma ambígua no imaginário social do operariado e de suas famí-lias de origem. As análises que circundam a escola não a figuram

Desvelado em seus sutis mecanismos, seu processo de trabalho revela se também como trabalho educativo, à medidaclue possibilita a formação de um consenso social em torno de di

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versas crenças, dentre as quais uma das mais funestas diz respeitoà atribuição de causalidade individual aos sucessos e fracassosdos agentes. O fomento da ideologia meritocrática nas diferentesinstâncias sociais educativas (família, escola e fábrica) consolidaum dos pilares básicos do (neo)liberalismo, que, enquanto ristema político, atribui à livre iniciativa (individual e dos mercados)todas as chances implicadas na concorrência social, eludindo.de forma perversa, as estruturas objetivas de dominação. que,aprioristicamente, hierarquizam os sujeitos (e instituições), bemcomo suas (im)possibilidades.

ocupações. A categoria gênero revela-se, assim, não como meroepifenõmeno ao trabalho, mostrando se, ao contrário, nele inscri-ta. evidenciando-se como necessário componente estruturante,seja das subjetividades dos operários/operárias. seja da própria di-visão social e técnica do trabalho

Pressupondo se que o capital dialoga com seus agentes, nãof;temente como força de trabalho a ser consumida, mas como forçade trabalho especificamente selecionada para ser consumida, eque, desse modo, a produtividade não se limita à reunião/combinação de íatores de cunho técnico e económico, é necessário reconhecer que os sentidos sociais que signihcam a dimensão sexu-ada dos/as trabalhadores/as igualmente se aplicam à estruturaocupacional da sociedade e a impregnam. Isso significa dizer quea divisão social e técnica do trabalho não se realiza senão pela di-visão sexual do mesmo. Os sentidos das ocupações não se colo-cíim como inerentes e "naturais" às mesmas, mostrando-se, aoc;oiitrário, como consequências de uma construção social firmadalias crenças a respeito do que é ser feminino e masculino em umdado contexto e tempo social

Fabricadora de produtos, a fábüca coloca-se também comocampo de agendamento social e de fomlação das populações re-crutadas em trabalhadores/as, estruturando, nesse sentido, modos de ser, pensar e agir que, subjetivados nas instâncias intemasdo conjunto de indivíduos que nela trabalham, atuam como suportes eficazes da normalização social, de seu direcionamento emprol da ordem instituída. Utilizo formulações recentes do marxis-mo, expressas através da tradição de estudos sociológicos críticosque articulam processo de trabalho capitalista, educação. tecnologias de equipamentos e de subjetivação como referenciaisorientadores das análises que enfocam a categoria trabalho. Influenciando a deíhição do trabalho a ser executado por ho-

mens e mulheres. bem como os modos pelos quais seu desempenho é controlado e reconhecido. o gênero mostra-se importante noestabelecimento de políticas de emprego - remuneração, qualificação e carteira - adoradas pelas gerências. Opera ativamente nomundo do trabalho como um dos componentes estruturadores daassimetria das relações nele implicadas, reservando para agentes80xuados específicos lugares também especíãcos na produção,Influenciando a divisão intelectual e manual do trabalho, seu conprole hierárquico, bem como os processos de qualificação/desqua-lificação/requaliÊcação dos/as trabalhadores/as

Como sistema de sín)bolos, sentidos e privilégios atribuídosí\s diferenças percebidas entre os sexos, o gênero encontra-se es-truturado/estruturante nas fábricas como na sociedade em geral,revelando-se um conjunto de crenças e valores que cumpre umafunção política de impor e legitimar a dominação. E entendido.portanto, como componente fortemente marcado/marcante pelo/do poder simbólico, que, para além de estruturar as próprias iden-tidades subjetivas de homens e mulheres, revela-se como classiücador e divisor do próprio mundo social. E considerado, assim.

Grande parte da literatura sobre trabalho tem caracterizado aprodução como um lugar dotado da capacidade de unificar a pró-pria ordem do trabalho, garantindo espaço para a discussão dooperariado enquanto classe social. As referências sobre os sujeitosdo trabalho revelam que eles são ordinariamente tratados, então,de fomla masculinizada e universahzante. Outrossim, tais estudostendem a caracterizar a produção como fato exclusivamente eco-nómico e tecnológico, expurgando da mesma outros sistemas depoder de ordem cultural e simbólica - que têm se revelado comoelementos de aliança com o capital, impregnando se e estruturan-do os próprios modos de dividir e gerir o trabalho.

A articulação de categorias como a do gênero e a do trabalho,possibilita, pois, não só uma redefinição do conceito de força detrabalho, mas também o reconhecimento de que o capital dialogacom os gêneros masculino e feminino, tornando evidente sua capacidade e interesse, tanto de discriminar a "mão-de-obra-ideal"a ser utilizada em especíHcos postos de trabalho e particulares casos de fabricação. como a de sexuahzar ou "generiíicar" as próprias

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como um "elemento constitutivo da razão simbólica. tratando-sede uma ordenação do mundo hierarquizada em termos de umprincípio de valor" (Mana Luiza Heilborn, 1992, p. 105).

nhecimento e legitimação dos/as próprios/as dominados/as. Anecessidade tomada virtude permite que, através do referido oculLamento, os próprios agentes devotem-se a seus destinos e possam vir até a celebrar seus dominadores como possível salvação eEtilll)aro. A crença. adorada como consenso, regula os modos del )orceber. pensar e agir, fundando, assim, a ortodoxia, com grandeioíiisLência aos questionamentos críticos e hepáticos

Em um logo permanente e inesgotável de transferências e me-táforas. o poder simbólico relativo aos sexos é capaz, segundoBourdieu (1987), de estruturar "a conformação do ser e as formasde conhecer", estabelecer a concordância entre as estruturas ob-jetivas e as cognitivas, podendo classificar e valorizar, pela oposi-ção distintiva, tanto indivíduos sexuados como as próprias "coi-sas" . Tal valorização instaura, entretanto, marcos que ultrapas-sam o mero reconhecimento de diferenças. Ela $e impõe comomodo de identificar a assimetria, sendo capaz não apenas de divi-dir e desigualar, mas também de indicar a dominação masculinacomo "atitude natural" ou experiência dóxica, excluída de questio-namento e reconhecida como absolutamente legítima.

As fábricas. nas quais a ordem do trabalho revela-se comot)xemplo fecundo, mostram-se, portanto, como locais de produq:ões simbólicas, cuja função política é a de domesticar para domaalar e dominar para explorar. Como neste trabalho procurei anali-

:ir os modos pelos quais mulheres transformam se em operárias,l)o(leria dizer, de antemão, em outras palavras, tratar-se da ques-l.ílo (le sílber como, no interior de uma fábrica específica, realiza seí l (;liititlíida "cumplicidade ontológica" (Bourdieu, 1990)

Para Bourdieu lidem), o princípio de divisão que organiza talvisão de mundo não pode se libertar de um universo social do qualele recebe reforço constante, como expressão coletiva e pública.Assim, falar desde o local da fábrica e do trabalho nela executadoimplica o reconhecimento de que ambos são pari;es da imensa orquestração que "naturaliza" e legitima a dominação masculina.As fábricas são constituídas por sistemas de privilégios que se im-bricam no próprio ordenamento do mundo social. O entendimentodo chamado "laboratório secreto da produção" ultrapassa, pois, o$limites da economia propriamente dita, caracterizando se, igual-mente, por trocas de ordem simbólica que tanto o capitalismocomo o patriarcado - este último aqui tomado não como conceitoe sim como referência implícita e sistemática da dominação se-xual, de acordo com Mary G. Castão e Lena Lavinas (1992) projetam na realidade do mundo e das mentes. Os possíveis intercruza-mentos de tais eixos permitem situar a produção industrial comocampo social regido pela lógica da inclusão/exclusão, que, umavez tornada consentânea, permite a legitimação de uma dada or-dem cultural. cuja função política é a de sancionar um determina-do regime de dominação. Capitalismo e patriarcado, consensuali-zados como lógica necessária, inculcados, seja na ordem das coisas como nas subjetividades. orquestram, no conjunto de suaspossíveis combinações, a transmutação dos sentidos de dominação e exploração neles inscritos, bem como a extração do reco-

l )or rim, tento mostrar a força do arbitrário presente nos sistel ivif; cle classificação e de hierarquização sociais, que, longe de secolocarem como "naturais" e transcendentes aos tempos e conlexlos sociais particulares, revelam-se como seus possíveis efei-los, constituindo-se em eficazes instrumentos aos respectivos toIdos de poder que se encontram então instituídos. Assim como nãose deve explicar as desigualdades políticas entre homens e mulhe-res pelo fato de terem nascido biologicamente diferentes e, logo,l )elo rato de possuírem atributos naturais diferenciados, da mesmaE l iii ileira a própria escala ocupacional e as implicações dela derivat lít: ; l uio elevem ser analisadas a partir de conteúdos que as justifi[ ltiullt desde critérios emanados de uma suposta inerência

Os trabalhos existentes na sociedade e as ocupações delesr Ir)rivüdâs não possuem, em si, atributos que o$ qualifiquem como1(}rttiiliilos ou masculinos, superiores ou subordinados. Sua classel lc;; iç;íio. ílgrupamento. divisão e hierarquização dão-se como efei1,0f; ( lo ]i]]] modo estruturado de pensar e apreciar o mundo, erigido(lo:;(le a dinâmica de oposições homólogas, que se estende, por:liíi voz, a todo o universo circundante

O próprio pensamento, como um sistema internalizado dosítçlontes sociais, mostra-se, conseqtlentemente, estruturado pe-liit; estruturas objetivas sociais, passando. ele próprio, em umotiLro movimento, de estruturado a estruturante, visto que é ca

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paz de ordenar o mundo social em concordância com seu princípioconstituinte de dividir. separar e escalonar de acordo com princípios de (des)valorização.

Tensões, cumplicidades, conflitos podem vir a se manifestar comoformas de viver o intrincado jogo concorrencia] da existência

Por outro lado. a ul:ilização de importantes e anuais referenciaisfeministas confere a este estudo alguns desconfortos e desafiosii(lvindos da não sacrahzação de conceitos e categorias. bemcolmo do despudor teórico feminista em recriar seu objeto de estu-(lo, abandonando as formas concebidas que podem aprisiona lo,essencializá-lo e invisibilizá to. Confere-lhe, outrossim, comproinissos irredutíveis relativos à produção científica compromissadao política, tomando inadmissível a reprodução, no âmbito das ciên-cias sociais e humanas, dos pressupostos epistemológicos univer-t;ülizântes e androcêntricos

Afirmar, pois, que o trabalho passa por uma categorização degênero, quer dizer que ele é "generificado" . ou seja, que, enquantoatividade a ser realizada. é (des)valoüzado. segundo sua conespondência com os sentidos atribuídos ao feminino e ao masculinoem uma dada cultura e em dado tempo histórico. Trata-se, portanto, clo arbitrário cultural impondo-se na própria constituição desua valoüzação e prestígio sociais, devendo se situar sua análise.logo, para uma direção diametralmente oposta a de uma supostaessência natural e imanente.

O eixo que orienta as discussões a respeito do gênero como ca-tegoria de análise fundamenta-se no semanal conceito de Joan Scottj1990), sendo desdobrado em suas implicações políticas através deoutros recentes estudos, nacionais e intemacionais, que o consideram como pedra fundamental à re-signúcação das ciências sociaise humanas. Falta em gênero, pois, pressupõe fala de poder

Pressupõe, de forma igual, constituir uma nova tradição dasciências sociais e humanas. tidas como "sexualmente cegas" emmuitas de suas vertentes hegemónicas. As análises sobre a categol.ia trabalho têm sido dominadas por tradições teóricas que asaxiam os sujeitos sociais em conceitos universalizantes e mascuh-nizados, não ignorando, portanto, tão-somente a categoria gêne-ro. Os sistemas de raça/etnia e idade, só para mencionar alguns,mostram-se delas igualmente ahjados, o que reitera sua tendênciade fom)ular análises clue partem do pressuposto de que fazer parteda classe operária seria lá o suficiente para remeter a uma série decomportamentos e atitudes relativamente homogêneos

A ênfase dos estudos de gênero constitui-se em fato capaz deevidenciar que, na produção cientíhca, encontram-se também es-forços por visibi]izar os agentes sociais, abrindo lhes espaço e desasfíxiando-os do peso detenninístico, seja das estruturas sociais,seja dos próprios conceitos universahzantes nos quais se encon-tram alocados. Admitindo a história como tecida no cotidiano davida e procwando conhecer como os seres humanos produzem suaexistência, tais estudos introduzem, para a compreensão do social.o conceito de agência, ao qual se cola a própria noção de agente

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CAPÍTULO I

PARA ALÉM DA PRODUÇÃODE FIOS E VESTUÁRIO

11. Mulheres: A mão-de-obra ''ideal

O complexo industrial têxtil estudado é composto por deversas unidades que se situam em localidades distintas do País e doEstado. No Rio Grande do Sul estão as três unidades de naturezafabril, responsáveis pelo beneficiamento da matéria-prima a lãFiação, tecelagem e confecção de vestuário

Se, do lado dos fios, a importância do grupo empresarial emquestão se mostra bastante evidenciada, reconhecendo-se sua liderança no mercado, do ponto de vista do vestuário a situaçãoapresenta algumas nuanças importantes, não $e configurando omesmo fenómeno de liderança. E certo supor que mercados dizetentes reservam dinâmicas igualmente diferentes, não se podendoestabelecer paralelos comparativos entre os mesmos sem que se incorra em risco de simplificações. Na trajetória da fábrica de vestuá-r to. observam-se inegularidades no$ picos produtivos, bem como[ )l)strução de cenas empreendimentos de expansão de sua área delítl)ricação. que parecem reveladores do fato de tratar se de umtttercado com especificidades e dificuldades maiores do que aqueleiio (dual se insere a fabricação e comercialização de fios

l(m que pese constatar-se também, na área de fiação, oscila[.:o] )]; ( lo produção e decorrentes enxugamentos de estrutura mate-liil o (le pessoal durante os anos, parece, numa visão longitudinal,

lotoltt ficado reservados à área do vestuário. contudo. os sinais detlitiores perdas, um deles exemplificado no fechamento de uma

tiil[(jade de confecção industrial no interior do Estado (construídaoito 1 976 e atuante até 1992), face à necessidade de preservação do}ii:il.otila económico maior do grupo. Esse segmento industrial do{lrttl)o empresarial estudado - o do vestuário - mostra-se. sem dúvl( lít, muito sensível às oscilações económicas dos mercados, uma

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vez que, ao tratar de produtos relacionados à moda, necessita lidarcom as freqüentes modificações dos mesmos impostas pelas cole-ções adequadas a cada estação do ano e pelas tendências damoda intemacional.

pessoal na saíra baixa. . - isso depende muito da política do País, dasituação da empresa. . . tudo depende do que conseguimos no pedíodo de pique. Se vendemos muito, temos um retorno e, apesar dasobrecarga na época de pi(7ue sobre o pessoa/, podemos mantergente dentro da fábrica nas épocas baixas. Tivemos anos em que a})rodução despenhou e íoi todo o mundo pra rua. Não ficou nin-guém, sõ o mlnnno necessâno"'

Trata-se de um complexo industrial do ramo têxtil de fibra lon-ga que é totalmente verticalizado, atuando desde a compra da lãbruta, nas cooperativas, à entrega dos produtos ao consumidor fi-nal. Desde 1988, beneficia um terço da safra gaúcha de lã, transfomlando a em lã penteada, a fim de também atender às principaisfiações brasileiras e de exportar para vários países. No mercadobrasileiro de fios nos segmentos de fios para trica e crochê e fiospara malharia -, revela-se como líder de vendas. No setor do vestuário - masculino e feminino -, detém uma marca htemacional-mente conhecida, que ela própria distrbui através do branquea-mento de boutiques, e, sob licença, outra marca, líder mundial emroupas masculinas e esportivas de qualidade.

A sazonalidade, portanto, constitui-se. para a UF, em uma ca-racterística (lue interfere no vínculo empregatício, e, embora seperceba a preocupação dos gestores em relação à manutençãodos índices de emprego, pode-se verificar, na verdade, que nãoexistem políticas de Recursos Humanos que lhes assegurem a es-tabilização da mão de obra. Apesar das épocas de saía baixa serem consideradas, pelos/as gestores/as, como oportunas ocasiõespara o desenvolvimento de programas de treinamento e qualifica-ção de pessoal, não têm sido aproveitadas para tal, devendo serpreenchidas com a/grama coesa (7ue seca ]ucraüva paa a empresaPode-se depreender, daí, que programas de treinamento com vis-tas à qua[ificação da mão de-obra não são entendidos como lucracft'os, caracterizando-se. logo, de comia clara, aquilo que autorescomo Márcia de Pauta Leite (1994a, 1994b) e Ruy de Quadros Car-valho (1994) denominam de uso predatório da força de trabalho.

Para o desenvolvimento da pesquisa que subsidia este estu-do, foram escolhidas as Unidades de Fiação (UF) e do VestuárioIUV). sendo que ambas situam-se em município próximo à capatal do Estado, tendo suas plantas independentes, mas localiza-das na mesma área.

A UF ocupa uma área de aproximadamente 1.200 metros quatirados, onde trabalham cerca de cem operários/as por turno. emsua maioria mulheres, afora o pessoal dos setores de apoio, comomanutenção, controle de qualidade, segurança e demais servi-ços. Sua produção varia de acordo com a época do ano, sendo,por isso, considerada sazonal. Possui uma capacidade produtivasituada em torno de 300/500 toneladas de fio, índice previstopara a estação do inverno, época em que a produção atinge seumais elevado pico. Embora seja uma das unidades da empresaque vem apresentando, nos últimos anos, a situação mais está-vel, ou seja, com menor flutuação da demanda produtiva, enfrenta, em épocas consideradas fora da saíra, dificuldades em manterocupada a força de trabalho nela empregada, necessitando atéde cdaüüdade para evitar demissões em massa. São nestes termos que se expressa seu supervisor de Produção: "Fora da safraa gente passa muito trabalho, tem que ter até uma criatividade. Eum problema conseguir ocupação para o pessoal em a/grama coisaque se/a Jucraüva à empresa/ Necessariamente, não se demite

Por outro lado, parece igualmente evidente que as pressõeseconómicas que vem sofrendo a empresa, no sentido de sua so-brevivência, constituem-se em outro elemento para que a mesma não aplique esforços sistemáticos nas questões de estabili-zação e qualificação de sua mão-de obra, adorando, por conseÇJuinte, estratégias imediatas de $eu emprego e utilização. Oprivilegiamento de tais modos de gerir a mão-de-obra consti-tui-se, assim, em um dos pontos importantes que caracterizamíls relações de trabalho na UF, não sendo difícil, a partir daí. de-(luzir- se tratar-se de lógica que tem o sentido de garantir a manutenção dos salários em baixos patamares. Baixos salários,l)fixa qualificação, instabilidade do/no emprego resultam, sem(lívida, em problemas para o operariado, como igualmente para a

Oü grifos constantes desta fala e das seguintes são ênfases minhas

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empresa, que, nos tempos anuais de busca da Qualidade Total. sevê compulsoriamente impelida a buscar o envolvimento e a pari;icipação de seus/suas empregados/as.

itlenta na defesa do emprego, e não da produção. Tais argumentostentam, assim, convencer os/as empregados/as dos esforços dadual gestão empresarial em adorar condutas que têm como finalijade privilegiar a manutenção do emprego da mão de obra nosmomentos de crises produtivas. Ou seja, de patrões interessados nolucro, tomam se, acesa de seu proássionaZísmo, agentes sociaissensíveis" às necessidades da mão de obra, constituída prioritária

mente por mulheres. Parece tratar se de um esforço em produzir,junto ao operariado, uma imagem positiva de "patrão" , que, emboraproíissiona/ e, portanto, suficientemente racional para saber o quedeve ser feito para manter os interesses lucrativos da empresa, "sacritica os" , ao contrário da tendência geral de outras empresas.

Da observação do supervisor antes referido, de que o alcance,por parte da empresa, de um satisfatório retorno de vendas dá secom a sobrecarga na época de pi(7ue sobre o pessoa/, e de que daíderiva a possibilidade de manter gente dentro da /ábííca nas epocas baixas, pode:se inferir que as taxas de lucro estimadas semprese suportam na possibilidade de extração de mais trabalho do ope-rariado que, vivendo sob a permanente pressão dos tempos socialmente necessários à produção, transmuta, assim. o processo detrabalho industrial em processo de produzir mais-valia. Tal posicionamento se revela, por conseguinte, como um ar

aumento justiíicador da própria existência da empresa: ela existe'para dar trabalho aos pobres. utilizar braços ociosos" (MichellePerros, 1988, p. 20). O presidente do Sindicato tenta, desse modo,'poupar" os dirigentes de possíveis críticas, mantendo os numa

posição protegida, visto que confunde as decisões de gestãocom a crise económica do País, não considerando que os encaminhamentos adorados pelos gestores podem ser vistos comoopções adoradas frente às dificuldades existentes, e não comoimposição inelutavelmente inscrita em um destino imposto desde fora da empresa. Sendo que tais argumentos procedem de al-guém que não só se denomina sindicalista, mas que também é olegítimo presidente da instituição sindical, pode-se registrar umclaro estranhamento a seu posicionamento político, que se revelanitidamente a favor do patronato, o qual, além de ser protegido depossíveis ataques e críticas por parte do operariado, é glorificadocomo seu próprio salvador

Curiosamente, entretanto, na realização de tal processo quepermite à empresa atingir suas arbitrárias e ambiciosas metas lucrativas. o operariado se empenha, na verdade, para manter seuemprego. visto ter Ihe sido inculcada a idéia de que o que pesa noscustos produtivos são as despesas com a mão de obra que, por sinal, sempre é a primeira a ser descarnada e sacrificada em momentos de safra baixa. São Ihe sonegadas as possibilidades de com-preender que o seu trabalho ultrapassa a finalidade de geração deseu assalariamento, devendo, de forma prioritária, render muitomais do que está estabelecido como sendo o exíguo limite necesBário à sua reprodução como mão de-obra. Seu emprego e seu tra-balho existem, na verdade, para garantir a acumulação e a reptodução do próprio capital.

Nesse sentido, curiosas e ilustrativas tornam se as considerações do presidente do Sindicato, que entende que "os diretoresanuais da empresa. apesar do profissionalismo, lutam para que nãohaja demissões. . . A Diretoria está trabalhando hoje para conservara mão-de-obra, e/es não estão ÜMaüandopma lucrar, eles ü-aba}ham para consewar o emprego desse pessoal todo. Como sindtcrista. eu acho isso muito imporEantel Numa crise desta. o quequerem mais é embolsar o dinheiro e largar no mercado íinanceiro... Mias aqui acontece o contrário: eles estão investindo namão de obra. Daqü uns (quatro, cinco, seis anos, eles vão co/her oque estãopJantando hoje/ Pelo menos a mão de-obra está garantida. A mão de obra da mulherl "

Quanto ao horário, a UF opera em regime de tunas, sem nevezamento. fazendo cumprir as seguintes jornadas: das 5:00h às13:30h: das 13:30h às 22:00h e das 22:00h às 5:30h. Aos sábados,em geral, a fábrica pára às 20:30h, retomando suas atividades apartir das 5:30h da segunda feira, com exceção do pessoal quetrabalha no turno denominado "6 x 2" . Este é aplicado aos setoresconsiderados como gargalos da produção, em que se torna neces-sário manter o funcionamento permanente durante todas as horasde todos os dias da semana. Assim, 6 x 2 traduz-se como um regi[Be de horário em que o pessoal nele incluído trabalha seis dias efolga dois na semana. Segundo o supervisor da Produção da UniDessa forma, parece evidente a veiculação, na empresa, de

um discurso persuasivo. por parte de seu Sindicato. que se funda

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jade. trata se de um regime de horário que, do ponto de vista dooperariado, apresenta vantagens e desvantagens. sendo. entretanto, indiscutível que é o pessoa/ maü laçado que gosta do 6 x 2,pois vêem aí uma chance de ocupar uma de suas duas folgas comserão, ou seja, com trabalho para além da jornada normal de seutumo. Situação diferente se passa, nesse sentido. com o pessoalque cumpre horário "nomlal" : "AÍ não tem folga nunca. Trabalhasábado também. vem fazer serão no domingo e aí fica quatorze.vinte dias sem folgar" (supervisor da Produção UF).

ittll)la dos múltiplos alarmes luminosos dispostos em painéis. comvi:;Las a acusar quebras de fio. as máquinas se colocam ao mesmoi.( !tôpo como adversárias e aliadas das operadoras, impondo-se[ ;olllo algo que necessitam conhecer e dominar, para que continu-l PITA }ie mantendo como eficientes instrumentos da produção estal )i )l{)cada para cada posto de trabalho. Máquinas ruins, consertos

iítl feitos, deficiências mecânicas não detectadas, não só podemii iLerferir. como interferirão, de fato, na produção. Desenvolver.l )ois, uma curiosidade em direção ao conhecimento dos mecanis[))os da operação, afinar o ouvido para escutar ruídos estranhos àregularidade do funcionamento e observar e atentar para que osconsertos, realizados pelos mecânicos, sejam feitos de fomla "ho-l testa" e realmente corretiva. tomam se condutas que, com o decorrer da experiência adquirida pelas operárias, consolidam-secomo sua importante qualificação.

A UF é subdividida em setores de etapas produtivas craquea-gem, preparação, fiação e bobinagem - que executam operaçõesconexas, mas independentes entre si. Produz diversos tipos de fios,através de operações gemi-automatizados, em que a má(7uüa tocaa coisa. puxa a produção(gerente da Qua]idade), mas não(dispensan nhnnr-rnn4n n n in+nnrnnn8a nnnatarçtno dno/QO nnóradnrnoraacl \lIJDÇL vci\rav u ci lllbGI vç;ii\fuv u\.JiiDbciiiu\) \lva/ ao v J\)iu\lvi\jü/ çiü-

A distribuição de operários/as nos diferentes setores se mostra bastante desigual, havendo uma concentração de cerca de80% da mão-de-obra nas etapas de fiação e bobinagem. Nestas, asgrandes máquinas são operadas por operárias, sendo que cadauma delas "cuida" de um conjunto de três, disposto sob a forma decomedor. As operações são, portanto, conduzidas de forma indivi-dual por cada operária, sob a assistência/controle de dois contra-mestres para os turnos diurnos e de um para o noturno. Para cadacontramestre. são designadas duas auxiliares, que colaboram natarefa de perconer o "chão da fábrica" atendendo problemas coma maquinaria e com as operadoras. Mecânicos e alimentadorestambém trabalham no recinto executando tareias especializadasjunto às máquinas, além de outros, que auldliam nas atividades deapoio. O longo comprünento das máquinas, bem como sua quan-tidade para cada operadora, determinam que o trabalho seja reali-zado em pé e que, além disso, se desenvolva com grande rapidez,exigindo, de acordo com as palavras do presidente do Sindicato,que elas üoteiem em tomo das máquüas durante todas as horasda jornada, não podendo se afastarem das mesmas sem que solici-tem autorização e providência de sua substituição.

A circunstância de ter sua vontade de trabalho mediada peloFuncionamento de máquinas. a condição de adluntas das mesmas(lue lhes é imposta, levam a que as operadoras busquem sintoni-zar-se com o próprio mecanismo que as aliena e subjuga. Suas men-tes e corpos se aguçam no sentido da busca de um conhecimento tá-cito do processo produtivo, construído como uma espécie de eníren-lamento com as características da operação fabril e também em gireção à manutenção de seu emprego. A produção de üos, logo, não se(líl de fomla totalmente mecanizada, tomando-se impossível sem al)arLicipação, para além da força física, da mão-de obra

A repetitividade e velocidade das operações, sua realizaçãot)IH um ambiente com intensa poluição sonora, fuligem e altasl.cmperaturas, associadas ao isolamento dos postos de trabalho,fazem com (}ue cada operadora, em seu cotidiano, se feche e indavidualize num espaço concentrado, como sendo uma "pequenalí'ibrica" dentro da fábrica maior, à qual não cabe a possibilidade([a visão g]oba] e mesmo parcial, minimamente mais extensa, dol)rocesso de trabalho. A parcelização do trabalho e das trabalha-[ liras se realiza de forma exemplar, cabendo aos contramestres e;uas auxiliares o trânsito livre no espaço fabril, uma vez que seíicham incumbidos/as de realizar intervenções no mesmo, desdeIlha visualização mais abrangente do coletivo dos/as produto-res/as como da produção. A divisão técnica do trabalho instituídal)a UF se apoia predominantemente na fragmentação dos/as tra-

Máquinas e mulheres aí parecem celebrar uma aliança em for-ma de luta: imprimindo velocidade aos gestos e movimentaçãodas operárias, adestrando hes o olhar, (lue, além de atento, devemanter a dispersividade necessária para permitir a visualização

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malhadores/as, que se vêem constrangidos/as a uma atuação res-trita e parcial no processo produtivo. lltiíif; marcas internacionais. Abrigando cerca de 230 funciona

rlt):i/as, a UV tem sua jornada de trabalho compreendida das'/ 41)h à$ 17:30h. Vivendo atualmente sob intensa pressão de reItiq:íio de custos, opera, de acordo com seu gerente, com uma es

líti l.ti ríi bastante enxuta e raclona/. constituída pelo gerente, dois-. l it.t;iinestíes e três líderes (auxiliares de contramestres), sendoIt it ) o (liretor industrial é o mesmo para todo o complexo indus-.l t.il. Cada um/uma dos/as contramestres se ocupa de mais de:t 1111 f)e'ssoas, necessitando, por isso, do auxílio das operárias lí-

l loros. A UV conta ainda com encarregados e auxiliares dos seto-l ( lt; (le Tempos e Métodos, de Treinamento e de Modelagem e De;uitvolvimento dos Produtos.

A verificação de que as máquinas não prescindem das operadonas e de que estas desenvolvem operações cognitivas que nãose enquadram propriamente como aptidões meramente íisiológicas e musculares permite registrar que a simbiose entre mulheresx máquinas pode ser considerada, no mínimo, desde duas pers-pectivas: a primeira, referindo-se a que tal modo de relação pos-sa/deva se reverter como mais um dos ganhos do capital, e a sefunda, referindo-se a uma conquista operária, que possa/devaservir como base ao poder/controle das operadoras no processoprodutivo. Embora comumente seja visível a predominância daprimeira hipótese, não se deve. todavia, descartar a importânciada segunda, restando, pois, procurar saber em que condições eem que abrangência se toma possível sua realização.

A Unidade do Vestuário, de acordo com os depoimentos, seatou muito fortemente os impactos da chamada crise do governo( ;o//or. cujas políticas de exportações parecem ter sido somente1 1 rli (los íatores que vieram a colocar a Unidade em dificuldades det{)l)revivência. Para o gerente da UV, "isso é uma coisa antiga

l it )lo ano de oitenta, a coisa já começou a ficar mais difícil.. . agre-( líi(lo a alguma deficiência da administração da empresa, muitasl tltidanças. . . eu acho que isso também gerou problemas. . . a gentevivi (lue estava sendo mal trabalhado o problemas " Por outro lado,iíi l)oculiaridades do próprio negócio do vestuário parecem de

n i; l l )dar um trabalho muito complexo, dada a grande variedade delllt )(lelos, tamanhos, cores e tecidos nele implicados. As coleçõestiiti(Jam a cada seis meses, sendo constituídas de 130. 150 morte1{ ): 1 /\ exigência pela qualidade dos produtos, por sua vez. consti-l til l;e ein uma quase "obsessão" da produção, inculcada desde ar'tl )í )(:a da criação da Unidade. Conforme o responsável pelos Temit )li e Métodos. "o nível de qualidade, aqui nesta fábrica, é colocalo. íttnarrado na cabeça. Abre a cabeça e faz assim: qualidaciell

'l't )( lo mundo aqui tem embutida na cabeça a qualidades Aqui todoEltlll(]o está enfronhado com qualidade. porque os detentores das

boi;Has marcas são muito 'xaropes' nesse sentido. A gente faz a:oloção. manda pra Fiança e é um 'xarope'... não está bem aqui,

ttll... tios classificam em segundo lugarl"

No que se refere aos aspectos tecnológicos investidos na procaução, a UF comporta se como suas similares no País. não primando pela adoção de inovações em suas diversas etapas de transpormação. As inovações tecnológicas no setor têm se caracterizadomais por modificações e aperfeiçoamentos mecânicos sobre osmesmos princípios básicos de fabricação e de desenho do equipamento cio que por mudanças "revolucionárias" nos processos. Foia introdução das fibras sintéticas no Brasil, por volta da metade dadécada de sessenta, que permitiu à indústria têxtil não só a simpli-ficação da produção de fios como a automatização de algumas desuas operações. Foram, então, introduzidos controles nas máqui-nas que permitiram aumentar-lhes a velocidade de operação, chebando. em alguns casos, a triplicar ou quadruplicar a produção.

Os indicadores económicos, tecnológicos e mercadológicosdo ramo têxtil podem vir a auxiliar na constituição de uma aprecia-ção a respeito da problemática da Unidade de Fiação aqui analisa-da, revelando que as particularidades estruturais de seu funcionamento não se mostram independentes das tendências mundial enacional do ramo têxtil, não podendo, propriamente, ser entendidas como impulsionadoras e inovadoras.

A Unidade do Vestuário (UV) caracteriza-se por instalações demenor porte, sendo que as operações nela efetuadas devem darconta da produção de tecidos, como de vestuário masculino e feminino -, ligados. prioritariamente. à confecção de modelos de

/\ Unidade opera com características de sazonalidade. sendoEltit). lias épocas de saíra baixa, se ocupa em produzir modelosl )viril {Jrandes magazines nacionais. Sofreu. em sua trajetória, mui-llu l olicllações que se reíletkam na redução de seus anteriores trêslui l iol; do trabalho para um apenas, e ainda numa drástica redução

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de pessoal. de um número de mais de mi] funcionários/as para osanuais 230. Possuía, até poucos anos atrás, estrutura administrativa completa e independente da Unidade de Fiação, estando agora a operar numa perspectiva mais centralizada e bastante eco-nómica com relação a pessoal. Vive atualmente uma época demuita sobrecarga. tentando sanar os prejuízos sistemáticos quetêm se acumulado anualmente. Na opinião do gerente, "não podecontinuar por muito tempo isso aí, pois cria uma tensão muitogrande. uma carga muito forte, muito pesada, porque se cobra.inclusive eu mesmo estou vivendo esse problema: não consigoatender a tudo, fazer tudo. Não pode seguir por muito tempo, senão desgasta muito e aí...'

liicilmente separadas do processo de costura propriamente dito,;tendo este, por íim, igualmente divisível em uma multiplicidade de

l )oquenas tareias. Implementar com sucesso tal parcelização supõe;ill.o grau de controle administrativo e os necessários investimentosl iíi programação, nom)atização e controle da produção

E. por fim. tratando-se de produtos cuja vida comercial é limi-[.í ií]a, torna-se importante que o sistema de comercialização/marl<eLing seja conduzido de forma eficiente, sintonizada com as derltandas do mercado de consumo, estruturando se através de umaiirnpla rede de distribuição e vendas. O problema da comercializaçáo e distribuição é frequentemente apontado colmo um dos maisImportantes do setor

As anuais experiências em busca de seu equilíbrio e a urgência que marca seus procedimentos parecem evidenciar que a UVvive uma espécie de dissolução de sua identidade institucional,que estrutura, ao mesmo tempo que é estruturada pela impossi-bilidade de planejar seu futuro. O imediatismo dos procedimentos, a avalanche de lotes produtivos para clientes externos, aspressões pelo cumprimento de prazos competitivos. fazem comque a Unidade não somente "estranhe" seus próprios produtos,vendo-se invadida por modelos e demandas não habituais, comoigualmente vivencie tensões próprias de "tempos de guerra", emque a sobrevivência deve ser garantida. não a longo prazo, mas acada passar dos minutos.

Sendo a produção de vestuário centrada no binómio máquinatle costura/costureira, a UV revela uma grande dependência de suaFilão-de-obra direta que, segundo estudos realizados por Schmitzlapud Parva Abreu, 1986, p. 1 18), indicam que o manejo da má(quina(le costura nas fábricas de confecção está cada vez mab nas mãosdas mulheres e que os homens estão sendo deslocados para ocupaçóes mais qualücadas. como é o caso dos modelistas e cortadoresConstata-se, portanto, de acordo com os censos demográficos ana-l usados, uma crescente feminização da mão-de-obra empregada nafabricação de roupas, tanto no setor formal como no informal.

Dessa forma. as peculiaridades encontradas na UV apresenlíim-se consonantes com o quadro geral do selar, evidenciando,c;omo testemunham alguns depoimentos. problemas relativos à(;omplexidade, não apenas do processo de trabalho, como do sis-leina de comercialização dos produtos fabricados. A imposição,l )or outro lado, de critérios internacionais de qualidade dos produlos, bem como seu inspecionamento sistemático pela concessãorlária francesa, parece cear uma espécie de "camisa de força" aosmovimentos da referida Unidade, que se vê mergulhada em uma;arie de dificuldades que implicam, a essa altura dos aconteci-Enentos, sua própria sobrevivência.

Tanto quanto para o setor de fiação, demonstrados por algunsestudos como o de Parva Abreu (1986), uma das características doramo industrial do vestuário é o reduzido impacto das inovaçõestécnicas, sendo que o mesmo tem-se estruturado com base no bi-nómio máquina de costura/costureira. onde a maior parte do tem-po é gasta no manuseio do material.

Outra importante característica é a existência de uma estrutura industrial altamente heterogênea, grandemente influenciadapelo tipo de produto fabricado. A busca de uma estandardização'lnn nrnHBltnc- ,n a rndtlnãn Hn nlndifinanÃno diante dc3 rnlldannna dnLAVE) }JL\JL[U.bvD U Ç]. ]ULAL]\rC]v \JÇ ]]]v\A]]]vC]\rvDO \ ]ÇX]]bU \ \./ ]]]U\AULA\rU \ 4

moda e das estações nem sempre são objetivos conquistados, vis-to que a competitividade do mercado não permite a manutençãode pa(iões obsoletos em relação à moda.

Com relação a seu ambiente físico, o mesmo mostra-se de cerl.o modo acanhado, e sua poluição sonora não atinge os limites daiilsuportabilidade como na Fiação. Verifica-se, entretanto, a ocorr(]ilcia de altas temperaturas ambientais, devido à falta de ventilaCito e pelo tipo de produto que ali é fabricado. Os escritórios admi-Uma outra característica do setor diz respeito à alta divisibilida

de do processo de produção, sendo que todas as tarefas podem ser

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nistrativos da Unidade separam-se da área produtiva apenas poruma pequena passagem, e a estrutura de comando não se apõesenta tão hierarquizada como na UF (não possui o cargo de super-visão da produção), tendendo a haver, através da diminuição dosníveis hierárquicos, um maior envolvimento dos/as gestores/ascom os/as operários/as.

Sendo responsável pela fabricação de parte dos tecidos quealimentam a confecção do vestuário, a UV divide-se em dois gran-des setores produtivos: o da Tecelagem e o da Costura. Ambostêm suas operações programadas de acordo com uma sequênciaoperacional predetem)inata, que inclui métodos e tempos deter-minados por critérios de medida intemacional. Inclui o exame dosmicromovimentos que se fazem necessários a cada uma das ope-rações, a particularidade de cada tecido que será utilizado no pro-duto e o estabelecimento, a partir da análise preliminar de cadamodelo, de prescrições de tempos e movimentos para a produçãodo mesmo. A manutenção de padrões estandardizados para a pro-dução, seja de tecidos como de vestuário, garante à empresa umcontrole de qualidade mais eficiente, como o estabelecimento detaxas de produtividade sintonizadas com as características decada produto/modelo fabricado. Em que pese, logo, estar a produ-ção em grande dependência de um trabalho quase que artesanalde sua mão-de-obra. percebe-se que a adoção de uma programa-ção minuciosa e uniformizada por parte da administração reve-la-se como sua necessária contrapartida de controle

O buxo do setor de Costura é iniciado com o corte do tecido deíi(;ardo com os moldes fornecidos. Cada uma das peças cortadasl.oi l ia-se uma subpeça, que é, então, distribuída às Costureiras, deíicordo com seu agrupamento em células de produção e/ou filesl l lo de acordo com seu posto de trabalho individual. Conjuntos de

l \í\quinas de costura definem conjuntos de operações a serem rellizadas, observando se também, no recinto, longos corredores

l ios quais se distribuem máquinas de costura/costureiras, cine tral)olham de forma individual. O trabaho em células foi introduzidoliá aproximadamente cinco anos e tem como objeUvo, de acordouom a contramestre entrevistada, "tornar as pessoas polivalentes( lue o serviço saía mais rápido e que o custo diminua". As operaç:ões do setor da costura compreendem. além do corte, a montagem, cuja finalidade é reunh todos os elementos componentes dapeça, fazendo-os passar, até a montagem definitiva, por múltiplasoperações - roya/, remalhagem, etc. Apenas quando completada

montagem, a peça passa para a vaporização, que visa estabilizá la, e, finalmente, para o acabamento, que consiste na verifica-ção de suas condições de ser consumida. Inclui a colocação da gri-te, a conferência de seus padrões de medidas enfim, os procedibentos de garantia da qualidade nos padrões estabelecidos .

As atividades de fabricação são realizadas, nesse setor, exclu-sivamente por mulheres, que, tal como na UF. realizam uma simbiose com as máquinas. dessa vez muito provavelmente facilita-das por sua familiahdade com o equipamento de costura. emborao mesmo adquira, no contexto da fabricação, dispositivos e finali-dades distintas das de seu emprego doméstico. A leveza do equi

lamento e o fato de o mesmo não se caracterizar como totalmenteautomatizado e, por isso, depender do impulso motor humanopara ser acionado, parecem permitir às costureiras um maior conIsole e uma decorrente aliança, o que pode fundamentar uma ilu-são de sua maior autonomia enquanto trabalhadoras

No selar de Tecelagem verifica-se um avanço no sentido damodernização dos equipamentos, que, atualmente, são dotadosde dispositivos eletrõnicos. Os teares nesse setor são circulares eretilíneos, exigindo dos/as operadores/as que alimentem a máqui-na através da colocação do fio, retirem os rolos de tecido, quandoprontos, e vigiem o transcurso da operação, no sentido de garantiro atendimento dos padrões necessários quanto à gramatura, lar-gura, etc. A programação das máquinas é realizada pelo contra-mestre do setor, que. juntamente com os/as operadores/as e regu-ladores. compõem a mão de-obra necessária à tricotagem/tecela-gem dos fios. Cada operador controla de quatro a cinco máquinasApós o trabalho nos teares eletrõnicos, os rolos de tecido passampara a lavanderia. onde são vaporizados, lavados. "acomodadostinturados e inspecionados. Entram, assim, como matéria-primado próximo setor: o da Costura.

Digo aqui "ilusão" de uma maior autonomia devido à suposi-ção de que. diferentemente das operadoras da UF, cujas máquinasmovem-se independentemente do impulso humano, as costureiras sabem serem elas as responsáveis pelos impüsos ao motor dariláquina de costura, mas desconhecem que, por se encontrarem;ubmetidas a um rigoroso controle dos tempos necessários à fa-l)ricação, devem elas próprias se "auto-acionarem" com vistas aobterem da máquina aquilo que as metas de produtividade lhes

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impõem. Ou seja, através de um processo de habituação com otrabalho e de internalização das exigências gerenciais quanto à rapidez, precisão e qualidade da fabricação, elas próprias, a partir deseu impulso particular. se auto-impõem ritmos e velocidades as-semelhados aos de suas colegas operadoras da Fiação, cuja situação. como já referido, mostra-se inversa.

(l(}u da Sirva. 1990. p. 157), servindo, portanto, à legitimação dasriiesMas. A situação assume feições até chocantes, quando se(;empreende que os tempos a serem despendidos em cada uma(las operações são extremamente apertados, para não dizer "im-l)osslvels". o que ocasiona que apenas "duas ou três na fábricac;onseguem superar a marca da produção normal" (responsável(los Tempos e Métodos). Ao estipularem marcas produtivas quelao $e encontram ao alcance das possibilidades humanas, os ges-

lores utilizam uma metodologia de "motivação" para o mais-tragalho que supõe a capacidade de se deixar ludibriar das trabalha(Jotas, que, gratas à empresa pela conquista de seus empregosestimuladas pelas supostas chances de aumentarem seus min-!suados ganhos mensais e inspiradas na moral ideologizada dameritocracia, vêem a si próprias como as responsáveis pelo fato desua baixa remuneração.

Conforme relata o responsável pelos Tempos e Mlétodos, a mensabem que se lhes passa é a seguinte: "Isso a(lui é uma fábricas Vocês vão ter um minuto e meio pra pregar o zíper. não dum horascomo vocês faziam em casal" Por outro lado, a fala de uma funcionaria com larga experiência no trabalho de confecção(32 anos de empresa) denota muito precisamente o aspecto que aqü quero ressaltar

o da intemalização dos tempos produtivos: "Eu nunca trabalheicronometradal Não preciso de cronometragem, porque, quanto maiseu produzo, mais eu ganho. E meu interesse não parar'

Essa fala traz. contudo, outras implicações como as referentesaos prêmios de produtividade instituídos na UV. Se, no entenderda trabalhadora, o fato de trabalhar mais gera-lhe aumento de ga-nhos salariais, pode-se pensar, portanto, que a internahzação dostempos produtivos se vincule de uma forma muito estreita a doisfatores: a conservação do emprego e a possibilidade de aumentode ganhos mensais. A percepção das máquinas como sendo, se-gundo um dos depoimentos colhidos junto às costureiras, uma gaJüha de ovos de owo. pode aul<iliar a entender o quanto de ilusórioexiste na relação de simbiose das operárias com "suas" máquinas.

O capital ganha, dessa forma, duplamente: extraindo maisl,rabalho "espontâneo" de sjua força de trabalho e ainda mantendo-a "motivada", porque sempre submetida aos níveis básicos dellecessidades materiais para sua sobrevivência. O alcance dos})rêmios prexãstos, contudo, não deve levar a supor que os mes-mos alguma vez pudessem se constituir em solução às dificulda-(]es económicas das operárias. Sua possibilidade de ocorrência esua simultânea impossibilidade de alcance concreto se colocamcomo suportes para a manutenção de uma "motivação espontaneesta" para altos ritmos de trabalho e também como critério. aosç gestores, para avaliarem sobre a permanência ou não de cada em-l )regada, que será tanto melhor percebida (quanto mais dedicada eoinpenhada no alcance e superação das metas produtivas. Os prê-tnios quase nunca atingidos revelam se, portanto, como institui-ção clue. ao contrário de recompensar a superação das marcas coilumente estabelecidas, serve para elevar o próprio ritmo "nor-

tnal" para a simples manutenção do emprego

Outrossim. o fato de se saber que só muito raramente tais prê-rnios são concedidos leva a perguntar: o que acontece, quando asatletas produtivas estabelecidas pelas gerências são atingidas? Aresposta parte das próprias trabalhadoras: "Como trabalhamos porrUeLa, quando a atingimos isso é divulgado e comemoramos, por-tltie realmente é uma vitórias O nosso gerente também. Ele estátíiula a gente, motiva. A gente tem retorno. O retomo é mais norlloraJ. A gentejá sabe isso, e a gente batalha é pra vencer a meta

A transmutação de sentidos que estrutura a relação de trabalhode tais operadas é capaz de ocultar os interesses do capital investi-dos na intensUicação do trabalho, colocando, em primeiro plano, aspossibilidades de aumento de seus ganhos individuais proporcionalmente às quantidades fabricadas. Se íor recordada a mençãoque anteriormente íiz a respeito da veiculação, na empresa, de umdiscurso persuasivo que enfatiza o emprego e não a produção, podese acrescenta-la a este quadro de análise como mais uma das facesocultas do capital, que, dizendo-se prioritariamente interessado emproporcionar empregos à sociedade, traveste seus reais interessespelas feições encobridoras de um assistencialismo social.

Tais ocultamentos pemlitem. ainda, que "se transmutem emnatural' e 'justa' aquelas diferenças económicas iniciais" que es

truturam as relações sociais do trabalho assalariado(Tomaz Ta-

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mesmo . .A gente Éaz porprazer e por querer vencer a meta. .A gentetem que fazer, a gente quer fazer, e a gente luta pra consegukl'(operária líder UV); "Nós gostamos que o serviço ande. A gentequer que o serviço ande, que renda. .. a gente trabalha por produ-ção e pode até ganhar um acréscimo no salário, sabe? .Aquilo alíacenava mato, ajuda que o serüço saia. Quando o serviço atrasa,a gente fica nervosa, fica louca, não vê a hora de fazer, de tiraraquilo dali, que tem que sair, tem que sair. Eu não consigo traba-lhar com pilha em torno de mim, dá uma agonia.-- a gente sempretá fazendo, e a pilha sempre está ali. a gente faz e não rende, pare-ce (lue a gente est:á trabalhando e ao mesmo tempo nào está tubafiando... " (costureira UV).

frente o interminável trabalho industrial e o insaciável interesse deacumulação do capital

A operação de transmutação daquilo que deve ser feito para oque deve ser desejado e lutado por cada operária, ou seja, de umadeterminação externa em uma disposição interna. revela. de for-ma exemplar, a "cumplicidade ontológica" e a "boa vontade cultural" referidas por Bourdieu (1980, 1992), das quais se engendra avirtualização da necessidade. A suposição de que a empresa deve.portanto, "educar/socializar" suas trabalhadoras com vistas à obtenção para além de sua adesão de sua devoção ao empreendimento capitalista se mostra plenamente ajustada à situação emanálise. Da mesma forma, revela-se aqui bastante ajustada a lógi-ca bourdeuana do campo, cuja economia interna mostra se dana

mizada pelas anões dos agentes na busca de vantagens que seusinvestimentos podem lhes conceder. Tais vantagens, referindo-seao plano da ordem simbólica. revelam-se como luta pela visibilidade, por status e prestígio

Como pode-se observar, entre as camadas de chefias da fá-brica, nas quais se inclui a operária líder acima referida, pareceexistir o conhecimento da inalcançabilidade dos prêmios produtivos. porque há o explícito reconhecimento de que a gente sabenisso. O retorno é mais no moral. Tal reconhecimento, contudo,não se verifica no depoimento da costureira, que parece real-mente acreditar na possibilidade do alcance do acréscimo do sa-/áHo. Tais fatos apenas vêm consolidar a idéia de que o entrelaçamento de metas produtivas e prêmios individuais de produtivi-dade dá-se como forma. não apenas de extrair mais trabalho dasoperárias, como de fazê-las empenharem-se "espontaneamen-te" e de acordo com seus interesses e necessidades individuaisno alcance das metas estabelecidas.

Por outro lado, quando tentam as operárias solucionar, atra-vés da intensificação de seus ritmos, aquelas "agonias" internasoriundas da percepção de que se encontram diante de um traba-lho que as consome e exige nunca parar de fazê-lo e, quem sabe,ainda movidas pelos receios cio não alcance das metas estabeleci-das e, portanto, da provável perda do incentivo salarial e mesmode seu emprego, confirma se, de acordo com os estudos de Christophe Dejours (1987, 1988), a consecução da exploração que o ca-pital realiza sobre o próprio sofrimento psíquico engendrado noprocesso de trabalho. A tentativa por parte das trabalhadoras dese verem livres das palhas a seu redor como forma de se aliviaremda prolongada permanência das pressões produtivas, pressões es -tas que se articulam também ao modo como são apreciadas, posi-tivamente ou não. pelas chefias, permite importantes resultadosao capital, que se torna, assim. capaz, não só de retirar proveitosdessa espécie de psicopatologização do trabalho, como se constatui em seu principal produtor

O empenho das operárias para tal obtenção náo se mostra, en-tretanto, desprovido de tensões, gerando-lhes, como referido nodepoimento da costureira, situações de agollia e pressão internapara se verem libertas das exigências de uma situação capaz deconferir lhes uma percepção de não trabalho exatamente quandovivenciam seu maior pico produtivo. O dizer da costureira de queparece que a gente está trabalhando e ao mesmo tempo não estátrabalhando, aliado à frase da operária líder a gente tem que üzer, a gente cruel fazer, a gente luta por conseguir - expressam secomo importantes má>cimas nas quais se apóia a exploração dasoperárias. Estas, tendo internahzado, não só a moral do trabalho.mas os valores (e sanções) atribuídos à produtividade pela empresa onde trabalham. extraem de si próprias, portanto. com seu pleno consentimento, o máximo de forças que possuem para levar à

Seria, neste momento, de também perguntar, tal como o fezPerros (1988, p. 35): "Na verdade, não surpreende que a máquinanão tenha lüerado as mulheres. Algum dia ela liderou alguém?"Acrescentando: nesse particular caso, não só não libera. comocria novas amarras que, assumindo feições de uma consciência

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moral do trabalho, dominam os corpos e as mentes dos/as tubaIhadores/as para domestica-los/as e deles/as retirar, juntamentecom todas as energias possíveis, também os próprios sonhos deindependização e liberdade individuais .

A correspondência entre ocupações e habilidades específicasa homens e mulheres conduz-me a considerar que, em geral, atri-buem-se às mulheres aquelas atividades laborais que, supostamente, prescindem de força física, inteligência, racionalidade e capaciJade empreendedora. Se, nas operações de fiação, o emprego femi-nino é justiõcado porque "elas têm mais paciência para emendar ofio e mais habilidade manual para dar os nós"(diretor industrial)também nas de tecelagem e de costura encontrar se-ão múltiplosmotivos que fundamentam a divisão técnica do trabalho, desde oscritérios e valores do gênero, como antes referi

No que diz respeito à distribuição da mão de obra pelos diver-sos setores da UV, observa se que o setor de Tecelagem comportaem tomo de 45 funcionários/as, sendo que 70% destes/as são muIheres. As operárias, entretanto, não realizam propriamente asoperações diretas de tecelagem, estando alocadas em outros pos-tos de apoio às operações, em especial naqueles relativos à inspeção de qualidade. A operação dos teares eletrõnicos é realizadapor homens, sendo tal fato atribuído a motivos diferentes por doisdos entrevistados. Para o contramestre da Tecelagem, o emprego de homens na tecelagem é "porque se trabalha com rolos de tecêdo, que são muito pesados. Cada um tem mais de 10 quilosl"Já para o encanegado de Tempos e Métodos, a utilização ciemão-de-obra masculina no setor deve se não apenas ao fato deque o trabalho é mais pesado, e sim "porque é mais difícil, tem queconhecer a máquina, os pontos, regulagem, cuidar da bobina. Alitem mais inteligência. Tem homem ali não é só por causa do peso,mas por causa da inteligência'

Entretanto, quando se sabe que, para além de dividir, trata setambém de uma operação que hierar(Juíza os trabalhos e os/as tra-balhadores/as em termos de carreira, remuneração e prestígio,vê se, sem dúvida, que a estrutura e a organização do trabalho inciustrial se encontra impregnada de sentidos políticos que, nessecaso, apontam para a desvalorização e interiorização das mulheres

Em Paul WiUis (1991, p. 86), pode-se constatar que "um ofícioé julgado não por si mesmo, nem mesmo por sua recompensa fi-nanceira geral, mas por sua capacidade em proporcionar o papelcentral, doméstico, masculino. para seu incumbente" . Ele obser-va que o envelope salarial está revestido de um fetichismo queindica uma maneira masculina de ganhar a vida, sendo, nessesentido, um símbolo do machismo, que sustenta a centralidadeda figura masculina como aquele que "ganha o pão", enquanto aesposa trabaha para os "extras". Para Willis (1991, p. 187): "lon-ge de o patriarcado (- . -) ser uma relíquia inexplicada de sociedades anteriores, ele é um dos próprios pivõs do capitalismo em suapreparação complexa, involuntária, da força de trabalho e na re-produção da ordem social"

Por sua vez, nos setores de inspeção na UV, denominados deüsita, segundo ainda o mesmo contramestre, "nunca tentamosbotar homem, porque acho que os homens se sentem constrangi-dos, porque é uma inspeção, uma visita, um serviço mais pelicado, com agulhas.

Como pode-se depreender, a alocação de uma mão-de-obrasexuada específica em cada um dos setores produtivos fundamenta-se em representações e crenças existentes a respeito doque devem ser os atributos de masculinidade e de feminilidade.Atentar para o conjunto de falas que expressam tais crençasleva a notar que, em geral, é imaginado como masculino tudo oque diga respeito a máquinas - grandes e difíceis máquinas e,como feminino, tudo o que pode ser feito com as mãos, com deli-cadeza e paciência. As palavras da responsável pelo setor de trei-namento da UV se encaminha nessa direção: "A pessoa tem queser calma, habilidosa, tem que ter atenção sobre o que está fazendo, tem que ser bastante habilidosa, com bastante capricho. . . temque ter jeito. . . jeitosa e delicada.

Diversos depoimentos permitem apreender a idéia de(iue oshomens podem aré aprender isso tudo, o que parece não ocorrer.todavia, por dois principais motivos: um deles refere-se à crençade que o ato de costurar é um trabalho próprio de mulheres, reco-brindo-se, portanto, no imaginário social. de significados de femini-lidade que poderiam "abalar" a convicção social de "aquele é umhomeml " Os "cosa;ureiros" poderiam, consequentemente, se perce-ber emaranhados em situações de desconforto e descrença socialquanto à sua própria masculinidade e virilidade. O outro motivoresulta de uma decorrência dieta do primeiro. Referindo-se ao

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baixo salário de uma "costureira" , aponta para uma imediata cor-respondência entre trabalho de mulher/trabalho mal pago, levelando se, assim, uma das importantes facetas da aliança entre ca-pitalismo e patriarcado (como elucida a fala de um dos entrevistados: "Um homem pode até aprender tudo isso, mas e/e não vai sesubmeter a ganhar o que uma costureira ganha... ele tem famíliapara suster tar. . . pra homem não dá. . . a m ulher complemen ta o sa-/áíío do marido" (responsável de Tempos e Métodos).

idem senão a quem já se colocou como produtora de uma auto-imagem que se mostra como reprodução de sua suposta infernocidade social. Se os fatos da vida não são capazes de se contraporem, por exemplo, à idéia de que supõe serem APENAS os homensos exclusivos provedores de suas famílias e que as mulheres ope-rárias trabalham, portanto, MERAMENTE para os "extras", trata-se de indagar de que e como é feita essa aprendizagem que seabate sobre as mentes e os corpos dos agentes sociais, a ponto decega-los pua as mais visíveis evidênciaslA crença reconente de que o homem é o legítimo provedor fa-

miliar confere, por consequência, uma posição de trabalhadoracomplementar à mulher. evidenciando-se que "mesmo o capita-lismo, que a assalariou, não permitiu que essa identidade (a deagente reprodutora) se perdesse" (Mana Valéria Junho Peça, 1981,p. 15). Percebida e legitimada socialmente como agente da esferafamiliar e privada, a mulher vê se não reconhecida, tanto no campoda reprodução como no da produção, sendo compelida a manter-se, mesmo que apenas de forma "simbólica" e aparente, sob adependência de homens. Se os fatos da realidade revelam que asmulheres trabahadoras muitas vezes são as reais provedoras dosustento íamihar, seja porque não possuem mais maridos, seja por-que nunca os possuíram, seja porque os mesmos podem se encontraí empregados e mal pagos, desempregados ou mesmo doentes,pode-se pensar em um cultivo e em um recultivo da "crença" deque mulher é meramente uma trabalhadora complementar e quedepende economicamente do homem. Pode, ainda, servir a estecomo uma espécie de "vitória" que tenta Ihe garantir, mesmo queseu capital material Ihe seja suprimido ou escasso, a posição de dominante no ordenamento das relações entre os gêneros. Supor efazer sustentar a crença de que cabe exclusivamente ao homemprover o sustento íamüiar significa desconhecer o trabalho assala-riado feminino e as motivações que o sustentaml não apenas des-conhecê-lo como não o reconhecer e legitima lo, como aquele reagizado no ânüito doméstico, invisibilizado e desqualificado.

O reconhecimento de que a atribuição de gênero ao trabalhopode estar fundamentada em um costume, conforme muitas vezesé aludido, isto é, de que se trata de algo que, então, não se encontra inscrito como essência natural do próprio trabalho, não chega,mesmo assim, a introduzir sequer pe(luenas suspeitas nas mentesconformadas socialmente, que se mostram plenamente predis-postas a considerarem como natural o que, na verdade, é um cos-tume, ou seja, o que existe a partir do cultivo social, possuindo,logo, um caráter de relativismo e de finitude, porque fundamentado em um modo de ver e apreciar historicamente construído

No imaginário social firmam se, contudo, crenças sociais queprescrevem: às mulheres, os trabalhos de menor visibilidade secial, de maior suportabilidade aos ritmos repetitivos e velozes e demaior precisão motora. Suas mãos são instrumentos domadospara a paciência, seu corpo tomou-se domesticado pelas exigênclãs do "outro/masculino" , sua mente é fraca, enquanto é forte egrandioso seu coração. Paciência, persistência e obediência, alia-das a um coração capaz de suportar ser emudecido - essas são al-gumas das possíveis idéias que fundamentam a dominação e a exploração das trabalhadoras

Se efetivar a conespondência entre as ocupações laborais com a ordem simbólica masculinizante/íeminizante revela se comoum arraigado costuroe, pode-se constatar, também nesse local,uma transmutação do cultural, que passa a ser tomado como narural e essencial, como ilustra a fala de uma das contramestras dacostura: "Esta empresa deve ter uns cinqüenta anos e nunca tentou põr um homem na costura... Eu acredito que até eles possamfazer. . . mas eu acho que isso é trabalho de mulher. costura é serü-ço de mulherl Homem é para fazer outro üpo de serviço- Há sécu}os.. . se a gente íor vemos filmes, nos livros antigos, sempre quemcostwa é a mdherl

Tal como fomiula Bourdieu (1987), o desconhecimento tor-na-se a base da dominaçãol Ou seja, na fábrica estudada é notávela capacidade de transmutação de sentidos, ocultamento da domi-nação e de racionalização mítica que, ao procurar explicar, ilude,ao procurar justificar, coage e íaz consentir. produzindo. dessa íeita. para além de fios. tecidos e vestuário, a adesão e devotamentodas trabalhadoras a explicações que não convencem e não persu

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Dizer que há sécüos cosera é serwço de m umer(aqui poderiasubstituir o trabalho costura -: por tantos outros como o cuidardas enfermeiras, o ensinar das professoras, o emendar os nós dasfiadeiras, etc.) indica a existência de uma crença social de longaduração que se fundamenta em uma determinada concepção defeminilidade, entendida como própria e natural às mulheres .

devido ao fato de que foram educadas para isso; isto é, os corpos,tomados desde suas diferenças biológicas, constituem-se. elespróprios, como a base material na qual se assentam os processossociais de diferenciação entre homens e mulheres e se justificamas desigualdades entre os gêneros (biologização do social)

Por sua vez, as próprias mulheres, que se tomaram efeitos dosprocessos educativos, regulam-se intemamente de acordo com o'seu destino de gênero" e o fazem com tal empenho e devoção, que

se torna diHcil não conceber seus modos de ser e sua própria hexíscorporal como não pertencendo à "natureza de sua pessoa" . Cele-bram. pois, através de seu consentimento, "uma comia de dominação que repousa quase que exclusivamente sobre a violência simbóhca, isto é, sobre o desconhecimento. . ." (Bourdieu, 1990, p. 29)

Tal crença, segundo Bourdieu(inédito, s/d), recobre as mulhe-res e seu próprio corpo como uma identidade natural, pensada e de-signada como seu "caráter" , seu ser profundo, a "natweza de suapessoa" . A naturalização da feminização das mulheres é, assim, ne-gada enquanto processo cultural e social, indicando, por conseguin-te. que para ser mulher basta nascer fêmea. A biologização do so-cial implícita a tal premissa indica, outrossim, que a identidade fe-minina das mulheres pertence à natureza, estando nelas inscritacomo um destino inerente. inelutável, fixista e a-histórico.

Para Bourdieu, o fundamento da exclusão feminina que o sistema mítico-ritual ratifica e amplia, a ponto de fazer dela o princí-pio da divisão de todo o universo, não é outra coisa senão a dissi-metria fundamental que se instaura entre o homem e a mulher noveneno das trocas simbólicas. Tal dissimetria origina se, não deoutra coisa senão do destino naturalizado que, engendrado emmodos de apreciar e valorizar as diferenças sexuais, inculca-senas mulheres, pela via de seu corpo, e não de sua consciência, tor-nando-se-lhes muito difícil o rompimento de uma cadeia contínuade aprendizagens inconscientes, realizada pelas sucessivas gerações. A manutenção da dominação masculina por muitos e muitosséculos tende a fazer com que a mesma seja tomada como fenomeno subtraído do tempo social e pertencente, pois, ao eterno narural. A dominação masculina e seu par de oposição homóloga asubordinação das mulheres - perpetuam-se, portanto, para alémdas transíomiações dos modos económicos de produção, consta-tando-se que a própria revolução industrial pouco afetou a estru-tura tradicional da divisão do trabalho entre os sexos. Isso aconte-ce, sem dúvida, segundo Bourdieu (idem, p- 25): "porque encontraseu princípio e as condições sociais de sua reprodução na lógicarelativamente autónoma das trocas através das quais é assegura-da a reprodução do capital simbólico. ..

E, por fim, cabe colocar que, no jogo instituído no campo daprodução, além de se legitimarem as desigualdades de classe e degênero das trabalhadoras, ocone uma tendência à sua perpetuação, visto os critérios de recrutamento de candidatas ao emprego

Identihcar as mulheres como pertencentes à ordem da nature-za significa, portanto, exclui-las da ordem humana, a qual perten-cem os nascidos machos os homens masculinos -, legítimos pordadores do estatuto de humano. As implicações decorrentes de tallógica, simultaneamente diferenciadora e dominadora, estendem-se, como mostram os/as autores/as da temática. à própria ordena-ção do universo, que é hierarquizado e organizado por princípiosde diferenciação e divisão, dentre eles o sexual.

A atribuição de atributos de masculinidade e de feminilidadea trabalhos específicos e sua direta correspondência com umamão-de-obra sexuada particular pajem, como se vê, de um sistema simbólico atribuído às diferenças entre os sexos que, paraalém de constituir identidades sociais masculinas e femininas,também ordena, segundo um princípio de valor, o próprio mundoe cada um de seus espaços. As consequências do fato íundante deestarenVserem as mulheres enquadradas em uma perspectiva na-turalizante e, logo, inferior à reservada aos homens, estendem se,por conseguinte, a tudo o que lhes é associado, o que suposta eobviamente passa a sê-lo "por natureza'

A complexidade da situação revela dados que, contudo, po-dem ser tomados como surpreendentes. Os ocultamentos pare-cem ser utilizados em diversas instâncias com vistas a manter talordem: para a instância da sociedade em geral, é negado que asmulheres foram feitas mulheres, não porque nasceram fêmeas. mas

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na empresa estudada - se apoiarem exatamente nas espécies decapital - económico e simbólico - que as distinguem como mulhe-res pobres. De acordo com a psicóloga e anual gerente de Recuasos Humanos da empresa, "damos preferência sobretudo a mu-lheres e em especial a quedas com mais idade e com Mãos, que te-nham mais compromissos, que não sejam tão meninas a pontode terem condições de pegar outro tipo de emprego no mercado.Pessoas procedem es da agbcuirura geralmente dão-se 'super-bem' conosco, porque as condições de nossas fábricas são muitopesadasl Nossa experiência mostra, além disso, que, a/ém de mu!her, deve ser uma pessoa que PRECISE trabalhará Não podemoster pessoas cheias de frescurasl'

que lhes estavam sendo impostas pelo desemprego ou por outrasespécies de atividades rurais

A primazia do emprego e não a da produção que fundamentaparte das políticas de pessoal da empresa não apenas encobre,portanto, a possibilidade de crítica às situações sociais engendraclãs macroestruturalmente. como as legitima. fazendo com que.no interior da produção, prevaleça sempre viva a chama da crençade que a função social da empresa é a de produzir empregos e.para além destes, possibilitar a cada uma de suas trabalhadoras,de acordo com seus méritos individuais, as chances de promoçãosocial e acréscimo salarial quando se empenham e conquistam asmetas produtivas estabelecidas

O$ critérios nos quais se fundamenta a seleção das futurasoperárias indicam que as mesmas devem estar recobertas pelasmarcas inferiorizantes de múltiplas categorias sociais que, inter-cruzadas, podem vir a se tornar muito "produtivas" à fábricaMulheres, com mais idade e com filhos e ainda preferentementemigrantes do campo, constituem-se naquilo que é denominadode mão de obra ideal e revelam-se, por conseguinte, como depo-sitárias de uma rede de preconceitos desfavoráveis que, ao invésde se engendrarem apenas por sua diferença de gênero, se complexificam e multiplicam com os estigmas da pobreza material ede sua procedência do campesinato, este ordinariamente representado como regido pelo senso prático e pela falta de cultivo espolarizado dos espíritos.

Se as mdheres convocadas para o trabalho industrial mosEram-se como expressões cia miséria social, elas, exatamente porisso, servem ao capital como sua própria pele. Necessitam tubaIhar para viver e manter vivos seus filhos l não sendo mais jovens e,portanto, não mais portadoras de encantos físicos (que não lhesforam subtraídos apenas pelo avanço da idade, mas tendem a semostrarem precoces e agravados pelas duras penas impostas porsuas condições de vida), e, ainda, sendo casadas e com filhos, e,assim, tendo sua sexualidade já "domesticada" pelas imposiçõesdo que deve ser uma mãe de família, não dispõem, como as meni-nas, de opções tanto para a procura de empregos "mais leves" emenos "castigantes" como para a suposta facilidade de abandonodo vínculo empregatício. Resta-lhes o que o destino social lhes reserva como herdeiras de múltiplos preconceitos que as colocamem uma das mais baixas posições da hierarquia social

Mulheres mais velhas, com filhos, procedentes do campesina-to e, por conseguinte, "incultas" e com "muitos compromissos'constituem a "matéria-prima" para a formação de operárias, emfunção prioritariamente de sua capacidade de suportabilidade àsagruras impostas pelo processo de trabalho industrial, bem comoa sua impossibilidade de escolherem outros tipos "melhores" detrabalho. Se, do ponto de vista da gerente de Recursos Humanos,a fábrica, para elas, representa uma condição de vida melhor,

sendo 'ácÍ2üha' tudo o que enfrentarão no trabalho, após admiti-das", cumpre aqui salientar os sentidos políticos do emprego demulheres pobres, que. em tal perspectiva, além de serem vistascomo objetos fáceis e dóceis à exploração do capital, passam a sersuas possíveis credoras, uma vez ter o mesmo lhes possibilitadoque, doravante, tudo o que encontrarem em nome do trabalho sejapor elas considerado Échhha em comparação com as penúrias

Premidas, assim, pela necessidade e compulsoriedade ao trabanho e também movidas pela consciência prática de suas peque-nas chances na concorrência dos jogos do mercado de trabalhoem geral, as trabalhadoras são capazes de transformar sua própria:necessidade em virtude". demonstrando-se somaticamente do-minadas "pelo gosto ao trabalho

Segundo o parecer do presidente do Sindicato, 'Para além danecessidade de ü.abalhar, elas também gost;am de üabalharl Amulher de hoje é muito diferente da de antigamente, que desdeque nascia só se preparava para casar e ter filhos. Ho/e, a müherquer ser üdependente, tanto na vida quanto economicamentelHoje ela já quer ter o dinheirinho delas "

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Percebe se, aqui, que a exaltação das virtuosas trabalhadoras, por parte da empresa, vincula se ao ocultamento da precarie-dade material e simbólica de sua existência, sendo assim atribuídaa sua compulsão ao trabalho assalariado um sentido de uma escoIha pessoal que, supostamente, se vincula às proposições de inde-pendência económica contidas em uma ordem social que apontapara o "progresso da mulher moderna". Se as mulheres pobres eincultas" que trabalham pesadamente são motivadas por seus

desejos de independência económica e social, como antes referi-do, trata se de negar a grave situação de desamparo material e so-cial em que vivem e o fato subsequente de(lue trabalham motivadas por metas imediatas que visam sua sobrevivência e a dosseus. e que, por conseguinte, não priorizam, em tais condições,pelo menos de forma urgente, a busca de sua "independização

Na perspectiva expressa pelo presidente do Sindicato. se asmulheres pobres trabalham, supostamente fazem-no porque oquerem, porque são dotadas de atributos que as caracterizamcomo "trabalhadeiras". Fazem-no ainda por remotos e não imediatos motivos, como o de sua independização, o que justifica queganhem como troca por seu trabalho tão-somente um punhado dedhheüüho, ou seja, uma quantia escassa "para os seus alfinetes'que nem sequer as sustenta e muito menos as independiza. Elasdevem, ao final das contas, enquanto não alcançam as condiçõesmateriais satisfatórias, se manter associadas a alguma figura mas-culina, encarregada de suprir-lhes o sustento e autorizada a torná las submetidas e dependentes.

pre trabalham e, quando estão nas fábricas, trabalham mais ainda,consolidando atividades em duplas jornadas, que dão conta, nãoapenas de seus trabalhos assalariado e doméstico, como podemincluir "algum serviço remunerado extra" realizado para terceiros,como é o caso de muitas operárias que "costumam, limpam, cuicoam e fazem artesanatos para fora". Seguramente elas o fazem,não pelo intuito de dar vazão a seu "gosto intrínseco pelo tubaIho" , mas pela brutal necessidade de manter vivos a si e a seus fa-miliares. Para adicionarem ao dhheirüho ganho na fábrica maisum outro dhheírínho, cujos montantes provavelmente não semostram se(quer razoáveis frente a suas necessidades

A título de aprofundar a presente análise dessa mão-de-obraidem/ para o trabalho industrial têxtil, torna se útil lembrar que aprimeira geração de operárias dessa empresa, nos idos de 1947, foirecrutada de duas principais fontes: os lares e os prostíbulos dasredondezas. De acordo com os relatos, a empresa íoi a primeira daregião a contratar mulheres para o trabalho industrial, as quais, sefundo o presidente do Sindicato e o gerente administrativo, encontravam se desocupadas ou perrerüdas por se dedicarem exclusivamente aos serviços domésticos ou à prostituição. A abertu-ra de oportunidades para o trabalho assalariado de mulheres pas-sou, então, a significar, para além de seu sentido económico, umpasso contra a exclusão de mulheres do mercado de trabalho.como também, em muitos casos, sua prC)peia "regeneração mo-ral" . Donas-de casa e prostitutas constituíram, portanto, a primei-ra geração de operárias, fato que se tornou para a empresa motivode "orgu]ho" , por essa dupla obra socia] realizada. Nas palavras dopresidente do Sindicato, "elas não tinham valorização. estavamfora do mercado de trabalho. .As muüeres eram üúteiá, sem valor,porque, antes de abíü.em esses empregos para elas, não faziamnasal Absolutamente nadam Nós é (7ue va/oüzamos o trabaüo dasmuüeres. Hoje tem mulheres trabalhando em tudo que é empresa,mas a que tem mais mulheres é aquil

Não nego, evidentemente, a possibilidade de que as mulhe-res, de uma forma geral, gostem do trabalho e que mesmo possampercebê-lo como uma das possíveis vias que facilitarão sua "inde-pendização" . O que quero evidenciar é que tal gosto, quando setrata de operárias pobres, muito antes de "brotar" de uma supostaconsciência crítica em relação à sua subordinação aos homens,lhes é imposto como um dos efeitos da própria urgência e imediatismo de sua própria sobrevivência. Ressalto também, por outrolado, que há fortes dúvidas de residirem exclusivamente nos favo-res económicos as possibilidades da emancipação feminina. Osmesmos são vistos como necessários, mas não suficientes para aefetivação das rupturas culturais impHcitas à luta das mulheres .

Essa fala coloca se como uma reverberação dos sentidos dedesprestígio conferidos pela sociedade como um todo a esses espe-cíficos trabalhos de mulheres que se constituem, do ponto de vistacultural, como suas mais tradicionais e "eternas" ocupações: o doméstico e a prostituição. Trata se de atividades que se mostram se-culaimente coladas às mulheres, de fobia tal que podem mesmoser concebidas como originadas de sua "própria natureza

As mulheres pobres encontram-se sem escolha entre trabalhoe não-trabalho. Estando ou não empregadas em fábücas, elas sem-

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As representações que se formam em torno do ser dona-de casa ou prostituta expressam-se, ainda nos dias anuais, comometáforas da própria "natureza" sexual feminina, que, sendoconcebida como um pense-bêre (Bourdieu, 1990, p. 7), deve sersocializada e cultivada para que adote uma outra identidade dacultura no caso a de trabalhadora que Ihe coloque, logo, "al-guma possibilidade de ter a condição de anjo" lüidero). Desocu-padas e pemertidas revelam-se como outras faces muito diversasda operária "trabalhadeira'

por, entretanto, ser suficiente a inserção no campo da produçãopara ter garantidos os privilégios do mesmo. Tratando-se a produção de um campo de poder e de concorrências, deve-se supor quea mesma repõe em sua estrutura interna os elementos divisores ehierarquizadores que se encontram estruturados no mundo socialA produção reedita. assim, em sua própria linguagem, aqueles sentidos que definem as relações sociais desde múltiplas perspectivas, como a de classe, gênero e raça

Se realizar o trabalho doméstico é considerado desocupação ese prostituir-se significa. além de "uma vida fácil" (desocupada eprazerosal, também uma vida "pervertida" , desde o$ valores motais da sociedade, como pensar as mulheres que "não trabalham'senão inscritas na condição de animal, cujo corpo deve ser submetido, incondicionalmente, às injunções da ordem social? Comopensar em transforma-las em operárias virtuosas, senão por pro-cessos educativos (do âmbito das instituições família, escola e íábreca) que se tornem capazes de subordinar sua primitiva "nature-za" a interesses produtivos e reconhecidos social e moralmente'P

Nesse caso em particular. registra-se o fato de que, uma vezsendo as mulheres consideradas a mão-de obra idem/, tal não ocor-re por disposições e aros de tolerância e solidariedade da empresapara com elas. Suas condições extremamente estigmatizadas, como íoi o caso da constituição do primeiro contingente feminino daempresa, mostram se altamente positivas à ação inculcadora docapital, que, além de lhes oferecer um dhheilínho, também lhesconcede a oportunidade de uma nova e reconhecida identidadesocial: a de trabalhadora

Não se torna difícil compreender, desde tal ponto de vista, osfortes vínculos de abeto e dedicação por parte do operariado de en-tão. No dizer do presidente do Sindicato, "para as mulheres de amei

gemente, trabalha na empresa era um verdadeiro cartão de crédito", sendo possível, assim, concluir, que, para além da garantia deum salário - substrato ao estabelecimento do limite de seu créditocomercial -. as trabahadoras também recebiam da empresa a possibilidade de serem elas próprias consideradas como portadoras decrédito social, pelo fato de se mostrarem enganadas na ordem de umtrabalho produtivo. reconhecido como moral e civilizado

No presente caso, fábrica, família e sociedade orquestram deforma solidária a grande tarefa de educar as mulheres, essa meta-de tão "difamada" da humanidade que, segundo Pefla,

até recentemente na história, não tinha direito a uma almas só aganhou por uma pequena maioria de três votos. no Concílio dehlarcon. Afinal. diziam as Escrituras, ela era a responsável pelopecado original de Adão. (.. .) Ela é a causa do mal, a pedra do tú-mulo, a porta do inferno. fatalidade de vossa miséria. "Soberanapeste é a mulher". gritava São João Crisóstomo. "Cabeça do cri-me. arma do diabo" , secundava Santo Antõnio. Despojada de suahumanidade e mutilada em sua identidade. ela só seria novamen-te inscrita na história pela figura de seu colonizador. Salva la de

Tanto donas de-casa como prostitutas são recobertas pelasmarcas da marginalidade social, estando constituídas como sujei-tos não económicos e apenas sexualizados. Se as donas-de casaencontram-se, contudo, em uma outra esfera de consideração moral, não sendo consideradas "pervertidas" . supostamente por terem colocado sua sexualidade a serviço da família monogâmica eterem se tornado herdeiras legítimas da identidade de mãe de íamília, estando assim devidamente assegurada sua "redenção moral", elas estão englobadas, entretanto, juntamente com as prosti-tutas, na categoria de fúteis, por não se encontrarem diretamenteenvolvidas no sistema produtivo.

As atividades realizadas na esfera da reprodução - na qualtransitam com maior autonomia a sexualidade e os abetos dosagentes sociais revelam-se. dessa forma. como localizadas emposições inferiores da hierarquização da divisão social do traba-lho, por se referirem a algo que é considerado como pertencente auma espécie de natureza moralmente inferiorizada e que deve serinterditada pela educação. O maior ou menor valor das atividadesconsideradas produtivas marca - por deslocamento também osparticulares sujeitos que a elas se dedicam, não sendo correio su

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sua perdição, purifica-la de sua sexualidade. (. - .) foi a missão colonizadora do homem. E, salva ela estava. desde que. serva da famí-lia, ela se identificasse ao seu útero. cumprindo os desígnios deDeus: crescer e multiplicar-se (1981, p- 14).

concorram. Trata se de reconhecer, pois. não ser fácil a trajetóriasocial feminina no campo do trabalho. As mulheres revelam-se,dentro do campo de apostas e de concorrência. como aquelesagentes sociais cuja suposta "natureza

encarna a vulnerabilidade da honra, (.. .) o sagrado desviante (. ..) apossibilidade da astúcia diabólica (.. .) arma da fraqueza que opõeos expedientes da hipocrisia e da magia aos recursos da força e dodireito, a mulher encerra uma virtualidade de desonra e de desgraça (Bourdieu, 1990. p. 16)

Para a autora, as mulheres, no sistema capitalista de produção,tomam-se duplamente úteis: como trabalhadoras e como mães/es-posas: "Pelo seu trabalho na produção e pelo seu trabalho na repro-dução: criando valores e criando trabalhadores/as"(ibidem).

As situações analisadas pemiitem, uma vez mais, que se reconheça a aliança entre patriarcado e capitalismo no campo dotrabalho industrial, pois, mesmo quando as evidências demonstrem constituírem as mulheres a esmagadora maioria do contingente de pessoal da fábrica, elas ainda se mostram como criaturasque devem ser educadas e domesticadas pelos homens, por seremaprioristicamente concebidas como desprovidas das condições edos talentos requeridos pela racionalidade industrial.

As mulheres são, nesse sentido, associadas a uma carga ins-tintiva animal, perigosa e incontrolável, voltada para a frivolidadedas emoções e desprovida das forças da Inteligência e da vontadeque caracterizam, por íim, o que é ser humano. Reserva-se, nessesentido. aos homens tal estatuto, que "naturalmente" lhes é própaio, bastando, para elogia-los, dizer: Eles são homens l (lidem)

Sob esse aspecto, são interessantes e fecundas as variadasmenções da alta gerência a respeito de recorrentes episódios de'casos amorosos" que ocorrem no interior das unidades de fabri-cação, portanto, acontecimentos vinculados a práticas sexuaisentre trabalhadores e trabalhadoras. Esses parecem importantesindícios da pregnância das crenças que associam o corpo feminino.reforçado e sustentado pela vestimenta, como sendo. de acordocom Bourdieu(lidem), um "pense bote pemlanente e inesquecí-vel". De acordo com diversos depoimentos da alta gerência, existena empresa "uma cultura bem forte do chefe sair com as 'guriasAcontecem muitos casos. . . entre chefia e operadoras, entre mecânacos e operadoras. . . mesmo entre gente casada" . Do conhecimen-to de tais "casos" originam-se modos de apreciação que confluempara uma lógica de "condenação" das mulheres.

Hierarquicamente subordinadas ao domínio masculino, as muIheres trabalhadoras são constantemente vigiadas e raramente leUltimadas. parecendo pertencer a uma espécie de seres que, mes-mo se fazendo concretamente presente e mostrando-se capazesde superar o "preconceito desfavorável" que lhes é atribuído. sãocolocadas como que no interior de sombras. que ofusca a possibi-lidade de sua plena visibilidade.

Mesmo estando presentes no mundo do trabalho, como, aliás .em todas as cenas sociais, recai sobre elas o peso determinísticode uma carga social que as dota de uma certa transparência e invi-sibilidade, que nunca pemlite, assim, que se reconheça sua con-creta realidade e existência. Seres sob suspeita social, existentesmas não visíveis, presentes mas envoltos nas sombras, as mulhe-res parecem ainda não ter recebido, de forma plena. a conquistade seus direitos de serem mulheres, guardando, por conseguinte.como que em seus relicários, as conquistas que vão realizando.como provas de sua imposição frente a uma ordem social que assubestima e interioriza. Muitas delas tornam-se capazes de conquistar certos privilégios e vantagens do campo produtivo.

O intrincado logo de cumplicidades entre os sexos mantémse. dessa forma. encoberto. e mais, invertido em seus sentidos.Assim, as apreciações a respeito reconhecem "que os chefes são'danados' ; como homens sempre estão na 'caça'. As mulheres dei-xam, 'dão bola' e eles vão em cimal" (operadora UF). Nessa pers-pectiva, parece $er "natural" encarar os homens como "caçadoresnabos" . sendo atribuído às mulheres o trabalho sedutório: elas sãopercebidas como aquelas (Jue gostam de seduzir, inclusive atravésde vestimentas exíguas, como utilizavam antes da introdução do

Contudo, a aíimiação de tal estatuto mostra-se, frequentemen-te, precária e instável, exigindo-lhes condições e empenho que asrevelem como muito melhores do que qualquer homem com que

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uiliÍorme de trabalho. Na fala do gerente da Produção da UF, "elas:ltldavam de shortinho. Era toda essa mulherada quase peladas"Dessa forma, as mulheres encamam uma espécie de conspiraçãoe desafio aos homens, que, marcados pela distinção da virilidade, vêem se como que obrigados a aceitar a "oferenda do corpo'Contudo, o que aparentemente pode parecer um jogo de podercujas regras estão nas mãos das dominadas - as mulheres -, nesse caso, se constitui como "forma suprema do reconhecimentodado à dominação masculina no que ela tem de mais específico'(idem, p. 24). Revela-se como prova da cumplicidade das mulheres, que, enquanto marcadas pelo "golpe de força originário" quefaz com que não possam aparecer senão enquanto objetos, contribuem para a perpetuação ou aumento do capital simbólico deudo pelos homens.

ou não desfrutados sexualmente pelos homens, uma vez que taisrituais, a par de se constituírem como expressões de um jogo deconconência entre mulheres, figuram, de forma prioritária, comoparte cúmplice do pesado jogo de poder, sempre disputado ape-nas entre apostadores homens

E importante ressaltar, contudo. que as concorrências entreas mulheres pela disputa da atenção de chefias/homens podemtambém estar signihcando estratégias por elas encontradas parase fazerem sobressair do anonimato implicado na "massa humana" na qual se alocam. Podem, outrossim, se colocar a serviço desua intenção de tornarem menos pesadas sobre si a$ exigênciasprodutivas, estando, portanto, suas seduções implicadas em umalógica de obter vantagens através de seus atributos "naturais desexo" em um ambiente que, formalmente, é regido pela uniformização despersonalizante. Para uma das antigas contramestresda UF. tais "casos ocorrem mais com 'guria' nova, solteira. que vêchefe - vê homem - e acha que, se tiver um caso com o seu contra-mestre, vai ter regalia

A constatação de que, de um modo geral, os "casos" nãoacontecem sem a prévia concordância das mulheres, aliada aosregistros de sua entusiasmada participação em concursos de beleza internos realizados para a escolha da "Miss Empresa" (supostamente estimulados e concebidos pelos homens, mas organizadose levados a cabo por mulheres), pemiitem deduzir a existência, nointerior da produção, de um campo de trocas simbólicas regidopor regras semelhantes às do "mercado matrimonial", que, comorealização paradigmática do capital simbólico entre os sexos, fazcom que as mulheres não possam apmecer senão como "instru-mentos simbólicos" legitimadores da dominação do dominante.Se a administração pouco pode fazer para sustar a ocorrência detais "casos amorosos" entre seus funcionários e funcionárias, porque eles não se dâo às claras, e, se tais casos são, por ela, conside-rados imorais, porque vistos como ciúmes dos (duais não se tem aprova. é de se estranhar que ela mesma se coloque como promovora de rituais - tais como os concursos internos de beleza e simpa-tia que expõem suas trabalhadoras como objetos sexualizados aserem cobiçados pelos homens.

Se os rituais dos dominantes, de acordo com Bourdieu (idem,p. 10), visam instaurar uma separação "entre aqueles que são secialmente dignos de sofrê-los e aqueles que deles são sempre excluídos", pode-se concluir que, nesse caso, tais concursos po-dem ser considerados como um ritual "ao avesso" no qual a "dig-nidade" das mulheres se confunde com suas chances de serem

As permanentes referências do envolvimento de operadorascom os homens trabalhadores pertencentes ao escalão do chão defábrica levam a entender que tal apreciação $e destina a um tipode mulher existente na fábrica: as operárias. cuja face de trabalha-doras também se encontra recoberta pelas disposições próprias àsmulheres pobres. Relembrar aqui a referência utilizada pelo gerente da Produção UF a respeito das caraterísticas do operariado tor-na-se no mínimo reíorçador. Para ele, o operariado é composto degente de mulas espécies, o que significa considera-lo, em resumo, como uma "subespécie imoral". Seu dizer das trabalhadoras.como muJherada, exprime, sem dúvida, o sentido pejorativo quelhes é atribuído e que as engolia, portanto. não só em uma indife-renciação massificadora, como em uma diferenciação que as sub-classiíica como um segmento social inferior e "prostituído", cujoscorpos apresentam se como gramática da vulgaridade.

De outro modo, às análises produzidas em torno dos "casosamorosos" e dos concursos de beleza e simpatia podem ser acrescentadas outras que expressam uma espécie de solidariedademasculina. no que diz respeito à subordinação sexual de molheres. E lícito. nesse sentido, pensar que a frequente inércia dos ges-tores em aplicar sanções aos chefes do chão de fábrica, quando se

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aproveitam das "dunas", se fundamenta, de um lado, pelo fato dosreferidos trabalhadores serem considerados como pertencentestais como as operadoras - àquela "subespécie naturalmente imoral" . São considerados pela alta gerência, portanto, como "indo-máveis". do ponto de vista sexual. E, de outro lado, pelo fato deque as hipóteses práticas que fundamentam o habítus sexuadomasculino de tais gestores lhes permitem um regozijo interno,quando reconhecem, mesmo que através de experiências dasquais não são os autores diretos, a dominação masculina levada aefeito inclusive no árido território industrial. Tal cumplicidade en-tre os homens, independentemente de suas origens de classe.consolida a celebração do espetáculo masculino também atravésdos concursos internos de beleza, cujos critérios podem pemlitircompreender as próprias ambiguidades masculinas em relação aoser "sexy" e ser sexual das mulheres. Revestidos de um certo ro-mantismo. como demonstram algumas cenas fotográficas obtidas, os concursos na verdade devem permitir "a e><ibição sexualsem a promessa sexual" (Willis, 1991. p. 65). por igualmente dize-rem respeito ao imaginário de namoradas, consideradas prioritaria-mente não como "putas" e sim como "mães

empresa através do recrutamento de mães de família e de prosti-tutas permite perceber que tais figuras sociais se constituem exa-tamente a partir de sua oposição homóloga, tendo por diferencialtáo-somente a maneira como operacionalizaram seus jogos sexu-ais junto aos homens. Se é verdade que os homens estão â caça.toma-se certo supor que as mulheres, antes de serem casadas, participaram da "caçada". resultando na conquista matrimonial. Tor-nam-se mães de família, conseqüentemente, não sem antes teremrealizado jogos de sedução e se colocado como objetos sexuaisContudo, quando elevadas ao estatuto de casadas. ou melhor. demães potenciais, lhes é tolhida tal memória de aviva participantenos jogos sexuais. Sem que o percebam, sua conquista matrimonialconstitui-se prioritariamente em uma conquista masculina que lhesimpõe domesticação e nomlatização sexual. Instituindo-se comoesposas, concentram sua sexualidade na esfera privada e concedem aos homens, seus parceiros sexuais, a dominância

Se, nos registros coletados, há a constatação de que os "casosamorosos" no inteüor da produção ocorrem primordialmente commulheres jovens e solteiras, não sendo excluída, entretanto, a par-ticipação das mulheres casadas. tornar-se-ia interessante tentardescobrir quais suas vivências e cl.íticas em relação aos respectivos casamentos, podendo-se antecipar, talvez, não terem os mes-mos instaurado com plenitude a submissão monogâmica de taismulheres. Contudo, antes que se exaltem tais fatos como insubordinações femininas, pode-se interpreta-los também como contri-buição das mulheres à confirmação da crença de conterem, elaspróprias, as virtualidades da desonra e desgraça masculinas. Ologo, portanto, não se desfaz tão facilmente l

E, ainda, $e é considerada a relação hierárquica existente entre altos gerentes da Produção (gerentes e supervisores) e chefesdo chão de fábrica (contramestres), deduz-se que a complacênciados superiores hierárquicos para com as práticas sexuais de seusdiretos subordinados pode ser vista como um modo de garantiraos mesmos, pela lógica masculina e sexista, o poder que lhes énegado na ordem do trabalho capitalista. Se a divisão do trabalhosubordina também homens a outros homens, trata-se de "afrou-xar" o controle e compensar as possíveis tensões decorrentes dasexigências relativas à produção, na área dos abetos e da sexualida-de, que, muito provavelmente, pode estar sendo considerada comoum epifenâmeno das relações de trabalho.

Outras considerações realizadas a respeito das mulheres evivenciam, por parte dos gestores, uma outra forma de apreciação,fundada exclusivamente em seus atributos "positivos" e moral-ttlente reconhecidos. Seus conteúdos se colocam como produto(lil idealização do que é feminino e se consolidam como negação(los "preconceitos desfavoráveis" em relação às mulheres. glorifi-c:í)ndo-as e, sintomaticamente. elevando-as quase que à condição[ le "santas e deusas". 'lEu considero a mulher dvüa. Eu idoJaüo aEllulheil Para mim a mulher deveria estar num pedestall O que a)ente íaz para as mulheres. a gente está fazendo para a mãe dallente. para a muher da gentes A mulher é um anima! racionalrriosmo, só é mais tolhida e seu potencial fica escondidos Ela não

Assim. muito antes de prejudicar a produtividade, a área dasexualidade se revela como sua cúmplice, permitindo que atravésdela possam desaguar e nutrir. sem infrações à hierarquia e à ordem do trabalho, a auto-estima masculina pela concretização depráticas sexuais/sexualizadas que atestem a virilidade.

Por outro lado. aquelas informações já registradas a respeitodo fato de ter se consolidado a primeira geração de operárias da

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lem que ter medo de homem. Temiinar com machismo só a multler mesmo pode fazê-lol" (presidente do Sindicato).

Em que pesem as diferenciações visíveis nos diferentes edifí-cios alocados por toda a planta industrial. é de se ressaltar que todos denotam a explícita orientação em serem construídos paraabrigo de trabalho industrial. Isso equivale a dizer que, em suamaioria, são grandes, feitos para acolher tanto máquinas giganpescas quanto massas humanas de trabalhadores/as. E, mais, queparecem ter sido projetados de modo a criar uma efetiva separação entre o ambiente intemo da produção com o externo, vistosuas janelas, alocadas nas margens superiores dos prédios, se encentrarem fora do alcance do olhar e não permitirem efetivar talcontato. São dotados de iluminação artificial, sendo comum quetambém a ventilação e umidificação do ambiente sejam au>çiliadaspor dispositivos mecânicos. Espécies de grandes "laboratóriosde trabalho, nos quais se espalham máquinas, junto às quais circolam e operam diversos/as agentes produtores/as, desde operadores/as diretos/as até escalões de chefias diretamente associa-dos ao controle do trabãho ali realizado.

Se as mulheres são gloriíicadas dessa forma, há de se observarque tal não ocorre senão por sua comparação à figura materna,que enfeixa, no imaginário social. a condição feminina elevada àdivindade, incorpórea e possuída tão-somente pelo desejo de servir ao marido e aos filhos. Mulheres colocadas em um pedesta/ podella, aqui, referir-se àquelas que adoraram a supressão de seupróprio corpo como objeto de prazer. Seus possíveis prazeres en-contram-se na direta correspondência de ver os "outros" - maridoe filhos bem cuidados e felizes. constituindo-se, portanto, emfontes extemas, das quais elas podem se aproximar para auscultaro que significa viver.

Levam a coisa a sério. são mais responsáveis do que os hobens. se desdobram e se dedicam com mais afinco e persistência,são mais dóceis. não eníren tam tanto como os homells, podem ser'travadas" com mais íacüdade... são alguns dos atributos valorizados e elogiados, dentre tantos outros que conduzem a uma indagação final: haveria outra maneira mais apropriada do que essapara definir do que se trata a operária ideal?

Nos escritórios, observa se a mesma característica de invisi-bilização do ambiente externo. sendo que as diferentes áreas ad-ministrativas funcionam igualmente nessa espécie de "poisagem transformada ou cultural" que, em todos seus detalhes,enuncia uma ordem do trabalho voltada para o disciplinamento eà não dispersividade2. A Fábrica como materialidade educativa

Um conglomerado de prédios plantado em veneno de larga superfície permite visualizar uma extensa rede de trabalho industrial.As edificações, como objetos quase arqueológicos, uma certa espécie de esculturas do tempo, testemunham as diversas idades aliacumuladas, ficando nelas denotadas as marcas de uma obra queiniciou com a vocação de corpo de gigante.

O conjunto de prédios mostra se harmónico em sua estéticaartiíicializada, transmitindo uma imagem de unidade homogêneanas diferenças, monocromática e monótona. Parece que ali a vidanão reserva surpresas. Tudo nele parece estar colocado de forma aviabilizar os intentos de controlar possíveis vaüabihdades.

Um complexo material que se movimenta permanentemente,em alguns lugares sob sons ensurdecedores, e em outros, sussurrentes, feito zumbidos monocórdicos e letárgicosi que exala, deacordo com suas respectivas áreas, odores distintivos, provindoscanto da matéria-prima como do processo de sua transformaçãolum conjunto que demonstra a possibilidade de o trabalho fazer-serevelar como registro e memória sensoriais, mas que se impõecomo a ordem do inerte sobre as variações. Emite, desde sua arqui-letura, da distribuição e porte de seus diversos edifícios e anexos.n necessidade de garantir, através de suas condições materiais,um verdadeiro "seguro de vida" à submissão real do trabalho.

Desde uma visão panorâmica, pode-se perceber que o comple-xo industrial têxtil estudado está dividido em dois grandes conjuntos: o dos prédios destinados à Fiação e o do conjunto destinado àTecelagem e ao Vestuário. Cada um deles ocupa uma área territo-rial específica, e ambos empregam prioritariamente mulheres, asquais perfazem mais de 90% do eíetivo de pessoal. Construídos emépocas diferentes e com finalidades distintas do ponto de vista daverticahzação da produção, mostram-se integrados, sendo suportados pelo mesmo conjunto de acionistas e administrados tanto pelomesmo corpo diretivo como pelo mesmo conjunto de políticas.

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Para acém de um mero cenário, o comp]exo industrial emquestão mostra-se como uma espécie de linguagem cujos signifi-cados não excluem os interesses da reprodução do capital, mas osarticulam a uma ordem político-pedagógica que se utiliza da pró-pria materialidade dos espaços, dos tempos, dos ritmos. dos controles e da hierarquia para a necessária tarefa de constituir e for-mar seus trabalhadores e suas trabalhadoras.

'jeito" de entrar nos mesmos e deles sair, ou seja, o modo de conprole e vigilância sobre a circulação de pessoas e de veículos

Em todo o complexo industrial. apenas dois acessos permitema passagem entre o ambiente intemo da empresa e o externo a elaOu seja, duas poüarias, situadas respectivamente em cada uma dasfábricas existentes no complexo, a Unidade de Fiação(UF) e a Uni-dade do Vestuário(UV), mostram-se tanto como recepção, triageme possibilidade de ingressos e saídas. Controladas por vigilantes,equipadas com relógios-ponto e roletas, denotam os cuidados sebre as passagens de funcionários, de visitantes e de veículos

Evidenciando-se como suporte da glorificação do trabalho, areferida indústria toma-se também um local pedagógico, no qual oexpurgo da preguiça e do não querer revela-se como expressão deuma vontade que procura garantir acima de tudo uma ordem coleuva, fundada na hierarquia e no consenso. diante da qual se tomafácil identificar os "desviantes". As fobias arquitetõnicas adota-das e a organização espacial das mesmas mostram-se marcadaspelas necessidades de separar e hierarquizar, o que se verifica emdiferentes instâncias: nos prédios entre si, cada qual com sua finalidade produtiva, tecnologia e população específicasl dentro deles, as compartimentalizações sucessivas que os recortam em áreas, setores e seções, onde se aglomeram os/as trabalhadores/as.Estes/as. ocupando os lugares determinados por seus postos deatividade, igualmente agrupam-se. tomando explícitos os senti-dos de seu agrupamento: o de categorizar, distribuir e controlar.

Aos visitantes só é permitida a entrada mediante a autoriza-ção. via telefone, no momento de sua chegada, pela pessoa com aqual tenha agendado previamente algum encontro de trabalho.Nesse momento parece haver. como se teve a ocasião de presen-ciar, a possibilidade de que, a partir de alguma dificuldade ou mesmo(des)interesse da pessoa a ser contatada no interior da empresa.o encontro possa vir a ser cancelado, visto que a Guarda, através detelefone, é que realiza o contado em busca de autorização, ficandoo/a visitante à mercê de tal mediação que cumpre exatamente oblue ]he determinam os interesses do pessoal htemo

Para além de recepcionar e anunciar a chegada. fica claro,portanto, que as portarias também operam como suportes a fun-ções seletivas, podendo gerar nos "estranhos" à empresa incertezas quanto a seus objetivos de contato e ingresso. as quais apenasse diluem quando se consegue. após o atravessamento de umaclãs roletas, colocar os dois pés no terreno interno. Isso. entretan-to, não é realizado sem que seja deixado, junto à Guarda, um documento de identificação que deve ser retirado à saída

É, contudo, no interior de tal lógica de divisão, adorada tantopara os prédios como para os equipamentos e pessoas, que sepode prever a existência de uma rede de relações entre todos oscomponentes que, operando de forma invisível. torna possível afaçanha de reter a unidade do trabalho. E importante ressaltar queos procedimentos divisórios, desde aqueles localizados nas edifi-cações como os desdobrados no interior do próprio processo detraba[ho, atingem a cada traba]hador/a reservando ]he a experiên-cia da separação entre mãos e cérebro.

O ritual de passagem pela vigilância da portaria, repetido tantasvezes quantas se fizerem necessárias à entrada na empresa, seconstitui em uma das práticas que ilustra, explicitamente, o pertencimento ou não ao ambiente intemo. A empresa é um lugar es(rui-vo, não se coloca como local público, que possibilita circulações in-discriminadas. Visitantes que por lá transitam portam em seu trajeum crachá que os identüica como tal, marcando-os, mesmo que estejam ali dentro, como estanhos ao serüço, como os "outros

Às unidades administrativas também é transferida a expe-riência da produção parcelizada, sendo que, dessa forma, abrigados nos diferentes prédios. sejam de produção ou de admi-nistração, diferentes grupos de pessoas "operam como a mão,vigiada, controlada e corrigida por um cérebro distante" (HarryBravermann, 1987, p. 113).

No decurso das visitas realizadas para fins de colete de dados,ressaltou-se, como peculiaridade dos locais estudados, o próprio

Os/as funcionários/as, por sua vez, ao final da domada, pas-sam por uma revista pessoal realizada pela Guarda, acionada por

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uin sistema de escolha aleatória. determinando a cada dia quais asf)essoas que serão revistadas. E nítida e explícita, aqui, a suposi-ção de roubos por parte dos/as mesmos/as, ficando-lhes claroque poderão ser surpreendidos/as pelo alarme de revista a qual-quer momento de sua passagem pelas respectivas portarias. Asaída se processa em fila indiana, de forma que um/uma a um/uma são submetidos/as a tal possibilidade. Para as saídas em hovários dentro do expediente, parece evidente que a mesma so-mente seja, em última instância, permitida pela Guarda, que necessita. contudo, ser instruída por um documento de autorizaçãoprévia emitido pelas chefias.

visitantes. aos olhos da Guarda, os atributos de prestígio ou desuspeita conferidos aos próprios membros da empresa, de acordocom seu lugar ocupacional e hierárquico

A utilização frequente nos recintos de trabalho de avisos proi-bindo a entrada de estranhos ao se/wço conduz a que se alarguetal discussão, uma vez que o tratamento aos "estranhos" tambémpode ser aplicado aos/às próprios/as colegas de empresa, mas nãopertencentes ao selar. Mark Wigley (1994, p. 242) refere que repensar o cotidiano como sendo tão familiar que se torna invisívelpode resultar que se descubra "nessa familiaridade certas qualida-des cruciais que parecem absolutamente inesperadas e imprevisí-veis e que, de alguma maneira, desviam e comprometem o con-texto em que se encontram

Um controle tão rigoroso sobre a circulação de pessoas na empresa sugere que as portarias existentes operam como dispositivoscoercitivos, atuantes sobre quem para lá se dirige de fomla "livre'seja para vender força de trabalho, seja para agenciar contatos ounegócios. Remete. outrossim, à lembrança de fábricas dos priveiros tempos, que. erigidas tais como prisões, necessitavam agrilhoamos trabalhadores para coagi los ao trabalho, não sendo demasiadoconcluir, a partir daí, sobre a permanência de um sentido de domi-nação que se transmudou apenas em sua fomla aparente.

Pode-se ainda acrescentar clue o prece(cimento de revista junto afuncionários/as. bem como os cuidados tomados com visitantes, evi-denciam, por outro lado. uma espécie de desconfiança pemianente,tanto com os de dentro como com os de fora, o que se toma um argu-mento justihcatório aos procedimentos de vigilância. Aos outros es[ranhos ao serüço, nesse particular. fica sempre a experiência denunca serem reconhecidos à sua chegada, mesmo que sua vinda sejafreqtlente e possa, inclusive. se tomar sistemática por alguns períodos. O tratamento impessoal e de não reconhecimento trata. no caso,de deixar claro que não pertencer à empresa, não portar identidadecom a mesma. equivale a não ser reconhecido.

A possibilidade de entrada de visitantes no recinto industrial,portanto, deve ser um ato de conhecimento/reconhecimento deum outro alguém dos quadros da empresa, podendo ser mais oumenos facilitada de acordo com sua posição hierárquica. E dessemodo que se fazer anunciar ao diretor e mesmo a funcionários/aspertencentes à alta gerência, ou a funcionários/as pertencentesaos escalões inferiores e subordinados, pode vir a tornar mais oumenos dificultosa a passagem. visto agregarem se aos eventuais

Para o autor, o sentido do não familiar dentro do familiar é osentido do estranho, o sentido de que, de dentro do espaço do faminar, emerge algo perturbador e que se torna atemorizante pelapercepção de que esse desconhecido é absolutamente necessáriopara a manutenção da estrutura como tal. Tanto as portarias comoos avisos impedindo "estranhos" de entrarem no serviço podemser identificados como partes do grande esforço cotidiano da em-presa. dinamizado e sustentado por agentes especializados, de lo-calizar as divisões, as rupturas e quebras dentro do sistema. os ele-mentos instáveis que se organizam e se embutem nas operações,mas que devem ser rotineiramente suprimidos para garantir a pro-dução de imagens familiares e conhecidas. Podem, enfim. ser conbebidos como práticas que não têm tanto a ver com a busca deuma visão cada vez mais precisa do mundo do trabalho no qual $einserem, mas que, ao contrário, possibilitam a manutenção dosconstrangimentos intemos e dos desejos da respectiva cosmovi-são na qual e pela qual operam

As considerações anteriores conduzem à idéia de que, paraalém de concentrar a atenção nas edificações existentes no parque fabril, é necessário associa-las a premissas sócio-político-pe-dagógicas determinadas, que a$ colocam como "garantia cultural

de uma série de qualidades e valores, como a ordem, a estabilizade, a segurança, o controle, a delimitação, o enclausuramento (...ylidem, p. 241)

Os agentes sociais e suas enter-relações não estão simplesmente cobertos pela arquitetura e organização espacial dos/nos

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prédiosl ao contrário, fazem-se possíveis por elas, o que, por suavez, vem confirmar a idéia de que nada opera como se fosse umquadro emoldurativo, com mera finalidade de se constituir emcenário" às figuras sociais. Dentro e fora, abertura e clausura,

amplitude e restrições se constituem em componentes de umadada espécie de espacialidade que, como configuração final, servea propósitos de ocultação do que possa vir a instalar desordensnas estruturas já consolidadas e conhecidas. A expulsão do novo edo estranho abriga-se em uma espécie de jogo de "esconde-es-conde" regido pela necessidade de constância e ordem.

balhei cronometrada. Porque, quando eu trabahava nas máquinasquanto mais eu produzia, mais eu ganhava, então, o meu interesseera não parar... não precisava de cronometragem" l tempo que se co-loca como resüição e condição de docibzação dos corpos e vontadesproduzindo, na interioridade dos agentes produtivos. a necessidadede se tomarem "imunes" às vaüações, ao passar dos dias, íimlan-cio-os em uma espécie de cegueira coletiva. a terem olhos somentepara os tempos das operações da produção, às custas de tornar sur-dos os possíveis apelos de uma existência movida por desejos.

Uma economia de trocas que força, desde a percepção daque-les/as que a ela se entregam. a separação entre o viver e o traba-lhar, produzindo cisões entre a esfera doméstica e esfera públicado trabalho, como se as vivências globais por eles/as experimen-tadas pudessem referir se ora ao ser trabalhador/a, ora ao $er pai/mãe, filho/a, esposo/a, amigo/a. Poderiam, se perguntados/as, vira nomear a existência de uma quinta estação: a estação da fábri-ca, que, diferentemente das quatro estações do ano, manifesta-secomo ritual estereotipado, como espetáculo diário da repetição eda busca da perfeição na constância.

O jogo de invisibilizações e encobrimentos realizado leva aobservar que, desde o interior do recinto industrial, não importan-do onde se localize e qual seja a seção de trabalho, constitui-sequase que em regra o fato de não se enxergar o dia ou a noite, nãose podendo ver, igualmente. as variações das estações do ano emesmo o passar dos dias.

É como se ali se revelasse uma outra fomla de viver a temporacidade, a qual é colocada como um tempo particular fora/dentrodos cânones usuais. Inventa-se um outro tempo de ritmo próprio,capaz de escamotear a percepção dos minutos e mesmo dos anosque passam. O sentido do tempo se materializa em movimentoscorreios, disciplinados e responsáveis pelos níveis, de produçãoesperados. Tempo transfomia-se em dinheiro, tanto para o capitalcomo para os/as produtores/as. Suas múltiplas decomposiçõesconstituem-se em ocasiões de manter um acordo tácito com as rearas produtivas. Gestos e movimentos devem ser tão rápidos eprecisos quanto foram calculados para sê-los. No repouso. na alimentação e idas ao banheiro, o tempo é marcado para nada alémdaquilo que foi suposto como necessário.

A vida cotidiana com suas vicissitudes parece, em seu interior,assumir o caráter do idêntico, do sempre igual, de uma vida expe-rienciada na morada no eterno, cujas portas encontram-se fechadas para a liberdade de mudar. Tanto assim é que, durante umadas entrevistas de colega de dados com o Supervisor da Produçãode um dos prédios, ficou estampada sua surpresa ao saber que na-quele dia, além de frio, por ser inverno, também nevava. Nem ele.nem todos/as os/as demais lá de dentro, puderam apreciar ou. nomínimo, saber da rara surpresa da naturezas

Encerrados/as em prédios, sob o comando de máquinas e deescalões de chefias, os/as trabalhadores/as manipulam o tempocomo capacidade de trabalho, como algo que não pode ser perdi-do ou desperdiçado, como algo que pode vir a $e tornar grande adversário na conquista de méritos a seu desempenho. Tempo que,para além de arbitrário, explicita-se como imposição e deverá en-fim. como ocultamento do direito de ser usufruído. Tempo que setransforma em atributo moral interiorizado, visto cadenciar, defobia automática, imposta e dirigida, movimentos e gestos, talcomo esclareceu uma das operárias entrevistadas: "Eu nunca tra-

Outrossim, depoimentos de operárias registram que são capa-zes de cumprir, para além da jomada nomial de trabalho, grandequantidade de horas-extras semanais, restringindo sua vida extralaboral a curtos espaços de tempo, nos quais comparecem a seusdomicílios praticamente apenas para dormir. A fala de uma dascontramestras da UV parece bastante ilustrativa do fato: "Agoranão tenho tempo pra namorar. Trabalho sábado, domingos eu tra-balho de segunda a segunda. Não saio da empresa. Normalmentesaio daqui às 10 da noite. . . sábado, eu venho às 5 e meia e fico até às

16:30h. Sábado e domingo. Um mês e meio estou nesse pique

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É óbvio que não se trata aqui de subestimar a necessidade deaumento de ganhos salariais por parte de tais casos; contudo, pa-rece igualmente aí coexistir a interioüzação de uma compulsão àrotina mecanizada e controlada, na qual o ciclo dos dias e mesmodos minutos parece se conduzir de acordo com leis que, se não Ihesubtraem. ao menos ]he minimizam os imprevistos. A ansiedadeface à aposentadoria, referida por algumas das entrevistadas, parece vir igualmente reforçar o fato de que a habituação pemlanente,sistemática, vivida por longos anos, pode passar a se constituir emum modo de levar a vida. que não encontra fora da fábrica as mesmas condições para se realizar. Transfomla-as de alguma íomla, seassim se pode dizer, em "viciadas" no trabalho, na busca do "sempre igual" como defesa contra possíveis aílições que o curso espon-tâneo dos dias. das semanas, dos meses e do ano, enfim da vida.possa vir a hes reservar. As respostas de algumas operárias sobreseus planos após a aposentadoria tomam-se, aqui, oportunas: "Nãosei ainda. Estou tão acostumada a trabalhar que não gosto nem depensar o que farei depois... (BOLETIM. íev./mar. 1987, p. 8); Quan-do eu sair daqui eu vou me dedicar a alguma coisa. . . porque para-da não vai dar" (supervisora da UV, 32 anos de empresa).

pessoas não talhadas na mesma moral daqueles/daquelas precedentes de classes mais favorecidas. O divisor fundamental que seopera nesse modo de perceber e pensar regula, sem dúvida alguma,o próprio modo de agir, que, como prática social, possibilita a formação de alas distintas no interior da produção, percebidas e trata-das como diferentes, assimétricas, antagónicas e desiguais

Os preconceitos que fundamentam as oposições criadas resi-dem, por sua vez. na ordem do poder simbólico. que. de acordocom Bourdieu (1990a, p. 166- .1 67), é um poder performativa de de-signação, de nominação: "... é um poder capaz de fazer coisascom palavras", de impor uma visão de divisões, ou seja, "é o poderde tornar visíveis. explícitas, as divisões sociais implícitas", fundoDando como uma dimensão fundamental da luta de classes

Assim. dizer gente de rodas as espécies significa que a camada gerencial não pertence a tais espécies de pobres, ficando Ihereservado uma outra espécie de distinção, na qual a "boa" moralmostra-se como qualidade inerente e natural. Em deconência. reconhecer, no meio do operariado, indivíduos moralmente "bemformados" deve supor considera-los como "convertidos", com su-ficiente capacidade para superarem as supostas "deficiências na-turais" que sua posição de classe lhes confere

Por outro lado, a grandiosidade dos espaços, associada ao gigantismo de algumas máquinas, parece fazer subsumir os peque-nos homens e as pequenas mulheres que, empregados/as emgrande quantidade, impõem-se sob a aparência de "massa". vistacomo anónima. sem rosto, composta. segundo um dos gerentesentrevistados, de gente de muitas espécies. Pode-se dizer, portan-to, que aos olhos da administração se invisibilizam os/as própriosagentes do trabalho, enquanto sujeitos particulares, e que a ocor-rência de particularizações e de reconhecimento de personagensindividualizados/as por parte da gerência mostra-se a serviço desua necessidade de localizar, no seio do operariado. algum possí-vel suporte para a implementação da necessária estabilidade e docontrole do clima organizacional.

Homens e mulheres trabalhadores/as tendem a ser homogeneizados/as em uma percepção de "pessoas pobres". sendo en-golíados em uma categoria que os reduz à miserabilidade materiale moral. São presas, assim, de um jogo interminável de metáforasfundamentadas na crença de que ser pobre é ser diferente, ser di-ferente é ser desigual, desqualificado e inferior. Sequer lhes sãodadas chances de serem humanos e não "massa

Diante do fato de sua homogeneização e apriorística inferiorização, os indivíduos que compõem a força de trabalho reagematravés de múltiplas estratégias que visam mostra-los como iguaisao "outro" . Formahzam. assim, formas de lutas nas quais se empe-nham por adorar os valores de uma ideologia que os aproxime.pelo menos um mínimo, daqueles superiores capazes, não só denomeá-los, como de julga-los. Buscando se tornarem idênticos aseu par oposto e antagónico mas admirado, porque dominante -.os/as operários/as confundem a desejada igualdade de direitospolíticos com sua própria identificação com seus opressores. Ne-gam. assim, suas próprias diferenças. no intuito de superarem os

O dizer haver ali, no recinto industrial, gente de todas as espécães parece revela uma percepção do operariado, que. por $erconstituído de pessoas pobres, é moralmente malíomlado. Assim,homens e mulheres pertencentes à classe operária podem vir a serapreciados. pela gerência, como integrantes de "uma outra espéciehumana" que não a dos gestores/superiores hierárquicos, ou seja,como um conjunto heterogêneo e perigoso, porque constituído de

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implícitos sentidos de desigualdade nelas representados- Podemvir a sobreviver e "vencer" no sistema produtivo às custas do silenciamento de seus corpos e mentes, negando-se igualmente aorquestrarem as possibilidades coletivas de suas vozes.

conjunto. uma vez que desde seus postos individuais e fixos. alo-cados/as em prédios independentes e subdivididos. com rotinasde trabalho intensivo em que não há sobra de tempo para transitarem outras possíveis circulações, nem sequer, como referiu umadas antigas operárias entrevistadas da Unidade de Fiação. sabemo que e>ãste nos outros prédios: "A gente só ouve falar. mas co-nhecer mesmo não. porque não se vai lá". O horário de refeiçãodistribuído por setores, aliado à existência de três turnos de traba-lho, fragmenta a percepção, diõcultando aos/às trabalhadores/asuma apreciação do montante da força de trabalho ah reunida, sejadurante o dia, seja durante a noite. Trabahar na empresa passa asignificar o conhecimento de um recorte restrito da mesma. noqual se realiza um outro recorte do trabalho de fabricação, realiza-do por um pequeno conjunto de "colegas" sob a chefia de um/acontramestre e de seu(s)/sua($) auxiliar(es). O estabelecimento dereferências reduzidas e fragmentadas instaura um espírito de per-tencimento e de afinação a um pequeno grupo que se constitui emimportante suporte à consolidação e manutenção individual da re-lação com o trabalho, bem como do próprio auto-reconhecimentode cada traba]hador/a. Obscurece lhes, contudo, a capacidade devisualizarem conjuntos maiores, seus potenciais, problemáticas econdições de trabalho, amiudando, ordinariamente, as possibili-dades de consciência e ação coletivas

Parece ainda útil à análise em curso que se reconheça uma ou-tra espécie de invisibüização, manifesta, desta vez, nas própriasformas de arranjar esteticamente os ambientes. Nas áreas ditas derepouso e recuperação de forças, tais como banheiros, vestiários.refeitórios, ambulatórios e mesmo em áreas de produção, são evidentes as marcas de despojamento, que se mostram como expres-sões canegadas dos sentidos de despojamento e de impessoahda-de. As instalações são planejadas para grandes massas humanas.para um grande coletivo impessoal que, sendo constituído porgente de todas as espécies, mostra-se sem os confortos e acessóriosque poderiam torna-las mais acolhedoras. Sequer as salas de ge-rentes e diretores parecem dotadas de pessoalidade. em que pe-sem estarem equipadas de fomla mais confortável e sempre muitoasseadas. Em algumas delas, como em alguns raros lugares daprodução propriamente dita, pode-se verificar a existência de por-ta-retratos que trazem imagens de membros do gmpo familiar emesmo de equipes de trabalho. Tais elementos, contudo, parecem

Poderia aqui questionar os sentidos de tal "amarga vitória'uma vez que parece lógico reconhecer-se que, para os/as "desfavo-recidos/as" sociais. em geral não há vitórias, e sim silenciamentos.Os esforços implicados nas ações e coragem em busca da "vitória edo vencer" poderão ser vistos, simultaneamente, como ações paranunca dizerem e mesmo falarem de si próprios. Esforços de confor-mação ontológica no$ quais, de acordo com Bourdieu (1992), a necessidade $e transforma em virtude. Vencedores/as-vencidos/as,impedidos/as de realizar todo seu nome e poder de nomeação nelecontido, habitantes de fronteiras marginais, como se estivessem àmargem, na verdade, de dois lugares: o seu próprio e o daqueles/asem quem se espelham e com quem procuram se identificar. Paratais sujeitos, a vivência das diferenças como opressão pode conduzi-los. como se verihca, à negação das mesmas e, portanto, de simesmos, orientando-os pela busca de uma igualdade políticaconstruída com base em seu próprio silenciamento.

Assim, muitas vezes seus esforços de individualização podemser entendidos como buscas de sua distinção daquele conjunto degente de todas as espécies" , o que pode leva-los a se separarem de

seus "iguais" e mesmo a discrimina-los. Os depoimentos de algu-mas operárias que ascenderam na escala hierár(iuica mostram-secomo testemunhos vivos da apropriação/intemalização que realiza-ram daquelas crenças hegemónicas que, ao desprestigiar os/ascomandados/as", tomam-se justificativas à ideologia de domina-

ção: "Tem dois tipos de funcionárias: as que querem trabalha e asque querem só um emprego. As que querem trabalhar são dedicadas, querem aprender, mostram boa vontade para melhorar. Elassabem que aqui dentro cada movimento é tempo e que tempo é dinheirol" (supervisora de Treinamento UV); "A gente tá com a pes-soa e a gente vê, a gente sente se a pessoa tem ou não tem aquelabusca pela qualidade, aquela gana para fazer as coisas. Nós queestamos aqui há mais tempo percebemos isso de canal'

Por outro lado, convém registrar um outro nível de invisibiliza-ção que atinge em cheio, dessa vez, a percepção dos/as trabalha-dores/as: o do ocultamento de sua própria condição de ser um

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não se integrar ao ambiente. mantendo-se como que isolados doconjunto, como imagens silenciosas que, ao serem contempladas,podem falar de alguma saudade e mesmo de um desejo. Ali pemlanecem fixadas, quase que abstraídas e esquecidas, mas se lembra-das podem, talvez, ser evocadas sob comia de alguma espécie deprece. A percepção de impessoalidade e "frieza" é comum inclusivejunto à alta gerência, que. durante as entrevisl;as, pede manifes-tar-se a respeito com certo espírito de crítica e desânimo, como nocaso do gerente administrativo: "Acho que esse ambiente desper-sonahza... toda essa maquinização altera o clima e o ambiente.Tudo se artificiahza. No Natal, até os enfeites ficam totalmente arti-ficiais. Tudo é calculista, mesmo as relações interpessoais'

Nesse sentido. a aparência de extrema simplicidade pode.conforme alerta Perros (1988), também estar encarregada de mascatar os existentes sistemas de privilégios económicos e sociaisdiferenciados entre "patrões" e empregados/as, sendo responsável pelo reforçamento de uma percepção de igualdade entre to-dos/as que se encontram, pois, supostamente submetidos/as aiguais condições de trabalho e de vida.

Por outro lado. ficam evidentes as dificuldades em estabele-cer. nos recintos da fábrica. algo assemelhado com o espírito fami-liar. o que implicaria, por conseguinte, de acordo com o estudo deLouro e Meyer (1994), em uma valorização do sentimento de priva-cidade e do convívio íntimo que tem o "amor" como base. Em quepesem as tentativas de comparar a fábrica a uma família, perce-be-se tratar se muito mais de um desejo do que uma realidade. Afábrica. quando examinada desde suas mais visíveis aparências ,

não resiste em revelar-se como esfera de trabalho árduo. como espaço competitivo e de lutas, movido pela lógica dos jogos sociaisali desenvolvidos. A racionalidade predomina em todos seus as-pectos, sendo possível existirem laços afetivos, os quais, entretan-to. como nas cidades invisíveis de Ítalo Calvino (1990). sobrevivemna furtividade de gestos e palavras.

Uma olhada sobre os jardins. que muitas vezes enfeitam o ambiente externo de algumas empresas, possibilita verificar que.nesta. eles são inexistentes e que tomam a forma de simples gramagos. simétricos. ladeados por calçadas comentadas para a cir-culação. Nem árvores. nem plantas, nem flores. As longas ruas pa-vimentadas que orientam os fluxos de circulação entre os prédios

mostram-se como simples condutoras. duras dirigentes dos camalhos, sem que qualquer arranjo urbanístico possa lhes amenizartais feições. Elas dizem também que caminhar por elas significaperseguir trilhas da repetição, do hábito, dos rituais e dos silên-cios. Podem também guardar a lembrança de algumas coragensque tenham, algum dia, se tornado possíveis pela exconjuração domedo de tudo perder quando se perde o emprego.

Toma-se possível daí concluir que, em toda sua extensão. emcada um de seus cantos, a empresa concretiza, na realidade, oimaginário social de ser sede de trabalho árduo e duro e de existirsob o signo deste. Do entrelaçamento, em seu interior, da macro eda micropolíticas ocorre, de acordo com José Vicente Tavares dosSantos (1994, p. 22). "a fabricação de uma teia de exclusões" devários tipos classe, gênero e raça, capaz de definir de antemãoos/as dominantes e os/as dominados/as. A empresa pode ser considerada, logo, como um espaço social que, para além de um acontecimento tecnológico e económico. inscreve-se na razão simbóli -ca enquanto produtor e reprodutor dos sentidos associados àsmúltiplas categorias sociais. Espaço estruturado e estruturantepara a produção e para o domínio que detemiina, pelas divisõesespacial, do tempo e do trabalho, uma ordem própria das coisas eum modo próprio de conhecê-las. Um espaço que, embora se concolide como acontecimento tecnológico, também necessita serpercebido como que enraizado em um ordenamento objetivo que'existe ao mesmo tempo nas coisas e nos cérebros, sob a forma de

princípios de divisão ou nos corpos sob a forma de muitas manei-ras de usar o corpo, cuidados, posturas, bens, etc." (Bourdieu,apud Mana Júlia Lopes e outras, 1996, p. 30)

A dominação, portanto. inscreve-se tanto na objetividade dasestruturas como na subjetividade dos agentes, consolidando-se emuma "circularidade temível de relações(.. .), o que faz que não seja fácil hwar-se dela..." lüidem). Assim, as dominações de classe, de gê-nero e de raça, que se impõem sob a fom)a de evidências, nascem doacordo das estruturas objetivas e cognitivas, sendo capazes de cons-truir um universo ou universos passíveis de exercerem "uma vendadeira ação psicossomática que tenda a transfomlar profundamenteas estruturas mentais e as estruturas corporais" lidem, p. 31).

Supor que a sociedade existe sob a forma das relações efetiva-das em/entre seus diversos campos, nos quais se engendram e de

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senvolvem jogos concorrenciais de poder, instituídos e legitimados pelos seus agentes específicos, signihca, consequentemente,admitir o campo da produção como um espaço de relações sociaisefetivadas através da correlação de forças e realização de apostas.Apostas que são realizadas por indivíduos que possuem espéciese volumes de capitais diferenciados, e que se inserem. pois. desdeo início, no campo de forças, de forma desigual. Da oposição deforças, entre os poucos que possuem muito e os muitos que pos-suem pouco, nasce a legitimação das respectivas identidades: opatrão engendra o/a trabalhador/a, e este/esta não se conhece oué reconhecido sem o patrão. Dominantes e dominados/as se legiti-mam de forma recíproca. estabelecendo lutas materiais e simbólicas por seus interesses diversos e pela hegemonia dos mesmos.mas. na maioria das vezes. desconhecem estarem suas própriaschances já inscritas, de alguma forma. na estrutura do próprio jogocom o qual consentem.

Se a materialidade do trabalho industrial opera como possibili-dade educativa dos agentes produtivos, sendo, portanto, verdadeque a empresa produz para além de fios e vestuário. corpos e men-tes conformados com seus princípios ordenadores e divisores. talenfoque. por sua vez, inscreve a educação como processo queabrange. para além da consciência e da razão. também processospré-reflexivos e inconscientes, os quais só podem se realizar desde a imersão dos sujeitos nos campos sociais concretos

As premissas que inscrevem o campo da produção na ordemsimbólica. ou seja, que colocam a possibilidade de dar sentidos -para além do económico ao próprio modo capitalista de realizar aprodução material de bens e produtos, pemlitem sua discussão.portanto, como ]ocus de agenciamentos educativos, no qual seafirma e reproduz, via educação, a cultura dominante

Sabendo-se que o capitalista não compra trabalho, e sim $eusuposto potencial, e que necessita, por isso, gerir os recursos humanos de acordo com seus interesses de acumulação. torna-seimportante reconhecer que os diversos "modos de ser" atravésdos quais se manifesta o capital enquanto organização do espaçoprodutivo e políticas de pessoal expressam nada mais do que es-tratégias de extração de trabalho, cuja centralidade, nesse sentido, repousa nos esforços de transfomlação da força de trabalho emtrabalhadores e trabalhadoras

Nesse sentido. o trabaho indusUial é entendido como umamaterialidade educativa, o que permite conceber a própria educação para além da tradição pedagógica que apenas a concebe nainformação. instrução, verbalização ou cultivo do intelecto. Permi-te supor, de acordo com Miguel Anoyo (1990, p. 25), "as própriascircunstâncias, as instituições e as relações sociais como os novospedagogos" . Por se constituir como agência educativa, o trabalhoindustrial, para além de suas características macroestruturais, também impõe uma série de outros elementos que geram efeitos limi-tantes tanto maiores quanto mais invisibihzados e naturalizados.Para Tomaz Tadeu da Salva

Embora empregue uma força de trabalho "livre". ou seja. soltados vínculos escravocratas e feudais, o empreendimento da pro-dução capitalista necessita construir a adesão e o consentimentodaqueles/as que emprega com as normas específicas que ordenam e regulam seu processo de trabalho. Estudos como os de Mi-chelle Penou (1988). Paul Wihs (1991), Sidney Chalhoub (1986),José Sérvio Leite Lopes (1988). José Ricardo Ramalho (1989), JoãoFeri Neto (1993) e Anata Mover (1983) colocam-se como algumasreferências à discussão relativa à "produção de trabalhadores etrabalhadoras" e levam ao reconhecimento de que, para o sólidodesenvolvimento do capitalismo, houve, desde a época da antrodução da industüahzação, a necessidade de que a população setransformasse em uma população de trabalhadores/as. Ora, mes-mo tendo passado o tempo inicial da industrialização e, por conse-quência, estar a força de trabalho ideologicamente educada para'ser trabalhadora" , permanece ainda, no inteüor das organizações

a ninguém ocorreria contesta-los porque sua definição é trancltiilamente aceita por todos nós. É aí que está a principal força repro-dutiva de elementos estruturais como esses(...) exatamente nofato que funcionam como determinações invisíveis a deter nossosmelhores esforços de transformação (1992. p. 64).

Sob esse aspecto,não são apenas nossas idéias e manifestações verbais que são re-produtivas; também o são. e talvez até de forma mais decisiva.nossos aros, nossas relações, os ütuais a que aderimos e que pra-ticamos, em uma palawa, nossa prática (idem, p. 66).

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do trabalho. a necessidade de geração de conjuntos de trabalha-dores/as que possam ser denominados como propriamenteseus/suas" . Trata-se de transformar homens e mulheres em cole-

tivos de trabalho "afinados" com os particulares aspectos e inte-resses das empresas específicas nas quais se empregam e que secoloquem, voluntariamente. como agentes sociais ativos. mos-trando-se como a necessária contrapartida na correlação das forças que se entrecruzam nos jogos do campo da produção. Gesto-res/as de um lado e trabalhadores/as de outro poderão assim con-cretizar as possbilidades de apostas concorrenciais inscritas nosjogos de poder do campo produtivo.

funcionamento social que, na verdade, consagm-se como verda-deira façanha do "prometo civilizatório" . Isto é, tendo a sociedade'supostamente" dispensado os açoites, os chicotes, os grilhões e

toda uma parafernália de subjugação e opressão através da violên-cia explícita e física. encontra ela, agora, uma nova maneira "civigizada" de dominação social. Não tendo saciado sua sede de domínio, o campo social se visibihza, então, como capaz de estruturaras próprias mentes individuais e coletivas, interiorizando-se, pois,como o próprio modo de pensar e de apreciar de seus agentesEstes tendem, por conseguinte, a confomiar e a orientar suasações de acordo com tais disposições estruturadas/estruturantes.de modo a assegurarem a reprodução das mesmas relações objetivas que os engendraram e dominam. De acordo com Bourdieu,

Disciplinar e educar, pois, a força de trabalho, de modo atransforma-la em apostadora aviva mas regulada -, impõe se.aos olhos da empresa, como uma tarefa pemlanente que. entre-tanto, só se realiza através de múltiplas ações e imposições moti-vadas, em geral, em um modo de perceber e apreciar o operariadocomo um segmento social que deve ser "ensinado". domesticadoe disciplinado. Educar o operariado, logo, assume feições de im-por-lhe uma forma de dominação cultural que, para além daquelafundante de ordem material - da qual se origina sua compulsoriedado ao trabalho assalariado -, deve-lhe produzir interesses e mo-tivações pessoais que Ihe tomem lógica e "natural" sua adesão edevoção ao empreendimento da produção.

Fica, portanto, implícito que falo de uma forma educativa quepode eventualmente incluir. mas não necessariamente se associar,de forma exclusiva, àquelas formas consideradas "escolarizadas'e que se referem aos eventuais e/ou sistemáticos programas detreinamento e desenvolvimento de pessoal empreendidos pelasgerências, tendo em vista a qualificação técnica, conceptual emesmo interpessoal de seus recursos humanos. Ordinariamentereferido a propostas apoiadas em um explícito prometo pedagógico.o conceito de educação. como é aqui utilizado, deve abranger to-das as possíveis circunstâncias materiais e simbólicas - que in-tervenham na socialização de trabalhadores/as, sendo. por condeguinte, entendido como um processo que busca a conformação ea cumplicidade ontológicas dos/as mesmos/as e sua implícita cor-respondência, portanto, com as estruturas objetivas.

A concepção bourdeuana de habitas torna-se central para arealização de tal discussão, por possibilitar entender um modo de

cada agente, quer saiba ou não, quer queira ou não, é produtor ereprodutor de sentido objetivo porque suas ações e suas obras sãoproduto de um modas operand do qual ele não é o produtor e doqual ele não possui o domínio consciente; as ações encerram.pois, uma "intenção objetiva". como diria a escolástica. que urrapassa sempre as intenções conscientes (apud Ortiz, 1983, p. 15)

O habitas como sistema de disposições duráveis, estruturasinternas estruturadas e predispostas para funcionarem como estruturantes, isto é, como princípios geradores e organizadores depraticas e representações dos agentes sociais (Bourdieu, 1980),coloca-se. logo, como o mediador entre campo e sujeitos. Produzi-do na história, o habitas estrutura práticas que só existem nas probabilidades objetivas construídas, de comia a fazer com que osagentes ajustem suas aspirações a uma avaliação exala de suaschances, ou seja, que conformem suas "esperanças subjetivas" deacordo com as "probabilidades objetivas" que apreendem .

Essa espécie de submissão imediata à ordem objetivo é res-ponsável, portanto, segundo Bourdieu (idem, p. 90). pela transpormação da necessidade em virtude e revela o habitas como um sis-tema de "hipóteses práticas fundadas na experiência passadadizendo respeito, em especial, àquelas consideradas como primei-ras e precoces, adquiridas, portanto, no universo da economia do-méstica e das relações familiares. Tais disposições amuam e se reeditam como "princípio de percepção e de apreciação de toda a experiência ulterior" (idem, p. 91)

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Em sua análise sobre reprodução, habíMs e educação, RichardK. Harker (1990, p. 84) toma-se enfático quando argumenta que areprodução "não é mecânica como numa fotocópia"- Mostra quehá uma tendência em direção a um compromisso com circuns-

tâncias históricas específicas, e é (... ) nesta lacuna que a agênciahumana tem espaço para se movimentar". Para Harker (1990. p.80), "o habitas pode ser visto como próximo ao conceito de cultu-ra, mas num sentido personalizado - isto é, o habitua é a formapela qual uma cultura é corporiâcada no indivíduo'

por que o processo de formação humana pode ser consideradocomo a própria "história incorporada", sendo que

o trabalho pedagógico não consiste apenas em inculcar uma mo-ral ou uma ideologia; ele tem a função essencia! de administrar oprocesso de inculcação das próprias categorias que presidemnossa interpretação do real. (...) A dominação é, neste sentido,dupla: primeiro enquanto discurso ideológico, segundo como categoria lógica que ordena a própria representação do social(Bour-dieu, apud Ortiz, 1983, p. 16)

Contudo, de acordo com o autor (idem, p. 84-85), a prática es-truturada pelo habitas não pode ser reduzida ao mesmo, "uma vezque as circunstâncias históricas jogam sua parte na sua geração.(... ) A mudança ocone, embora nunca erraticamente'

Se a leitura do social preconizada em tal forma de analisar re-mete à necessidade de reconhecer que "certamente a sociedadetem uma estrutura objetiva, mas (que) não é menos verdadeiroque ela também é feita de 'representação e de vontade' " (Bourdieu, 1992, p. 18), não se pode, contudo, descartar, em qualquer tencativa de explicação do social, a correspondência existente entreas estruturas objetivas e a formação dessas "representações evontades", que, distantes de uma concepção voluntarista e es-pontaneísta, revelam que os sistemas simbólicos não são simples-mente instrumentos de conhecimento; eles são também instoumentor de dominação. A correspondência entre as estruturas so-ciais e as cognitivas oferece, pois, uma das mais sólidas garantiasda dominação social. Fazer acontecer tal correspondência signifi-ca, portanto, transitar em processos e práticas educativas/sociali-zantes que não se fazem fora do poder simbólico e sem a concor-rência do dispositivo de sua respectiva violência

Utilizar o conceito de habiüJS num referencial sobre educaçãoimplica reconhecê-la para além "da reprodução perfeita e mecâni-ca" . sendo estruturada fora do exclusivo domínio da consciência edas ações calculadas através de um planejamento. Implica peaceber que a primazia dos dominantes se enraiza nas próprias subjeti-vidades dos/das dominados/as, que fazem, então. o coro da coe-rência e mutuahdade com as simbologias e instituições sociaisnas quais estão imersos. Tal como Bourdieu. António Nóvoa (1991,p. 1 10) fala de um sentido da educação, qual seja, "o de impregnação cultural, o qual nada tem a ver com uma intenção explícita deeducar" , e que se íaz sobretudo pelo conjunto das interações pro-duzidas em um dado ambiente, sem que estejam dotadas de consciência da ação educativa nelas exercida. Mostrando-se como uma conõgwação relacional de forças obje-

tivas. cada campo social específico refracta, como "em um prósma", as forças externas em função de sua estrutura intema. Osefeitos daí engendrados revelam-se como a própüa estrutura dojogo nele constituído, jogo este sempre fundado na "inversão dasintenções" (idem, p. 24). Sendo regido peia lógica fluida e impreci-sa do senso prático e operando, portanto, em uma matriz pré-reflexiva e inconsciente do mundo social, todo campo social apresenta-se como uma estrutura de possibilidades que implica um certograu de indeterminação. apresentando, logo, variabilidades de'escolhas" que não devem. contudo, ser entendidas como fruto de

uma consciência calculista e transcendente. Para Bourdieu,

O processo educativo aqui referido, em consequência, pressupõe que importantes aprendizagens, tais como a de gênero e a detomar se trabalhador/a, processam-se de comia tácita, a partir dosenso prático". conforme Bourdieu (1980, 1990, 1992). Pensar a

educação como processo desenvolvido no cotidiano da vida e, ain-da, "como algo que se instih)i por intermédio do reconhecimentoextorquido que o dominado não pode deixar de conceder ao domi-nante" (Bowdieu. 1990, p. 5) quer dizer que ela se realiza através daviolência simbólica, ou seja, que torna possível a confomlação cúmplice dos corpos e das mentes, não mais pela coerção explícita, maspelo próprio fato de ser capaz de oculta e transmutar seus sentidosconstrangedores e impositivos inscritos nos jogos concorrenciaisda existência social. A "interiorização da exterioridade" pemlite su

a relação entre o sujeito e o mundo não é uma relação entre umsujeito (ou um consciente) e um objeto. mas uma relação de 'cum

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plicidade ontológica' - ou de possessão mútua entre habitas, como princípio socialmente constituído de percepção e de apreciação e o mundo que o determina(idem, p. 27).

que são encarados sob a luz da meritocracia, tão cara ao sistemapolítico neoliberal como os exclusivos responsáveis por suas vitórias e derrotas, e como os únicos que devem mudar quando algoaponta para o sentido da inconformidade social

Rejeitando, nesse sentido, a alternativa da submissão e da resistência que tradicionalmente tem definido a questão das culturas dominadas, a concepção bourdieuana, não se contentando emexplicitar a colaboração que os dominados dão à sua própria exclusão, propõe uma análise de tal conluio que evita o psicologismoou o essenciahsmo da "servidão voluntária". Portanto, torna se importante lembrar que, se os dominados sempre contribuem parasua dominação. as disposições que os inclinam a essa cumplicida-de são também efeito incorporado da dominação.

A ênfase nas relações e práticas humanas e sociais desprovi-das. logo, da análise de seu potencial político e descoladas dos contextos e conjunturas específicos nos quais se produzem, remetem,sem dúvida, a pensar que os/as cientistas que separam o projeto científico da política e da história fundamentam-se nas supostas qua-lidades de "neutralidade e transcendentahdade" da ciência e de sipróprios/as. Nesse sentido, por não reconhecerem a necessidade depensar o pensamento que pensa. inscrevem-se como produtores/asda violência simbólica e legitimadores do poder de conservar emanter a ordem social estabelecida. O discurso "humanista" que éentoado nas premissas de tal ideologia meritocrática e individualizante nada mais íez, faz ou fará do que escamotear e manter ocultosos mecanismos de poder simbólico que são, ao fim e ao cabo, res-ponsáveis pelo movimento social e pelas práticas e interações deseus/suas socializados/as. Suas "contribuições", portanto. se fazemna direção de manterem o desconhecimento como alavanca para areprodução das fomlas de dominação e exclusão sociais

Assim, a submissão dos trabalhadores, das mulheres e das mino-rias raciais não é uma concessão deliberada e consciente. Ela en-contra sua gênese na correspondência inconsciente entre seuhabitua e campo no qual operam. Ela se abriga no mais profundodo corpo socializada. Ela é a "somatização de relações sociais dedominação" (idem. p. 28).

Na perspectiva bourdeuana, a educação, por conseguinte,pode ser entendida "como uma forma de prática cultural" (Harker,1990. p. 85), como processo que se dá pela longa imersão dosagentes em múltiplos e particulares campos do universo social.fundamentado sobretudo nas interações e nas práticas que nelesse fazem possíveis, as quais se encontram. portanto, circunscritaspela configuração de forças neles instituída.

Dotados/as de legitimidade científica, os/as cientistas, qualquerque seja sua fiação teórica, tomam se capazes de nomear e de designar as espécies que o universo contém e aquelas que ele não contém, mostrando se possuidores/as, consequentemente. de um poderperfomlativo que se realiza pelas palavras. A ciência. quando aplicada aos campos sociais, seja o da produção, o da educação, dentretantos outros, não deve se colocar como destituída de sua caracterísrica política, não cabendo a seus agentes a escolha pela realização deum trabalho que seja considerado a político. A ciência. quer queiramou não o$/as cientistas, constitui se como políticas cabe aos/às mes-mos/as optarem ou não pelo reconhecimento desse inevitável e, en -tão, colocarem seus trabalhos na perspectiva ou não do "desencantamento do mundo"(Octavio lanni, 1994) .

Por conseguinte, falar de interações e práticas entre os agentes não deve implicar percebê las como subtraídas do jogo concorrencial que caracteriza a identidade de cada campo. autorizan-do o deslizamento de sua análise para uma dimensão destituída desentidos políticos. Algumas tradições teóricas pertencentes à Psi-cologia Social, à Sociologia e à Antropologia têm, durante muitotempo, reconhecido as tramas de conflitos e de competitividadehumanas e sociais como resultados da autonomia da dinâmicacognitiva/afetiva interna dos sujeitos, que. por sua vez, não sãoconcebidos como estruturados pela objetividade da exterioridade.O paradigma funcionalista que apoia tais tradições. ao sugerir acentralidade dos sujeitos e sua transcendentalidade, reduz a dinâmica social ao$ aros, atitudes e comporl:amentos dos indivíduos.

Finalmente, se as análises de um campo social em particulardevem $er consideradas como efeitos da reíração e da conformação das estruturas objetivas à sua estrutura interna, originando-sedaí a específica estrutura do jogo concorrencial nele estabelecido,não se deve eludir a importância de sua correspondência com o

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contexto macroestrutural. Neste, recortam-se múltiplos campos so-ciais que são capazes de gerar, de acordo com Penou (1988, p. 53),um conjunto de "fenómenos solidários" que, efetivados de acordocom a estrutura intema que os constituem, participam da reprodu-ção das regras do jogo social. A fábrica, portanto, não é senão umadas instituições a elaborar e manter tais regulamentações.

a sociedade capitalista como uma sociedade de classes, mas tam-bém reproduz, recria e legitima uma outra ordem de economia asimbólica na qual se encontra a possibilidade de analisar a cale -gorja do gênero feminino

Assim, a partir daqui, visualizo a fábrica como o local que, abriBando processos de trabalho que produzem mercadorias, tambémproduz/reproduz fom\as de subjetividade, podendo. logo, ser consi-derada como efetiva agência educativa. Tal enfoque fundamenta,pois, as respostas às perguntas que orientaram este estudo: comomulheres foram/são transformadas em trabalhadoras? Por quaismeios e estratégias? Quais foram as etapas dessa transformação'PQuais foram, enfim, as fomlas educativas utilizadas para transfor-mar uma mera força de trabalho feminina em "mão-de-obra ideal"?

Contudo, mesmo que reconheça que as instituições da família,da escola e do trabalho, cada qual a seu tempo e mesmo conjunta-mente, criam mentes e corpos dotados da capacidade de reprodu-zir os elementos ordenadores que compõem as formas sociais, nãotrato a questão da educação como elemento descolado da realida-de e das experiências do trabalho, alocando-a pretensamentecomo pertencente ao domínio de outras instituições - família e es-cola. Estas far-se-ão presentes na análise através de seus efeitosprecoces na subjetividade dos agentes, cujas expressões se mani-festam tanto no seu habifus sexuado e de classe como nos diferemdais de seu capital "escolar

O que busco é compreender de que forma a fábrica se apropriae legitima o trabalho primário de inculcação realizado nas fasesprecoces da vida individual, entendendo, ainda, como possível,que ela possa recria-lo segundo sua própria ordem interna e suascircunstâncias históricas

Considero, portanto, que a fábrica interpela os/as agentes produtivos desde os sistemas de hipóteses práticas que $e fundamentapam em anteriores e longas experiências de sua socializaçãocom o objetivo de que lhes sejam extraídos comportamentos, atirudes e abetos devidamente regulados, então, por seus habiMs primários de classe e de gênero

Cabe, enfim, analisar as fomlas pelas quais a empresa capitalista produz a adesão/devoção de suas trabalhadoras a seus antenesses de acumulação e lucratividade. Os modos de gestão damão-de-obra, suas regularidades e suas descontinuidades notempo histórico da empresa em questão devem ser vistos. porconseguinte, como formas de agendamento educativo, não querendo dizer que a fábrica existe para educar trabalhadores/as. Seela o faz e o faz é porque necessita produza-los na cumplicida-de com suas estruturas, normas e regulamentações, como garantia à extração de trabalho e da mais-valia. E. fazendo-o, nãoapenas reproduz as divisões económicas e sociais que constituem

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CAPÍTUI.O 2

(RE)PRODUZINDO MULHERESTRABALHADORAS

Apontada como um dos ramos mais antigos da indústria detransformação na economia mundial, a indústria têxtil revela, emsua história, dois importantes acontecimentos que vieram a constituir-se em mudanças significativas nas relações sociais e, emparticular, naquelas estabelecidas no âmbito do mundo da pro-dução : a introdução de maquinaria e a utilização de uma força detrabalho predominantemente constituída por mulheres e crian-ças. Esses fatos, vistos desde a perspectiva do capital, finalizavam, à época de sua ocorrência, consolidar um novo modo deprodução da mais valia, seja pela substituição da força e da peracia humanas, seja pela utilização agora possível - de uma mãode obra "sem força muscular ou com desenvolvimento físico in-completo mas com membros mais flexíveis" (Karl Marx. 1989, p449). A revolução do instrumental de trabalho operada pelo siste-ma de máquinas - a última forma de cooperação analisada porMaix significou, portanto, uma profunda alteração da base técnuca e social da produção, passando a ser registrada na históriacomo fato íundante da Revolução Industrial

A mecanização do ramo industrial têxtil contribuiu, assim, noséculo xvm, com as transformações que deram origem à grandeindústria, em substituição aos outros modos de cooperação. emespecial ao da manufatura. A introdução e difusão do uso da máquina, tendo provocado uma simplificação do trabalho operário,tornaram o processo produtivo menos dependente da habilidadedo trabalhador. A considerável redução da necessidade de forma-ção profissional da mão-de obra, bem como a minimização da ne-cessidade de emprego de sua força física/muscular, conduziu opatronato para a busca de novas fontes da necessária força de trabanho. A entrada das mulheres e das crianças no setor fabril dá-selogo, desde a reunião facihtadora de condições propiciadas

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pela introdução da maquinaria no processo de trabalho. A mão-de-obra tendeu, então, a uma homogeneização, a partir da qualresultaram outras mudanças, desta vez na própria hierarquia dasforças do trabalho. Nessas condições, agravou se a exploração docapital sobre o trabalho, visto que

fossem adultas, mas deviam ser também homens para virem a seraceitas no mundo de trabalho operário e em seus espaços específicos de luta. Tê-las como integradas à classe trabalhadora poderiaà época, significar uma ocasião para fazer fecundar questiona-mentos a respeito da desigualdade de seus direitos políticos, expandida, como se sabe, para as outras esferas da vida social, inclu-sive a familiar. A obra antes referida diz respeito à História dasMulheres e permite perceber a presença consl;ante das mulheresnas diversas cenas da existência social. bem como dos interditos enom)as que marcaram/marcam seus espaços. Revela que o cami-nho feminino nunca íoi simples e que. muitas vezes, mesmo setratando de um distante passado, as mulheres manifestaram suavontade de escapar, simultaneamente, do real e de todo o seu

peso, e também dos sufocantes discursos (...)" (Duby e Perrot,1991 , p. 16)- A presença significativa de mulheres na esfera do tragalho produtivo, mesmo estando registrada como evidência incontestável em períodos anteriores ao da Revolução Industrial,não deve causar a ilusão, entretanto, de terem sido os dias daquelas trabalhadoras poupados de tensões e dificuldades

o valor da força de trabalho era determinado não pelo tempo detrabalho necessário para manter individualmente o trabalhadoradulto, mas pelo necessário à sua manutenção e à de sua família.Lançando mão de todos os membros da família do trabalhador nomercado de trabalho. reparte ela o valor da força de üabalho dohomem adulto pela íamüa inteira. Assim, desvaloriza a força detrabalho do adulto(idem. p. 450).

Outrossim. viu-se reforçado o próprio poder de dominação dopatronato, quando substituiu - em proporções significativas - tramalhadores adultos hábeis por mulheres e cóanças, uma força detrabalho considerada mais dócil e menos resistente às condiçõesimpostas pelo capital.

Nos registros históricos sobre o início da introdução de mu-lheres e crianças no trabalho fabül têxtil do século passado constata se ter sido a mesma objeto de resistência por parte dos anti-gos trabalhadores - homens/adultos. Parece lógico pensar emuma gama de possíveis motivos que a originaram. Ou seja, paraalém dos mais bem fundados motivos a respeito da nova concorrência aos trabalhadores no mercado de trabalho e das ameaçasnela contidas, poder-se-ia concebê-la - a resistência - igualmentecomo um dos possíveis efeitos da aliança entre capitalismo e pa-triarcado então realizada. A predominância da dominação mascu-lina como padrão cultural de uma sociedade patriarcal. a condeqüente redução das mulheres e das crianças à categoria de criatu-ras inferiores e subordinadas aos homens adultos podem ter contribuído, coníomle analisam Georges Duby e Michelle Perros(1991),ao acinamento da má vontade dos trabalhadores, por exemplo,em receberem as mulheres em suas organizações sindicais. Adescategorização das mulheres pelos próprios homens operáriosde então, provavelmente muitas vezes pertencentes à sua própriafamília, seu modo de percebê-las como objeto a ser dominado, porserem julgadas como frágeis e incapazes de agir com inteligência.parecem ter produzido, então. uma dupla interiorização das mu[heres, pois, diferentemente das crianças, não lhes bastava que

Os trabalhos e os dias das mulheres conhecem tensões formidá-veis. Estreitamente controladas pelo olhar masculino, mas tam-bém pelos constrangimentos económicos e sociais, (...) asmulheres se adaptam melhor ou pior às condições que lhes sãodestinadas (idem, p. 21)

Na referida obra, revelam-se dados que levam à constata-ção de que, mesmo em suas formas pré-capitalistas, ou seja.quando ainda não existentes sob a forma industrial mecaniza-da, o trabalho têxtil. o de confecção de rendas e o de atividadesde costura, ou seja, tudo o que implicasse em "agulhas e li-nhas", era abeto às mulheres, sendo que nestes setores a forçade trabalho feminina era cinco vezes mais numerosa do que amasculina. Segundo Duby e Perros,

para a recrutar, recorria-se às aldeias dos arredores e as raparigaseram trazidas(. . .) para o domicílio do mestre, que servia tambémcomo oficina. Dormiam em armários e sob os teares e os seus sa-lários eram guardados pelos patrões. As raparigas de 12 ou 14anos começavam a trabalhar na ocupação mais baixa, a de desen-rolar os casulos, debruçadas sobre bacias de água a ferver na qualos casulos eram mergulhados para que a sericina(.. .) derretesse.

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As suas roupas estavam permanentemente molhadas e os dedoschegavam a perder a sensibilidade. Pior do que isso. a tuberculo-se era galopante nas oficinas. (... ) se conseguisse sobreviver (... )uma rapariga podia ascender a puxadora, e então, feitas as con-tas, uma operária da seda não só acumulava um pecúlio comouma vasta experiência industrial. Ela era a esposa ideal para qual-quer aprendiz industriosa. pois podia facultar-lhe todo o dinheiropara pagar sua carta de mestre e contribuir para o funcionamentode uma nova oficina (idem, p. 36)

concorrência, análogo a um campo de batalha sobre o qual os/asparticipantes rivalizam para estabelecer o monopólio de uma espécie de capital, e, ainda, que tal abordagem implica romper com anti-nomias perenes, como o antagonbmo entre subjetivo e objetivo,simbólico e material, e, por íim, considerando a existência de umacorrespondência quase que imediata entre campo social e habiMsdos agentes, leva-me a pensar que as situações aqui analisadaspressupõem que "as divisões sociais e es(luemas mentais são estroturalmente homólogos porque estão geneticamente ligados: os sefundos resultam da incorporação dos primeiros" (idem, p. 20)Evidencia-se, assim. que a dominação e a supremacia masca

lhas impregnam, desde há muito, as relações de produção, orien-tando e sugerindo caminhos, não somente ao capital, mas aos/àspróprios/as trabalhadores/as entre si. Tal constatação reforça anecessidade de se remeter os anuais estudos sobre a temática hu-mana e social com especial obrigação àqueles de cunho feminis-ta a constantes articulações de categorias, visto que se trata detornar visíveis aquilo e aqueles/as que a história oficial tem se ne-gado a incluir e a revelar. Tais estudos pemlitem, assim, não só acomplexificação da compreensão dos sujeitos sociais, mas. domesmo modo, a do próprio mundo social, contrapondo-se, nessesentido, às tradições teóricas, que, concentradas nas leis da acu-mulação do capital. tornam se "sexualmente cegas" (HeleiethSaífioti. 1992: Elisabeth Lobo, 1991; Helena pirata e Daniêle Kergoat, 1994b). A presente discussão, entretanto, leva a que se am-plie o conceito de "cegueira" aplicado ao gênero pelas autoras citodas a outras categorias (raça. idade, por exemplo), fato que já seconstata na produção acadêmica, conforme revelam alguns estu-dos, como os de Cristina Bruschini(1994a, 1994b), ElizabethFox-Genovese (1992), Bela Feldman Branco e Donna ouse (1995).Guita Grin Debert (1994), Edita Piza (1995) e outros.

Pressupõem, outrossim. que as estruturas objetivas e cogniti-vas são componentes incontornáveis da sociedade, a qual deveser vista como configurações das ligações e relações nas quais osindivíduos se encontram inseridos .

Apresentando se como estrutwa de possibilidades, de recompensas, de ganhos, que implicam um certo grau de indeterminação, o campo social mostra se como uma rede ou uma configuraçào de relações objetivas entre posições, devendo ser analisadodesde uma perspectiva relacional. Comparado a uma espécie dejogo, do qual os/as jogadores/as são presas, o campo social e seussistemas simbólicos não são simplesmente instrumentos de co-nhecimento: eles são igualmente espaços reguladores das rela-ções entre dominantes e dominados/as. Centrar a atenção nos aspectos do campo não significa, pois, desprezar as ações dos agen-tes, reduzindo-os a efeitos mecânicos das estruturas sociais obje-tivas ou colocando os como o centro consciente e deliberado desuas próprias ações. Sabe se que o ajustamento imediato entrehabitua e campo e, portanto, entre agentes e sociedade, não é se-não uma das possíveis formas de ação. mesmo que seja a mais fre-quente. sendo, pois, possível entender (lueAs referências aos atuais estudos sobre as imbricações e al

quimias das categorias sociais (Mary Garcia Castão, 1992) e sobreas homologias entre estruturas objetivas e estruturas cognitivasnão as faço, aqui, sem a intenção de registrar. de um lado. a persis-tência, na atualidade, da problemática feminina no que diz respei-to à sua plena e igualitária inserção nos diversos campos do sociale, de outro, apontar para as transformações já conquistadas e evi-denciadas, seja no campo da produção acadêmica como no daprodução e o da organização sindical. Considerando. pois, comoBourdieu (1992), que o campo social é um espaço de contitos e de

os agentes sociais são determinados somente na medida em quecieterminaml mas as categorias de percepção e de apreciaçãoque são o princípio dessa (auto)determinação, são elas mesmasdeterminadas pelas condições econõrücas e sociais de sua conatituição lidem, p. lll).

Assim. longe de ser o produto automático de um processo mecânico, a reprodução da ordem social se realiza somente atravésde estratégias e práticas pelas quais os agentes se temporalizam e

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contribuem para fazer o tempo do mundo. Se os fatos contidos notempo, a respeito do trabalho feminino e das mulheres trabalhado-ras, mostram se secular e regularmente marcados pelo estigma dadesvalorização do/das mesmo/asl se os fatos passados e anuais -revelam que, apesar da expressiva presença das mulheres nomundo da produção. elas têm sido. além de negadas e invisibiliza-das como trabalhadoras/agentes da economia. também mal acoIhidas e/ou não plenamente integradas na organização de sua pró-pria classe. percebidas como "inferiores" e "incapazes" de acom-panhar os progressos da técnica produtiva, ficando-lhes, por isso,reservados os lugares menos criativos e mais subordinados na hierarquia do trabalho fabril, cabe comungar este estudo aos demaisque se colocam a serviço da desfatalização dos espaços sociaisinstituídos, sejam eles de convivência, de estudo, de trabalho e/oude lutas. Imbricar estruturas e ação, objetivo e subjetivo, exterior einterior, macro e microcosmos, torna possível o olhar não redutor,mecanicista ou espontaneísta da ciência e constitui, na verdade,importante condição para que as tentativas de análise do socialimpliquem a adoção de um modo de ver e apreciar que focahza aspróprias práticas sociais, abarcando inclusive os sentidos da hexfscorporal na qual se exprime toda a relação com o mundo social.

dominantes quanto à força física, como acontecia no passado.quando as máquinas eram operadas de forma manual. o mesmoconsiderado anualmente pela empresa como um dos mais avança-dos em termos tecnológicos - reserva aos homens suas operaçõese funções. Segundo a psicóloga, "aqui mantém-se a tradiçãol Fo-ram homens um dia, continuam sendo homens até hoje, mesmoque não seja mais necessária a força íísical'

A observação da divisão técnica do trabalho. seja nas unida-des estudadas como na empresa em geral, evidencia de formabastante clara o gênero do trabalho e dos/as trabalhadores/as.Embora nem sempre tal fato represente motivo de questionamen-to e problematização por parte da administração em geral, é notó-rio e indiscutível que a se]eção de pessoal, com vistas ao provamento de~cada um dos postos da hierarquia fabril, tem no gêneroum dos primordiais componentes na formação dos perfis desenha-dos para cada cargo/posto. Percebe-se existir, na empresa. umaespécie de consenso a respeito do que deva ser trabaho de ho-mem e trabalho de mulher. como ilustram as palavras do supervi-sor da UF: "Tem funções que tu olhas assim e vês a cara duma muIher pra fazer aquela funçãol

A análise da aceitação dóxica do mundo, em razão do acordoimediato das estruturas objetivas e cognitivas, torna-se. aqui. umfundamento de uma teoria da dominação e da política. Os entre-cruzamentos das diversas espécies de capital - económico. cultu-ral e social -, seja nas estruturas do mundo, seja nas disposiçõesdos agentes, pemlitirão visualizar a extensão e intensidade das re-lações entre dominantes/dominados/as. bem como reconhecê-lascomo produtos de sistemas do poder simbólico que, para além dedeíinkem disposições de pensamento e julgamento sobre as coi-sas do mundo, atuam como forças de imposição em geral ignora-das como tais pelos agentes sociais.

Às mulheres operárias destinam-se as operações de fiação,corte/costura e controle de qualidade. primordialmentel às dema-is mulheres, postos de secretárias, recepcionistas, auxiliares ad-ministrativas, responsáveis pelos serviços de refeitório. creche,assistência médica e social, cuidados de enfermagem, etc. Poucasencontram-se em postos de chefia, seja no interior das unidadesfabris, seja nos escritórios da administração. Quanto aos homens,é observado que os mesmos ocupam os postos de segurança e vigilância, bem como postos de fabricação. como, por exemplo, osda tinturaria e da tecelagem, e outras atividades conelatas, comoas de manutenção e regulagem das máquinas. São, contudo, prio-ritariamente encontrados em áreas de planejamento e controle daprodução e da administração em geral, ocupando postos de chefiaou de assistentes das mesmas, podendo ser classificados. generi-camente, como diretor, gerentes, supervisores, contramestres eassistentes. Isto é, embora nem todos os homens sejam chefes, agrande maioria das chefias é constituída por homens

1. '&abalhos de mdheres

Na empresa estudada, cerca de 90% da mão-de-obra é constapuída por mulheres. Em alguns de seus setores, como o da tintura-ria, observa-se a predominância de homens, que executam a operação e o controle de equipamentos, em sua grande maioria já au-tomatizados. Em que pese o setor não apresentar exigências pre

As mulheres que ocupam posições de comando distribuem-se empostos que se mostram bastante variados quanto a seus conteú-

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dos e grau de autonomia. Assim, encontram se mulheres-chefesno gerenciamento da área de Recursos Humanos, anualmente reagizado por uma psicóloga, bem como nas posições de líderes de gru-pos, reservadas a operárias experientes. que possuem funções deauxiliares de contramestre e que operam, portanto, diretamente li-gadas às operadoras de máquinas tanto da UF como da UV. Nospostos de supervisão não se encontra uma única mulher e nos decontramestria a presença de mulheres é escassa. sendo que as existentes localizam se, principalmente, na Unidade do Vestuário, queconserva, em geral, uma maior proporção da presença feminina nocomando das operações industriais. Nessa Unidade, o setor de freinamento, bem como o de estoque, encontram se igualmente sob aresponsabilidade de trabalhadoras, que, hierarquicamente, se en-quadram de íomla simétrica aos/às contramestres da produção.

por profissionais de serviço social, nutricionistas ou atendentes deenfermagem. de creche e de refeitório

Um significativo segmento da população feminina estudadaconstitui, ainda, a força de trabalho destinada às atividades de apoioadministrativo. Recepcionistas, secretárias e auxiliares de escritóriopontilham os ambientes. sendo que muitas delas são oriundas daárea de fabricação. Conquistaram, logo, sua transferência após aconclusão de cursos de segundo grau e mesmo quando de seu ingresso em cursos universitários. "Esse pessoal do nosso escritório,90% vêm da fábrica. São aproveitadas porque estão estudando" , é oque relata o presidente do Sindicato. O nível de escolarização dastrabalhadoras, por conseguinte. constitui-se, em tais casos, comoimportante fundamento de suas chances de transferência para umespaço de trabalho que, não possuindo necessariamente diferenças significativas de remuneração em relação ao da fábrica, apare-ce como um ambiente supostamente mais qualificado em termosde condições físicas, sociais e intersubjetivas.

A área médica. por $ua vez, apresenta um predomínio de mu-lheres profissionais, fato que, de acordo com uma das médicas en-trevistadas, "ocorreu sem que nos déssemos conta". A gradativasubstituição de médicos por médicas. na enfermaria da fábrica, éentendida como parte da dificuldade encontrada pelos homerlsmédicos em conciliarem os extensos e regulares horários exigidos pela empresa com outras atividades de caráter lberal-autóno-mo e mesmo com outros possíveis empregos. Dessa maneira, supõe-se que o cumprimento de tais horários é percebido e aprecia-do de forma diferenciada pelas médicas, que têm apresentado umperfil de maior adaptabilidade aos mesmos. Nesse caso em partiGuiar, fazem-se possíveis outras reflexões, que, a grosso modo, es-tariam referidas aos diferenciais de homens médicos e mulheres-médicas, em relação a suas escolhas quanto a se concentrarem ou não em uma área específica da medicina a do trabalhocomo a seus interesses em aumentarem as chances de ganhosmensais e de uma maior visibilização social. A crescente inserçãode médicas no trabalho de atendimento e mesmo de peritagemdos/as produtores/as industriais e dos processos de fabricação patece não se dar dissociada. logo, de uma tendência feminizantedetectada em algumas áreas da própria medicina e do mercado detrabalho que Ihe são consonantes.

Tais transferências possuem, em consequência, o estatuto deuma promoção e tomam-se estímulo para a busca de maior aperfeiçoamento por parte das trabalhadoras administrativas, com vis-tas ao desenvolvimento de uma carreira profissional dentro oumesmo fora da empresa. A maioria delas, entretanto, se limita aessa passagem inicial, podendo vir a ser reconhecida com futuraspromoções salariais, em função da estabilidade funcional e devoração ao exercício de suas responsabilidades. Ordinariamente.suas atividades são denominadas de apoio, sendo, portanto, de-senvolvidas como serviços prestados às chefias respectivas. A or-dem de seus dias, em geral. se estabelece a partir de uma rotina deafazeres desapropriados de maiores exigências criativas e mesmode desafios intelectuais. O grau de autonomia de seu funciona-mento mostra-se nomlalmente muito restrito, estando sujeito a secondicionar estreitamente às demandas de seus superiores hierár-quicos. Organizar a agenda do/a chefe, sua sala e dependênciasanexas, providenciar, quando demandados, serviços de café, cháe lanches. receber e encaminhar visitantes e telefonemas. colo-car-se como escudo defensivo das chefias frente às eventuais mo-lestações de outrem, digitar correspondências, recebê-las e despachá las, acompanhar as chefias nas extensões dos horários dadomada. com a íinahdade de garantir-lhes a necessária infra-estro -

No tocante à área de assistência social, observa-se que a mes-ma se conserva como "gueto" ocupacional de mulheres, revelandoestruturar-se de acordo com a tradição de privilegiar a mão-de obrafeminina nas atividades assistenciais, sejam elas desempenhadas

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Lura, são algumas das atividades que compõem seu dia-a-dia. Po-dem, igualmente, estarem alocadas em atividades de auxílio ad-ministrativo. realizado através de tareias burocráticas e de meno-res exigências de sociabilidade e interpessoahdade.

daí advindos. Nesse sentido, de acordo com Bourdieu (1990, p24), toma-se lhes claro que estão fora dos jogos de poder, vistonão poderem intervir, enquanto sujeitos. "na primeira pessoa, nosjogos onde a masculinidade se afimla e realiza. . . " , sendo fundanteem sua exclusão um argumento que, obviamente, se estende atoda a divisão sexual do trabalho: "Não é outra coisa senão a dissi-metria fundamental que se instaura entre o homem e a mulher notenente das trocas simbólicas. a do sujeito e do objeto. do agente edo instrumento"(lidem). As mulheres. encanegadas da gestãodo capital simbólico das famílias, são muito logicamente instadasa canegar esse papel para o interior das empresas.

Em qualquer uma dessas situações, mostram se tais comoas operárias como trabalhadoras parcelares, movidas por umavontade e por um cérebro que não lhes pertencem, funcionando,logo. como executoras parciais de uma proposta de trabalho cujoconjunto, concepção e finalidades lhes escapam. A repetição quese acha imbricada em seu cotidiano, a suportabilidade do isoladonismo de seu ambiente de trabalho, a localização de sua sala,como sendo a ante-sala da chefia, as demandas em "saber lidarcom público", que também se estendem às necessidades de "sa-ber lidar com o privado do/a chefe" , revelam-se como indicadoresde trabalhos subordinados e que, correntemente, se situam nosníveis baixos da hierarquia administrativa.

que lhes confia quase sempre as atividades de apresentação e derepresentação, de recepção e de acolhida e também de gestãodos grandes rituais burocráticos que, como os rituais domésticos,contribuem para o estabelecimento e para o aumento do capitalsocial de relações e de capital simbólico(idem, p. 27).

Trabalhos de mulheres, portanto: invisibibzados até o momen-to em que deixam de ser feitos, desvalorizados até o limite de suasuponabihdade. Secretárias, recepcionistas e auldliares adminis-trativas compõem, desta forma, mais um dos "guetos" do trabahofeminizado, no qual se celebram a aliança entre donlüação e ex-ploração das mulheres trabalhadoras. O avanço relativo à escolari-zação de tais trabalhadoras não se constitui, no mais das vezes,em fato suficiente para ocasionar transformações estruturais desuas posições no espaço de trabalho, convertendo-as, assim, empossíveis herdeiras de um maior poder de influência.

O fato, ainda, de que em sua maioria provém da fábrica e, as-sim, do exercício de trabalhos manuais, ou seja, o fato de que sãoadvindas de uma origem marcada pelo estigma da interiorização,reforça sua manutenção como periféricas e marginais no jogo con-correncial, no qual desempenham papel de meros instrumentosde suporte que são, por sua vez, apropriados pelas chefias, em ge-ral masculinas, em seus próprios jogos de poder.

Assim, é por uma extensão de seu papel tradicional na esferadoméstica que as trabalhadoras administrativas ocupam íunções que, na maioria das vezes sendo subordinadas, ainda semostram importantes na produção de serviços simbólicos ou de'signos de distinção

C)s fatos antes apontados tornam quase que irresistível umabreve menção concernente ao arbitrário cultural u<istente e orainariamente ignorado/negado nas escolhas profissionais. Tais fa-tos serviriam de base empírica fértil a análises das relações de gê-nero com o trabalho, como já o fizeram autoras como Guacira Lo-pes Louro (1987, 1992, 1994), Eliane Mana Teixeira Lopes (1991),Dagmar Meyer (1991) e Mana Júha Marques Lopes (1993). Essesestudos fazem parte das análises da problemática educacional eocupacional das mulheres, que, enquanto percebidas como estru-turadas/estruturantes pelo/do gênero, colocam importantes subsadios às análises a respeito da constituição/segmentação dosmercados de trabalho e dos/das trabalhadores/as

As trabalhadoras administrativas, embora se situem muitopró>dmas dos jogos do poder de suas respectivas chefias, enconEram-se, contudo, marginalizadas dos mesmos, podendo mesmovir a Mncionar, diante de seus "patrões", como verdadeiras cúm-plices, interessadas em se sentirem socialmente reforçadas pelaconvivência direta com "poderosos" e com os possíveis privilégios

Com relação aos postos de chefia ocupados por mulheres.pode-se observar que existem entre os mesmos, simultaneamen -te, uma grande similitude - em que pesem seus conteúdos e ativijades diversificados - e uma grande diferença em relação a seusrespectivos sistemas de privilégios e hierarquias. Similitudes nasdiferenças e diferenças nas similitudes constituem-se como pares

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dinâmicos que mobilizam as trabalhadoras nas apostas dos jogosconcorrenciais dos espaços de trabalho. Dessa forma. embora sedefronte com a evidência de que algumas chefias são reservadas àsmulheres, residindo aí um aspecto do que aqui se está chamandode similitude, não basta ser mulher, entretanto, para ocupar especí-ficas posições de chefia. Ou seja, a odstência de postos de chefiareservados a mulheres não significa que qualquer trabalhadora possa vir a ocupa-los, existindo, por conseguinte, um traçado de espé-cies diferentes de carrega para cada "espécie" de mulher de acordocom sua posição de classe e sua herança cultural e social.

Iheres, na qual se apoiou uma ideologia feminista universalizantetornou-se, face às discussões anuais, uma autêntica ironia

Para Elisabeth Fox-Genovese (1992), tal concepção, compreardida como afinidade natural e solidariedade entre mulheres,pressupõe uma igualdade humana que adora, como padrão universal, aquelas características e at:ributos pertinentes tão-somentea um grupo de mulheres mais favorecidas por sua classe e raça. Oetnocentrismo evidenciado em certas tendências feministas cluenão plurallzaram seu objeto de estudo, traduz-se, portanto, comoforma de excluir da realidade social as mulheres mais pobres e nãobrancas. Revela-se, ainda, como argumento que sustenta "as muIheres como essencialmente virtuosas e os homens como funda-mentalmente maus" (idem, p. 52), desconsiderando, em última análide. as contradições iinbricadas nas relações de dominação, quersejam as que se expressam entre mulheres pertencentes a classes,raças e idades diferentes, quer sejam aquelas relativas à "dominação do dominante por sua dominação" (Bourdieu, 1990, 1992).

Tal fato me leva a reconhecer a existência de uma separaçãoentre as próprias mulheres, que não podem, portanto. ser conside-radas de forma homogênea e unifomiizante. mas como divididas ,

visto que seus espaços conconenciais e competitivos se enconeram distintamente estabe]ecidos, sendo consonantes com a estritura e o volume de seu capital simbólico.

Assim sendo. pode-se aquilatar algo das dihculdades enfrentadas pelos agentes (quanto à transposição de seu lugar social de origem. E, mais, considerando que as diversas espécies de capital sãolegitimados somente no interior de cada campo específico, bemcomo através da definição das regras de seus respectivos jogos depoder e de sua tácita aceitação por parte dos/as concorrentes, seriaquase que inacreditável constatar rivalidades entre trabalhadorasprovindas de diferentes capitais económicos, cultwais e sociais.Provavelmente, ridicularizar-se-iam e denominar-se iam de heréti-cas as tentativas daquelas que se dispusessem a rivalizar em cam-pos de poder estranhos a seu habiMs e a sua hexís corporal.

Dessa forma, se a diversidade entre as mulheres trabalhadoras também as pluraliza e diferencia, revelando existirem assemetrias de status e de poder no interior da população femininaque se manifestam inclusive no âmbito de suas atividades laboreis, torna-se claro que qualquer análise a respeito fundamentada exclusivamente na categoria do gênero seria bastante apressada e de implicações discutíveis

Quem são, pois, as mulheres que ocupam cargos de chefiana empresa estudada? Bastaria dizê-las mulheres para justificarsua distinção, como o faz o discurso patronal, quando justificasuas escolhas, indicando que se orienta, de acordo com as pala-vras do diretor industrial, pelo critério adt/hdo de uma cdtura sebre a mulher, que, quer ela queira ou não, se origina na própriacasa, no cuidar dos Hinos?

O consentimento das mulheres e seu próprio auto-reconheci-mento desde o conjunto de chances e/ou de interditos derivadosde seu gênero feminino também se expressa, sob forma devotada,quanto aos destinos que lhes são reservados enquanto pertencentes a uma determinada classe social.

Assim. torna-se importante ressaltar que. ao contrário do quese possa supor, a problemática da subordinação feminina não resi-de apenas nos domínios reservados às relações entre homens emulheres. As mulheres e os homens não podem ser pensadas/osem abstrato, sob pena de se criarem ficções que apenas servem aodomínio e à exploração. A concepção de irmandade entre as mu

A associação do desempenho de chefes-mulheres com ativi-dades advindas da esfera da nurtuzance (cuidar e criar) e, logo, daesfera reprodutiva da família, pode ser objeto de consideraçãodesde que seja articulada ao fato de que todas as chefes-mulheresestudadas mostram se altamente preparadas para o desempenhotécnico de seus cargos. Enfatizar o predomínio do ser mulher comopredicativo exclusivo e fundente parece fazer parte de uma lógicade desvalorização da qualificação feminina, seja ela adquirida di

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retamente na experiência, seja através de fontes escolares. O "$aber lidar com pessoas". as habilidades interpessoais baseadas emuma suposta maior sensibüdade das mulheres para os problemashumanos não se constituem em componentes suficientes para odesempenho bem-sucedido de seus cargos.

serão estar preenchendo funções compensatórias junto ao operaFiado, sendo colocadas, estrategicamente, em proximidade ao mes-mo para servirem de contrapontos às características de racionaldade, frieza e distanciamento que se expressam no anual estilo ge-rencial adotado. Podem assim vir a ocupar o lugar de "boas mãesna defesa e no amparo da prole" frente à "incompreensão e durezapatemas" para com a mesma. Abrandar-lhe as penas, acarinha-lae consola-la quando as exigências Ihe pesam e a fazem curvar, fes-tejar conjuntamente a conquista das metas diária e mensal, sobciarizar-se com seus possíveis sofrimentos, atentar para aspectostão simples e fundamentais da existência social, como chamar acada um/uma pelo nome que Ihe é próprio, saber de seus filhos,marido e familiares, auscultar seus sonhos e suas desilusões...Sim, como mulheres parecem estar perfeitamente aptas para talfunção. Foram na verdade preparadas para ela durante toda suavida, em um imenso trabalho reprodutivo que as qualificou e asdistinguiu por tais características. Da operária (líder de grupo) àpsicóloga (gerente de Recursos Humanos) todas se encontramsem dúvida muito bem preparadas para dar conta daquilo que su-postamente deve ser feito por mulheres. E é bem provável que ofaçam tão bem, de forma a poderem vir a se tornar insubstituíveisen(quanto mão-de-obra específica

O que se verifica é que tais mulheres ascenderam porqueaprenderam. porque se qualaicaram, porque dominaram. técnicae administrativamente, o processo de trabalho. No caso das che-fes-mulheres-operárias que não íreqtlentaram a universidade, torna-se inegável que adquiriram uma grande experiência prática noprocesso industrial. tendo se tomado, como elas próprias se autodenominam, políva/entes. Mulheres ambiciosas e apostadoras, in-teressadas nas possíveis ascensões funcionais, trabalhadoras dedécadas que, tendo ou não oportunidades de aprendizagem siste-mática no interior da empresa, obtiveram, quase que por "infiltração" em diversos setores, por elas sugerida em épocas de baixasafra, noções e treinamento em importantes operações da fabricação. Escolher. por exemplo, uma líder de grupo dentre as operáriasnão se trata de uma simples constatação a respeito de seu gênero.Alia-se a esta uma necessidade fundamental de que ela possuauma visão global do setor em que atuar, sendo impossível que nãosaiba tanto operar qualquer uma das máquinas de forma canetacomo identificar possíveis desananjos mecânicos dos equipamentos e desvios na qualidade dos produtos em fabricação. Seus múl-tiplos conhecimentos, diante do argumento de que mulheres sãoescolhidas para certos postos de chefia porque são hábeis em cu-rar com caiüho. tomam-se ofuscados enquanto conquista de umcapital. Elas até podem também ter sido escolhidas por serem vistas como supostamente mais capazes de transitar na esfera dosabetos, não podendo se admitir. contudo. que tal critério seja sustentado como o maior suporte explicativo de suas carreiras.

A opinião do gerente da Qualidade expressa, de uma certa forma, esse reconhecimento: "Na produção nós até temos algumasmulheres-chefes. E muito interessante, dá para fazer uma distinção dessas chefias, da capacidade que as mulheres têm em seremmuito boas chefes. Talvez até por isso é que venham a ser chefesE/as tiveram realmente que se supera. São muito boas no trabalhoe estão sendo muito boas como chefes. Nós não temos muüeresconüamesüas facas. Nós temos contramestres homens fracos.Fracos em chefia, que não têm essa mesma capacidade de chefiaque as mulheres têm". Em tal depoimento, destacam-se dois aspectos : o emprego da expressão elas tiveram realmente que se supelar parece indicar a necessidade que se impõe às trabalhadorasde terem, para conquistar sua ascensão funcional, além de trans-por as barreiras dos preconceitos sociais, de superar-se a si pró-prias, ou seja, de romper, em sua própria interioridade. com a cor-respondência direta entre o sistema de disposições que constatuem seu habiMs sexuado/sexuante e os determinismos estrutu-rados/estruturantes advindos das estruturas objetivas

Quando lhes é negado o reconhecimento por sua qualificaçãotécnica específica. as mulheres estão sendo enquadradas em umaespécie de humano que é vista com mais aptidões para o exercíciodos abetos do que o da razão, não lhes sendo possível um estatutoamplo de potencialidades e capacidades. A feminilidade, nessesentido, se constitui desde a ausência de razão, caracterizando-sepor um conjunto de atributos que giram em tomo do sensível, dointuitivo, do emocional. Em relação aos chefes-homens. elas po

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Aspirar e empenhar-se por conquistar posições sociais quenão se encontram definidas a piíon no elenco de suas chances implaca. pois, um grande esforço de não consentimento com as violências simbólicas que lhes estão previstas. A recusa de sua auto-identificação com uma imagem de mulher carregada de "pre-conceitos desfavoráveis" implica, seguramente, um enorme tragalho de luta individual que se fundamenta na possibilidade de vira pensar e apreciar o ordenamento do mundo social como arbitrario e não natural. O reconhecimento, logo, da distribuição do poder como um jogo de apostas, construído social e historicamente,parece, por sua vez, lhes incutir uma consciência aguda da condi-ção de transitoriedade de suas possíveis conquistas. Aterram-se aelas, por conseguinte, com unhas e dentes, dedicando-se. a partirda obtenção de sua promoção, a atingir aqueles padrões de exce -

lência relativos à chefia que tanto no ambiente externo como noseu próprio modo de ver ainda permanecem masculinizados. Assim.são melhores chefes do que os homens, não pelo motivo comu-mente pensado, ou seja, pelo fato de serem mulheres. Elas sãomelhores chefes porque nunca deixam de se colocar como ienelhas apostadoras, conscientes, portanto, de que aqueles lugaresnão lhes pertencem "naturalmente" como aos homens e que, dizerentemente deles - tidos como legítimos herdeiros culturais -, ne-cessitam investir duplicados esforços para garantir a manutençãoe legitimação de sua posição enquanto chefes-

A lógica da "deserdada" se inscreve, contudo, de forma quaseque trágica, no percurso de sua trajetória de chefia. Não ascenderou mesmo perder o posto de comando por incompetência consti-tui-se, para as mulheres, em uma aposta muito radical. visto quesituações sejam de vitórias como de fracassos se colocam dire-tamente relacionadas ao ser-mulher e dizem respeito, poüanto, a$eu próprio ser, não se restringindo a suas habilitações e capaci-dades técnicas. Sua própria pessoa se implica nas apreciações quelhes são atribuídas. Ordinariamente, as justificativas - seja de suasconquistas como de seus fracassos são imputadas ao fato de serem mulheres e não aos componentes que formam sua identidadeprofissional e técnica. Lutar pela conquista das chances disponí-veis, que se encontram destinadas aprioristicamente aos competedores do gênero masculino, as condiciona, internamente. a umaconstante autovigilância e um autocontrole que se manifestam emum desempenho global muito eficaz e superior ao de seus cole

gas-homens. E/as se superam, mas não esquecem de que seuspossíveis deslizes poderão se reverter em motivos de sua depreciação e deslegitímação. Necessitam, por isso, ser muito mais aten-tas e capazes do que os homens, visto estarem inseridas em umambiente que, apesar de até possuir algumas chefes muüeres,não converteu seu próprio modo de pensar a respeito das mesmasEm decorrência, enquanto mulheres chefes. são avaliadas por padrões de excelência que se mostram profundamente marcados pe-las imaginadas "qualidades masculinas", ou seja: racionalidade,dureza e frieza profissionais. Assim, impõe-se-lhes, pois, a adoçãode tais requisitos como forma de garantir aquilo que Hirata (1994a,p. 128) denomina de qualificação de emprego. isto é, uma "qualiíicação definida pela empresa a partir das exigências do posto detrabalho". Esta, somada a suas qualificações como trabalhadorasnas quais se incorporam, portanto, também suas aprendizagenstácitas do ser mulher. as fazem boas e produtivas, nas palavras domesmo gerente acima referido, porque são detaZ/listas, cobrado-ras. até duras nas cobranças e ao mesmo tempo queridas.

Uma importante cadeia de efeitos, contudo, deriva-se da adoção, pelas mulheres chefes, do padrão masculino de excelênciade desempenho de suas responsabilidades. Tanto a ocorrênciade reclamações de operárias junto ao Sindicato, devido â estapidez de algumas contramestres, como o reconhecimento deque a maioria das pessoas que a gente tem de chefias femininassão masculhizadas, conforme relata o gerente de Qualidade,restabelecem, por conseguinte, e de forma espetacular, a legitimação da dominação masculina. agora realizada. com devoção.pelas próprias mulheres. O dizer do referido gerente de que elascedem o seu /ado íemüüo e, ao mesmo tempo, seu reconheci-mento de que elas se superam leva a entender que superar-se querdizer ceder o seu /ado íenlüüo, negarem-se enquanto mulheresMasculinizarem-se, portanto

Considerando a importância do argumento de que ninguémse faz homem ou mulher apenas pelo bato de ter nascido biologica-mente macho ou fêmea, e que as identidades subjetivas são masculinizadas ou feminizadas a partir de longos processos de inculcação e socialização diferenciados de acordo com as culturasnas quais se inserem, bem como legitimados segundo o tempohistórico que lhes é correspondente -, pode-se observar que aqui-to que supostamente é considerado como masculino e feminino se

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inscreve como forma simbólica e arbitrária, não existindo funda-mento biológico para justifica-lo e naturaliza to. Por outro lado, oestabelecimento da oposição das categorias mascdino e femininoe das conseqüentes arbitrariedades nela contidas fazem pensarcomo ardilosas as estratégias que, praticadas pelos agentes sodais em nome de sua igualdade de direitos, resultam em perda desua própria diferença constituidora. Fazem pensar, por outro lado,na impropriedade da idéia de atribuição aos homens e mulheresde diferenças comportamentais tão distintas, como sendo deriva-das de sua natureza biológica e estando neles/nelas inscritascomo determinismo instintivo. Ora. caso assim o fosse, não seriapossível virem a ser constatadas transmutações comportamentaisdos gêneros, isto é, mulheres e homens invariavelmente compor-tar-se-iam como se supõe que devam ser: elas, dotadas das supostas capacidades afetivas inatas relativas à maternidade (cuidare criar), e eles, como um [rator (We deve fazer o cíhheüopara den-so de casa(diretor industrial) .

Tornar-se mão-de-obra adequada aos anseios da gestão implicaem tais casos, muito mais cio (iue portar um diploma universitárioImplica. por conseguinte, a incorporação e a aceitação do sensodo jogo socialmente constituído

Trata-se, aqui, de considerar a importância de um processo deaprendizagem, habituação e construção de estratégias e de práticas estabelecido desde a convivência durável e regular dos/as tramalhadores/as com seus respectivos espaços de trabalho. Tal pro -cesso é responsável, como se sabe, por uma espécie de "aculturamento" durante o qual firmam-se, na interioridade dos agentesprodutivos, $ua adesão e seu consentimento às regras do jogoconcorrencial específico do campo particular. Considerando-se quea posição de cada agente na rede de posições do campo é definidapelas espécies de capital que possui e sabendo-se que "o valor deuma espécie de capital depende da existência de um jogo, de umcampo onde ele possa vir a ser utilizado" . conclui-se que a relaçãoespécie de capital e campo condiciona, além das chances de poder dos indivíduos, sua própria existência social, ou seja, sua capacidade de exercer um poder, uma influência, "em lugar de seruma simples quantidade negligenciada" (Bourdieu, 1992, p. 74)

Contudo. há de $e examinar outros aspectos para além dessasconsiderações. visto que a posição de classe de tais chefes mulhe-res, bem como as possibilidades nos espaços de trabaho que lhessão destinados, tornam-se importantes fatores que, além de condecionarem suas anuais posições de comando, também estabelecemassimetrias entre a$ trabalhadoras, tomadas em seu conjunto.

Nesse sentido, analisar a situação das chefes-mulheres-uni-versitárias leva a considerar que, ao serem admitidas. elas já trazem consigo um volume de capital cultural maior do que o daschefes-muheres-operárias, situando se, portanto, no jogo concor-rencial, em relação a estas, de forma privilegiada. Chefes-mulhe-res universitárias e chefes-mulheres-operárias igualam-se. contu-do, no momento de sua alocação em postos específicos da divisãodo trabalho que pressupõem, como necessárias a seu exercício,qualidades das mulheres enquanto mães, ou seja, aqueles requisitos considerados ordinariamente como atributos femininos advin-dos de sua natureza biológica. os quais, supostamente, não reque-rem a mínima necessidade de aprendizagem, visto serem conce-bidos como implícitos aos próprios instintos das mulheres. A naturalização do cultural e sua redução a um conjunto de talentosbiológicos, pulsionais e inatos desempenham importante funçãonas relações de dominação X exploração. uma vez que se consti-tuíram em argumentos fundantes da desvalorização das mulherese de seus saberes, implicando, por suposto, decorrências que in-vadem a totalidade de sua existência, manifestando-se, pois,igualmente nas atribuições de trabalho, nas fomlas de remune-

Nos casos da psicóloga, médicas e assistentes sociais, é evidente que sua posição em uma classe social mais favorecida pos-sibilitou-lhes o acesso diferenciado à escolarização em relação àsdemais mulheres-chefes pertencentes à categoria do operariado.Possuindo titulação universitária, em geral podem ser consideradas ainda como jovens profissionais e, portanto, não possuidoras,ainda. de uma experiência consolidada. Tais como alguns enge-nheiros, hoje supervisores da Produção, foram contratadas comoforça de trabalho especializada e, assim, prioritariamente condicio-nadas a uma titulação de nível superior. capacitante ao domíniotécnico das responsabilidades previstas aos cargos para os quaisforam selecionadas. Sua efeüva profissionalização. entretanto, como não poderia ser de outra fom)a, ocorre no interior do próprioprocesso de trabalho, ou seja, a adequação dos referenciais acadê-micos de seu conhecimento à cultura. ao clima organizacional e àscondições de trabalho da empresa transcorre de forma a não lhespoupar uma segunda aprendizagem, dessa vez forjada na prática.

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rá-las e de conferir-lhes prestígio e visibilidade sociais. A lógica dadesvalorização feminina sustentada pela biologização do culturalleva, em última análise, a que os trabalhos considerados comodestinados às mulheres, mesmo os que se refiram a postos de comando, sejam considerados como subordinados na hierarquia ocupacional. justificando-se. por conseguinte, a redução de seus pa-tamares de remuneração e de reconhecimento.

Além disso, em que pesem as visíveis diferenças encontradasentre os trabalhos de chefia destinados às mulheres, relaciona-das, por exemplo, à localização hierárquica mais ou menos subordinada. às melhores ou piores condições de trabalho e de re-muneração. percebe-se que o conjunto de tais postos se encon-tra comumente restrito e constrangido às regras e demandasprodutivas, ditadas e impostas desde os eíetivos lugares de co-mando do capital, ocupados maioritariamente por homens: acio-nistas. diretores e alguns gerentes técnicos. As chefes-mulhe-res, seja qual for sua posição na cadeia de comando. parecemnão se livrar da persistência de sua subordinação aos homens, fi-gurando como coadjuvantes dos chefes homens, reservando se.pois, a um lugar de ressonância do poder masculino, de forma agarantir-lhe maior amplitude e intensidade .

Manifesta se, dessa forma, uma fantástica cadeia de efeitos estruturantes sobre os/as agentes, desde que estes/as sejam consi-derados/as na perspectiva de uma correspondência lógica de suainterioridade com as estruturas objetivas nas quais se produzem.E que, igualmente. se reconheça que a divisão do trabalho não sedá por características intrínsecas às mulheres, e sim por sua posi-ção de importância na hierarquia industrial, a qual pode vir a se re-configurar, de tempos em tempos, segundo modificações no pro-cesso de trabalho. Isto quer dizer que o que é considerado trabalhode mulheres passa pela posição em que o mesmo se coloca na es-cala das ocupações, não sendo verdade que as mulheres não fa-zem o que os homens fazem elas podem vir a fazê-lo, desde queeles deixem de fazer.

Recentes estudos, tais como os de Helena Hirata (1993), Daniê-le Kergoat (1982, 1996), John Humphrey (1987), Elisabeth SouzaLobo (1991), Márcia de Pauta Leite (1994b) e Judy Wajcman (1991),revelam que os avanços tecnológicos introduzidos nos processos detrabalho e as consequentes reestruturações industriais deles deri-

vadas não têm oportunizado melhorias às mulheres, visto que, ordinariamente, elas são excluídas de tais novas reorganizações, mantendo-se em trabalhos de pequena criatividade e escassa autonomia, sustentados pelos princípios do modelo taylolista/Zordsta

Nesse particular, consequentemente, pensar que os avançostecnológicos no processo de trabalho viriam a oportunizar maiorigualdade no trabalho industrial toma-se um equívoco que desco -nhece que, em suas metamorfoses, o capital ainda se sustentavinculado ao patriarcado e que, assim. reserva aos homens tantoos privilégios do progresso técnico como a apuração do espíritopara acompanha lo.

Para além de identificar o que as mulheres fazem. é necessáriodesvelar, pois, o sentido que é atribuído ao que elas fazem. A desva -lorização material e simbólica das qualidades "femininas" conside-radas como inerentes à natureza das mulheres nega valor às chefes-trabalhadoras de forma dupla: primeiro, naturalizando as qualificações "maternais" do ser-mulher, conservadas, contudo, comopré-requisitos importantes ao desempenho de certos cargosl e, sefundo, fazendo que, com tais atributos femininos simultanea-mente importantes, mas naturalizados e não valorizados - se tor-nem critérios privilegiados tanto no processo seletivo de candidatascomo nos ulteriores processos de sua remuneração e carreira

A explicitação do priviiegiamento do "ser-mulher" certamen-te serve, aqui, para ocultar o não reconhecimento social e materialde uma outra espécie de quaMicação de caráter fomlal perten-cente à esfera técnica do trabalho, exigente, portanto, também deaprendizagens obtidas tanto nas experiências diretas da execuçãode atividades quanto em fontes escolares. Tais processos de inver-são e de ocultação se eíetivam por estarem apoiados em um planoimaginário e simbólico. estruturado e estruturante das várias crenças que desaguam no fenómeno da subordinação das mulheres aoshomens, que as atinge "em cheio" em qualquer das esferas de suaexistência. Ou seja, trata-se da prevalência, em se tratando de trabanhos de mulheres remunerados ou não -, de uma associaçãoimaginária destas com tudo o que diz respeito à naturezas e porconseguinte, com o que é culturalmente considerado como inferiore desprestigiado (Sherry Ortner, 1979i Mireya Suarez, 1991)

As evidências confirmam que as mulheres trabalham por salario e sem ele. Tornam claro que o trabalho doméstico a elas desta

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nado é igualmente desmerecido e inferiorizado no contexto so-cial. Embora se reconheça que trabalho remunerado e trabalhodoméstico diferem em muitos aspectos, torna-se. aqui. importan -te ressaltar uma homologia de sentidos entre eles, visto que as trocas simbólicas realizadas entre a$ esferas reprodutiva e produtivasustentam a "biologização do social" l naturalizam. logo, os dotese atributos femininos e os desconsideram, para fins de reconhecimento económico e social, como capital legítimo. Depreciados,obscurecidos e mal remunerados, os trabalhos de mulheres têm $e

mantido, ao longo dos tempos, hierarquicamente inferiores aosdos homens. A interiorização social das aprendizagens envolvidasno tornar-se mulher, que se revela, sem dúvida, como uma dasmais longas e duradouras da existência humana, bem como suaextensão às demais qualificações formais, adquiridas pelas tubaIhadoras em processos educativos/socializantes, sejam do âmbitoda experiência prática como do conhecimento escolarizado, cer-tamente não apontam para perspectivas muito animadoras.

mente, não são pensados como técnicos devido ao fato de seremtrabalhos de mulheres. Tanto para Hirata (1994a) como para Wajcman (1991), a base de distinções das qualificações de homens e demulheres não pode, portanto, ser encontrada exclusivamente doponto de vista técnico. As definições das quaMicações e sua conseqüente(des)valorização podem ter mais a ver com construções sedais e ideológicas do que com as competências técnicas das quaishomens e mulheres são portadores/as. Falar em exigências para odesempenho de qualquer que seja o cargo. quer dizer, porlnnto, re-conhecê-las como expressões de um conjunto idealizado de cren-ças que não podem ser admitidas como naturais. e sim como cons-truções sociais arbitrárias e nomlativas que expressam, em últimaanálise. a própria ordem simbólica que $e impõe aos agentes sociais,no jogo das relações entre capital e trabalho sexuado

No que diz respeito às chefes-mulheres-operárias pertencen-tes ao local do estudo, revela-se, já de início. que. para as operá-rias. tornar-se chefe depende quase que exclusivamente de suatrajetória no espaço fabril, ou seja, da convivência prolongada comos processos de trabalho e da conseqüente aprendizagem polmenorizada dos mesmos. Um saber conquistado diretamente atravésde práticas e, na grande maioria das vezes, sem um projeto peda-gógico explícito e regular. Tais trabalhadoras não ascendem parapostos administrativos ou de planejamento da produção, por exem-plo, ficando restritas, em geral devido à sua baixa escolarização, aposições de comando diretamente vinculadas ao processo de fa-bricação. Sua origem de classe social, uma vez tendo-lhes diminu-ído as chances de estudo, definem como lhes sendo pertinentes oslugares de comando próximos ao operariado. com o qual, na ver-dade, não rompem os laços identificatórios. As chefes mulhe-res-operárias, se assim se pode dizer, em geral são mais velhas doque aquelas suas colegas universitárias, sendo que seu posiciona-mento como chefias representa o esforço acumulado de !onçasdécadas de trabalho, durante as quais transitaram pelas múltiplasoperações do processo produtivo. Aliado ao fato de possuírem umconhecimento amplo e. ao mesmo tempo, detalhado do trabalho,destacam-se por aspectos comportamentais de dedicação, baixoabsenteísmo, interesse em aprender e ensinar, bem como "pulopara controlar a postura do pessoal, ser uma espécie de líder natu-ral, para ter a turma muito na mão" (supervisor UF). Devem tersido, ao final das contas, disciplinadas para o trabalho industrial, o

As análises de pirata (1994a) auxiliam, de certa maneira, aclassificar a ampla noção de qualificação até aqui utilizada. Paraa autora, a qualificação deve $er concebida "como o resultadosempre cambiante de uma correlação de forças capital-traba-lho", devendo ser apreendida de forma multidimensionada. Ouseja. como "qualificação do emprego, definida pela empresa apartir das exigências do posto de trabalho, (. . .) e. como qualifica-ção do trabalhador. mais ampla do que a primeira. por incorporaras qualificações tácitas ou sociais que a noção de emprego nãoconsidera" (idem. p. 128).

Considero, portanto, que o que a empresa prioritariamente des-valoriza e interioriza são as qualificações denominadas de tácitas ousociais. ou seja, apreendidas ao longo da vida, através do senso prá-tico, e que, no caso do ser mulher, não são definidas como qualüca-ções, sendo consideradas, assim, como qualidades naturais.

Desse modo, visto que os processos de tomar se mulher e detomar-se trabalhadora fundamentam-se, embora em proporçõesdiferentes. sobre um conjunto adcluirido de quaHicações tácitasou sociais e. considerando se que mesmo que algumas trabalha-doras venham a apresentar, como a realidade o tem demonstrado,alta qualificação formal, trata-se de reconhecer, de acordo comJudy Wajcman (1991), que os trabalhos de mulheres, ordinaria-

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que inclui, segundo uma das contramestras da UV.empresa, ficar do lado da empresa'

'defender ade aprendizagens, com sólidos vínculos de confiança com o paironato, atingem tais patamares

Disciplinadas e disciplinadores, as líderes de grupo, por suavez, exercem funções de auxiliares de contramestre, sendo que.segundo uma delas, são tidas como os ocos e os ouwdos do/amesmo/a. Seu papel implica, pois, reproduzir e maximizar o pró-prio olhar do patrão, garantindo, para qualquer que seja o mínimoespaço produtivo, sua atenção vigilante. Através de sua proximi-dade com as demais operárias, procuram conquistar sua confiança, mostrando-se elas próprias como modelos a serem seguidospelas mesmas. Devem igualmente saber operar todas as máquinasrelativas à área de sua atuação, ensinar as novatas e corügir-lhesvícios que poderão atingir os padrões de qualidade dos produtos.funcionarem como mediadoras entre as demandas produtivas e asdificuldades das operações e de seus fluxos. Para o supervisor daUF. "pra início de conversa, a líder de grupo tem que conhecermuito bem aquela função dela, de trás pra frente, tem que conhe-cer os macetes mesmo, tudo, tudo, tudol No mínimo ela tem queter sido operadora de todos os processos. .. ela tem que conhecertodas as etapas e todas as funções muito beml

A justihcaLiva encontrada para o emprego de mulheres nospostos de contramestras e de líderes de grupo indica que, em ge-ral, suas funções também se confundem. como no caso das chefes-mulheres-universitáüas, com o atendimento a necessidadesafetivas do operariado, que, sendo em sua grande maioria consti-tuído por mulheres. parece demandar e melhor aceitar um estilode comando pautado em aspectos de "ajuda". Na percepção daspróprias chefes-mulheres-operárias, "as operárias têm mais libercinde de chegar e falar certos problemas que têm em casa quandoa chefia é mulher. Há uma espécie de barreira para falar de proble-mas pessoais para homens. Entre mulheres há mais liberdade. Euacho que a chefia sendo mulher ajuda nesta parte humana, na fa-mília e em tudo. . . " (contramestra da UV). E. nas palavras da supervisou da UV, revela se uma prática de solidariedade que se fundaem uma sensibilidade para perceber, mesmo à distância, quandoalguém está Ms e: "As vezes, eu vejo alguma pessoa um poucotriste... Então eu pego aquele meu Livro da Sabedoria e digo parae[a: 'Abre o livro e ]eia, mas com atenção por favor] ' E depois eupergunto: '0 que tu tiras disso que leste?' Ela me diz: 'Graças a Deus.é bem o que eu queria ouvirá ''Em tal dinâmica se incluem. evidentemente, as raras contra

mestras existentes. sendo (We as diferenças destas em relação às líderes referem-se a seu grau de escolaridade, que deve, no mínimo,conesponder ao segundo grau, e a seu salário diferenciado, pois, diferentemente das líderes, as contramestras são remuneradas para oexercício de suas responsabilidades. Sua efetivação na função e aconse(Mente alta de remuneração só se realizam, contudo. algumtempo depois de experiência na função, como exempl#ica uma dascontramestras da UV: "Com a contramestria, o salário aumentou.mas não aumentou de imediato. Primeiro. tive que ficar um ano comaquele salário antigo; aí, depois que eu tive uma certa experiência.aí foi diferente.. . eu tinha um campo, tinha uma chance de ter umsalário e eu tava vendo uma coisa melhor pra mim'

As constatações dos ocultamentos que pemleiam as relaçõesdas chefes-mulheres com as exigências e definições de seus car-gos pela empresa permitem, agora, que também se discuta umoutro ângulo da mesma questão, desta vez protagonizado priorita-riamente pelos gestores da alta gerência. Assim. ao empregar intencionalmente mulheres para o exercício de funções previstasem detemlinados postos de comando, não importando qual sejaposição na hierarquia, os altos gerentes admitem a utilização deum critério diferenciados da mão-de-obra, qual seja: devem sermulheres e não homens. Os argumentos a respeito dos atrbutos,qualidades e desempenho funcionais tidos como femininos e, porjanto, pertencentes às mulheres, são e]encados em um perfil deexigências e expectativas que recai sobre as trabalhadoras comoprescrições a serem seguidas. Em um primeiro momento, então.os gestores diferenciam as mulheres e as utilizam como força detrabalho específica. São ideal porque são mulheres. Em um se-gundo momento. todavia, revela-se que. para serem boas chefes,duras na cobrança e ao mesmo tempo (7uendas. e]as devem se

O processo de tornar-se contramestra ou líder de grupo édeterminado, fundamentalmente, por um conjunto de compe-tências e habilidades, técnicas, profissionais, escolares e sociais.apresentado por algumas trabalhadoras quando da necessida-de de provimento das vagas dos respectivos postos de chefiaApenas operárias muito bem preparadas por um longo trabalho

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adequar muito cüdadosamente ao conjunto de exigências para ocargo no qual, em última análise, predominam expectativas comportamentais construídas desde um modelo masculino. Assim,tendo sido escolhidas, no início do processo, para serem chefesporque eram mulheres, agora que são chefes devem se comportarde acordo com outras expectativas que não contemplam exclusi-vamente suas constitutivas diferenças em relação aos homens. Aocontrário, devem a eles se iguala, resultando em "falsas imita-ções" dos mesmos. Caso se verifique a existência da suposição deque a maioria das chefes-mulheres se masculiniza. também é verdade que, junto aos gestores, dá-se a anunciada inversão: a dife-rença tomada inicialmente como distinção revela-se, em um se-guinte momento, como desvalorização, exigindo. por conseguinte. que suas portadoras tentem se igualar a seus colegas-homens.

muito triste. porque um homem no meu cargo ganha duas ou trêsvezes mais do que eu e eu não acho isso justos"

As discussões até aqü realizadas permitem aíimiar que a forçade trabalho da empresa estudada é escolhida. posicionada e hierar-quizada desde as diferenças percebidas entre os gêneros, estandoatravessada pelos valores e sentidos implicados em tais percepçõesComo já disseram tantas autora, tais como Daniêle Kergoat(1982),Elisabeth Lobo (1991). Cristina Bruschini(1994a, 1994b) e AndréaPuppim(1994) - somente para citar algumas -, há de se reconhecer,não só a importância do gênero no trabalho. mas igualmente as impli-cações que o mesmo acaneta sobre as condições de seleção, qualifi-cação. remuneração e carteira dos/das trabalhadores/as

Na empresa, a divisão sexual do trabalho pemleia a divisãotécnica do mesmo, influenciando no ordenamento da própria hie-rarquia do processo produtivo/administrativo. parecendo útil ressaltar uma vez mais que a "generificação" da força de trabalho sefaz com tantas evidências, que se tornaria impossível falar sobreela de uma maneira homogeneizada e universalizante. Igualmenteimpossível seria analisar o processo e a ordem do trabalho produtovo sem a utilização do gênero como categoria de análise, visto queas observações e constatações realizadas não podem se fazer des-coladas das implicações dela derivadas

O jogo de diferenciar e igualar se aplica, assim. aos intercambiantes interesses da gestão, que, quando necessita atrai mulheres para sua força de trabalho especializada. as diferencia e, quan-do as coloca nas posições previstas, as iguala, impondo-lhes umconjunto de expectativas de desempenho íomiatado a partir depadrões masculinos. E, por fim, quando obtém de tais trabalhado-ras respostas mais do que positivas de adequação ao perfil proassional exigido, ou seja, quando as muheres realmente se estabilizam como chefes ou como profissionais qualificadas, elas voltam aser diferenciadas em relação aos homens, do ponto de vista de suaremuneração - que se revela comparativamente mais baixa doque a daqueles -, bem como nas perspe(alvas de sua qualificaçãoe educação continuadas. Tais movimentos contraditórios dife-renciar/igualar/desigualar - revelam-se como forte substrato aossentidos da opressão e de dominação conferidos à diferença dasmulheres pelos altos gestores. Antes de as favorecerem. as mulhe-res vêem suas diferenças serem reconvertidas em motivos de suacontenção e limitação a padrões que lhes são externos e alheios.

As constatações até agora registradas me levam a concordarcom Puppim (1994, p. 16). quando tipifica os processos de ascen-são organizacional acessíveis apenas ou privilegiadamente aosmembros que já conquistaram a coníiabilidade da empresa, comosendo "carreira fechada". Para a autora, a inclusão de agentes em'desvantagem" de classe, de gênero (ou de raça), nos degraus su-periores, toma-se

uma demonstração concreta da estruturação de um sistema metitocrático que necessita se afümar. (...) Essa distribuição dosagentes espelhada o trunfo ideológico do individualismo compe-titivo, o sucesso dos melhores e estimularia uma dedicação maisintensa ao trabaho (ÜJdem).

Para os gestores, além de a maíoHa das chegas íemhüas semasculhizmem assim que se tornam chefes, recebem a mesmaágua quente (We cai nos homens(engenheiro da Qualidade). Aquinão são ditos. entretanto. os privilégios que elas deixam de teceber em relação aos homens. Isso é apontado, contudo, por umadas antigas mulheres da empresa. ocupante anual de um posto equi-valente ao de contramestre na UV: "Eu queria ganhar o salário queeu tenho direito e eu não ganho. Isso é uma coisa que me deixa

Tais análises reforçam, por sua vez, a idéia de que a fábricanão é um acontecimento exclusivamente económico, podendo-sedizer que. como para os sujeitos que a compõem, o gênero Ihe atri-bui igualmente uma "segunda natureza". que se expressa como

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registro profundamente inscrito na estruturação de seus modos deperceber, pensar e agir sobre sua mão de-obra e sobre o trabalho aser desenvolvido pela mesma. Na fábrica, o gênero não só toma seútil na caracterização de atributos diferenciais e de distinção dospróprios agentes do trabalho, mas igualmente se reflete como ummodo de pensar o próprio trabalho e sua divisão técnica. Mescladoaos objetivos de acumulação do capital, revela-se como um dos es-truturadores das formas de administrar a mão-de-obra por ele empregada, alocando-a de acordo com suas supostas aptidões "na-turais de sexo" em posições especíâcas, igualmente concebidasde forma "generiâcada". ou seja, consideradas e (des)valorizadascomo próprias de trabalhos de homem e de trabalhos de mulheres.

vezes inconsciente. conteúdos que lhes são familiares em outrasesferas da vida social

Se trabalhar pode vir a significar, para os agentes sociais. tam-bém sua autonomia e independização, ver-se-á que, quando setrata de mulheres, tal busca. mesmo que venha a se concretizarserá marcada por desafios diversos aos dos homens. Digo diversoscom a única intenção de não transíormaí em vítimas as trabalha-doras, tomando-se, entretanto. necessário registrar que, para alémde diversos, tais desafios se mostram na verdade excessivos, reve-lando-se a seus olhos (e aos de todos) como verdadeiras e incom-preensíveis "provas de fogo" . "Nós mulheres nos adaptados mui-to bem às máquinas dos homensl Se a gente não alcança nelas, agente arruma uma escada e sobe. E o que a gente faz. E por aí..Mas não adianta a gente provar que pode mais do que um homemO (lue precisa mais pra gente chegar ao topo. eu não seio Porqueprovar mais do (We eu tõ provando, não temi E eu não consigochegar lá.. . Isso não é justos Mas o que é que a gente vai fazer? Euacho que a mulher vai chegar lá, porque eu estou vendo gente ba-talhadoral Eu leio nas revistas, müheres executivas de ho/e emdia, gaílham saiános a/tos. Eu acredito que isso aqui ainda vai mu-dará" (contramestra UV).

Sendo uma maneira primordial de significar relações de poder(Scott, 1990), a presença do gênero na fábrica não se dá de formacasual ou inocente, porque o mesmo se mostra como um operadorativo na definição das regras do jogo de dominação/exploraçãodos/as trabalhadores/as. A reprodução, no interior da fábrica, dasestruturas objetivas que impregnam a sociedade em geral capataoista e patriarcal - não se produz, logo, de forma pouco estrutura-da. A fábrica, desde a linguagem do trabalho que Ihe é peculiar,recicla e repõe os conteúdos de ordem imaginária e simbólica presentes no âmbito macroestrutural da sociedade capitalista e patri-arcal. Transforma-se, dessa feita, em mais um dos equipamentossociais organizados que orquestra o coro da dominação masculinae da subordinação das mulheres aos homens.

Essa fala apresenta um conteúdo interessante a ressaltar. porindicar a não consideração, pela entrevistada, de uma outra faceda dominação social, consolidada dessa vez pelos diferenciais declasse social. Canalizar a luta pela igualdade política e socialtão somente através das relações entre os gêneros (homens e mu-lheres) significa desprezar ou no mínimo deixar de considerar ou-tras fontes de dominação, como a de classe social. por exemplo.que se faz presente no depoimento em questão, que localiza asmulheres "bem-sucedidas e vitoriosas" como sendo muüeresexecutivas. Os diferenciais de capital económico conferidos pelaposição de classe das mulheres (e dos homens) e que se mostramigualmente influentes nas trajetórias profissionais das mesmasnão são, nesse momento, considerados, mantendo, assim, encoberros outros componentes da rede de dominação e exclusão so-cial (no caso, classe social). Tal percepção pode igualmente invisi-bilizar outras faces da dominação social necessariamente não efe-tivadas entre homens e mulheres. Ou seja, a da dominação entremulheres, derivadas, nesse caso, das desigualdades que lhes sãoconferidas a partir de suas diferentes posições de c]asse social

Tratados/as como diferentes, trabalhadores e trabalhadorasvivem a re-edição, no contexto do trabalho fabril, das mesmas ilu-sões, constrangimentos e preconceitos favoráveis e desfavoráveisque fustigam sua convivência e que os transfomlam, simultâneamente, em cúmplices e em adversários. Dominar e explorar seconjugam dentro da aliança realizada pelo capitalismo e pela do-minação masculina. Os efeitos de tal aliança transcendem, por suavez, a esfera produtiva e económica, manifestando-se como maisuma das faces do poder simbólico que desfigura e faz crer pelaspalavras e símbolos. A fábrica é sustentada, portanto, como cons-trução material e simbólica, significando-se não apenas pela suacapacidade de capturar o trabalho e torna-lo produtivo, como porser capaz de recapturar os próprios sujeitos do mesmo, fazendo-osexperimentarem, mesmo que de forma consentida e no mais das

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As observações e entrevistas que subsidiam as análises atéaqui formuladas conduzem à verificação de que, para além de es-tabelecer diferenças de gênero na força de trabaho como nos pró-prios trabalhos, a empresa estudada revela um modo de pensar ede agir que absolutiza e essencializa as categorias masculino/fe-minino, fundando um processo de "dderenciação categórica"(Scott.1994b, p. 8) que se estrutura desde a oposição binária entre asmesmas. As "diferenças categóricas", logo. tornam-se justificati-vas aos tipos de inclusão e exclusão de homens e de mulheres.constituindo-os/as dentro de hierarquias. Tal modo operatórioproduz. segundo a autora (idem. p. 7). um duplo efeito: "Nega aforma em que figura a diferença nas noções políticas de igualdadee sugere que a igualdade é o único terreno no qual se pode teclamar a equidade a nível de direitos políticos e sociais'

A questão não é negar a importância das diferenças, ma$ deproblematizm a íomla como elas se estruturam socialmente no contexto da fábrica estudada. Trata-se de um interesse que questiona,simultaneamente, o modo como as hierarquias de gênero se legitimam no contexto da empresa e a confiabilidade dos tempos da oposição binária recorrentemente aludida e tomada como evidente

Tal enfoque se afasta, ainda, da tendência de relegar os questãonamentos de gênero à instituição da família, e os advindos da clãsse, ao trabalho industüa] e da produção, comparLimentalizações ve-rificadas em alguns dos depoimentos colhidos durante a realizaçãoda pesquisa, como em boa parte da produção das ciências humanase sociais. Gênero é considerado como um aspecto geral da organi-zação social, podendo, pois, ser encontrado em muitos lugares, jáque os signiÊcados da diferença sexual são invocados e disputadoscomo parte de muitos tipos de lutas pelo poderAssim. desde o pressuposto de que tudo o que existe em cada

um dos lados da oposição binária é igual e unitário, constrói-seuma noção de igualdade que esconde o múltiplo jogo de diferen-ças, mantendo sua irrelevância e invisibilidade. Sustentar, comose constatou em diversos depoimentos da pesquisa aqui apresen-tada, que a feminilidade predispõe as mulheres para certos traba-lhos ou certos estilos de trabalhar, constitui-se em um processo denaturalização de processos económicos e sociais muito complexos que contribui, por sua vez, para o obscurecimento, uma vezmais, das diferenças que caracterizam as histórias ocupacionaisdas mulheres. Construir a partir de tal modo as diferenças entre osgêneros implica considera-los como dualidade em oposição, comatributos de diferenças conferidos por explicações biológicas.Além disso, supõe que tudo o que existe dentro de cada categoria

masculino/feminino - compõe uma unidade que suprime/repri-me, por conseguinte, as possíveis diferenças existentes em cadauma das categorias. Para Scott,

Diferença e igualdade impõem. a esta análise como ao própriofeminismo, um dilema que torna difícil a resposta à pergunta: co-mo se faz para reconhecer e usar a noção de diferença sexual semdeixar de defender a igualdade? Scott considera que

a única resposta possível a esta pergunta é dupla: há que desmascorar o poder da relação que se constrói quando se propõe a igual-dade como antítese da diferença e, a partir dessa base, rechaçar aconstrução dicotõmíca de opções políticas que é sua consequên-cia (1994b, p. 6)

Para a autora, a altemativa à construção bináha da diferença se-xual não é a identidade ou a androgenia. pois o que reclama a teoriafeminista não é a identidade e a homogeneidade entre mulheres e ho-mens, mas uma diversidade mais complexa e historicamente variávelda pem)inda pela oposição masculino/feminino. A solução pma o di-lema da diferença não vem através da indiferença frente à diferença,nem de sua aceitação tal como está constituída, isto é, a aceitação dadiferença categórica e nomlativa. A crítica às operações de diferencia-ção categórica deve ser feita em nome de uma igualdade apoiada nasdiferenças: diferenças que confundem, pertwbam e tomam ambíguoo siçlniücado de qualquer oposição binária

oposições fixas escondem a heterogeneidade de cada categoria ea extensão da interdependência de tempos apresentados comoem oposição (...). Além disso, a interdependência é comumentehierárquica, um termo sendo dominante, prioritário, visível e seuoposto sendo subordinado e frequentemente ausente ou invisível.No entanto, justamente por meio desse arranjo, o segundo termoé presente e central, já que é requerido para a definição do pionei-ro (1994a. p. 21).

Tais considerações pemütem supor que muitas das explicaçõesa respeito das mulheres puecem mais frequentemente confirmar doque contestar as visões dominantes sobre as mesmas. O modo de

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perceber as mulheres como possuidoras de características inerentes à sua suposta natureza biológica e portadoras de identidades,necessidades e interesses predizivelmente diferentes dos homensdeixa implícito que a diferença de gênero é um fenómeno natural,e não social. Endossa, assim, a idéia de uma diferença de gêneroinalterável que é usada para justificar a discriminação.

Em consequência, as implicações políticas de tais considera-ções revelam-se de forma muito aguda e questionam os pressu-postos epistemológicos que têm fundado tradições teóricas importantes. Entender o gênero como "organização social da dife-rença sexual", como propõe Scott (1994a), está longe de significarque gênero refeita ou implemente diferenças físicas e naturais entre homens e mulheres, mas sim que se coloca como saber que es-tabelece sentidos para as diferenças corporais. Tais sentidos, porconseguinte, variam e se relativizam de acordo com as culturas eseus tempos históricos, não podendo determinar univocamentecomo a divisão social será definida.

tão, as causalidades e os relativismos culturais e históricos. Aloca,conseqtlentemente, seus/suas trabalhadores/as em nichos pres-critivos rígidos e não diferenciados em si mesmos, atrbuindo aofeminino o sentido de contraponto negativo à construção da identijade masculina positiva. Mulheres são percebidas como o opostode homens, constituindo-se como seus espelhos negativos, sendo,como alma Bourdieu (1990). depositárias da falta e da ausência. Oshomens são seres percebidos como aqueles que estão socialmenteautorizados a se sentirem portadores da forma total da condição hu-mana. Para Bourdieu (idem, p. 4), tais teses sustentadoras das divi-sões operadas pelo gênero parecem estar "além ou aquém da ope-ração de questionamento" , sendo que a biologização do social nelasconsolidada torna multo árduo e düícil o trabalho de revelação darelação social de dominação que está em seu princípio e que, "poruma inversão completa das causas e dos efeitos. aparece comouma conseqüência entre outras de um sistema de relações de sen-tido independente das relações de força" (ibidem)

Procuro aqui analisar alguns aspectos dos fenómenos implicados no trabalho industrial têxtil da empresa estudada, atribuindo-lhes significados desde um particular modo de ver. pensar econhecer. Meus argumentos explicativos podem se alinhar aoconjunto de tentativas dentro da ciência que pressupõem umaepistemologia que, antes de unificar a compreensão do mundo so-cial em torno de uma única razão. permite supâ-lo como tecido eestruturado pela interseção de múltiplas causas. Tal pressupostoorienta-se pela idéia que reconhece o feminismo também comouma forma de pensar e agir e dirige sua preocupação, não apenaspara o sentido das mudanças na teoria, mas. igualmente e maisimportante ainda, pala as transformações nos sistemas de pensare de construir o conhecimento

A diferença sexual não é, portanto. a causa original da qual a or-ganização social possa ser derivada em ütima instância - mas.sim, uma organização social variada que deve ser ela própria ex-plicada (idem, p. 13).

Dessa fomla, a menção a respeito das implicações políticas con-tidas em tais problemáticas leva. de acordo com Céli Regina JardimPinto(1994a, p- 4; 1994b), a que se procure tanto distinguir as duasfobias de constituição das diferenças: "a diferença enquanto domanação e a diferença enquanto dkeito", como a subverter a ordem dademocracia, "tida como o govemo da diferença na igualdade". Para aautora. a emergência do sujeito feminino leva a que hoje a democra-cia enhente "a questão da igualdade na diferença'

Os pressupostos explicitados na presente discussão extrapo-lam, como se pode observar, os limites de meras considerações eespeculações. Eles servem ao propósito de estruturar uma visãocrítica a respeito dos modos de perceber e agir da empresa estudada em relação à sua força de trabalho. Como disse. para além dediferencia-la, ela também a hierarquiza, fundando a percepçãodas diferenças entre os gêneros na crença da existência de predi-cados naturais aos homens e às muheres. Entende tais predica-dos, portanto, desde o ponto de vista biológico, negando-lhes. en-

Fica implícito, portanto, que as questões de gênero não podem ser simplesmente acrescentadas às formulações existentes,como mero incremento ao lá conhecido. Sua consideração deve,ao contrário. permitir/exigir a refomtulação da teoria precedente ea reavaliação dos fatos anteriores. Deve, por extensão, mostrar-secompromissada com a visibilização dos sujeitos em todas as suaspossíveis diferenciações, considerando-os não opacos e indiferen-tes aos interesses de outras categorias que os constituem. Enfim,uma espécie de teorização e de produção do conhecimento que

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supõe que a própria "ciência tem gênero" e que, segundo algumasautoras feministas, como Sandra Harding (1993), Margaret Andeisen (1993), Joan Scott (1990, 1994a, 1994b) e Mana Odila LeiteDias (1992, 1994), trabalha com a insLabihdade das próprias cate-gorias afastando se aos parâmetros considerados própüos da "ciência normal" (Thomas S. Kuhn, 19871. Os desconíorl;os possíveis naadoção de tal abordagem do objeto de estudo podem vir a sercompensados pelas possibilidades de se afastar, definitivamente.a perspectiva de que o mesmo seja construído e explicado comoessencialista e a-histórico.

sa distribuem-se em diversas atividades produtivas e administra-tivas de acordo com a conespondência direta das espécies e vooume de capitais que possuem, com as demandas das respectivasáreas de trabalho. Gênero e classe social, por conseguinte. comiguiam o conjunto de suas chances/restrições, determinando pontualmente a área de sua alocação

Tendo dedicado atenção mais pormenorizada. na seção ante-rior, à problemática das mulheres que exercem cargos de chefia e.assim, aos aspectos diretamente relacionados com as particularidanes de carreira das trabalhadoras, a partir daqui, privilegiaremanálises a respeito das operárias propriamente ditas, ou seja, da-quelas mulheres que constituem o coletivo de operadoras de máquinas de fiação e de costura -, que expressa a maior proporçãode muheres no conjunto total de funcionários/as

2. Práticas de gestão como práticas educativas

Consideradas como mão de obra idem/. de acordo com as palavias do presidente do Sindicato. e percebidas como tal pelos/asgestores/as, as trabalhadoras, como se observou, ocupam cargos epostos que estão longe de se situarem nos níveis da média e da altagerências. Em sua esmagadora maioria, encontram se alocadascomo operadoras de máquinas, trabaho que se caracteriza pela re-petitividade, monotonia e alta velocidade, sendo enquadrado emprescrições impostas pelo mecanismo da maquinaria e pela padronização dos tempos e movimentos de cada operação. Sua presençamarca a trajetória da empresa desde sua fundação, sendo que seucontingente total tem se mostrado flutuante de acordo com as de-mandas e restrições dos diversos períodos atravessados. Empregadas em um processo produtivo com características de sazonalida-de, elas entram e saem do emprego de acordo com as demandasprodutivas. Na região, a empresa em questão é conhecida comoempregadora de mulheres, e suas unidades fabris independentesIUF e UV) efetivamente se englobam, quando se trata de falar sobreo grupo empresarial: "Pala a sociedade, tudo é a mesma coisa, masna verdade são duas íábi.ocas, mas é um grupo só. Os ramos de cadafábrica são completamente diferentes. O pessoal que trabalha numaunidade não trabalha na outra. Mas não existe atrito por causa disse, e os funcionários têm muitas estruturas em comum" (responsá-vel pelos Tempos e Métodos da UV).

Na verdade, são as operárias as principais responsáveis pelaidentihcação da empresa como "fábrica de mulheres", sendo suapresença predominantemente percebida em tempos de "massa". Ea respeito dessas mulheres, cobertas pelo anonimato, pela ausênciade um nome próprio e pela invisibilidade, que devem ser consideradas as seguintes questões: como mulheres tomam se operáriasPComo explicar por que são consideradas mão de-obra ideal? Comoexplicar o paradoxo de que, sendo consideradas mão de-obra ideal,são simultaneamente contidas e desvalorizadas?

Quem são, pois, essas mulheres?

A par do que lá disse, cabe acrescentar outras caracterizaçõesencontradas naquele momento. Residem nas cidades próximas àfábrica, sendo diariamente transportadas para o trabalho em õni-bus da própria empresa. Algumas, por residirem em locais maispróximos, locomovem se em suas próprias bicicletas. Cumprem.na Unidade de Fiação, diferentes turnos de trabalho, que se estendem ininterruptamente aos dias e às noites da semana. Na Unidade do Vestuário, observam um horário de expediente anualmentereduzido ao turno diumo, sendo alongado, quando necessário,através da prática de "serões", incluindo sábados e domingos. Aidade média é de trinta anos, constatando-se. entretanto, um certo número de mulheres mais velhas que, no entanto, não se encontrai mais ligadas diretamente à operação de máquinas. Porsua antiguidade e por todo um trabalho de aprendizagem realizado, elas preenchem os escassos postos de comando junto à fabri-

Em cada uma das unidades estudadas, encontravam-se apro-ximadamente trezentas mulheres compondo uma força de tubaIho, que apenas uma análise muito apressada consideraria comohomogênea e uniforme. As mulheres que trabalham nessa empre

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cação São trabalhadoras com duas ou três décadas de trabalho nolocal e que se encontram, em muitos dos casos, próximas à apo-sentadoria. Testemunharam, por isso, algumas das diversas etapas pelas quais a empresa passou, constituindo-se, hoje, em me-mórias vivas da história ocupacional das mulheres no referido lo-cal. Não cheguei a realizar algum levantamento detalhado de seunúmero. ma$ a impressão foi de que sua quantidade é pequena. Ofato de chama-las antigas não quer dizer que, necessariamente,sejam velhas. Todas elas mostram-se em condições de preparo físêco e motivacional para o exercício das atribuições que lhes estãodesignadas. Dificilmente ultrapassam a idade dos cinqüenta anos,sendo consideradas antigas em relação ao tempo de pemlanênciano emprego. no qual se estabilizaram e. como se pode deduzir,passaram a maior parte de sua vida adulta. Relatam ter sido a empresa uma de suas primeiras, quando não a primeira e única expeciência de trabalho assalariado, e revelam um apego muito grandea tudo o que Ihe diz respeito.

soais e particulares que se fundam na impossibilidade que têm,tais trabalhadoras, de tornar visíveis os processos de sua própriaexploração. O encobrimento do domínio das máquinas e dos equipamentos sobre seus ritmos e quaMicação. o ocultamento da pa-rafernália produtiva como instrumento de garanta ao capital suaprópria reprodução e sua acumulação é produzido, aqui, com a colaboração das trabalhadoras que, incutidas suficientemente pelosvalores do que é ser idem/, encaram como seus exatamente os dis-positivos de sua alienação e exclusão. Se for lembrada a "revistapessoal" pela qual passam diariamente nas portarias, com o intuito de evitar apropriações indevidas do património da empresa, tor-na se curiosa a impossibilidade que revelam de associar os fatosdo interior da produção com o ritual de saída

Desse modo, abrigam - dissociadamente - íomlas perceptivas que indicam a contradição existente entre um tipo de comporLamento que diz respeito à sua relação para com a empresa e umoutro tipo de (des)consideração que se refere à relação da empresapara com elas. Seus comportamentos e atitudes, enquanto atuantesna jornada de trabalho, são motivados e operados desde uma perspectiva do "como se" fossem proprietárias dos meios de produção.Assim que se afastam do local de trabalho para suas casas, ao finalda domada, ainda posicionadas nas portarias. o "como se" fossemproprietárias se transforma em "como se" fossem ladram e suspeitasQue poderosos mecanismos são esses que impedem a junção cog-nitiva de tais fatos? Como se opera essa divisão totalmente contravitória em suas mentes? Como se explica que, mesmo estando deférias, queiram retornar o mais cedo possível para um lugar no qualsão consideradas desde suposições tão desfavoráveis?

Poderia dizer que, de uma certa forma, encontram-se "institucionalizadas", ou seja. sua própria biografia se mostra tão profundemente marcada pelas vivências do emprego, que já não condequem separar se da empresa com faciRdade, mostrando-se muitoapreensivas face à proximidade da aposentadoria: "Eu sei que odia em que eu me aposentar, eu vou achar falta demais, porque eutiro férias e ]á fico louca pra voltar, sabe? 7U te enfio/ves tanto. [eapegos tanto, que parece que tudo é teus Tu cuidas, vamos supor.de uma máquüa, [u tá limpando uma máquina. E a mesma coisa(We ela fosse Ma/" (líder de grupo da UF).

A biografia de tais "antigas" trabalhadoras poderia revela-lascomo efeitos incorporados das estruturas do trabalho industrial. oque quer dizer que elas revelam uma subjetividade que. tendo semoldado sob estreita cumplicidade com as estruturas produtivas,se manifesta como produto bem sucedido da pedagogia da fábrica. O reconhecimento das "coisas" da empresa como "suas", co-mo revela o depoimento anterior. manifesta-se, sem dúvida, comoexemplo da inversão de sentidos que nelas se opera e que as leva aconsiderar como posse privada e particular exatamente os meiosde produção que, por definição histórica, pertencem ao capital.Considerar as máquinas e os instrumentos de trabalho como seuse não do capital significa que seu empenho no trabalho se encon-tra supostamente mobilizado por um conjunto de motivações pes

M.esmo não pretendendo dar respostas pontuais às questõeslevantadas, considero importante agregar outros elementos quecaracterizam a vida dessas trabalhadoras. Em sua maioria, sãomulheres com filhos, divorciadas, viúvas ou mães solteiras, cujavida amorosa foi atravessada por crises aíetivas e mesmo pelamorte do marido, resultando em separação e solidão. Não retor-nam ao casamento, preferindo cria os/as filhos/as (quando ostêm) contando, ordinariamente, com o auxílio de seus pais. Devoressaltar, por conseguinte, o fato de se constituírem muito cedo navida como exclusivas provedoras de seu próprio sustento e/ou dafamília. Elegeram o trabalho assalariado como um de seus projetosmais caros, realizando. através dele. a façanha da sobrevivência

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material e social, coMom)e demonstram os seguintes relatos: "Eunão faço planos para o futuro. O único plano de minha vida, se tenhoum, é dar futuro bom para o meu filho. E a única coisa que eu mepreocupo. E de investir nele. Em mim eu não ve/o nada" (contramestra da UV)l "Criei a minha filha sozinha. Quando eu vim para cáela ia fazer um aninho. Criei ela trabalhando aqui, com o dinheirodaqui. O dia que eu precisava mais, eu fazia serão e assim eu consegui criar. Criei dando estudo pra ela. Quero dar estudo até a faculdadel Agora, eu continuo trabalhando, mais por minha filha, sabe. nãopor mim. Porque eu já tenho minha casa, tenho tudol nada é fino,mas tenho tudo o que eu quero..." (líder de grupo da UF).

os meus filhos pequenos pra cuidar... mas eu converso com minhas amigas que têm marido. Uma chega e diz 'Fulano me ajudaEu lavo a louça e ele varre a casal' Outra já chega e diz: 'Ah, meumarido chega, deita na cama, no sofá, olha a televisão e eu me virosozinha. Eu tenho que fazer comida, limpar e lavar. Eu me viro sozi-nhas ' Eu acho que a mulher é muito sacrücada. Eu, de brincadeira,digo para as minhas colegas: 'Olha, a mulher depois que ela é mãe,ela tinha que ganhar cinco salários pra ficar em casa cuidando dosfihosl ' Elas me perguntam: 'E quantos filhos a mulher ia ter?' ... Enulo dócil a vida da muher, sabe? Ela tem (iue acharpor onde fa-zer com que a vida fique mais divertida, porque senão.

A existência dessas mulheres é ordenada por duas principaismotivações : família e trabalho, sendo que para elas a dedicação aoemprego transformou se em dedicar se à manutenção material emoral da vida famüar. Como mulheres pobres, não puderam e nãopodem dispensar sua condição de trabalhadoras, a qual, como sevê, é movida por um apego incondicional ao emprego, cujas conlições são minimizadas face ao desespero frente ao possível desemprego. Nesse sentido, as trabalhadoras não são incoerentes.Elas revelam um pragmatismo que se origina das hipóteses práticas que constituem seu habitas e que orientam suas açõesi elas semostram "livres" para escolherem pela sobrevivência ou não.

Como $e pode observar, existem inúmeras variações das situações familiares e conjugais, sendo possível distinguir as de mulheres solteiras, casadas, divorciadas, viúvas, com ou sem filhos, commarido ou sem marido. As penalidades do trabalho feminino naesfera doméstica nem sempre se fazem minimizadas pela existên-cia de um companheiro ou marido. Em qualquer uma das situações de mulheres com filhos, parece verdadeiro reconhecer que asresponsabilidades pelo trabalho doméstico tendem a sobrecarregar as mulheres, que, sendo empregadas, devem, contudo, responder às exigências produtivas, desde os mesmos critérios apli-cados aos trabalhadores-homens, seus colegas .

Tais como elas, outras inúmeras trabalhadoras, mais jovens.ainda de certa forma inexperientes e com baixo nível de estabilidade no emprego, trabalham para sua sobrevivência e a dos seus.E muito comum encontrarem-se mães solteiras clue concatenamos ritmos da produção com os da esfera doméstica. A conjugaçãodas atividades e exigências de ambas esferas se expressa. paraelas, como frequentemente tem sido discutido nos estudos gemimistas, em uma dupla domada de trabalho, que faz. segundo Andeisen (1993), com que não só trabalhem mais do que os homens.mas que também realizem diferentes tareias. Para a autora. as muIheres tendem, em média, a trabalhar 85 horas por semana (inclu-indo emprego, trabalho doméstico e cuidados com os filhos), comparativamente aos homens, que trabalham cerca de setenta horas.Nas palavras de uma operária, a situação é assim retratada:

Se a vida de tais mulheres é reconhecida como dM(H, deve sealém disso atentar, tal como refere a operária acima, para a necescidade, por parte delas, de encontrarpor onde tomar a üda maisdvelüda, por(7ue senão... Tal fala, na verdade, manifesta se comoalerl;a para uma outra dimensão a do sofrimento psíquico. O detalento e o desânimo como reações frente a um cotidiano limitantee a um futuro demasiadamente inseguro podem constituir impordantes alterações da saúde mental das operárias, quando estasnão encontram por onde toma a üda mais dverüda. Através dediversas manifestações, somáticas ou psicossomáticas, realizam,de uma forma indireta, seu próprio interdito, o qual sua consciência e "dever ser de trabalhadora-mãe de família" lhes impede deassumir de uma forma direta. O adoecimento ou o advento de al-

guma sintomatologia no operariado feminino podem ser vistoscomo efeitos de seu desgaste corporal e psíquico frente às condeções gerais predatórias de sua existência e frente à consciência desuas responsabilidades

Em resumo, a mulher sofre. Eu acho que a mulher é muitogrande; por menor que ela seja. ela é muito grande. só que às ve-zes não dão o valor que ela merecem Eu não tenho marido, só tenho

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Para a médica do trabaho entrevistada, "não existe hncionáiiosem vida pessoa] e não existe vida pessoal $em trabalho. As duascoisas andam juntas" . Em seu entender, tanto as condições de trabalão como as condições de vida extratrabalho são responsáveispelo predomínio de a/relações emocionais e mula ansiedade, de-pressão e tristeza que se abatem sobre as trabalhadoras, em espe-cial sobre a$ casadas. São altas consumidoras de medicamentos an-tidepressivos e, ordinariamente, seus problemas ligam-se à esferafamiliar - gerados por maridos alcoolistas, desempregados ou quenão trabalham e são mato sexistas no relacionamento conjugal -,sendo coroados pelo que chamam de problema ánanceüo.

que lhes imputa a autoculpabilização pela doença e sua conse-quente impossibilidade de perceber "conjuntos adoecidos". dosquais eles/elas são apenas uma mínima fiação

De um outro modo, considero importante pontuar que, se asfuncionárias têm vida pessoal e vida de trabaüo. estas instânciasnão devem ser consideradas de forma autónoma, pois é certo deluzir que o problema Jhanceüo que se abate sobre os lares e famí-lias das trabalhadoras pode ser visto. simultaneamente, como proautor e produto de sua desgraça. O reconhecimento, por parte damédica. de que existem diferenças de reações ao adoecimento,quando se trata de operáHasjovens, sem compromisso, e de opefadas casadas, mais antigas e com amos, pode ser colocado comoelemento para ampliar essa análise. "Opessoa! masjovem se dei-xa adoecer com mais facilidade, parece que são menos resisten-tes.-- Jã as mais veias, querem trabalha doentes/ Eu digo paraelas: 'Eu não vou te colocar em situação de risco l Tu podes cair emcima de uma máquina, perder os cabelos, os dedos...' Mas elas serecuperam mais rápido que as jovens e logo voltam ao trabalho l "

Pode-se depreender que a existência de atendimento médicono interior da empresa revela se como um auxílio indireto à produção, visto que a enfermaria mostra-se como um lugar onde o sofrimento torna-se autorizado e visível. devendo. contudo. ser devi-damente regulado e codificado em direção à nom)alidade. Médi-cas, enfermeiras, medicamentos. capacidade de escuta configu-ram um dispositivo de fazer falar e também de fazer calar. Emboranão duvide dos esforços e das intenções das profissionais aí envol-vidas. há de se convir que suas ações. prioritariamente, dirigem $eàs pacientes individualizadas, sendo possível enquadra-las emum modelo médico assistencialista. que, além de privilegiar o "cui-dar e o confortar" (Verá Regina Waldow e outras, 19951 Mana JúliaM. Lopes e outras, 1996), concentra-se no atendimento indivídualizado. estando permeado por uma concepção de saúde que, mes-mo sendo apregoada desde a perspectiva do público e da cidada-nia. não consegue promover práticas que conduzam a alteraçõesestruturais necessárias.

Vislumbro aqui a possibilidade de falar de diferenciais dos efei-tos dos processos educativos da fábrica sobre as trabalhadorasPara as jovens, predominantemente solteiras e aparentementemenos premidas pelo peso de responsabilidades urgentes. aindanão inculcadas plenamente pelo espírito fom)ativo e disciplinadosdo trabalho, adoecer com mais íacüdade pode até se tornar atrati-vo como estratégia para "bolar" a frequência ao trabalho de umafomla legitimada: sob atestado médico. O dizer da médica de quetais operárias são menos resistentes pode ser contrariado na perspectiva das teorias da reprodução. pelo fato de que aí reside exalamente uma das expressões possíveis da resistência das operáriasao trabalho industrial. Com tais comportamentos, elas não se con-fimiam. ao menos em um rápido nato de tempo. como reproduto-ras da ordem do trabalho. Interpõem, através de seu corpo e sueixas, obstáculos à consecução de um cotidiano aprisionante e como qual não se mostram em perfeita sintonia. Talvez por serem maisjovens, tanto em idade como na empresa, não se mostram devida-mente convencidas de que deva ser o trabalho industrial seu des-tino social. Julgam se merecedoras e, quem sabe, aspiram, comolembram o diretor industt.ial e a psicóloga, "trabalhar em uma lojanha da rua principal e não numa indústria afastada, dentro domato". Mais "faceiras" , menos desgastadas e provavelmente mais

Evidentemente, não apregoo aqui a ilusória e ingênua idéia deresolução da problemática social" . Contudo, sabe-se, conforme

importantes estudos efetuados sobre a relação Saúde e Trabalho(Chhstophe Dejours, 1987, 19881 Edith da Salva, 19871 JaquelineTittoni, 19941 J. Tittoni e Henrique Nardi, 1995), que, nesse senti-do, trata-se de considerar a própria organização do trabalho comopossível componente do desencadeamento ou da própria psicopatologização de trabalhadores/as. As análises derivadas de tal en-foque podem conduzir a intervenções no campo produtivo e desuas políticas, não se reduzindo, dessa maneira, ao atendimentosintomatológico individual. Este último, de acordo com tais estu-dos, pode reforçar nos/nas pacientes a "ideologia da vergonha'

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esperançosas, as jovens operárias parecem ainda ser capazes dese inconfomlar e buscam por onde toma a vida mais dverüda.

meia. Duas horas chego em casa. Nos dias que tinha curso supleti-vo, eu só tomava banho comendo e saía porque tinha que pegar oõnibus, porque o curso começava às quatro. As vezes não davatempo de comer. As seis horas temlinava o curso. Sete e meia co-meçava outro de digitação.. . Eu estava dormindo menos de cincohoras por dia, não sei se me deu uma estafa. . . SÓ sei (7ue me desilu-di.-. Eu estava me prepmando para saü da empresa, mas se eu nãotenho estudo como é (We eu vou saà da empresa? Eu tenho que fa-zer alguma coisa. . . Eu não posso me deixar cair assim..." (opera-dora da UF, portadora de tenossinovite crónica)

Resta saber se suas estratégias contra a cultura dominante resultarão na transfomiação que desejam, ou se, como para os "rapa-zes" de Willis (1991), servirão tão-somente para consolidar a divisãosocial do trabalho e as desigualdades nela implicadas. Se "trabalharnuma lojinha da rua principal" pode se toma atrativo para tais trabalhadoras, isso não $e associa. como se sabe. a possibilidades decondições salariais e de prestígio suficientemente diferenciadas da-quelas do trabalho industrial. Trata-se, por parte delas, de uma sim-ples migração horizontal no mesmo nível no mercado de trabalho.no qual sua presença. como mulheres jovens, não obscurece suacondição de pobres e "incultas". Ao final da domada. terão percebi-do que seu "nomadismo" as "lavrou" de muitas coisas que o traba-lho industrial reserva aos/às trabalhadores, mas poderão reconhe-cer não terem se modificado substancialmente as condições ma-teriais e de prestígio social de suas vidas.

Como essa operadora, muitas outras seguramente pontilhamseu olhar sobre a fábrica e sobre si mesmas com lampejos de luadez. Contudo, como em uma cadeia de efeitos entrelaçados, na qualum fato gera a consciência de outros. tais operárias jovens. consideFadas como "aquelas que têm um futuro pela frente" , vêem-se emabanhadas, visto que seu regime anual de trabalho lhes consome asenergias, de modo a quase suprima las para o empreendimento es-colar, que também requer horários e é pautado por exigências e nor-mas de avaliação. Não podendo avançar nos estudos por lhes falta-rem forças, elas se desiludem, ou seja, enfrentam o conhecimento eo reconhecimento daquilo que anteíiomlente estava encoberto: atão apregoada igualdade de chances para todos/as não se consolidapela simples força de vontade dos/as excluídos sociais. Talvez pos-sam vir a remotamente compreender, desde sua visão prática, pari;edos detemlinismos que se lhes impõem. Contudo. prece-lhes maisprovável a hipótese do cultivo de racionalizações mistiÊcadorasque, en)baía as devolva aos obscuros e imprecisos caminhos do des-conhecimento e da violência simbólica, lhes garante um pouco de'fé" na vida para não se deixarem caü.

De uma outra maneira, juntamente com "as nâmades". enHlei-ram-se as jovens operárias "certinhas". Ou seja, aquelas que enírentam o trabalho de fabricação com esforço e dedicação compa-ráveis aos das antigas trabalhadoras. Padecem, entretanto, adoe-cimentos e/ou acidentes no intercurso de sua carreira e. com eles.o surgimento de uma lucidez que não pode ser denominada deconfortável. M.ais especificamente, foram vitimadas pela cronici-dade da tenossinovite, pela surdez parcial ou por lesões provindasde acidentes de trabalho (perda de dedos ou de parte do escalpo);postando, hoje, além de limitações físicas, sérias implicações emo-cionais e traumáticas. Assim, tais operadoras, ao perceberem nãopossuírem mais as condições físicas e emocionais ótimas para al-tos picos produtivos. dão-se conta de que suas possibilidades decarreira na empresa se estreitavam. Encontram-se, desse modo.constrangidas em suas ambições promocionais. Tal consciêncialeva-as a uma auto-avaliação de suas condições para enfrentarema concorrência no mercado de trabalho. Deparam-se, dessa feita,com o fato de que pouco estudaram, não possuindo, logo, capitalcultural diferenciado para garantir-lhes. não somente a saída doanual emprego, mas a busca de outros, melhor posicionados soci-almente. Uma circularidade temível as enreda e as desespera:

Por sua vez, as "operárias antigas. casadas, com filhos" relacionam se com o adoecimento e o sofrimento de modo diferente. Se asjovens são consideradas, do ponto de vista médico, como menos re-sistentes, as ai3ügas devem, por correspondência, ser vistas comomais resistentes. E óbvio que se conhece o tradicional sentido mépico conferido à palavra resistente: trata-se de uma referência paracaracterizar condições gerais de suportabilidade à dor, de qualquerespécie, por parte dos/as pacientes. No contexto do estudo realiza-do, todavia, ta] como já referi, ta] tempo, visto na perspectiva da so-ciologia da educação, reveste-se de sentidos opostos. Assim, se doponto de vista médico um corpo e uma mente são considerados

De manhã, eu levanto às quatro e meia. Pulo da cama. Pego oõnibus dez para as cinco. Cinco e meia é a pegada. Largo à uma e

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mais ou menos "resistentes" , isto quer dizer, do ponto de vista socio-lógico, que se encontram em proporção inversa de concordân-cia/discordância com as estruturas do ambiente no qual estão imer-sos. Do ponto de vista médico, corpos e mentes mais resistentessignihcam corpos e mentes mais disponíveis à dominação, maisconfomados à exterioridade, mais docilizados, com maior capaci-dade, portanto, para suportarem as exigências, normatizações,pressões e tensões do ambiente. Revelam-se, assim. como já ten-do interiorizado o exterior e o tornado consciência prática, estando sua natureza primeira recoberta por uma segunda cultivada -,que se lhes cola ao corpo de forma reguladora e permanente.

mente resistentes ao que as domina, frente ao que se revelam fráleis, dependentes e inseguras

A identiHcação de diferenciais nas reações e comportamentospor parte do operariado feminino serve, aqui, para não asfixia-lo emuma pretensa homogeneidade, como também para reconhecê-locomo portador de maior ou menor correspondência com as estruturas da produção. Mulheres pobres. siml todas o são. Mas essa am-pla categorização revela-se recortada por múltiplas outras Galegorias, como raça, idade, estado civil, tempo de trabalho na empresa.que. amalgamadas e alquimizadas na interioridade das operárias.tomam possíveis diferentes expressões subjetivas e podem conduzir, portanto. a variantes nos modos de seu gerenciamento.Tal parece ser o caso das operárias antigas, que, habituadas

por longo tempo ao ambiente, já se fizeram dele cúmplices, mos-trando se capazes de antecipar as necessidades externas e transforma las em suas próprias. São essas mulheres trabalhadorasque dizem não ver nada em si mesmas, tal como referiu uma dascontramestras entrevistadas, revelando que, para além de se dis-ponibilizarem plenamente aos interesses do capital, também ofazem em relação a seus filhos. Colocam-se, desse modo, plena-mente sintonizadas com as demandas sociais de seu papel demulher-mãe e de trabalhadora. Embora tenham se tornado peçasimportantes ao funcionamento dos setores onde se alocam visto suas apuradas qualificações técnicas e conformadas qualificações atitudinais -. tais trabalhadoras, no entanto, mostram se ain -da movidas pelo receio do desemprego, componente que regulae orienta ativamente suas condutas. Ou seja, a mesma consciên-cia prática que as conforma psicossomaticamente às necessitades do capital também as conduz ao reconhecimento do uso predatório que o mesmo faz da força de trabalho e de sua potencialinclemência com os aspectos considerados "improdutivos". Seadoecer ou sentir-se molestada representa seu afastamento Lemporário do trabalho, parece coerente que - desde sua percepção arespeito do modo como o capital avalia seus/suas trabalhadores/as - elas próprias. que já incorporaram tal modo em sua parti-cular maneira de classificar seus/suas respectivos/as subordinados/as e/ou colegas, agora o reproduzam, de forma irracional, emrelação a si próprias, o que não lhes permite discriminar entre suasforças e suas fraquezas, nem sequer qual o valor de seus méritosfrente a seus superiores. E/as (lucrem trabaüar doentes, toma-se,logo, um indicador de $ua incapacidade de se tornarem social

Ao considerar as práticas de gestão como práticas educativas.identifico alguns dos diferentes modos através dos quais o capitalfomia subjetivamente sua força de trabalho, mas reconheço, simul-taneamente, que se associam às práticas de gestão. práticas dooperariado. Se os distintos modos de gestão adotados pelo capitalpermitem distingue os modos de subjetivação adorados pela em-presa - que a recobrem de significados globais e estruturantes -toma se provável que a própria existência de um conjunto não he-gemónico de práticas do opermiado em relação aos mesmos joguesua parte na consolidação dos padrões culturais predominantes.Tais diferenciações práticas devem ser apreciadas, como ensinaRichard H. Harker, enquanto expressões da agência humana írente a circunstâncias históricas específicas, visto que, para o autor

a prática não pode ser reduzida ao habitas (. . .) uma vez que as cir-cunstâncias históricas jogam sua parte em sua geração. Nem elapode ser reduzida a circunstâncias ou forças históricas específi-cas. uma vez que a percepção é filtrada pelo habitos. Ficamoscom a prática como uma produção diabética, formüada cada vezde forma renovada ao longo do ciclo (1990. p. 84)

E importante reconhecer, a parta de tal pressuposto. que qualquer agência humana não se dá sem restrições ou coerções e que asmudanças não podem ser "apanhadas no ar sem quaisquer antece-dentes estruturais", visto que, como propõe Bourdieu, as variantesestruturais jã se encontram implícitas no sistema, implicando umcerto nível de imprecisão e indetemlinação das práticas. Para Harker (1990, p. 85), "a mudança ocorre, embora nunca erraticamente.(...) Não há revolucionários, apenas tipos de revolucionários

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Considerar as práticas de gestão como práticas educativassignifica, por conseguinte, buscar entender o que se produz e reproduz na fábrica e o que torna possível tais processos. Se, condorme Elsie Rockwel1 (1990, p. 68), "estudar o processo de reprodu-ção implica estabelecer a continuidade, num sentido analítico, decertos conteúdos sociais no tempo ou no espaço". é preciso obtervar e analisar a continuidade dos conteúdos culturais e simbólicosque fundamentam práticas legitimadoras das desigualdades declasse e de gênero, enquanto mudam, historicamente, as formasque asseguram tal continuidade.

3. Modos de ensinar no e para o üabalho

As práticas de gestão se revelam como um conjunto pedagó-gico extraído da própria linguagem do trabalho industrial. Mascomo entendê-las? A fábrica deve ser "educadora" em seu própriomodo capitalista de produzir e de reproduza, não se isentando dasanálises aqueles aspectos globais que caracterizam a organizaçãodo processo de trabalho, dentre eles a fomla de dividir e hierarqui-zar o trabalho, a presença da maquinaria, o controle dos tempos egestos, além de outros aspectos, como o da configuração espaciale estética que organiza e ordena seu ambiente. Trata-se. tal comoSalva (1992) discute com relação à educação realizada nas escolas,de perceber também como estruturante(educativo/produtor/reprodutor) todo um conjunto de componentes estruturados que, arigor, são tomados, nas análises tradicionais da educação, comodados e naturais aos contextos. Adquirem, assim, por sua invisibi-lização e des-historização. um potencial de força reprodutiva nãoidentificável e, por isso, pemlanentemente inquestionado.

Dos prédios, portarias. enfermarias, políticas de recrutamen -to. remuneração, treinamento, controle e assistência social ao intenor do "laboratório secreto" da produção, tudo se evidenciacomo dispositivos de transfomlação das mulheres em trabalhado-ras. Cabe, igualmente, não só registrar o que produz/reproduz nafábrica, mas tornar evidente o que se produz e o que se reproduzTais análises, por sua vez. devem ser associadas à trajetória institucional da empresa, pois, tendo a mesma modificado sua matrizgerenciadora ao longo de seus quase cinqüenta anos de existência, constituíram-se, a partir daí. períodos particulares de gestão,que são resultados da institucionalização de diversos componen-tes. práticas e políticas, que se mostraram estruturados e. ao mesmo tempo. capazes de estruturar formas de ser do operariado. Ofato de serem percebidos como épocas distintas da vida institu-cional não deve levar, contudo, a que tais períodos sejam apreciados de uma forma evolutiva/linear e meramente cronológica. De-ve-se encara-los como estruturas estruturadas/estruturantes cu-jos conteúdos. embora introduzidos em determinada data, não necessariamente se dissolveram por completo (mando do advento denovas políticas e fomlas organizativas. Devem ser considerados.em tal perspectiva, desde os sentidos culturais que os impregnamnão se podendo daí deduzir que suas manifestações modificadas

O que importa é explicitar alguns dos modos pelos quais ocapital contextualizado na fábrica estudada se apropria, recriae reelabora conteúdos culturais já existentes para exercer e le-gitimar sua dominação/exploração. As análises realizadas porSalva (1992) dão suporte a tal enfoque, conduzindo a atençãopara aspectos culturais que a sociologia da educação tem mini-mizado. Contudo. a análise cultural preconizada pela Sociologia Crítica da Educação não deve ser desconectada da noção depoder, uma vez que sua proposição só se torna útil à medidaque auxilia a entender, não só a capacidade de criação e de ree-laboração existente no miLeu cultural, mas também que o en-gendramento de tais recriações, ao invés de $e constituir comocrédito a um total estado de lucidez dos/as excluídos/as. deveser surpreendentemente debitado ao processo da reproduçãoda cultura dominante. Tais fundamentos podem encontrar emBourdieu um ótimo parceiro, pois, para ele,

a cultwa não é apenas um código comum entre um repertório comum de respostas a problemas recorrentes. Ela constiüJi um conjun-to comum de esquemas fundamentais. previamente assimilados, e aparta dos quais se articula, segundo uma 'arte de invenção' análogaà escrita musical, uma infinidade de esquemas particulares direta-mente aplicados a situações particulares(1987, p. 208).

Articular educação e cultura pemlite, pois, reinterpretar a edu-cação "como uma íomla de prática cultural" (Harker, 1990. p. 85).devendo sua análise conter as possibilidades de decifração doconjunto de relações (culturais e económicas) estruturadas que.gerando efeitos estruturantes na interioridade dos agentes, sob aforma de hal)itus, garantem sua própria conservação.

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signifiquem modificações estruturais das relações de força e daslutas que constituem o campo do trabalho industrial.

DIzeI elas não sabem trabalhar e chegam aqui fazendo tudoamado parece um excelente exemplo para revelar de que trabalhose trata e que ensino se está praticando. Se para elas está cerüssí-mo, pode-se imediatamente perceber que não se trata de qualquertrabalho, mas de trabalho industrial, regido pelo modo capitalistade produção. no qual a maquinaria e a administração científicados tempos e gestos permitem simplificar todas e cada uma dastarefas parciais até o limite. O criterioso e impressionantementedetalhado plano de treinamento para cada uma das operações decostura (referido no Bo/eüm Ináolmaüvo, edição de junho e julhode 1987, à página 8) mostra-se como expressão concreta do impulse para "conduzir todo trabalho ao tempo áureo da melhor formade se fazer as coisas" (Willis, 1991, p. .171) e revela-se, portanto,como uma refinada tentativa do capital para tornar as mulheresoperárias. E torna-las operárias implica se com sua mimetização àmáquina, ou seja, implica a transformação de suas capacidadesconcretas singulares em trabalho padronizado e otimizado

Os relatos colhidos junto a diferentes trabalhadores/as gestomes e não gestores - apontaram de forma uníssona que o tubaIho por eles/elas realizado e a habituação com o mesmo só se tornou possível depois de algum tempo dedicado a importantes aprendizagens. A aquisição de habilidades sociais e técnicas, a aprendivagem, portanto. não só do que é esperado de seu posto de traba-lho. mas do que é esperado de sua própria pessoa. é percebida portodos/todas como a base necessária para a manutenção do emprego. Esse complexo aprendizado. todavia, no mais das vezes,não se dá às claras. E regido na obscuridade do senso prático.através do qual se forma e consolida um sistema durável de hipóteses práticas que possui capacidade regulatória dos/as agentesprodutivos. Parte dele, como a de aquisição de habilidade técnicaspara os postos de operação das máquinas, requer algum tempo detreino, não sendo, contudo. necessariamente regida por uma explícita proposta pedagógica. Para a maioria das operárias, taisaquisições são alcançadas sem procedimento ou técnica especiais .sendo "o próprio desejo de conservar o emprego. no qual geralmente se está à prova, (que) funciona como um 'reforço' suficientepara que o trabalhador em formação ponha em funcionamentosuas capacidades e aprenda o que querem fazê-lo aprender" (Ma-rçano Enguitta, 1993, p. 197).

O alcance, por parte das operárias, das habilidades previstasem tais "instruções" parece $e efetivar com relativo sucesso, vistoque o índice de rotatividade nessa Unidade é muito baixo. não havendo, ainda, ocorrências incomuns ou fora da média em relaçãoao absenteísmo. Como diz o gerente administrativo: "Quando as-sisti à$ operações de costura feitas através do nosso método. eume apavoreil E incrívell Um trabalho mecânico, que hora apóshora é a mesma coisa. A moça faz sempre os mesmos movimentos. movimentos padronizados, com uma rapidez incrível e, aolado, aqueles placares de eficiência.. . É uma coisa totalmente de-sumanas E uma rapidez dentro de um movimento-padrão, preestabelecido por medidas internacionais. antes da peça entrar emfabricação. Tudo tem dimensões certas. É uma automatização e éum artesanato. A máquina não íaz sozinha

Assim. na Unidade de Fiação as tareias são aprendidas mediante a prática direta das operárias sob a supervisão da operária líder ou de alguma colega veterana. Não há procedimento específi-co de instrução. Já na Unidade do Vestuário. por tradição, a aprendizagem do trabaho de costura é conduzida com tal rigor, a pontode fazer com que o referido trabalho, muitas vezes já praticado pormuitos anos pelas trabalhadoras, em outras empresas e mesmo noâmbito doméstico, torne-se completamente novo e estranho aelas, exigindo-lhes apra<imadamente seis meses de sucessivasetapas de treinamento antes que possam ser consideradas comoprodutivas. O comentário do responsável dos Tempos e Métodosda UV auxilia, aqui, a entender a formação dessa correspondênciade habilidades com as exigências do posto de trabalho: "As coseu -Feiras chegam aqui e não sabem trabalhará Elas vêm fazendo tudoeKado. Para elas está certíssimo'

As mulheres, nesse sentido, aprendem como se transformarem operárias, ou seja, como colocar sua força de trabalho e suamotivação para conservar o emprego, a serviço. por conseguinte.de sua própria desqualificação, pois torna se engano supor queseu virtuosismo ultraparcial possa ser comparado à maestria quesupõe o domínio do processo produtivo em seu conjunto

A divisão do trabalho dentro da oficina(e. aqui se acrescentaria. osesforços para qualificar os/as trabalhadores/as de acordo com seus

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respectivos postos) desenvolve ao máximo o viHiosismo do operáriodetalhbta, mas numa tarefa insignüicante(Enguitta, 1993, p. 194).

aprendizes tal processo se associa a uma aquisição prática real,indispensável guantia de que se mantenha no emprego. Em geral, quando recém-empregadas, as operárias encontram se em umasituação económica muito precária, tal como já referido anterior-mente. O emprego, para elas. significa a própria condição de semanterem vivas e a seus familiares. A conquista do mesmo, após aconconência seletiva, toma-se uma grande vitória que, aliada àconsciência da crise social do desemprego e de suas baixas qualificações técnicas e escolares, as transfomla não só em operárias,mas em desejosas e devoradas operárias l

O fato de não existir na UF um programa de treinamento siste-matizado não quer dizer que o mesmo - realizado sob as regras deuma aprendizagem prática transmitida de gerações a gerações -não obtenha iguais resultados. Igualmente fragmentada e contro-lada pela maquinaria, a fiação $e revela como um conjunto deoperações repetitivas, velozes e altamente mecanizadas, consi-deradas como trabalho simples, não qualificado, que pode seraprendido em poucas semanas. As funções das operadoras po-dem ser resumidas como funções de alimentação e vigilância dasmáquinas. de caráter simples. que não exigem senão atenção edestreza, mobilizadas e cultivadas no próprio local de trabalho.Aqui, trabalhar, tal como na UV, significa produzir, o que impõeigualmente submissão à repetitividade e às altas velocidades,coordenação visomotora, atenção difusa, mas permanente. Sig-nifica a realização de um trabalho pautado, comandado e conce-bido pelo e para o capital. Nesses tempos, não importa, pois, comoacontece a fomiação para o trabalho industrial. Importa concluirque, a despeito das diferenças nas formas de treinamento utiliza-das, a natureza e as funções gerais do processo educativo não sãoafetadas. Ou seja. a produção do/a trabalhador/a parcelar, os es-forços para treina-lo/la, nessa condição. nada mais são do que aíomla mais eficaz de desquaHicá-lo/a.

Os expedientes da empresa para produzir uma força de traba-lho qualificada às demandas do processo produtivo - expressos naorganização e métodos, nos controles e nas imposições da maqui-naria - encontram nas mulheres pobres e pauperizadas todas ascondições para, de um lado, produza a mais-valia e a reproduçãodo capital e, de outro, produzir uma força de trabalho desqualifica-da. cujos baixos custos acrescem as margens do lucro capitalista,ao mesmo tempo que, vistos sob a forma de baixos salários, nãoatendem às necessidades básicas do operariado

Nesse sentido, produz-se e reproduz-se uma das facetas da for-ça de trabalho "ideal" ao capital, instalando-se uma dinâmica socialcircular que é apanhada com lucidez e brilhantismo por Marx:

O trabalho produz as suas condições de produção enquanto capi-tal. o capital produz o trabalho enquanto trabalho assalariado.como meio de realização do capital. A produção capitalista não éapenas reprodução da relaçãol na sua reprodução a uma escalacada vez maior e na mesma medida em que. com o modo de pro-dução capitalista, se desenvolve a força produtiva do trabalho,cresce também perante o operado a riqueza acumulada, como ri-queza que o domina, como capital; perante ele expande-se omundo da riqueza como um mundo alheio e que o dominam e namesma proporção se desenvolve a sua pobreza, a sua indigência esua sujeição subjetivas (apud Sirva, 1992. p. 51)

A produção da qualificação para o posto de trabalho possui.pois, significados diferentes para as operárias e para a empresa.Para esta (que, ao mesmo tempo que quaHica, desqualifica). adesqualihcação da força de trabalho pemiite-lhe, dentre outrasvantagens. a diminuição dos custos gerais relativos ao pessoal im-plicado no processo produtivo e sua fácil substituição quando ne-cessário. De outro modo, permite eliminar vestígios de trabalho in-telectual ou de concepção das operárias, para coloca-las à mercê esob o controle do capital. Para as operárias. aprender a fazer o querequer seu posto de trabalho signi6ca superar uma etapa impor-tantíssima de seu período de experiência no trabalho, que é tingi-da de muitas ansiedades pelo fato de estarem sendo minuciosamente avaliadas pelos/as superiores hierárquicos. Se. para a em-presa, a qualificação para o posto significa o enquadramento datrabalhadora em padrões estabelecidos de íomla restritiva, para as

Se as práticas de gestão do trabalho capitalista produzem e re-produzem as relações sociais de produção, está corneta. portanto,Hírata (1994a, p. 128), quando aíimia que o processo de qualificaçãodeve ser observado "como uma relação social, como o resultado,sempre cambiante, de uma correlação de forças capital-trabalho,noção que resulta da distinção entre qualificação dos empregos e

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qualificação dos trabalhadores". A íomlação de trabalhadores/asencontra-se, pois, permeada por tensões originadas nas disputaspelo "melhor modo de fazer" entre capital e trabalhadores/as.

À compulsão económica colocada como central até o momen -to deve-se. contudo, acrescentar a discussão de outros processosformativos de convencimento e inculcação ideológica que tornem possível contornar os conflitos inscritos no próprio processoreprodutivo de classes antagónicas, o qual contém, pois, necessa-riamente, a reprodução de suas contradições. Nesse sentido, é necessário tornar mais específica a discussão, levando em conta nãoapenas as implicações de uma só espécie de capital (o económico)e seu volume, mas também as daquele - de caráter simbólicoque diz respeito ao gênero, que recobre de forma visível a dinâmica das relações produtivas da empresa.

Se parece lógico que, do ponto de vista da aquisição da "qualificação do emprego" , não há (üferenças quanto à natureza e funçõessociais dos variados modos de treinar adorados pela empresa, deum outro modo toma-se válida uma atenção comparativa mais minuciosa entre o modo adorado pela UV e aquele adorado pela UF.

confecção, ou seja, sem nenhuma experiência prévia no setor dacostura, cuja dominação. portanto, possa realizar-se em menostempo e sem o enfrentamento desse adicional de tensões entre osaber prévio e a metodologia do dever-ser do capital, ou, então, jádevidamente treinada no processo capitalista do trabalho, o querequer apenas um pequeno tempo necessário para sua sintonização com as particularidades dos produtos, das máquinas e do mé-todo empregados pela empresa

Por outro lado, do fato de que tal período de treinamento envolva aulas teóricas e práticas, deduz se ser o mesmo pautado porrelações formais entre monitoras e aprendizes, estabelecendo-seportanto, um contexto hierarquizado, semelhante ao das tradicionaus salas de aula, que podem estar referidas na memória e no ima-ginário das trabalhadoras. Aqui, contudo, a situação se apresentade forma agravada, visto que os primeiros três meses do períodode treinamento das aprendizes são concomitantes a seu períodode experiência no emprego, o que as coloca, face ao acompanhamento vigilante e avahativo das monitoras, não só em situação deaprendizagem, mas em avaliação permanente. Dependendo dosresultados obtidos nas etapas de treinamento, serão ou não eíetivadas no contrato de trabalho com a empresa, para a qual "o importante é não perder tempo com o pessoal que não aprende" (responsável dos Tempos e Métodos da UV)

Os procedimentos instrucionais e formativos previstos no método internacional de costura aplicado na UV revestem a aprendi-zagem das novas operárias de conotações bastante definidas eprecisas, mobilizando nelas um cerceamento corporal que atingeo limite de seus micromovimentos. Desde o sentar-se corretamente à máquina às sutis e complicadas operações manuais parcela-res, as operárias percebem. de saída, que toda sua experiência antenor. ao invés de se constituir em auxílio, as prejudica, devendoser substituída por um outro modo de fazer, com o qual, inicialmente. lutam em se conformar. A anterior automatização de movimentos para o trabaho de costura doméstico. por exemplo, tendea se interpor. nas fases iniciais do treinamento, como recurso operacional disponível e imediato para a solução das dificuldades encontradas. No entanto. tal experiência é descartado pela empresa,implicando, assim. em mais um dos recursos utilizados pela admi-nistração para depreciar o potencial operatório trazido pelasaprendizes, que são, assim uma vez mais, recobertas de sentidosinferiorizantes. Do ponto de vista da empresa, torna-se mais útil,de acordo com alguns depoimentos de gestores/as, contratar umapessoa crua ou uma pessoa que tenha trabalhado en] indústria de

Na vivência das aprendizes. conforme alguns relatos, a experiên-cia é pemleada de "tensões" e percebida como uma espécie de apiisionamento: "Agente fica muito tensa. Até aprender mesmo, a gentese preocupa muito, porque esse üabaho não é um trabaho qualquer/E7e exige pezíêução! Claro que ninguém é perfeito, mas eles exigemum pouco de perfeição. para que a gente não comece alguma coisaerrado e continue sempre errado. Porque o ma/ disso: qual)do a gentecomeça errado, vai enar a vida inteira... Por enquanto a gente estámuito presa; quando teminar o contrato de experiência, dai eu achoque a gente vai ficar mais disposta a comer... mas isso dwa noventadas. Sda o que l)eus (?uíser/"(aprendiz da UV)

Como explicita se no depoimento anterior, as tensões vividaspe[as operárias em ta] treinamento originam-se de dois principaisfavores: a exigência com a perfeição por parte da empresa e a so-breposição treinamento X período de contrato de experiência. Ofato de reconhecer que ao término do contrato sentir-se-ão mais

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dispostas a comer deixa transparecer os níveis de controle a que seencontram submetidas tais trabalhadoras em sua fase de expeciência no emprego, apontando, também, para uma possibilida-de de "menos vigilância e tensões" nas etapas posteriores. A fala(quando a gente começa errado, vai amar a üda inteira revela oquanto essa particular aprendiz entrevistada já incorporou comosua a ideologia da qualidade requerida. sendo útil ainda para evidenciar o nível de importância atribuído pela empresa aos tem-pos dedicados à formação das costureiras, que. caso contrário,vão Citar a üda üteira.

espera, gera-lhes. e também a seu círculo familiar, expectativas deter bem-sucedido o período de experiência no mesmo. o que lhesgaranl#á uma certa estabilização e uma referência social institucio-nalizada. A evitação, consequentemente, dos possíveis sentimentos de vergonha social que podem se apresentar diante de um pos-sível fracasso toma-se mais um dos componentes de sua "aplicação" às exigências de aprendizagem.

Na Unidade de F\ação. os procedimentos de íomlação das apren-dizes não são regidos por nenhum método ou instrução específicaEm geral, as novatas iniciam seus primeiros passos na operaçãodas máquinas sendo encostadas junto a alguma veterana, por alduns dias, e mantidas sob a supervisão desta, bem como da operá-ria líder. Diferentemente da UV, nesta unidade as máquinas nãosão familiares às novas trabalhadoras, possuindo porte gigantescoe dispositivos que lhes permitem realizar, elas próprias, o trabalhotal "como deve ser feito". Ou seja, autênticas representantes detrabalho morto. as máquinas destinadas às operações de fiaçãoimpõem-se às operadoras, diHgindo as ao invés de serem dirigi-das. As funções de alimentação e vigilância realizadas pelas ope-rárias nada mais são do que aquelas que as máquinas "por enquanto" não podem realizar, devido a não estarem equipadas pordispositivos eletrõnicos e autoprogramáveis. Nesse sentido. sãoas operárias que obturam as porosidades das máquinas.

De uma outra forma. parecem ser importantes para um percur-so bem-sucedido de tais etapas outros componentes que não ape-nas o da aprendizagem das operações. Ogostope/a coca. a força devontade tomam se indispensáveis para mobilizar a motivação paraa aquisição das qualificações. "A pessoa deve gostar, deve ter forçade vontade, senão tudo fica muito mais difícil de aprender. Porque,antes de pegar no trabalho, a gente olha para as outras colegas epensa: 'Como é que elas consegueml Eu nunca vou conseguir issodaíl' A gente fica muito apavoradas" (costureira da UV).

Assim. parecem importantes não somente os favores econâmicos que movem as operárias na (]ireção da conservação de seusempregos, mas, a par destes, expectativas sociais e culturais con-correm para tal trajetória. A concepção do trabaho de costuracomo trabalho de mulheres(que se encontra solidamente instituí-da no imaginário social) deve fomentar, nesse caso, as própriasenergias e preocupações das trabalhadoras, que, incutidas dasmesmas crenças sobre o dever-ser-feminino, tratam, elas próprias,de se sintonizar com o rigor, a precisão e a paciência exigidos.buscando dentro de si mesmas a força de vontade necessária àconsecução de suas aprendizagens. Para além do fato de serempobres e. dessa maneira. caracterizadas pela compulsão ao emprego, elas, por serem mulheres e, mais, por terem se convencidosobre o que devem ser como mulheres, suportam e ultrapassam asimposições do método de ensino e os desconfortos dele derivados .

A longa aprendizagem de se tomarem mulheres. nesse sentido.socorre-as, garantindo-lhes o alto nível de suportabilidade exigidopara a conquista definitiva do emprego.

Constituindo-se tal trabalho como simples e não qualificadotoma-se razoável entender como e por que operárias analfabetos,que pemleavam o chão de fábrica até recentes anos, eram consi-deradas exímias. Se as partidas de hos eram identificadas, à épo-ca, não por números, mas por imagens de animais. se o recruta-mento de candidatas era baseado unicamente em critérios físicos,tais como deve sela/[a e [erbraços edemas, pode se perceber quese trata de um trabalho que, na escala ocupacional da empresa, seencontra bastante inferioüzado. Torna possível, de outro modo,entender que, por ser um trabalho fundamentalmente comandadopela maquinaria. não requerente de habilitações técnicas especia-lizadas das operadoras, é percebido como "fácil" de ser aprendidoe de ser ensinado, não necessitando, por isso, de uma operaciona-lização calculada e programada pedagogicamente

De um outro modo, é certo supor que o fato de terem sido ad-mitidas em um emprego, após, muitas vezes, longos períodos de

Contudo. o fato de não conter explicitação educativa não querdizer que seja inoperante como processo de fomlação. Este ocorre

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a partir da transmissão de conhecimentos entre as próprias operá-rias. que, geração após geração, vão $e auto e heteroqualificandoe absorvendo, dessa forma. a destreza, a rapidez, a coordenação ea atenção necessáüas à consecução da fabricação.

da UF, a uma concentração do processo avaliativo em traços atitudinais das operárias, como se os conteúdos desqualificados e desquaJificantes do trabalho de fiação significassem tão-somentequalidades morais, interpessoais e de sociabilidade. Se o trabalhoda operária líder é o de desbloquear o fluxo produtivo, através deintervenções variadas, que se estendem do apoio moral a algumaoperadora preocupada com a família a intervenções nas própriasmáquinas, quando apresentam irregulaüdades, e se, por outrolado, sua atuação se encontra associada a uma área de produçãorestrita, permitindo Ihe o conhecimento personalizado de cadaoperária e o convívio permanente com as mesmas. torna-se fácildeduzir que seu desempenho se encontra visivelmente interconectado ao das operadoras, as quais, como um componente doprocesso de trabalho. são percebidas como potencial auxílio à realização das metas da produção

Tornam se operárias dentro de uma espécie de comunidadede mulheres, sob os olhares do controle masculino. Ou seja. o ensinal as novatas é delegado às operárias antigas e experientes - líderes e veteranas -, que, sendo mulheres, supostamente são vis-tas com condições de acolher as tensões e preocupações das aprendizes, como mães dedicadas e pacienciosas com os deveres escolares dos/as filhos/as. Por outro lado. o que ensinam não se encon-tra desapegado dos critérios requeridos pela produção. como também não se encontra desarticulado da necessidade de atender osíndices de eficiência impostos pela gerência. Assim, de um lado.mulheres veteranos e aprendizes ensinam e aprendem e, deoutro, homens contramestres, supervisores. gerentes e diretores- concebem e controlam. Não se trata, aqui. de uma situação quepode ser vista da perspectiva das relações de gênero?

Assim, a partir de uma cadeia de ressonâncias recíprocas oriminadas nas relações entre as operárias e destas com as líderes d&giupo, processa se um processo avaliativo conjunto, em que cadauma é avaliada e se torna dependente dos resultados obtidos pelaoutra. Se a líder de grupo, por sua vez, convive mais estreitamentecom cada uma das operárias, Ihe é permitido perceber, com acudada precisão, a disposição das mesmas para o trabalho, ou seja, adisposição que apresentam para solidarizar-se com os ritmos. disciplina e controles produtivos esperados. Ao final das contas. astrabalhadoras novatas são avaliadas mais por sua capacidade dedeixar se convencer e inculcar pela ideologia do trabalho indus-tria! do que por requisitos técnicos. Como diz uma das líderes degrupo da UF: "Quando o contramestre vai colocar gente pra ruaclaro que ele também analisa, mas va/e mais a 171irüa pa/apta porque eu convivo mais com elas... A(lui dentro a gente quer pessoaspra üabalhar, que tu possas contar com elas. As vezes, tem genteque enfia aqü e não (Wer tlabamar, quer só ganhar. AÍ se a gentecobra. ela diz que tu está 'pegando no pé'. Não é nada rissol AÍfora tem um monte de gente querendo trabalhar. Mas pra conse-guti pessoasboas, que tu vais confiar, que vai trabalharrealmente.não tem tantas assiml .4 maneja (7ue elas rém de desobedecer éque elas não falam, elas simplesmente não fazem aquilo que tu pe-desl Elas não discutem. Elas simplesmente não fazem. Viam ascostas. E uma falta de respeitos Eu não escuto, não bato boca.Simplesmente entrego para o contramestre'

As consequências de tal modo de ensinar indicam a existên-cia de uma rede de poder nas relações entre as mulheres, vistoconstituírem-se, nesse procedimento formativo, condições políti-cas de $ua solidariedade e de sua competitividade. Isto quer dizerque as relações de ensino/aprendizagem, que colocam operáriasantigas e operárias novatas face a face. estabelecem, obviamente,uma relação de hierarquia entre elas, na qual a antiga possui a pre-valência sobre a aprendiz. Da forma como a novato se comportamais ou menos submissamente à sua "professora" dependem maio -res ou menores chances de sua "aprovação" no período de expe-riência no emprego. Resultam, ainda, melhores ou piores condi-ções psicológicas de relacionamento entre as mesmas, favor que,além de interferir no parecer cumulativo fornecido pelas veteranase líderes ao contramestre, pode obstaculizar, igualmente, a pró-pria aprendizagem. De certa forma, as veteranas e operárias líde-res detêm. junto às novatas, a condição de seu fracasso ou não deaprendizagem, resultando, nesse caso, diferentemente do que ocosre na UV, o estabelecimento de uma interdependência acentuadaentre as trabalhadoras e uma invariável dependência das novatasem relação às mais antigas. A ausência de critérios objetivos deavaliação do que é considerado um bom trabalho remete, no caso

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O fato de que "vale mais a palavra da líder" confim)a a existên-cia de relações de poder no processo de trabalho e de aprendizagem do mesmo. Contudo, é indispensável frisar que a operária lí-der não possui a prerrogativa de demitir pessoal, condição que sedoca como atrbuição do contramestre. Assim, observando queum dos importantes expedientes utilizados pela líder junto às tra-balhadoras - novatas ou não é o de ameaça las através do "en-treguismo" e da "depuração" ao contramestre, pode-se entenderque seu poder de mando só se realiza à medida em que se senteencorajada de "depurar" as colegas ao superior hierárquico. Trata-se, por conseguinte, de um "poder por procuração", concedido,segundo Bourdieu (1990), aos/às dominados/as pelos dominantes.Cientes de seu papel de "olhos e ouvidos" do contramestre, comofoi relatado, sabem que os motivos que as colocaram na posiçãode líderes dizem respeito, privilegiadamente, ao fato de que se en-contram plenamente convencidas e conformadas com as exigênaias daquele trabalho e daquele ambiente. devendo daí extrai suacartilha, cuja aplicação é capaz de identificar tanto pessoas boas.que querem üabaüar e em (quem se pode co/úa, como aquelasque só querem ganhar. Embora não recobertas pela autoridadeformal de demitir. elas amuam como legitimadoras de tais açõesadministrativas, através de um poder oficialmente inexistente, masna verdade persuasivo e eficaz.

aproximação com o mesmo, devem tais líderes, contudo. se utili-zar daquelas supostas qualidades femininas que as recobrem,frente às desavisadas. de dons matemais idealizados e tidos comopermanentemente generosos, "bons" e igualitários

Se. de outro modo, o período de experiência das novatas tor-na-se. a seus olhos, "bem-sucedido" , é provável que, a partir daí. seconsohdem algumas alianças de cumplicidade e de reforçamentorecíproco entre elas. O fato, todavia, de se verificar maiores cuidados e menos radicalismo quando se trata de repreender ou demitirmulheres com filhos leva a pensar na possibilidade de que o trata-mento mais inf]exíve] por parte das líderes recaia sobre as operáriasjovens e solteiras, que, não tendo como justificarem suas ausênciasou quedas produtivas com o trabalho doméstico e com os alhos,passam a ser consideradas como aquelas "pessoas más" - mal-for-madas para o trabalho. Assim relata uma das operárias líderes daUFI "Mães, mulheres que têm filho, que trabaham pra sustentar osfinos, então a genteprocwa da uma chance maior, conversar mais,pra ver se a pessoa entende que precisa trabalhar, que ela tem fi-lhos, que $e ela sair da(lui vai ter igual que trabalhar em outro lugarElas faltam mais por causa de problemas com os filhos em casa

Se maiores exigências e menos chances "de recuperação" sãoconcedidas às operárias que, não sendo mães, são presumívelmente sexualmente mais disponíveis, toma-se útil lembrar aqui afrequente ocorrência de casos amorosos entre operadoras e contramestres, o que, nesse momento, parece apontar para uma outraespécie de trama nas relações de trabalho, encenada, dessa feita,entre contramestres e operárias líderes

A constatação da radicalidade de suas iniciativas frente à resistência daquelas que "não querem cooperam" revela o real moti-vo de sua indicação para as tareias de formação das novas gera-ções. Contrariamente ao que se pode apressadamente pensar, ofato de serem mulheres e, portanto, supostas como dotadas dasnaturais" capacidades matemais de criar e cuidar, não as carac-

teriza. necessária e permanentemente, como mães pacienciosas enão discriminatórias. visto que se revelam bastante duras, persis-tentes em manter o pulso ]ímle e até inclementes com atitudes ecomportamentos que consideram improdutivos. Antes de se alia-rem às mulheres, suas iguais, aliam-se aos escalões que lhes sãosuperiores. compostos invariavelmente por homens. não só submetendo-se, logo, aos ditames do capital e às regras da gerência,como colocando se a serviço do poder masculino, que, nesse caso,lava as mãos" , deixando que o trabalho de rastreamento e identi-

ficação "das más pessoas" seja feito pelas próprias mulheres. Paraa consecução de suas apreciações sobre o operariado e de sua

Por volta dos anos oitenta, a empresa, tendo em vista superardificuldades produtivas e de mercado, adora. em contraposição aseu então tradicional modelo patemalista de gestão. uma filosofiade trabalho voltada para a profissionalização das camadas de alta,média e baixa gerências. Uma das conseqüências de tal enfoquee, talvez, a principal foi, por conseguinte, a extinção de toda umalinha do organograma. reservada ao cargo de primeira operáriaCerca de cem funções de liderança, que se constituíam nas quaseúnicas possibilidades de carteira das trabalhadoras, foram extin-tas. A ocupação de tal cargo, à época, implicava salário diferenciado, sendo o mesmo perfeitamente visível e formalmente autoriza-do na cadeia de comando. Dessa fomla, depois de três décadas, o

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chão de fábrica. ou seja, as pequenas redes de relações intersubjeuvas instaladas no transcurso do processo produtivo passam dasmãos de mulheres para a de homens: das então chamadas prímeiras operárias para as dos contramestres. Os conflitos de autoridadeentre esses dois escalões eram muito freqüentes e expressavam aluta pelo poder junto ao operariado. Para o diretor industrial. essefato, denominado de enxugamento ternvel, foi o responsável pormütiplas diHculdades que surgiram no âmbito da produção desdeentão. "Desde aquela época nós temos dificuldades.. . Os contramestres, todos homens, receberam treinamento em administraçãode pessoal. Foram treinados em tudo o que era possívelpara saber o(We acontecia ]á embalo... mas sempre há uma dificuldade'

o nome de primeiras operárias para o de operárias líderes como seessa "maquiagem" fosse suficiente para apagar a existência da li-derança feminina junto ao operariado, a qual é controlada de forma sexista e excludente

Percebe-se, porém, que, mesmo não investidas atualinente deautoridade formal, as líderes detêm o poder de "selecionar" quaissão as mulheres recomendáveis ao emprego. Sua escolha sobre asmães de família percebidas como pessoas boas, que gostam detuba/har - em detrimento das solteiras - percebidas como fique/as(7ue só gostam de ganhar parece revelar a continuidade de suacompetição com os contramestres. Elas detêm o poder de restringir o universo feminino da fábrica a mulheres presumivelmentemenos sedutoras e menos desejadas. Reduzem, assim, as chancesda dominação sexual masculina e atingem. em cheio, a virilidademasculina, que, enquanto distinção de homens, os contramestresnão cansam de colocar à provam De um outro modo, podem. igual-mente, através de tal seletividade, instituir novos padrões "motais " no ambiente de trabalho, que deve ser identificado não comolugar de "putas" e sim de "trabalhadoras e mães de família

Se dificuldades surgiram e se mantêm desde a extinção docargo das "primeiras". elas podem ser entendidas no sentido deque se tornou mais difícil o controle da mão de obra por parte dagerência, não sendo mais possíve] saber o que acontece ]á elllbaxo. Define-se desse modo, com clareza, a função de vigilânciaexercida por aquelas líderes, ficando evidente que elas compareiIhavam, de forma legitimada, do poder gerencial. E provável quetal poder lhes tenha sido subtraído formalmente, provavelmentenão apenas por motivos económicos e de habilitação escolar alegados, mas porque, sendo exercido por mulheres, pemlitia às mes-mas uma certa primazia sobre o operariado, o que reservava, en-tão, às mulheres, muitas oportunidades e condições de suplantarem a importância do poder masculino das demais chefias.

Das características dos processos formativos examinados po-dem ser estimados resultados previsíveis, sendo um deles o de-senvolvimento de habilidades parcelares, destituídas de criativi-dade e permeadas pela capacidade de fazer curvar o corpo a movi-mentos calculados e mesmo adjuntados aos da maquinaria. Contudo, sabendo-se que uma operária líder e mesmo uma contramestra (existente na UV) são escolhidas para tais funções por conhecerem o conjunto parcial das operações que devem assistir,ensinar e controlar, resta perguntar quais as condições que lhespermitiram tal amplitude de conhecimento, que pode ser entendida, no contexto estudado. até como uma certa proezas

A situação das chamadas operárias líderes à época da pesquisa revela que, além de suas funções não constarem do organograma, elas também não mais recebem salário diferencial pelas fun-ções exercidas, estando posicionadas tão-somente como evidentes complementações da autoridade funcional e masculina doscontramestres, que detêm a prerrogativa de demitir funcionários/as. Essa situação pode ser vista como uma dupla estratégia de dominação e de exploração da empresa em relação às operárias.Uma vez tendo percebido os prejuízos à produção desencadeados pelo afastamento das primeiras, a empresa retoma o empre-go de mulheres no escalão de comando, as mantêm responsá-veis por idênticas atribuições das anteriores pHmeiras, mas nãoas remunera diferencialmente. Mais do que subordina-las aoscontramestres, elas só se tornam possíveis através deles, vistoque são eles os detentores do real poder coercitivo. Muda-se-lhes

Os depoimentos das antigas operárias que hoje ocupam posi-ções de mando conduzem ao reconhecimento de que todas tive-ram uma "madrinha", isto é, contaram, para sua qualificação, como apoio e os investimentos de uma outra operária, em geral sua su-perior hierárquica. A par disso, elas se tornaram possíveis pelo fatode que viviam uma época em que o chão de fábrica ainda era for-mal e legitimamente conduzido pelas primeiras operárias épocaainda não caracterizada pelo prívilegiamento do "profissionalismo" das chefias e regida, então, pela inteligência e senso práticos

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adquiridos na experiência direta com o trabalho. Com poucos esmudos, tais operárias movidas tão-somente pelos desejos de semanterem no emprego e dele auferkem maiores ganhos possíveis(económicos e sociais) mostraram-se, aos olhos de suas chefesimediatas, à época de sua introdução no trabalho fabril. como pertencentes àquele tipo de pessoas boas, talhadas para o trabalho,ou seja. desinteressadas em outros possíveis jogos sociais, como oda relação sexual com os operários e chefes. Dedicadas a ponto defazerem da empresa sua segunda casa, viam como desafios à suacapacidade e a suas ambições todas as metas produtivas que lheseram exigidas. Devidamente coníom)abas com a imagem da empresa como única saída a seus problemas de sobrevivência, captaram e incorporaram as regras do jogo produtivo e, mais do queisso, ousaram, devido à proximidade afetiva que mantinham comsua chefe imediata, propor-lhe situações de treinamentos episódi-cos, sempre que a produção entrava na chamada gaita baixa. Oaproveitamento da sazonalidade da produção para adquirem no-vos conhecimentos sobre a$ operações e máquinas dos diversossetores. aliado às simpatias e solidariedade que caracterizavamsua relação com a superiora, pemlitiram-lhes conquistar, ao cabode alguns anos, sem algum programa explícito e sistemático detreinamento, múltiplas habilidades operacionais, visão ampla -conjunta e detalhada do processo produtivo , configurando as.como elas próprias se nomeiam, como poZívaZentes.

ser à alturas Se eu não deixar alguém que saiba fazer o meu traba-lho. é um trabalho de llinta anos perdidos' Então, quando me de-ram ASAS. a(lui na fábrica, eu aprendi tudo o que pude: em ão. emtecido, em 'üsíta', em ]availdeda. em máquinas.

De uma fomla muito especial. esse depoimento parece sinte-tizar com clareza alguns dos componentes que fazem parte dos pro-cessos seletivos com vistas à carreira das operárias. Surgem. aqui,expectativas das própüas chefias operárias no sentido de se veremrepresentadas à alara. no dfa que sabem, deixando claros, nessesentido, aspectos de vaidade e narcisismo implicados nos procedi-mentos de da uma chaz)ce a suas possíveis substitutas. Estas de-vem se colocar. no mínimo. à a/fura delas, ou seja, reproduzi-]as,como espelhos reíletidores, tomando possível a manutenção e aconservação dos altos padrões de perfeição técnica e moral

Por outro lado, percebe-se que a escolha das prováveis substi-tutas, por parte de tais chefias, não $e dá ao acaso e tampouco demodo repentino. Torna-se possível após longos anos de convivên-cia e testes com as mesmasl naqueles procedimentos que são per-cebidos como challces às operárias, se ernbutem. simultaneamente, "chances" para uma avaliação pemlanente e cuidadosa por par-te de suas superioras. Se é reconhecido que o importante "é darchance a uma pessoa" para que ela mostre do quanto é capaz, aomesmo tempo não é feita a problematização de tais "chancescomo portadoras de efeitos de poder sobre as operárias, uma vezque não se trata de considerar os comportamentos "produtivos" eo "sucesso" de tais operárias como resultados apenas de sua dis-posição favorável ao trabalho. As futuras chefes são feitas e torna-das chefes desde um longo processo de inculcação e fomlação realizado pela chefe-mulher que Ihe é mais próxima e que a escolheatravés de um olhar que busca sua própria reprodução.

A grande maioria dessas chefes-operárias foi engendrada, pois .nesse misto de vontade própria e de flexibilização de sua posiçãode trabalho. Não havendo "ensino formal" das operações que passaram a dominar, supõe-se que suas aprendizagens resultaram deoutra rede de solidariedade constituída entre elas e os/as operarios/as que detinham os conhecimentos e a experiência a seremtransmitidos. "Mas isso não acontece mais", relata uma de tais an-tigas operárias. "Quando eu entrei. encontrei aqui dentro uma mu-her muito batalhadora, daquelas üpo a minha mães Ela me deuuma força muito grande e acho que ela sentiu que eu t:inca von tartede trabalhar e gostava de trabaUlarl Eia sempre estava testando agente pra verse tinha possüilidade de tear mais das pessoas. E eladava chance. Isso é que é importante: dar chance a uma pessoa.Pra mim ela deus Ela me ensinou todo o trabalho dela. e dizia:Aprende porque depois tu vais passar para os outros. porque umdía eu vou saü daw, tem a/guém (7ue vaí me substituir e tem que

As condutas de apoio/exigência por parte de tais chefias de-vem ser apreciadas, porém, como causadoras, e não como efeitosdo "bom" comportamento das subordinadas, as quais corporificam em si mesmas o que é estar à altwa para tirarmais da pessoaA associação realizada da figura da chefia com a mãe. uma bata-lhadora, permite, outrossim, fazer uma transposição, para a fábrica, de uma forma educativa familiar apoiada na figura da mãecomo exemplo a ser seguido. Se é certo supor que as meninas,para se tomarem mulheres, passam por processos identificatórios

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inconscientes com a figura materna, é lógico pensar que. em umafábrica de mulheres" , as operárias e suas chefes reproduzam fique

la relação objetal e peçam suas relações a partir de favores identificadórios pautados pela afetividade com a figura feminina. Contudo,deve se considerar que tais processos de identificação, tanto na família como na fábrica, se colocam a serviço da reprodução social ecultural, permitindo, desde diferentes instâncias socializantes (família e fábrica, no caso), a conservação de padrões e crenças que,ordinariamente, inculcam nas meninas/mulheres aqueles atributosde bataüadora e sensíve/, importantes, não apenas para a consolailação do "tornar-se mãe'' , como do "tomar se trabalhadora'

cedro, pode ser útil para entender qual o tipo de mulher pobre que aempresa privilegia em seus quadros. Enfim, qual o tipo ideal demulher que é efetivamente transformado em operária l

Não se trata de uma banalidade, mas de algo que não se vê eque se encontra firme e solidariamente arraigado nas práticas de se!eção, formação e carreira adoradas pela empresa e que, em seuconjunto, expressam a consonância desta com as crenças sociaismais terríveis e arcaicas sobre as mulheres. Em seu próprio modo deadministrar. suposto como orientado por exclusivas variáveis e ra-zões económicas e procedimentos técnicos, a empresa toma-se.em sua própria linguagem, produtora e reprodutora da ordem socialque estabelece parâmetros de conduta e de sanções às mulheres.sempre na perspectiva de sua interiorização e de sua exclusão. Aempresa. na verdade, não só legitima como recria pelas mãos desuas trabalhadoras os parâmetros culturais que se impregnam no'dever ser" das mulheres enquanto sujeitos sociais. A recriação no

inferior da empresa de tais conteúdos torna se. por conseguinte,peça fundamental para a produção e reprodução de uma força detrabalho exatamente diferenciada por ser constituída de mulheres

Dessa forma, apontam, do lado das operárias, sobre a necessidate de que estas não só tenham vontade e necessidade de tubaIhar, como gostem de íazê lo, o que resumidamente caracteriza asqualidades supostamente inerentes das boas pessoas, moralmentebem formadas para o trabalho. Tais pessoas, todavia, não são incor-póreas e conceituadas de forma absErata: são mulheres a quem sãoatribuídos socialmente tantos e melhores dons e qualidades para otrabalho, quanto mais virtuosas moralmente sejam consideradas.Uma "boa" muher é "üabalhadeka", não tem preguiça e não medeas dihcu[dades pua fazer o quere é soh(atado. M]u]her "boa", ]á impeca em outro caso... : mais ou menos nesses termos parece expres-sar-se o cütéíio seletivo de trabahadoras por outras trabalhadoras.Não resta dúvida de que o olhar selecionador mostra se, de um e deoutro modo, atravessado pela avaliação do potencial sexual e sexuahzante que possa estar contido no corpo das operárias ou das can-didatas a sê lo. Corpo que não basta se manifestar como de mulher,mas que deve tomar evidente não se constituir em "perigo" à rácionulidade planejada do trabalho industrial; corpo, antes que saciado,interditado, corpo para produzir, não para seduzir. E qual o melhorcorpo para tais requisitos, senão aquele que se auto impõe sua pró-pria negação enquanto desejo? Senão aquele que, pertencendo amães de família abandonadas. jovens viúvas ou ainda solteiras -que, além de necessitarem urgentemente do salário mensal, parecem estar constrangidas por uma moral que as impede de retomarem novo relacionamento amoroso?

Sequer seus procedimentos fomiais, cienl;íHcos e explícitos de seleção, de admissão, de formação e de encarreiramento deixam deestar referidos desde tal economia de trocas simbólicas que, nessecaso, privilegiando a força dos sentidos sociais atribuídos às dizerenças entre homens e mulheres, têm no gênero um componenteestruturados das desigualdades sociais fortemente consolidado elegitimado. Pensar a racionalidade dos processos seletivos e formativos como condição para uma "bem sucedida" seleção e íormação de candidatas e aprendizes torna se, aqui, no mínimo ingênuo, visto que a força simbólica manifestada nas práticas colidianas das relações de trabalho pode e consegue, sem dúvida, fazeroscilar e contradizer as previsões "cientificamente" calculadas. Seos procedimentos de recrutamento e seleção iniciais têm a funçãode buscar mulheres pobres e necessitadas de salário, eles, na verjade, somente se consolidam no interior da produção, quando,após os noventa dias de experiência. é realizada a avaliação das'aprendizes em experiência" . Tal avaliação, sendo prioritariamen

te subsidiada pelas líderes de grupo e apenas homologada peloscontramestres, encontra-se muito distante da verificação de suasmeras habilidades técnicas e de conhecimento para o trabalho. Aseletividade, contudo. não se extingue após a eíetivação no em-

A observação de um surpreendente número de operárias mãesde íamüa que, estando viúvas. soltehas ou divorciadas, se negam aaceitar a hipótese de um novo relacionamento estável com um par-

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prego. A força de trabalho deve ser reproduzida em toda a gamade suas diferenciações internas, seguindo-se, pari;anta, os longosanos de "chances" e avaliações dos quais se originarão as substi-tutas aos cargos de comando ocupados por mulheres.

disponibilidade incondicional de doação a outrem, a ponto de suaprópria anulação como sujeito individual. Mulheres pobres e insti-tuídas em uma espécie de moral que. revestindo a maternidade dequalificativos associados à "santidade, virgindade e sacrifícios" . aglorifica e idealiza. Lembro o dizer do presidente do Sindicato sebre serem as m uüeres dvüas apenas como um reforço para apon-tar, não só como são percebidas as "mulheres ideais", mas também para identificar uma expectativa social que se lhes impõecomo condição para a conquista do emprego e de carreira.

No tocante às chances de ascensão funcional, ao nível de opeFaria líder e mesmo de contramestre, percebidas como conquistadas operárias, devem ter seu entendimento devidamente relati-vizado, uiva vez que se sabe serem tais cargos os últimos esca-lões de comando previstos na empresa e, portanto, situados nabaixa hierarquia, e que um deles, no qual pode se alocar um número maior de trabalhadoras, sequer é legitimado pela contra-partida salarial, existindo tão somente como adjunto ao cargomasculino de contramestre. Comparativamente às chances quesão concedidas aos/às trabalhadores/as e, ainda, levando emconta a intensificação e amplitude de exigências que recaem eque se impõem às chefes-operárias, seja do ponto de vista técni-co, seja do pessoal e moral, não estou propondo uma apologia dacarreira operária feminina. Ao contrário, acho que deve-se perce-bê-la desde seguras e devidas reservas e com a suficiente cons-ciência de que se trata de um refinado processo de reprodução dasdesigualdades sociais entre os gêneros.

As análises antes realizadas pemlitem perceber que, para aconsecução do processo de fomiação das operárias realizado a par-tir da definição. pela empresa, das exigências do posto de trabalhojqualiâcação de empregos, toma se relevante aquele conjunto decompetências e habilidades, técnicas, escolares e sociais referidopor Hirata(1994a, p. 128) como quaZí#caç;ão rea/. Isto quer dizer(lue, para a aquisição das habilidades exigidas para o enfrentamento das situações de trabalho "qual#icação operatória" por partedas operárias, conconem componentes adquihdos ao/no longo tra-balho reprodutivo da existência social das mesmas, sendo conduzidos, em especial, pela família. As certificações escolares, ou seja,as contribuições da escola no processo formativo da força de trabalho mostram-se bastante subsumidas e pouco atuantes.Assim, o que pensar de uma instituição social que, através da

ordem do trabalho. consome e reelabora aqueles conteúdos cogni-tivos que dividem e desigualam os agentes sociais, de forma talque a parte constituída por mulheres seja tão injustamente discriminada e desvalida, tanto moral como economicamente? O quepensar de uma cultura industrial que considera. aprioristicamen-te, todas suas trabalhadoras como dotadas de uma natureza animal e instintiva, à qual deve-se interpor controles e interditos, capazes de socializar seus corpos ao ponto de sua negação? O quepensar de uma cultura industrial que, ao dividir as mulheres emduas classes - "santas" e "profanas" -, é incapaz de autorizar-lheso estatuto de simplesmente humanas?

Assim, considerando que muitos dos aspectos implicados na'qualificação operatória" das operárias são originados e cultiva-

dos antes de sua alocação no trabalho industrial, ou seja, nos anosde sua infância e de sua adolescência, é importante ressaltar que,apesar de não se constituir na matriz primária do habitua sexuadae de classe, a fábrica os legitima através de sua recriação, realizacia nas próprias práticas do trabalho capitalista e assalariado. Oshabitua primários de gênero e de classe, adquiridos em instânciassociais exteriores e prévias à fábrica, operam como verdadeirossuportes à formação do habiMS de operária, que, por sua vez, deveser considerado, simultaneamente, como produção criativa asso-ciada às situações conjunturais específicas da empresa e como reprodução das macroestruturas sociais objetivas

As dinâmicas analisadas pemütem. pois. verificar que o tipoidem! de mão-de-obra requerido na empresa ultrapassa as evidên-cias de seu gênero e de sua classe. O longo trabalho social reptodutivo que tomou possível a fomlação das mulheres deve estar as-sociado aos valores sociais que as consagram como mães, o quequer dizer que sejam dotadas de uma disposição moral e de uma

Denota-se, nesse particular, a estreita relação existente entreprodução e reprodução social, bem como a própria historicizaçãodo habitua. apontada por Harker (1990) e por Elsie Rockwel1 (1990)como parte da dinâmica reprodutiva, cujo processo, ao nível mi-

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crossocial, não contempla o engendramento cle "fotocópias au-tênticas" das macroestruturas.

reina operária: "Para ser chefe, é necessário ter estudado". O desmerecimento conferido ao trabalho manual - adquirido através daprática direta adquire relevância e visibilidade. mostrando-secomo referência para a desvalorização e desqualificação do pró-prio operariado. Este deve, a partir de então, submeter-se porcompleto às ordens do capital, corporificado, agora, não mais nasmãos de exil73ios/as trabalhadores/as manuais, mas nas de técnicos e profissionais escolarizados, porém inexperientes

No que tange à escolarização, parece importante demonstrarque a mesma adquire visibilidade e explicitação no discurso empresarial a partir dos anos oitenta, quando a empresa adora umagestão orientada pelo pro/íssionabsmo. A característica de tal concepção fundamenta-se, estritamente, na valorização dos conheci-mentos e certificados escolares dos/as trabalhadores/as docados/as na cadeia de comando. Se, nos anos oitenta. a empresa encontrava o início das difi-

culdades económicas à sua sustentação frente a mercados que,nacional e mundialmente, se transformavam. não mais usufruindoclãs mesmas facilidades que anteriomtente tornavam produtivas elucrativas a$ operações têxteis, fica claro que, dentre as diversasmudanças e reestruturações que passa a efetuar. a exigência pormais elevados níveis de escolarização da cadeia de comando associa-se a uma suposição de positividade entre instrução e desen-volvimento económico. Outrossim, associa-se a uma outra supolição de serem incapazes aqueles/as que não detêm níveis instrucionais elevados - de exercer comando sobre os processos detrabalho. Incluindo a escolarização como exigência ao perfil dos/asnovos/as chefes, ela, na verdade, exclui todos/as os/as que nãoapresentam tal requisito condicionante. Golpeia, em acréscimo, aforma cultural anteriormente estabelecida na qual o saber e o controte operários eram reconhecidos e legitimados. Separa instruçãoe cultura, estabelecendo ligações daquela com a economia

Como já referi, tal fato foi ocasião para múltiplos embates in-ternos quanto à detenção e distribuição do poder de comando dooperariado. gerando, a partir de sua implantação, aumento e abravamento das problemáticas relacionadas ao controle do pessoale da produção. Baixam os níveis de qualidade de fabricação e.gradativamente, aumentam os índices de turnos'er e absenteísmo do pessoal. A empresa, pretendendo se equipar do que cha-ma de condções para enfrentar o mercado, praticamente destróias redes informais intersubjetivas cultivadas por mais de três dédadas sob a égide de um sistema de gestão paternalista. Aos recém-formados engenheiros então contratados para os postos desupervisão e de gerenciamento da produção impõe-se a presençade antigos/as operadores/as, exímios/as condutores/as do proces-so produtivo, mas exclusivamente formados/as pela via da expeciência direta do trabalho.

Os diversos contitos de autoridade entre engenheiros e antigos/as operários/as podem ser agregados em uma categoria ampla,denominada pelo gerente administrativo de mptums de cadeias. Deum lado, o poder formal dos acadêmicos. sem experiência na pro-dução, orientados por princípios de racionalização e otimizaçãoprodutivas e dependentes dos saberes do operariado, que. de umoutro lado, resiste para transfere-lo às mãos dos então gestores.

A elevação do nível de instrução das chefias faz pane, dessamaneira, de um processo gestor que desprestigia e aniquila o con-texto cultural que engendrou específicos modos de trabalhar da/na fábrica. Desvalohza e, implicitamente. destrói a cultura de al-guns subgrupos até então atuantes e autorizados (primeiras ope-rárias, contramestras e supervisores "operários/as"). Atinge, demodo mais fatal, contudo, a grande oração feminina do operariado,que, não apenas perde totalmente as possibilidades de vir a ter umlegítimo embora inferiorizado e último cargo na hierarquia de comando. como se vê obrigada a continuar realizando as funções docargo extinto sem os devidos reconhecimentos material e de piestígio concedidos aos cargos de comando. Tal exigência, na venda -de, abateu-se sobre as possibilidades da carreira das operárias feito um golpe de força, destituindo-as das migalhas de poder confe-

E dessa forma que a empresa inicia a problematização sobre aimportância do preparo escolar, tornando explícitas as novas rearas do jogo às quais devem se render todos/as aqueles/as que almetam realizar carreira profissional. Atinge. dessa feita. mais dize -Lamente, orações do operariado que estavam por assumir postosde comando ou que neles já se encontravam.

A primeira pressuposição, portanto. cla importância da esco-!arização reflete-se na equação enigmática que diz respeito à car

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tidas às prüneiras operárias, que, agora sob o nome de líderes degrupo, agem tão-somente como procuradoras do poder masculinodos contramestres.

O discurso educativo escolar, pois, permeia atualmente o discurso gestor. Desde o diretor a gerente de Recursos Humanos, nãosó se percebe a preocupação em aproximar escola e fábrica, comoiniciativas nesse sentido estão sendo concretizadas através de pro-gramas realizados em conjunto com a prefeitura local. O operariado,lá sensível às novas demandas do capital, esforça-se por compare-cer aos cursos supletivos de prüneiro grau oferecidos, utüzando-sedaqueles tumos de horário não exigidos pela produção, ou seja, de'seu tempo livre" . As operárias já perceberam que o que sabem nãoé suficiente para mantê las no emprego. Elas devem se esforçar porelevar sua instrução escolar, para, principalmente, serem capazesde compreender de tonta mais rápida e completa as novas instru-ções de serviço implicadas na proposta da Qualidade Total. Educa-ção e Qualidade Total, por conseguinte. comparecem de mãos da-das nas práticas de gestão, mostrando-se como faces do processoque desvaloriza o operariado e que, supostamente. Ihe quer extrairde modo mais "fácil", aqueles conhecimentos práticos sobre aprodução que lhes confere um poder sobre a mesma, mas que devem ser transferidos às mãos da gerência

A tradição da seleção de pessoal e dos processos de promoçãointerna. tendo, até então, sido pautada por critérios que excluíama escolaüdade, contribuiu, logo, para a constituição de um contin-gente feminino predominantemente desescolaüzado e ordinaria-mente "de origem doméstica", que passa a ter muitas dificuldadespara tomar possível sua ascensão funcional. Já os homens, muitosdeles procedentes de cursos técnicos e portadores de diplomas desegundo grau. encontram, nessa ocasião, oportunidades ímparesde abertura quase que exclusiva de suas chances concorrenciais. Anão ser que estejam devidamente escolaüzadas. ao mínimo do sefundo grau, as mulheres operárias se encontram, portanto, excluí-das do jogo, nele entrando apenas como complemento dos contra-mestres, sendo seus ocos e ouüdos, já que não lhes é mais conce-dido o reconhecimento de que também têm cérebros. Apenas umgrande hiato de tempo podeüa vir a constituir o contingente detrabalhadoras como fonte ao provimento de cargos de chefia, vistoque a empresa, para tais casos, não dispensa o critério de antigui-dade e de confiabilidade adquirida após alguns anos no emprego.

Escolaiizar as trabalhadoras mostra-se, na perspectiva da Quacidade Total, como fato que pode estar revestido de múltiplos sen-tidos. Do ponto de vista da gerência, significa "modemizar", padronizar e metodizar os processos de trabalho de comia a subsumira importância do conhecimento do trabalho adquüido através daprática direta no chão de fábrica. Supõe que a vivência escolar Ihetornará facilitada, outrossim, a aproximação do operariado com osníveis de comando a que se submetem, visto sua provável assimi-lação de uma linguagem mais técnica e "profissional", supostamente neutra e pemleada pela "objetividade da ciência

Nos anos oitenta. a problematização sobre a escolaridade dos/as trabahadores/as recobre os níveis de chefia tão-somente, nãoatingindo o operariado em geral. o qual sentirá os efeitos das exi-gências escolares a partir da década de noventa, época em que aempresa entra no programa Qualidade Total.

Essa "nova política educativa" da empresa passa a consideraras conta:ibuições da escola como "indispensáveis" à formação desua mão-de-obra. Mesmo reconhecendo os múltiplos efeitos ne-gativos sobre a produção oriundos do início de sua fase prolíssío-naZ, a empresa até então não conseguiu processar alguma avaliação objetiva e crítica a respeito do enxugamento teinve/ e das rup-Mras de cadeias instaurado a partir da exigência de elevação donível de escolaridade por parte de trabalhadores/as da cadeia decomando. Ao contrário, na presente década. ainda premida e dessa vez de fomla mais agravada por dificuldades de sobrevivência,ela não só estende tal exigência ao amplo operariado, como seapega à mesma como fundamental à "necessária virada" que ainstituirá, no mercado, como uma wailde empresa pro#ssiona!.

De um outro modo, poderá o patronato, dessa fomla. se apropriar igualmente daqueles efeitos escolares, propriamente nãocognitivos e clue se estendem à disciplinarização dos espíritos edos corpos. Nesses sentidos, a escola é vista pela empresa comosua grande aliada, já que, enquanto instituição educativa, não so-mente pode "instrumentalizar" as operárias de maiores instruções,como principalmente toma-las mais preparadas e sensíveis à es-cuta da batuta administrativa e de controle da produção

A educação, em sentido lato e estrito, toma-se, para a anualproposta de Qualidade Total, instrumento indispensável para sua

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implementação. A par da institucionalização de programas esco-lares que atingem até a quinta série do primeiro grau, a empresaconstitui grupos mUtifuncionais de operários e de chefias, tendo emvista promover a discussão geral a respeito das problemáticas dequantidade e qualidade implicadas nos processos e resultados produtivos. Após mais de uma década deproássionaZlsmo, marcada pelodistar)aumento e fineza dos/as gestores, mas ainda procurando pautar-se desde a lógica da racionalidade, a empresa, através de tais grupos de discussão, encontra, de um lado, uma comia de envolver gran-de parte de seu contingente com sua problemática produtiva. extra-indo-lhes sugestões, soluções, propostas para os problemas detecta-dos. como também íormatando, no operariado aí envolvido. uma sensibihdade para a "seriedade" dos problemas enfrentados por "sua'empresa. Awçiliar na resolução de tais dihculdades, signiãca, portan-to, para o operariado, manter a própria empresa que o emprega. tor-nando-se-lhe, assim, quase (We uma obrigação.

De uma outra maneira. as rupturas de cadeias entre "acadêmicos" e "práticos/as" e, ainda, entre operariado e chefes em geral.podem, nesses grupos poli-hierar(luizados, ser amenizadas, colo-cando-os. face a face, diante de uma problemática aparentementecomum. Obter do operariado uma maior aproximação e confiançarevela-se, pois, como um dos efeitos de tal estratégia educativa grupa], evidenciando que, agora, desde que sob seu pleno controle, aempresa reconhece a importância dos pequenos grupos e das redesintersubjetivas neles criadas para o processo produtivo.

Procura restabelecer, assim, aquilo que há alguns anos destruiu.considerando se, entretanto, que tal resgate só se torna possíveldesde que realizado sob o controle da psicóloga e de outras gerênciasimplicadas em tal processo, as quais, ao fim e ao cabo, selecionam edecidem. junto à Diretoria. quais as novas condições do processoprodutivo. Se, desde a época da profissionalização, as novas gerações de operárias apresentam se estáveis e desapegadas ao traba-lho, trata-se, agora, não apenas de implicitamente ameaça-las coma possbilidade da perda do emprego pela falta de instrução escolar.como de "trazê-las de volta", como nos antigos tempos, em que aempresa se caracterizava como uma alarde Jãmüa.

A reestruturação produtiva implantada nessa empresa no momento da realização da pesquisa não envolveu a introdução de novos equipamentos dotados de alta tecnologia eletrõnica, restrin

findo se aos aspectos organizacionais do processo- Isso revelaque o processo de trabalho encontrava-se e deverá manter-se ainda nas mãos dos operadores/as, resultando, assim. na permanên-cia da dependência do trabalho vivo, característica do caso estudado. Para a empresa torna-se necessário, dessa maneira, reagizar ela própria, por metodologias administrativas/educativas, ocontrole do trabalho operário, que deveria ser conduzido. de oraem diante, não mais sob o pressuposto das clualificações "práticas" dos/as operadores/as. Desde as imposições implicadas nanecessidade de padronização dos métodos de trabalho e de suaposterior repetição contínua com vistas a manter os produtos fa-bricados dentro das especificações internacionais de qualidade,não resta à empresa senão retomar o diálogo com seu operariado, desde bases estritamente voltadas para os aspectos técnicose "produtivos" do trabalho

As expectativas da empresa mostram-se canalizadas para abusca de informações dos/as operadores/as a respeito do trabalhoque executam. sendo-he crucial l;al acesso, tal como expressa mui-to claramente o gerente da Qualidade: "Nó$ estamos descrevendoas instruções de trabalho, que é um dos passos de nosso programade Qualidade. Entreüstas com o pessoa/ para que eles nos digamcomo fazem/ 'Como é que o senhor pega uma máquina, e tal?' Agente estava olhando uma dessas instruções já descritas, e se wuo (manto de üstmções estava ídta/?do naquela operação. Entãoeu parei e perguntei: ' Vocês Imaginem (lue a gente opera, íaz 500,600 toneladas de produto por mês sem dizer tudo o que tem de dizer ou sem treinar tudo o CWe tem de treinarl' Acontece que o produro sai... elas realizam. Fazem o produto do seu jeitos"

Tal fala pemlite perceber que a ênfase da Qualidade Total secoloca nas operações de fabricação levadas pelos/as operáriosExplicita, outrossim, que, ao serem individualmente entrevistados/as, os/as operários/as não fornecem (por não saberem ou por nãoquererem) todas as informações que tomam possível a operaçãocompleta e bem-sucedida. A gerência. logo. desprovida de algunsdesses importantes "segredos", reconhece que as toneladas deprodutos fabricadas são fabricadas, e que elas as operáriasconseguem, mas de seu jeito.

Não se estaria, aqui, reeditando tantas outras crises de conpronto ciência e trabalho, prática e teoria, trabalho manual e tuba

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Iho intelectual? Não se estaria, aqui e agora, presenciando umaluta entre gestores e operários/as pelo controle do trabalho? Poder-se-ia recobrar tais fatos de sentidos políticos entendidos na direção de uma contradominação/exploração do operariado? Esta-ria tão derrotado o poder das trabahadoras diante de tantas entraténias do capital para oprime las? Consegue a empresa, apenaspela atuação das líderes de grupo e contramestres no chão de fábreca, obturar plenamente as porosidades do fluxo produtivo, vistoque as operáüas revelam-se também detentoras do saber fazer?São questões interessantes e que não deixam de conter um certogosto derivado da luta "das vencidas'

traí sua inconformidade com aqueles/as que a responsabilizampessoalmente pelo "abandono" dos estudos pode ser percebidocomo parte de sua mágoa, visto que, sendo a verdade bem outratal operária sente se acusada, quando, na verdade, tornou-sa víuma da pauperização social. No caso, ela não "desistiu e tampouco abandonou" os estudos, mas foi coagida a fazê-lo. E útil,contudo, para também evidenciar, como parte do imaginárioexistente a respeito da escola, a crença, por parte da comunida-de, de sua transcendência social e de sua neutralidade. cabendoportanto, tão somente aos indivíduos o interesse e a vontade parapercorrerem seus caminhos.

Do ponto de vista das operárias, para além das referências queinfomiam sua "preocupada" inscrição nos programas de ensino su-pletivo, pode-se pensar diversos outros aspectos que revelam a for-ma como representam os processos íomtais de educação extemose intemos à fábrica - aos quais se encontram constrangidas.

Tais sentidos encontram-se, pois, devidamente consonantescom o "mito da escolarização", tão apregoado e expandido na sepiedade e tributário das possibilidades de mobilidade social e su-peração da pobreza. Tais como milhares de outros/as trabalhadores/as pobres, tais operárias provêm de famílias que cultivam esseideário. mas que. de acordo com Malta Alice fogueira (1991), nãoconseguem, por sua posição de classe e pela falta do habítus esco-lar, manter a necessária prudmidade com a escola, com os/as professores/as de sua prole, movimentando se com extrema ambigui-dade e desconforto em tudo o que diz respeito à escolarização. Traduzem atitudes contraditórias em relação à instância escolar. por aomesmo tempo não a questionarem como meio necessário para a su-peração das condições precárias de existência e por encontrarem-se'deslocadas" e "pouco iludidas" em relação ao funcionamento daescola. Estando o discurso escolar predominantemente marcadopela valorização de dotes intelectuais em detrimento da inteligênciaprática(tal como na fábricas, parece ficar claro aos pais de tais famílias seu próprio desmerecimento e desvalia frente à escola. Perce-bem se, assim, atingidos/as em sua própria condição de trabalha-dores/as manuais. restando-lhes, sempre que são chamados/aspela escola a intervir no acompanhamento da escolarização deseus/suas filhos/as, desconfortos e, por conseguinte, distancia-mento. De uma outra forma. tais famílias parecem imbuídas de algumes hipóteses práticas indicadoras de que

São íreqüentes, por parte delas, depoimentos acerca da escolae da escolarização e de sua interseção com a carteira operária. Paraa maioria, a interrupção precoce dos estudos levou as ao trabalhofabül, estando subjacente aí uma concepção de escola como possabilitadora de maiores chances conconenciais no mercado de tubaIho. A amargura, que se revela no momento em que relatam e recordam sua rápida e abortada passagem pela escola, pode estar evi-denciando a força de suas expeaativas em relação a uma "bem-sucedida e completa" carteira escolar, como reíletem as palavras deste depoimento: "Eu tinha cinco imlãos. Alguém tinha que ficar coma mãe, porque a minha imlã estava saindo.. . .Acabei ácar2do eu, Ünha crianças para cuidar, tínhamos um mercadinho. a mãe atendia,t:unha criança pequena. A mãe não l=inha mais cabeça nem pala cúdar do amiazém... Então eu üve de desbtir do colégio... e todo omundo acha (lue eu desisti por desinteresse. Mas a verdade é bemoutra. SÓ que isso eu (mero es(tecer..." (operadora da UF).

A vulnerabilidade económica da família, gerando inseguran-ças vitais, atinge, portanto, muitas das famílias de origem dasoperárias, que passam, por imposição, a constranger seu hori-zonte temporal ao imediatismo da sobrevivência diária. Nesseparticular caso, fica claro ter sido "mais fácil" uma das filhas dei-xar a escola do que a mãe deixar de atender o armazém, provavelmente única ou principal fonte da renda familiar. O fato de regid-

as oportunidades de sucesso na escola não se distribuem demodo homogêneo para todos, e de que determinadas formas deavaliação escolar sancionam antes certas habilidades (linguísti-cas e outras) herdadas diretamente do meio de origem do que odomínio de conhecimentos supostamente adquiridos na escolaINogueira, 1991, p. 92)

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Como suas famílias, as operárias também cultivam essas contradições, o que pode explicar os motivos pelos quais, ao mesmotempo que atendem à orientação anual da empresa no sentido decompletarem sua mínima escolarização, também refreiam-se e secontêm nos grupos de discussões instituídos no âmbito da empre -sa e nas entrevistas, nas quais devem relatar. em detalhes, todasas instruções de que se utilizam para tornar possível as operaçõesa elas afetas. Sua contenção pode, por conseguinte, ser entendidacomo estratégias de defesa de seu património social, conquistadono trabalho, único capital que as pode valorizar. De outro modo,parece possível estarem se mostrando reguladas por semelhantesdesconfortos que se expressam nas posturas das famílias pobresem relação às autoridades escolares. O fato das avaliações escritasreferentes aos conteúdos do treinamento básico para o operaria-do. instituído pela empresa no início do programa de QualidadeTotal, terem sido motivos de muitas tensões para as trabalhadoras, levando as a crises de choro e descontrole emocional, podereforçar a idéia de sua repulsa aos hábitos escolares. que nelas nãose incorporaram como herança cultural.

ricas de gestão, que passam, dessa forma, pela necessidade de,segundo Jean Claude Forquin (1992), uma reelaboração dos conteúdos da cultura destinados a serem transmitidos às novas gerações. Os conhecimentos "práticos" das trabalhadoras. seus mo-dos de formar as novas gerações e de controlar. não só a produçãoda força de trabalho necessária à empresa, mas também os própaios resultados do processo produtivo como um todo (quantidadee qualidade), devem, sob o prisma do anual estilo de gestão. seremtransformados, reelaborados, complexificados, reorganizados esistematizados, "de modo que possam ser compreendidos numaética escolar e transmitidos numa linguagem didática" (Louro eMeyer. 1994, p. 170). Tal transposição didática para as práticas ope-rárias mostram-se como sustentadoras do desenvolvimento da ra-cionalidade, eficiência e economia na administração e na execu-ção do trabalho produtivo

Os esforços de escolarização das "práticas operárias" refletem, portanto. a relação causal entre instrução e desenvolvimento estabelecida pela empresa, que coloca a questão da educaçãoe da escolarização de sua força de trabalho sob a influência das'ideologias de desenvolvimento, envolvidas na teoria da 'mover

nização'". Para Elizabeth de Almeida Novo (1990. p. 116), tal con-figuração ideológica supõe que a escolarização significa que, doponto de vista económico, "as pessoas precisam ser alfabetiza-das ou mais 'educadas' para que sejam capazes de manejar maquinaria mais sofisticada mais eficientemente". A instrução,logo, nessa perspectiva, é colocada "como uma técnica para al-cançar um propósito prático

As implicações de tais procedimentos "escolares" no interiorda produção revelam-se para além dos limites da docilização epreparo para o trabalho. Remontam. como se vê, a uma trajetóriafamiliar e escolar na qual foram fecundados as disposições - enternas, duradouras e reguladoras - dos/as agentes em relação às pos-sibilidades de seu destino social. Contudo. não apenas uma espé-cie de capital pode dar conta das múltiplas faces e intercruzamen-tos presentes em tais situações. Torna-se importante, assim, re-gistrar os diferenciais de acesso à escola, segundo o gênero e aidade dos/as filhos, parecendo lógico supor que, na "lógica" quepreside a formação de sujeitos generificados, a carreira escolarnunca esteve e ainda não se coloca, junto às classes sociais destavorecidas, de forma prioritária às mulheres que, ao contrário, seconsolidam como sujeitos sociais "cuidando de crianças e ajudan-do a mãe nos afazeres da casa" . A história dessa multidão de ope-rárias pouco ou nada escolarizados que se encontra na fábrica,apesar de poder conter variações, não escapa, muito provavel-mente. dessa versão que entrelaça ao mesmo tempo seus destinosde classe social e cie gênero.

Assim, essa visão que recobre os sentidos conferidos à educação escolar pelos altos gestores enfatiza a idéia de que "pessoas escolarizadas tendem a ser mais produtivas, são mais facilmente ireinadas e capazes de fixar o que aprenderam mais facilmente (...ylíbidem). Para a autora, tal associação implica, pois, em tomar a espolarização como sinónimo de competência e melhoria tecnológicaque é o ponto principal da teoria técnico-funcional da educação.

Tais idéias, que não reduzem seus efeitos a enviar suas operarias ao ensino supletivo. mas que inventam reestruturar o processode trabalho de forma a reduzir o controle operário sobre o mesmo ea transfere-lo à$ novas gerações, de forma didática e independenteda condução prática operária, não podem ser simplesmente redu-

A introdução e a intensificação do discurso escolar na fábricaé acompanhado, por conseguinte, da "escolarização" de suas prá-

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zidas, porém. às opções da empresa. Elas fazem parte de um ideário educacional que se encontra embutido nos ideais da moderni-dade e modernização da economia. Fazem parte de um coro devozes no qual se íaz presente o poder govemamental e o de outrasinstâncias jurídicas. educacionais e religiosas da sociedade.Produzem e reproduzem. de acordo com Sirva (1994b, p. 131. "umprocesso amplo de redefinição global das esferas social, política epessoal, no qual complexos e eficazes mecanismos de significação e representação são utilizados para criar e recriar um clima favorável à visão social e política liberal'

dos grupos de discussão sobre problemas da fábrica. Assim, noâmago do programa de Qualidade Total. encontra-se a idéia deque "para problemas técnicos, soluções técnicas. ou melhor, soluções politicamente traduzidas como técnicas" (idem, p. 19), ficando, assim, devidamente ocultado o real propósito capitalista da re-estruturação organizativa proposta: conseguir o máximo resultado com o mínimo custo. Se a empresa se mostra "preocupada" emelevar a escolarização de seu operariado. se procura escolarizarseus métodos de trabalho no sentido de uma meJhoda continua eduradoura, tomam-se dificultadas possíveis manifestações operá-rias de discordância. visto tais assertivas fazerem eco também. emsuas suposições, sobre a positividade entre educação e desenvolvimento, esforços/méritos individuais e mobilidade social. E tor-na se em especial difícil quando a proposta de Qualidade aludidanão deixa por menos, ao denominar-se de TOTAL, adjetivo que,mesmo nunca de todo explicitado, presumivelmente parece quedeva incluir "benefícios ao pessoal assalariado

Pensar, pois, o económico. o político e o social fora das calegorjas que justificam o arranjo capitalista serve a propósitos desua ocultação. Lembrando a associação recorrente que existe en-tre pobreza, doenças, atraso e a ausência de controle da fertilidadecom os baixos níveis educacionais da população, pode-se inclusi-ve pensar que, no prometo de escolarização da fábrica, também po-dem estar implícitas. além das intenções de docilização e mordização dos/as trabalhadores/as no sentido de "aceitarem mudanças", tornarem se mais flexíveis e adaptáveis, enfim, como diriaBourdieu, "convertidos/as" à moral dominante, outras intenções,que tendem a restringir e atribuir ao âmbito individual os méritos eos deméritos pela maior ou menor precariedade das condições daexistência particular e social. Aquilo que na verdade pertence aopúblico e ao político torna-se tributo da iniciativa individual. Noções como igualdade e justiça social recuam nesse contexto, cedendo lugar às noções de produtividade, eficiência e "qualidade'podendo, ainda, jogar a grande maioria dos/as trabalhadores/asem um processo de se autoculparem por suas desditas. Para Salva,

Enguitta considera

a problemática da qualidade esteve sempre presente no mundoda educação e do ensino, mas nunca havia alcançado esse graude centralidade. Ela vem substituir a problemática da igualdade eda igualdade de oportunidades, que eram então coringas dessejogo (1994, P. 103)

Para o autor, o discurso oficial responsabiliza a educação tantopelo escasso crescimellto económico quanto pelo desemprego emmassa, insbtindo "pemlanentemente no desgastado problema do'ajuste' entre educação e emprego, entre o que o sistema escolar pro-duz e o que o mundo empresarial requer". Produz se. dessa fobia.este aspecto "educativo" e pedagógico da presente ofensiva libe-

ral pode também escapar àqueles que se concentrarem apenasnas suas propostas explicitamente educacionais, isto é, em suaspropostas para a educação hstitucionahzada. Como nos lembraLawrence Grossberg (.1989), há uma política da pedagogia, mashá também uma pedagogia da política (1994, p. .16).

a mensagem de que o fenómeno do desemprego é culpa dos indi-víduos, os quais não souberam adquirir a educação adequada(. . .)l mas nunca das empresas, embora sejam essas que tomam asdecisões sobre investimentos e emprego e que organizam os procensos de trabalho (ibidem)

As idéias envolvidas no conceito de Qualidade Total estão,desde o exemplo do caso estudado, revestidas de um espírito tec-nicista que se utiliza, ao invés da coerção explícita, de sutis formasde envolver e enganar os/as trabalhadores/as. esforçando se porneles/as incutir um sentimento participativo enquanto membros

No discurso da Qualidade Total fica encoberto, portanto, o isomorfismo entre escola e produção capitalista. visto que, não deixan-do de "ser um setor da produção" (Enguitta, 1993, p. 198), o ensinotrata de produzir, contraditoriamente com seus pressupostos dou-trinários acerca da igualdade. uma força de trabalho diferenciada

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( luo atende. "por um lado. à divisão entre funções de direção e deexecução, com toda a gama intemiediária, e, por outro, à divisãoein especialidades dentro de um mesmo nível" (idem. p. 202).

Dais, torna-se também preponderante às operárias, que, por suposto, tiveram e têm suas trajetórias escolares marcadas e subtraidas pelo modo cultural como foram "feminizadas" e excluídas

Dessa maneira, para além de conformar ao trabalho, à escola édelegada a função de hierarquizar a força de trabalho, mostran-do se, assim, em correspondência com a estrutura do mercado detrabalho. Ao ressaltar a livre escolha profissional e ocupacional porparte dos agentes, de acordo com suas supostas capacidades, aescola capitalista obtém a possibilidade de ocultar os sutis meca-nismos que a atravessam e que, de forma velada, produzem a efe-tiva orientação profissional aos/às futuros/as trabalhadores/as .

Antes de "neutra" e universal como quer se proclamar, a educaçãoescolar é culturalizada e contextuahzada, servindo como suporteindispensável à reprodução das desigualdades económicas e so-ciais existentes. O discurso educativo que associa diretamenteinstrução e desenvolvimento económico e social mostra se per-meado de ambiguidades, não sendo capaz sequer de lidar com asdisparidades encontradas entre o "ideário da igualdade e da livreescolha" e a realidade sócio histórica. Ao colocar a escolarizaçãodos/as trabalhadores/as, de qualquer nível, como precedente aodesenvolvimento económico e social individual e coletivo -, es-barra nas próprias evidências empíricas e históricas, que revelamdisparidades entre nível educacional e nível de progresso social eeconómico. O "mito da escolarização", ou seja, "a idéia de que aaquisição (de instrução) leva à mobilidade social, sobrepõe-se àpobreza e traz progresso. individual e coletivo", é contestado nosestudos de Novo(1990, p. 119), que, referindo-se às pesquisas rea-lizadas por Graíf, no Canadá, conclui "que posições sociais, eco-nómicas e de classe estavam mais relacionadas ao modo como aspessoas se situavam em termos. por exemplo, de etnia, gênero eraça do que à falta de aquisição de alfabetização'

Posso admitir, assim como Louro (1992, p. 63), que o processoeducacional é "um conjunto bastante complexo e contraditório deexpectativas e de atribuições designadas a cada um dos gêneros"(eacrescentaria a cada uma das classes ou ilações de classe e às dizerentes raças). Trata-se igualmente de perceber que, no caso analsado, a socialização dos corpos das mulheres como femininos queprece ter sido a preponderante contribuição educativa demandadapela empresa -, em detrimento dos conteúdos escolares e instrucio -

Se seu retorno à escola e a escolarização de seus modos detrabalhar exigem conhecimentos contidos até a quinta série do ensho fundamental, toma se ainda importante ressaltar que tais conhecimentos, que incluem ler/escrever e contar, fazem parte, nadamais nada menos, daquelas aquisições escolares básicas que estãolonge de "qualificar" e valorizar sua força de trabaho. Esta, mesmose revelando "escolarizada" em tal nível instrucional mínimo exigido, não obtém através dele a condição suficiente para reverter, aosolhos e ao bolso do capital, seu valor enquanto mercadoria, poiscontinuará sendo associada à realização cie trabalhos manuais pou-co ou nada quaMicados, cujo aumento de produtividade se acha articulado predominantemente à duração e intensificação da jornadade trabalho. A possibilidade de redução, portanto, dos tempos soaalmente necessários à produção é que se coloca no âmago da pro-dução cle valor e da acumulação capitalista, que, dessa forma, teráaumentada a margem de produção da mais valia

De outro modo, a massificação do ensino mínimo ocasiona, nomercado de trocas. o rebaixamento do valor da força de trabalhocomo mercadoria, sendo ilusória e enganosa, assim, a percepçãoda "instrução" como favor atuante nos índices de produtividade ecomo responsável pelo aumento de ganhos salariais. Ela pode servista, logo, como uma estratégia capitalista de remeter à escola eaos sujeitos do trabalho as responsabilidades pelo não crescimento estimado do desenvolvimento económico e social. Serve, outrossim, para "sintonizar" a força de trabalho "desescolarizadacom o discurso dos "acadêmicos" que comandam e deliberam sebre as concepções do trabalho a ser realizado

Dispondo-se a empresa, assim, a um aproveitamento ampliadoe massificado do trabalho realizado pelas escolas, no sentido dopreparo básico da força de trabalho, e tal demanda sendo realizadadesde a noção de uma funcionalidade do conhecimento escolarizado, suas propostas educativas, portanto, são indissociáveis das su-posições que articulam educação à capacitação para o trabalho eque a conjugam com um apelo altamente pragmático e utilitarista

O dizer de uma das líderes de grupo da UV, a respeito dos conhecimentos para o desempenho de suas funções, parece não só

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corirlnnar as análises acima realizadas, como aponta para quaseum "faz-de-conta" mantido pela empresa a respeito de suas recenLes iniciativas "educativas" : "Aqui a gente utiliza muito coisas quea gente não aprende no colégio, coisas que não se aprende na esco-la. porque lidar com pessoas, trabalham com pessoas, a gente [emque saber da vida, não é só ensino, matéria, conteúdos. E mais vida,saber como chegar, como conversa, como entender uma pessoa'

Os argumentos contidos no livro organizado por chata, sobreo modelo japonês. em que são analisados, sob diversos ângulos,os impactos das novas tendências de organização e de relações detrabalho, levam-na a concluir, em tempos globais, que

a consideração das relações sociais e dos antagonismos - sobre-tudo o tipo de oposição organizada dos sindicatos e do movimento operário no Brasil à adoção de certas práticas constitutivas do'modelo" japonês pela gerência industrial cria um novo espaçode reflexão sobre os limites à consolidação de novos paradigmasde organização industrial, obstáculos impostos pelas relações so-ciais em vigor (...) (1993, p. 14).

Da mesma forma. no que se refere ao termo TOTAL adjuntadoao programa de qualidade, o gerente responsável pelo processo emesmo seu engenheiro assistente reconhecem que a empresaaplica apenas parcialmente as medidas sugeridas na proposta,desprezando aquelas que circulam em tomo da valorização damão-de-obra. em termos salariais e de condições do ambiente dotrabalho. "A gente se pergunta como uma pessoa aguenta traba-lhar anos a fio com barulho, calor, repetindo a mesma operaçãol Aqua[idade do produto existe e pode ainda me]horar. ]\4as nós nãosabemos bem a rea ção do pessoal que vai ocorrer da(lui pía frente.Até esl:inaamos ({ue, com tantas exigências, ele também vai sermais cobrador de suas condições de trabaho, de tudo aquilo queaíeta a qualidade de sua vida no emprego, porque o pessoal já estáentendendo que sua atual condição de trabalho não gera a (duali-dade; pre/udíca a. A falta de investimentos e retornos materiais di-retos ao pessoal. a imposição de comando que caracteriza toda aimplantação pode causar e já está causando muitos problemaslMluitas vezes sentimos que estamos fazendo de cona com todoesse processo de qualidade'

Parece útil e claro à autora que, diante das poucas e não explícitas respostas às questões ideológicas e teóricas que subjazemao "modelo" japonês, no qual, a grosso modo, pode $er enquadrada a proposta da Qualidade Total, "o enfoque das dimensões nãoeconómicas e não tecnológicas", constitui-se em um importantepasso (idem, p. 18)

4. Nos tempos de uma grande íamüaVenho considerando até aqui as práticas de gestão como edu-

cativas, a partir da extração pontual de questões que, visivelmente,articulam educação e trabalho. Sabendo, contudo, que o âmbito detais práticas se encontra pemleado por eixos estrutwados e estrutu-rantes, toma se importante discutir essas esl;futuras mais amplas,com vistas a ampliar m conespondências de pontos especíâcos daspolíticas e práticas gestoras com os eixos que as estruturaramDessa maneira, como argumenta Enguitta.

a educação pode acabar por se converter numa desvantagempara os empregadores, pois num estudo sobre a produtividadedescobriu-se que o rendimento dos trabalhadores. tal como secostuma entender normalmente, guardava uma relação inversacom sua educação (1993. p. 197).

Para tanto é preciso perconer aspectos da história desse grupoempresarial, que pode ser caracterizada por dois grandes períodos:o primeiro, de 1947 a 1977, marca o tempo desde sua fundação porum grupo económico francês, e o segundo, desde 1977. quandoocorreu sua fusão com outro grupo têxtil nacional, aos dias atuais

Os receios de que o operariado "aprenda as lições do capital"sobre qualidade e quaMicação do processo de trabalho, revertendo-as para seus interesses, colocam a alta gerência da empresaem dúvida quanto aos resultados futuros da aplicação parcial daproposta de qualidade, sendo presumível que esse processo de fa-zer de conta gere outros inesperados e indesejáveis resultados.

Durante os trinta anos iniciais, o capital foi exclusivamentefrancês, sendo a empresa, então. considerada uma multinacionalDesde a fusão, em 1977, o capital foi nacionalizado, restando aosfranceses, enquanto investidores, a licença do uso das duas mar-cas de vestuário anteriormente referidas.

Em linhas gerais, esse primeiro período, denominado por alduns dos dirigentes entrevistados como sendo o da "escola fran

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cesa". é marcado não somente pela posse do capital em mãosfrancesas. O próprio "espírito" francês impregnou a cultura empresarial, assim como relata o diretor industrial: "0 francês comocultura... o francês é uma pessoa mais social. ÉI importante para acdtura hancesa o como é feito'

plementam-se e ampliam-se sem se contradizerem ou negaremumas às outras. Tais evidências levam a pensar que os anos dopassado - o$ "anos franceses" encontram-se como uma pedrafundamental nos registros da memória institucional e sofrem, apartir daí, uma tendência a serem supervalorizados por se en-capsularem em estratégias de glorificação e triunfo. Operam,dessa forma, como uma espécie de divisor de águas, servindo deparâmetro a partir do qual os fatos que se lhes sucedem sofremcomparação, apreciação e julgamento. E possível, ainda, que talglorificação se vincule e intensifique devido às percepções e aossentimentos de perdas vivenciados pela comunidade de traba-lhadores/as desde a instauração do segundo período. denomina-do como o da escola ameíícana.

Franceses/brasileiros, primeiro mundo/terceiro mundo, de-senvolvidos/subdesenvolvidos. operando como pares de oposiçãoe cumplicidade, teceram relações que consolidaram uma espéciede consagração da cultura francesa. Dessa fomla, os iniciais e sub-sequentes esforços empregados na implantação da referida indústroa têxtil são revestidos de sentidos que extrapolam os benefícioseconómicos - como a geração de novos empregos e o alargamentode outros benefícios sociais passíveis de serem auferidos com a am-pliação do parque industrial cio Estado e dos municípios. Eles se tor-nam a pedra fundamental para o culto da admiração e da respeitabi-lidade aos franceses por parte da comunidade interna e extema àfábrica, podendo concordar com Bourdieu (1990) quando diz que acultura que une também separa e que, ao legitimar as distinções,compele todas as demais culturas/subculturas a se definirem porsua distância em relação à cultura dominante.

O que importa, em resumo, é a identificação dos dois períodoscomo parecendo grandes fragmentos históricos: um francês, ou-tro americanos um heróico e bem-sucedido, vigente em temposeconómicos favoráveis às operações têxteis. parecendo podercontrolar e superar qualquer situação adversa; o outro, relativa-mente fragilizado e repleto de buscas de soluções às crises demercado, de conseqüentes oscilações internas, seja de capacida-de produtiva, seja de pessoall enfim. contextualizado em uma rea-lidade sócio-económica em crise. exigente. por sua vez, de enxu-gamentos e racionalizações de custos. Um, voltado para o cresci-mento e para a expansão. enquanto o outro. premido por múltiplosdesafios, dentre os quais a complexificação dos mercados e oavanço da própria tecnologia do trabalho. urgindo controles maisrígidos e cortes calculados

Assim, desde uma grande ]àmüa constituída nos idos de1947. a empresa se transfomla em uma grande ]áblica. que. a par-tir de 1977 e, mais nitidamente, nos anos oitenta, adora rumos ins-pirados na chamada escola amencaila de administração, norteadapelos princípios da racionalidade e do proÍlssíonalómo. Deixa deser a superempresa, confomle as palavras de seu atual diretor in-dustüal. "para transfomiar-se em uma empresa do mercado. A em-presa tomou-se mais profissional. Queria crescer e aí buscou suaprofissionalização e com esta entrou no mercado de salários, in-clusive no de benefícios e no de oportunidades

A empresa, nessa época, era caracterizada como "uma gran-de família". Seu estilo de relacionamento com os/as trabalhado-res/as foi pautado de acordo com o que se possa imaginar ser umamãe brasdeíra. Ou seja, a etnização imputada ao estilo maternalaludido como "brasileiro" supõe uma mãe sempre atenta para asaflições de seus/suas filhos/as, alcançando-lhes audlios de diver-sas naturezas, institucionalizados em programas de benefícios,recobündo a área de assistência social. da alimentação, da saúde,somente para citar alguns. Toma-se curioso que, mesmo em setratando de glorificar aquilo que pertence "aos franceses", no momento de caracterizar a empresa, os depoimentos a qualificamcomo mãe brasileira, dando a entender que a "mãe francesa" tra-taria sua prole de modo diverso. A esse período, conduzido nosparâmetros do conhecido estilo paternalista empresarial, estouchamando uma grande íamüa.

As referências sobre os trinta anos iniciais tomam nos depoi-mentos - a forma de crença condensada na memória coletiva, assumindo feições quase mitológicas. Assim parece pelo fato de queas informações de diferentes fontes a respeito dos mesmos com-

Nas palavras do presidente do Sindicato. a passagem é assimreferida: "A empresa era maÊpaternalista. Então. aw se wvfa em

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u/ila comunidade, numa íamíüa. Depois da fusão em 77, mudouum pouco os critérios. Então a coisa não foi mais paternalistacomo antes. Na minha opinião, o primeiro período, o francês, eramelhor do que agora. A empresa era mais generosa, se conseguiaas coisas mais facilmente do que hoje. Não sei precisar o que mudou. . . Hoje a coisa é mais profissional, não existe mais a quere rela-cionamento humano que exígua antes. Tanto é que no final de ano,antigamente, sempre tinha festinha, uma série de coisas que hojenão tem. Acho que é mais profissional a coisa, entendeu?"

como refere o gerente administrativo, "sempre tivemos uma limoração geográfica. falta de contato com a diretoria societária, conselhos superiores, acionistas. Acionistas nem se fala. porque moravam na França. Eles tinham um representante aqui na Diretoria. (. . . )Houve uma época, mais no início, em que os primeiros diretores da-qui também estavam distantes, porque moravam na Capital e tinham aqui o 'time da fábrica'... Houve diversos choques entre ogrupo de diretores e o 'time da fábrica' quando aqueles começarama se aproximar. Os choques eram no primeiro e segundo escalões

Desse modo, pode-se inferir que os fatos que marcaram osdois períodos da história desse grupo empresarial o francês eoamericano" foram capazes de ]he atribuir duas identidades que,

fundadas em estilos diferentes de gestão, marcaram e marcam indelevelmente as relações de trabalho como a memória e experiênciasde seus agentes. "Antes era uma grande família. Hoje é uma grandefábrica. E uma grande diferença. . . o controle e o tratamento huma-no passaram a ser rígidosl a cultura passou a privilegiar o racional.Esta é a famosa caminhada em direção ao Primeiro Mundos Ela épermeada até de uma frieza profissional" (diretor industrial).

A análise de tais conflitos pode ser avançada através da per-cepção do gerente da Qualidade. que assim se expressou: "Nósnão somos uma empresa sem dono. Somos uma empresa de donopersollücado, e isso eu acho que complica em relação a outrasempresas de porte maior, de muitos acionistas. onde não é pensoniíicado o dono e sim o executivo". Tal iciéía permite, assim, compreender o motivo pelo qual toda a trajetória da empresa e, emparticular. a do período "francês" é referida, seja nos documentosescritos, seja nos depoimentos, a partir de uma sucessão dos nomes de seus dirigentes, que personiücavam/personificam a seumodo, cada um a sua época, os donos da empresa

Os anos franceses marcam a fase da superempresa, que, sefundo alguns dos dirigentes entrevistados, era revestida de "umaaura". tornando-se motivo de orgulho tanto para sua comunidadeinterna como para a comunidade dos dois municípios com osquais interage. Trata-se de um período em que as empresas têxLeis se colocavam, como relata o diretor industrial, como "verda-deiros monumentos sagrados. onde a crise não podia chegará

O ancoramento da história dos acontecimentos na pessoaconcreta do executivo maior presente na área de fabricação veráfica se até os dias de hoje, revelando que os dirigentes ocuparam/ocupam um lugar de muita visibilidade, tornando-se umaespécie de centro ordenador dos esforços coletivos, ao mesmotempo que um alvo, seja de aplausos e reconhecimento, seja decríticas e decepções. De uma maneira especial, os executivos dopassado e os anuais cumprem uma função de invisibilizar os verdadeiros donos do capital, tornando se eles próprios, aos olhosdo operariado. os sujeitos das decisões. os "patrões", implican-do-se, pois, a partir desse suposto lugar, como os principais responsáveis pelos resütados.

Assim é que, entalada pelas tendências económicas estimolantes, como pelos valores do que chamam cütura íÍancesa, entãovigentes, a empresa se constituiu dentro de um perfil diíerenciador:salários acima do mercado, programas de benefícios assistenciaisao operariado e seus dependentes, tendo inclusive criado uma cre-che em seu recinto, antes que tal iniciativa viesse a se tornar deter-minação legal às empresas. Voltou-se, à época, igualmente para ocontexto comunitário maior, contribuindo em "construções públi-cas, corpo de bombeiros. viaturas policiais"(diretor industrial) .

Portanto. o termo dirigente deve, aqui, ser entendido não como o diligente/dono do capital(invbibihzado e distante), e sim comoaqueles/as executivos/as que "fazem a produção andar"(viabilizadoe pró>dmo). valendo se das orientações e normas emanadas dos con-selhos superiores da empresa. A discussão que se propicia diz respei-to à centralização/descentralização do poder diügente, tendo-se veri-ficado que mesmo os/as gerentes encontram-se colocados/as e limijados/as a posições de pouca autonomia

Se, à época. as relações da empresa com sua comunidade in-terna e extema pareciam ser levadas em um clima de reconhecimento, tal não acontecia na própria cúpula da empresa, não sen-do, portanto, os "anos franceses" destituídos de problemas. Assim.

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Controlar quem controla não se constitui, nesse caso, em situ-ação ocasional. Os privilégios da hierar(lula parecem, por tradição,pesar arduamente sobre os ombros de chegas. o que se expressadas mais variadas íomlas, sendo que nos anos franceses isso éexemplarmente ilustrado através da vila residencial situada noparque industrial.

Em um primeiro momento, quando fiquei sabendo ter a fábri-ca possuído uma vila residencial, a idéia imediata foi de que se tra-taria de uma vila operária. Contudo, não íoi essa a concepção daempresa. Os relatos descrevem a vila como um conjunto de 22 ca-sas para residência do diretor industrial, de gerentes da Produçãoe de técnicos especializados- Foi construída (quase que por obrigação. segundo depoimento do diretor industrial, tendo em vistaameníza as distâncias enfie a Capital e a íábHca. visto que naque-la época as estudas eram péssimas, e os trajetos. mais longos.Compunha se, assim, no próprio campo industrial, a chamadavila" . assentando-se nela "o time da fábrica" . composto pela elite

dirigente da planta industrial e suas famílias.

Um regime passível de ser caracterizado como de instituiçãototal, que impunha a seus membros uma intensa articulação entremundo privado e mundo do trabalho. vista como condição impor-tante à contínua consecução das responsabilidades de seus car-gos. Se, para os referidos funcionários, sua residência junto à fábri-ca poderia signiõcar uma extração de mais trabalho, bem comoum estado de pemianente prontidão para o mesmo, além da ne-cessidade de sua dedicação exclusiva à empresa, as residênciasah instaladas, no próprio veneno fabril, poderiam ser percebidas,aos olhos dos/as demais empregados/as, como a constante presença do próprio "patrão", estabelecendo-se, dessa maneira, con-dções para a instauração de um regime de vigilância e controle decomia constante e inintermpta.

(diretor industrial). Pode-se, logo, deduzir que mesmo a camadapertencente ao time da Jâbdca, à época da vila, viu-se recobertapor exigências bastante rigorosas e impositivas, o que implica, porconseguinte, o reconhecimento de que os controladores foramtambém controlados, não se fazendo imunes às exigências da em-presa pelo fato de ocuparem postos de "confiança" e de reconhecêdo prestígio junto ao operariado. A sobrecarga recaída sobre taltime é, segundo parece. ainda hoje uma realidade, e, embora oanual "time da fábrica" não mais resida junto à referida vila - de-molida pela empresa em 1981, após ter-se popüanzado -. ele ain-da é o eleito para ocupar o suposto lugar de "patrão", bem comopara pensar e agir de acordo com suas detemlinações e expectati-vas. A respeito. são essas as palavras do gerente administrativo:'Nesta estrutura seria interessante primeiro analisar o controle...essa mania de controle sobre os meios e depois sobre os resulta-dos... a cobrança é muito dura, e a autonomia que a pessoa temnão é muito grande. Acaba sempre limitada a um orçamento.. . Apessoa não tem autonomia de gastos para chegar ao resultado

Dessa maneira, tanto no passado como no presente, os/as con-troladores/as aparecem como figuras não imunes ao controle, re-caindo neles exigências que, nos anos franceses, se configuravamem sua dedicação exclusiva e integral à empresa, bem como na de-corrente subordinação de sua vida familiar e privada aos interessesda mesmas nos anos mais recentes. se fazem expressar pela perdade autonomia e restrição às decisões superiores. Assim. as anuaisrelações entre corpo dirigente superior e "time da fábrica" parecemconservar elementos de centralização do poder, fato que impõe aosfuncionários/as executivos/as a noção clara de uma dicotomizaçãoentre execução e concepção. Verihca se, portanto, também a essenível, não só a fragmentação do trabalho, como sua própria parceli-zação, sendo que é possível também reconhecer que recaem nes-ses/as trabalhadores/as exigências contraditórias de, por um lado,suportar os desafios de se verem obrigados/as a levar a cabo deci-sões nem sempre acordadas na lógica das necessárias condições erecursos, e, de outro. manter, frente ao operariado sob suas or-dens. uma posição de liderança e de autoridade legítimas. dotadade atributos de onipotência e onisciência

Efetivamente. a vila residencial constitui para os dirigentes,confomle mostra Perrot (1988, p. 61), um dos traços característicosdo patronato patemalista, ou seja. a presença física do patrão noslocais da produção. "visível no projeto de muitas fábricas (... ): acasa do senhor ocupa o centro'

Era voz corrente que "o ponto forte da empresa sempre foi ocontrole. e que a empresa sempre primou. em toda a sua história.por ser extremamente controlada"(e. acrescentaria. controladora)

São úteis, neste momento, as falas de alguns gerentes, como oda Qualidade(antes referida) e as daquele da Produção tanto da

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Ul? como da UV, por revelarem algumas tensões e dificuldades oriundas do intercruzamento que tende a confundir responsabilidadesdo cargo com autonomia para a tomada de decisões: "0 nosso desafio aqui é diários Cumpra o objetivo daquele dia. fazer realmenteas coisas acontecerem... É uma pressão mato grande, porque, alémda pressão de cima, tem pressão de baixo. As vezes, a gente nãotem toda a condição de fazer aquilo que a direção ou o patrão querque a gente faça. Mas a gente tem que fazer. A pressão vem decima, de baixo. do lado. O cargo de gerente é muito pressionado.Olha, eu acho que eu sou o quarto gerente aqui nos últimos 5, 6anos. E bem apertado, é chumbos " (gerente da Produção da UF).

empresarial. "A história relata que o gerente da empresa, no pasgado. encostava seu cano. abria o porta-malas no refeitório da empresa e carregava o que queria. Abastecia sua despensa por contada empresa. Um outro gerente construiu um prédio, e a mão-de-obra foi dos eletricistas da empresa. Os operários também andavam assim'' (diretor industrial). Tais atitudes, seja por parte de ge-rentes. seja por parte do operariado, parecem aí exigir mais do queuma simples explicação. Elas sintetizam, de uma forma especial,aquilo clue a própria empresa tanto desejava: que todos fizessemcorresponder suas vidas com sua fábricas Isto é, comportamentosde apropriação indevida e mesmo de cumplicidade e proteção en-tre funcionários/as parecem decorrentes dos próprios elementosutilizados em seu domínioE. de acordo com o gerente da Produção da UV. quando relata

o episódio de fechamento da unidade-filial que gerenciava no in-terior do Estado: "Assumia fiquei sete anos na fábrica. Fiz um bomtrabalho, montei uma ótima equipes Quando a fábrica fechou, íoium sofrimento terrívell Foi uma das mais terríveis experiências deminha vida... Eu fui informado do fechamento da fábrica em mar-ço. e devia manter sigilo absoluto até o mês de maio. Aquilo nãopodia sair, por motivo de imagem, da marca, para evitar noticiasdistorcidas, repercussões negativas lá fora. . . Então eu tive que seguiar sozinho isso aí.. . por dois meses. sozinho. Eu nunca menti,mas não podia dizer. nunca disse que iüa fechar. Eu era bombasceado de perguntas. Foi muito sofrimento para mim porque euconvivia com pessoas de minha inteira confiança, amigas. e o pes-soal não queria perder o emprego. . . Para mim íoi muito triste, tristemesmo.. . Foi muito difícil. Muitos dias eu tive de ir ao banheirochorar sozinho. Quando chegou o dia da comunicação oficial, eudisse que não comunicada ao pessoal'

Assim, na época em que a üda daspessoas era a sua /ábHca eem que se interseccionavam profundamente os aspectos reproduuivos e os produtivos de suas existências, não é inadequado suporque a "familiaridade" estimulada pela empresa junto a seus/suasfuncionários/as tivesse obtido diversos resultados. parecendoter-]hes estimu]ado também a perceberem sua ]ãbiica como a suaüda. A imposição de uma quase diluição de fronteiras entre esferado trabalho e esfera privada, em especial aos funcionários da vila,tem, aqui, portanto, sua visível expressão. O sistema de trocas entre aque]es funcionários com a sua ]ábnca pode lhes ter servido dejustificativa para tais aros. Se a "familiaridade" estimulada deveriarender benefícios ao trabalho e à produção da fábrica, também elaimpedia que o controle sobre o [írne da /ãbdca assumisse feiçõesrígidas e calcuhstas. Convencidos de que sua üda era a sua ÉãbHca, tais funcionários inverteram a lógica empresarial, dando-lheum novo sentido. então dotado de atributos de uma visível "cobrança" das "dívidas" da empresa para com elesA idéia de que "à época da fundação. a vida das pessoas era a

sua fábrica" (diretor industrial) parece ilustrar de forma perfeitao período em exame, podendo mesmo afirmar que a contrataçãode executivos. nos anos franceses, significava não apenas acompra de sua força de trabalho prevista em alguma jornada. lamuito além. exigindo-lhes que impregnassem/reduzissem suasvidas à sua fábrica.

Caracterizando um período de sobras füanceüas mato gran-des em que, de acordo com o gerente administrativo entrevistado,muitas situações eram abonadas, contemporizava se... vamos dei-xar... e ficava, e, ainda, um período movido pela excelência do espírito paternalista centralizador. no qual a empresa se caracterizava como uma mãe b/asileDa e como uma grande íamdia, os anosde influência francesa parecem ter sido intencionalmente movidospor relações de trabalho fundamentadas muito menos em subsí-dios técnicos racionais, sendo pemleados tanto de uma certa inexperiência do time da /ábdca (o gerente, após o jantar. fazia seu pró

Por outro lado. foram referidos, nas entrevistas realizadas, ouElos fatos que parecem indicar uma espécie de "para-efeito" daimposição de controles e vigilância constantes, denotando, comose verá, efeitos completamente opostos ao$ esperados pela gestão

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paio treinamento operacional junto às máquinas com aw<ílio deuma contramestra) como de relações de trabalho cultivadas a partir do "talento francês" para o bato social. como refere o diretor industrial. nato socfai... como cüz:wa dos #aílceses parece, porconseguinte, ter contribuído enormemente para a caracterizaçãodo período em exame. Parece lógico supor que, para os gestoresfranceses, as exigências sobre seus/suas colaboradores/as deveriamser compensadas com atenções de ordem humanitária, não se torDando possível, a seus olhos, a formação de uma mão-de-obra ex-clusivamente movida por critérios racionais e técnicos .

de sua presença como os legítimos representantes dos "patrões'os quais. não se pode esquecer, estiveram/estão sempre distantesdo centro da produção industrial

Pode-se. a partir daí. visualizar que as políticas de gestão depessoal, à época, não se caracterizaram como secundárias e peri-féricas. Mostraram-se como estratégias centrais na formação damão-de-obra. A empresa, desde seus modos de estabelecer rela-ções de trabalho, seja com altos gerentes. técnicos. seja com ooperariado em geral. anunciava que sua "generosidade" poderiasigniâcar que, quando contratava alguém, requisitava toda suavida e nela se impregnava. Definido como justo e paternalista, operíodo francês é assim descüto pelo gerente administrativo: "Osfranceses influenciaram muito com relação ao método de traba-ho: fobias não participativas, uma orientação sempre fimle decima para baixo, a ponto de o pessoal dizer: a empresa é uma mãebrasi[eira[ e muito justos os seus patrões]"

Tanto o üme da ]âbãca como o operariado em geral foram,contraditoriamente. alvo de uma percepção patronal assistencia-lista, que tem seu substrato exatamente no balanço equilü)ladoentre a consciência de dominação e de exploração e a necessida-de de garantir as condições de sua sustentação. Docilizar as von-tades, captar os interesses, tomar cúmplices os/as dominados/as/explorados/as. se constituíram em intentos visíveis que deram suporte à implantação de estratégias de inculcação e de cooptaçãode uma força de trabalho da qual seda. como realmente foi. exigida que sua üda fosse a sua /ãbHca.

Depreende-se. dessa íomla. que uma de suas importantes es-tratégias de formação e de educação da mão-de-obra em geralfundamentou-se nos pilares de uma gestão patemalista atravessada por múltiplas contradições, a qual. contudo. possibilitou setransmutassem os sentidos tanto da "generosidade" como da ca-pacidade de controle empresarial. O empreendimento da obra as-sistencial aos/às funcionários/as e íamihares(transporte, refeitó-óa. creche, assistência médica e odontológica. cooperativa de cré-dito e de consumo, atividades esportivas e de lazer). a cedência deresidência e assistência integral ao corpo gerencial e técnicos es-pecializados. bem como alguns cuidados sistemáticos em perso-nalizar os contados com o operariado, confomie relatos que regiatram que o "patrão" entregava o envelope de pagamento direta-mente ao/à empregado/a, que todas as manhãs ele descia e circu-lava na fábrica, cumprimentando um/a a um/a. tomam evidentesos esforços daqueles gestores em "conquistar" o operariado e deleobter, além de seu trabalho, seu reconhecimento, sua gratidão eapego. A capacidade de convencimento e mobilização aí embuti-da tomava mais fácil a extração de mais trabalho, como claramen-te ilustra a seguinte fala: "0 Dr. Fulano revolucionou isso aquil Eleera incrível pra trabalhar com a gentes E7e te fazia üabahar, maseJe te fazia senta bem. A gente fazia a coisa com amor, que hojeem dia tá bem diferente a maneira de trabalhar. Ele induzia a gentea fazer o trabaüo com prazer"(supervisora da UV).

Assim, o que se evidencia com feições "humanitárias" e mesmo "justas" pode igualmente ser entendido como um comporta-mento patronal de dominação, derivado. quem sabe, da própria vi-vência dos gestores hanceses de então, que, no Primeiro Mundo eem especial na Fiança, seu país de origem. puderam conhecer,observar e tomar consciência da força da resistência operária, des-de que ela encontre as condições para sua manifestação organiza-da. Se era evidente a seus olhos que a massa de mulheres contra-tada para os quadros da empresa era desqualiücada e desvalida,nada mais oportuno do que, ao invés de qualiücá-la, Ihe fossemsupridos/as cuidados e necessidades prünários/as, como se constituindo num paus da generosidade de quem já lhes dera a oportu-nidade de trabalho assalariado.

Para o time de /ábdca a situação não se diferencia muito.Embora não premido por necessidades de sobrevivência como ooperaüado, era-lhe exigido o "máximo" através de seu confina-mento ininterrupto à empresa. Nada mais "justo" que os controlessobre suas condutas se tomassem mais "frouxos". como forma inclusive a conferir coerência, em suas mentes, sobre importância

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Por outro lado, e procurando avançar para outro aspecto damesma análise, me parece importantíssimo ressaltar que. sendo amão-de-obra da empresa predominantemente constituída de mu-lheres, as quais, à época, foram retiradas da üuüZídade, não seriamelas alvos fáceis para a tarefa de conquista da gestão empresarial?Percebidas como desqualiíicadas, com baixa ou nenhuma escola-ridade, oriundas de camadas pobres e socialmente marginalizadas, moralmente atingidas com a pecha de serem tão-somentedonas-de-casa ou "putas", as "inúteis" sociais encontram final-mente sua redençãol A dominação/exploração a que ficaram sujei-tas no trabalho fabril e assalariado tornam-se subsumidas sob aaparência de uma "boa ação social" por parte da empresa. Os res-ponsáveis por tal oportunidade de emprego, bem como por seuposterior gerenciamento, como se viu, são, diretores e gerentes.todos eles homens. Como poderiam vir a ser percebidos por essasmulheres, a não ser como espécies de "deuses"? A eles, elas "de-viam" muito. Não apenas o emprego, a ampliação da renda fami-liar, a inserção no mercado de trabaho de forma socialmente acei-ta. Elas lhes deviam sua própria honra e a recuperação de sua des-valorizada imagem social. A fábrica, para elas, erigia-se como achance social de aquisição de uma nova identidade - a de tubaIhadoras -, como de um novo modo de viver. Poderia pensar quese erguia com a força de um templo, no qual encontravam "prote-ção" e assistência e no qual reverenciaram os "deuses'

Homens qualificados e poderosos de um lado, mulheres po-bres, desqualificadas e socialmente marginalizadas, de outro.Não estariam presentes aqui as melhores condições para a celebração de uma espetacular aliança entre dominação e explora-ção? Certamente que sim.

E, mais. o que se sabe é que tal modo de afetar as mulherespassou a ser divulgado pelas próprias operárias de então, clue co-meçaram a trazer seus/suas parentes, amigos/as e vizinhos/aspara concorrerem às vagas disponíveis, formando-se. na empresa,verdadeiros grupos de familiares e afins. Desde então, a práticamais usual de recrutamento de pessoal é a de circulação intemade avisos sobre as necessidades de pessoal.

vam a mão-de-obra, esta, por sua vez. não se constituía apenassob o controle do "patrão" . Escolhas e indicações pessoais pode-riam se revelar como importantes elementos de cumplicidadeentre os/as operários/as e se tomarem, assim, importantes obstáculos ao controle gerencial. As redes de parentesco e de ami-zade existentes entre os/as trabalhadores/as certamente tornaram se incómodas à vontade gerencial. fazendo com que, tem-pos após, se redistribuísse o pessoal com vínculos familiares, nãopermitindo sua convivência na mesma área de trabalho. Assim, ocontrole tão apregoado na filosofia da empresa - pareceu aí encontrai dificuldades- Quando imbricado exatamente com a aquichamada "generosidade" , forja sua própria armadilha, não conseguiado realizar-se de forma direta e simplificada, uma vez queopera em uma faixa de sintonias nem sempre passíveis de seremunificadas em uma única relação

5. Nos tempos de uma grande empresa: da Proãssionalizaçãoâ Qualidade Total

O fato fundador do segundo período da trajetória da empresaestudada encontra se em sua fusão com outro grupo industrialtêxtil do País, nos idos de 1977. A empresa adora a escola avencana de a(]ministração, da qual passa a extrair os princípios de suagestão. Nas palavras do diretor industrial, escola ameiícana signi-fica. antes de mais nada. proássíonaifzaçâo e racionalização.

O ano de 1980 íoi tomado como a referência inicial desse pedíodo. visto nele terem se explicitado os novos critérios de gestão,através da introdução de novas políticas, que se fizeram sentir demodo concreto sobre a produção e pessoal da empresa

Os acontecimentos suscitados desde então permitem definirdois momentos/duas fases no transcurso dos "anos americanoso primeiro, explicitado em 1980, aqui denominado de "o início deuma grande fábrica" , e o segundo, que abrange o ano de 1991 atéos dias anuais, aqui chamado "em busca da Qualidade Total"

Na primeha fase desse período, a empresa "quer crescer e então busca a sua prolíssionaiização. Com a profissionalização, elaentrou no mercado. Começou a se preocupar com pessoas melhores, técnicos melhores. Continua pagando bem. continua atrativovir para cá. Passou a dar benefícios melhores, não salários melho

Formava-se. outrossim, de forma contraditória, um modo e$pecífico de relacionamento do operariado entre si e deste comos/as gestores/as. Se, de um lado, as operárias atraíam e convoca

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res, mais benefícios. de médicos, dentistas, transporte, refeitório'(diretor industüa[). Ta] fase deconeu em tempos económicos considerados favoráveis às operações têxteis. tendo a empresa semostrado ainda lucrativa e rentável.

da adoção do princípio da proííssíonaZízaçáo. ou seja, a utilizaçãode mão-de-obra qualificada e escolarizada no$ cargos de diefia eda renovação do operariado "velho e experiente" por uma geraçãode jovens "instáveis" e desqualificadas para o trabalho têxtil';m -

plantou decisões que marcaram o período em análise. não sópela "redução drástica de custos, para viabilizar a competitMda-de da empresa", conforme relata o gerente administrativo, comopelas mudanças no próprio modo de relacionamento até' entãoinstituído entre o operariado e empresa, como atestam os se-

uintes depoimentos: "Até o relacionamento ficou mais profis-sional. mudaram as relações, a própria afetividade. que antes eramais espontânea. Agora tudo é mais calculista, mesmo as rela-çoe$ interpessoais" (gerente administrativo). E, nas palavras deuma das antigas contramestras da UV, "não éque hoje em dianão se valorize o operário. ma$ hoje em dia a direção já se colocaem outra posição. Apesar de exigirem muito a produção e a quali-dade,elesestãobemmaisdistantesl" ' ' '"''

As mudanças introduzidas pelos "novos patrões" não pare-cem condensadas. dessa vez. visto terem sido encontradas discre-pâncias entre os depoimentos da maioria dos/as anuais entrevista-dos/as, com os registros observados nas fontes documentais. emespecial nos do BoJeüm ]nfom)alvo do grupo empresaria]. Assim,a reportagem comemorativa aos dez anos da mencionada fusão,intitulada "Soma de Talentos" (BOLETIM, íev./mar. 87. p. 6/7), revela um modo de ver bastante otimista e até triunfalista a respeitoda nova gestão empresarial. Os depoimentos "dos/as antigos/asde casa". ou seja, dos/as que vivenciaram a transição, não se revestem de igual entusiasmo, sendo que para o gerente administra-tivo constituiu-se, desde a fusão, uma etapa ftzZi71hazlte da qual "aempresa se ressentiu muitos Essa etapa, que chamo de profissiona-lizada". diz ele. "é por causa da tentativa de utilizar mão-de-obraqualificada nos cargos de gerência e supervisão. Houve cortes deníveis. Os profissionais. teóricos da faculdade, de repente estão co-ladinhos num cara de execução, quando antes tinha o operário, ocontramestre, os monitores. .. Várias cadeias foram quebradas. . . Oatrito entre os dois extremos começou a ser violento'

Os anos "americanos" definem, pois, um novo perra para a em-presa, que não se coloca mais sob o signo de mãe bíasdeíra e tam-pouco como roomumentosawado, onde a czísenão chia. Impulsio-nada pelo desejo de expansão e premida pela necessidade de tomas-se competitiva, toma-se broa empresa do mercado, abrindo-se àhomogeneização com as demais, parecendo mesmo condenar a an-tiga concepção de empresa como uma mande ]ãmüa

Para sinalizar "o início de uma grande fábrica" , promove gran-des rupturas, as quais se estendem àqueles aspectos que consti-tuíram, por mais de trinta anos. a identidade do período anterior.sob a gestão dos franceses. As redes de parentesco. até entãoexistentes na fábrica em geral, passam a ser controladas. e as re-lações familiares durante o trabalho, em uma mesma seção. pas-sam a ser vistas como inconvenientes. A vila da fábrica é demoli-da, visto que nesta época já se "popularizada", ou seja. não maisabrigava o time da ]ãbdca, servindo de moradia. conforme relatao diretor industrial, a 'um supervisor, pessoas da segurança, al-guns mecânicos, operários

Preocupações da empresa com as reivindicações trabalhistase com a movimentação dos sindicatos passam a orientar as políti-cas de recrutamento e colocação de pessoal. bem como as de be-nefícios, consagrando-se assim uma nova fomla de estabelecer os

De sua parte, o anual diretor industrial, que não vivenciou agestão "francesa" , mas cuja contratação. em torno de 81, foi reagizada dentro do espírito empresarial de profissionalizar, tambémreconhece o aumento de problemas desde que "decidimos cortaruma linha do organograma. Fez parte de um enxugamento terrí-vel. O corte foi feito numa função que existia de primeiro operá-rio. A estrutura era assim: gerente, supervisor, contramestre.primeiro operário. O primeiro operário é líder. E os primeiros desta empresa eram quase todos mulheres. Poderia ter na épocaumas oitenta, cem funções de liderança que eram de muheres.tinham salário diferenciado. auxiliavam diretamente o contramestre e mandavam nos grupos volantes. Desde aquela épocanós temos dificuldades.

De um outro modo, tais acontecimentos já foram aqui extenlamente analisados, cabendo, ainda, contudo, enfatizar que a em-presa, através da introdução de novos equipamentos produtivos e

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acordos e contratos de trabalho. dessa vez regidos por maiores cau-telas com as implicações legais deles deconentes- As relações deconfiabilidade" e de "íamiharidade" não se mostram suficientes e

tampouco proeminentes. O efetivo da fábrica se renova, dando lugar a uma nova geração de operárias e operários que, apenas seestabilizando após dois, três anos de trabalho. se torna, segundo odiretor industrial, responsável por um "turnover assustador: 50%,60% ao ano. ]yo passado, até a época em que eu entrei. em 1980,por aí. as operárias eram aquelas senhoras gordas. que arrastavamseus chinelos por aí. Analíabetas, mas exímias operárias têxteis l

As novas gerações são muito instáveisl'

O saber operário, conquistado pela primeira geração do opecariado. começa, a partir de então, a ser visto como insuficiente e,talvez, pouco rentável, engendrando, segundo parece, a mais violenta mudança instituída. As redes de relações estabelecidas nosmodos de trabalhar entre operários/as e a cadeia de comando érompida com a introdução de pessoas melhores, técúcos mais es-peclabzados, que se colam aos/às operáüos/as, até então detento-res da capacidade de levar a ]ábHca de íomla fantástica.

O conhecimento escolarizado torna-se requisito fundamentalaos postos de gerenciamento e liderança da produção, originan-do-se. daí. conflitos que expressam a luta entre capital e trabalho,no sentido de aquele apropriar se dos conhecimentos práticosdos/as produtores/as para vil. a transforma-los em subsídios à nor-matização e ao disciplinamento do trabalho industrial.

Reflete-se aí, sem dúvida, a consagrada divisão do processocapitalista de produção entre trabalho manual e mental. bem comoa inconfomiiclade, por parte dos gestores. em deixar a liderançadas operações e as mesmas propriamente ditas em mãos operá-rias, o que significa não ter sido possível ao capital consumar, nes-se local, a submissão real do trabalho.

direcionando-os, conforme dito pelo diretor industrial, de umagrande íamüia para uma grande fábrica.

A incapacidade por parte da empresa de fixar a nova mão-de-obra, que se mostra instável e ainda desquahficada, do ponto devista das novas exigências gerenciais para a execução das opera-ções têxteis. a ênfase na quaHicação e preparo da equipe de comando e a falta de tradição de treinamento ao operaüado, aliadastanto ao estabelecimento de políticas de pessoal não diferenciadas das então vigentes no mercado como à suspensão dos antigosmodos gerenciais e operários de "levar a fábrica", expressam-secomo grandes rupturas estruturais e culturais, que passaram a seexpressar no aproMndamento de fendas e no acirramento de opo-sições entre gestores e operários/as e. mesmo, entre os diversosníveis de gestores

Saber operário X conhecimento acadêmico. treinamento emação no chão de fábrica - X treinamento escolar, relações deparentesco X relações de trabalho, relações de confiança e per-sonalizadas X relações permeadas pela Jheza proássuona/ e peloanonimato se explicitam. então, como pares em oposição, nevelando que, para além de "reestruturar" a fábrica. foi necessáriotambém destruí la

O comportamento operário passa a se manifestar através deoutras linguagens que não aquelas que haviam predominado noperíodo anterior. Fazem-se ouvir as linguagens do tumover e dasreivindicações, evidenciando-se importantes quedas da produçãoe da qualidade. Instauram-se metas de produtividade e os respecuivos mecanismos de seu controle

O operariado é atingido em sua base de organização, ten-do-se-lhe diminuído, a partir de então, as chances de certa autonomia e do poder aí passível de estarem implicadas. Revela-se osten-sivamente a fenda matricial da instituição capitalista: a separaçãodos/as trabalhadores/as, não apenas dos meios de produção. mastambém de seu trabalho, que começa a ser gerenciado de maneira'científica", tal como apregoada e o fizera Taylor, nos idos do início

do século. A fábrica mostra-se claramente constituída por duas im-portantes orações: a dos/as gestores/as e a dos/as operários/asConho)a, a partir daí, que $e apare]ha como uma grande ]ábãca

A passagem para a segunda fase do período dos anos "ameri-canos" , aqui denominado "em busca da Qualidade Total", dá-se a

Máquinas de alta produção, capazes de expropriar do operaria-do a capacidade de controle dos ritmos e tempos produtivos, ca-pazes ainda de Ihe exigir novas qualificações e de considerar supenadas as anteriores, associadas a uma renovação do quadro degerentes e contramestres, à extinção do cargo de primeira operaria e à quase total masculinização da cadeia de comando, consti-tuíram os grandes alicerces para orientar os destinos da empresa,

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partir de 1991, quando "termina outro tempo" , segundo o diretorindustrial, "com essa queda geral da economia brasileira, com aabertura do mercado, uma série de outras coisas... temiinou otempo onde era altamente rentável a operação de fiação, têxtil".

quina" (engenheiro da Qualidade), procura operacionalizar abordagens de aprudmação com o/a mesmo/a. Contudo, vai encontraí dificuldades para que tal aconteça, em função do distancia-mento, da frieza e do anonimato que caracterizam as anuais leiações de trabalho. Chefias e operariado pouco se encontram e me-nos ainda conversam, pois, segundo o gerente da Produção da UF'nós, gerentes e supervisores, não temos um contato muito íntimocom o pessoal. O próprio contramestre pode ter oitenta subordinados. Certamente ele não conversa com uma mulher, passa ummes sem conversar com a pessoa, por que como é que o cara vaiconversar? Um minuto por dia que ele fosse conversar com cadauma, já tinham passado as oito horas de trabalho deles Tem novataaqui que eu não conheço, nunca conversei. O supervisor tambémacho que não. O contramestre é que pode conversar um pouco. Asvezes, a pessoa entra e eu vejo porque pego o papel e vejo a mu-lher trabalhando. Não sei o nome dela, não sei nada dela

Na busca por garantir e ampliar sua inserção no mercado intemacional, a empresa üabaüa muito forte nessa mudança, quese assenta primordialmente em processos educativos e de reengenharia que "visam mudar totalmente a espinha dorsal da empresa,desde o executivo maior aos/às produtores/as diremos/as" (engenheiro da Qualidade). Para o diretor industrial, "desde então existeuma outra empresas Os controles são mais rígidos, o tratamento émais rígido, e, para equilibrar isso, nós introduzimos, na fábrica,programas de desenvolvimento e de relações, como os nossosgrupos de discussão. O mais importante em tais grupos é abra umcanal de comunicação, ou seja, que os operários tenham a cora-gem de fale para (qualquer chefe. gerente ou diretor. o que estãopensando. Funcionou e está funcionando extremamente bem. Temos cerca de 350 pessoas envolvidas nesse processo.

A necessidade gerencial de tudo saber e tudo ver, sua determi-nação em operacionahzar os diversos passos previstos nas cartilhasdos programas de Qualidade Total, a implementação vigorosa, enfim, do que denominam de Éezzamentas da modernidade, encon-tram se afinadas com o objetivo de modemização da própria em-presa, pois, como diz o engenheiro da Qualidade: "Conceitos anti-gos estão enraizados. então vai entrar a reengenharia,(}ue é umacoisa muito forte. que mexe com a estrutura total da empresa

Pode-se assim perceber que, nos últimos anos. a empresa, diante das pressões de um mercado regulado por mecanismos enternacionais, trata de enrijecer seus controles e de conquistar o idealde vir a se constituir em uma grande ]ábdca. Nesse momento. depara se com uma espécie de perda da ilusão até então cultivada edeixada obscura: percebe que. apesar dos esforços e recursos empregados em maquinaria modema e reestruturações da cadeia decomando, ainda reside. no operariado, uma espécie de poder queela não conseguiu extinguir. Desde o fato de que as operações têx-teis não são plenamente automatizadas, exigindo, portanto, a participação dos/as produtores/as e de seus saberes, os/as anuais gesfores/as reconhecem estarem conservados e atuantes, no atualprocesso de trabalho. importantes elementos de controle operáriosobre a produção. O "resgate" de relações mais pró>dmas e a estámulação à participação do operariado através dos grupos de dis-cussão mostram-se como estratégias da gestão que visam conquistar a confiança do operariado, Faia conhecer o que pensam e,certamente, como "tocam a produção'

Depreende se daí que a busca da Qualidade Total significa,inclusive, mudanças das antigas concepções administrativas eque, "como de praxe, todo o sistema de qualidade começa pelacúpula. Ou seja, tu amimas a cabeça pra depois começar a descerO processo de qualidade formalmente é uma cascata

Diferentemente do período anterior, as relações com operaria-do parecem, hoje, revestidas de maior consciência por parte daadministração, no sentido de não prescindirem da colaboração edo saber operário, este adquirido no cotidiano das operações e re-gulado por favores, na maioria das vezes, não acessíveis à cadeiaformal de comando. A cooperação e a experiência do operariado.nessa fase, são reconhecidas como úteis à administração da produ-ção, e, mesmo que tal valorização não reverta em ganhos salariaise outras conquistas e recompensas para o operariado, este é per-cebido e reconhecido como detentor de um potencial sem o qualos/as gestores/as não poderiam implementar seus intentos

Nota-se. a partir daqui, que a administração da fábrica, ao reconhecer a importância que recai sobre o/a operador/a, visto/acomo "responsável por toda a observação da operação e da má-

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Entendendo que qualidade não se aplica tão-somente aosprodutos fabricados, mas especialmente aos processos de fabricação, ao como é jeito. e que uma das características marcantes de talmodo de produzir não prescinde da mão-de-obra, supondo se, porconsequência, sua participação no processo de trabalho, bem comosua requalüicação, é impraticável a operacionalização da propostade Qualidade Total sem que se englobe os /ecuísos humanos.Como é que nós vamos fazer qualidade sem recursos humanos?".

pergunta, afimiativamente, o gerente de Produção da UF.

que vai acontecer daqui pra frente. Alguma consequência a genteaté pode estimar, de que o pessoal agora vai ser mais cobrador desua condição de trabalho... E esse o receio do que vem por aíl"

Nesse mesmo sentido, complementa o gerente administrativo: "Essa alteração nas relações humanas que temos agora, esseestímulo à participaçãol No fundo, o primeiro efeito é para o bolsodo patrão. isso é pacíficos A gente não pode esquecer que poderiater um efeito indireto, de melhoria da qualidade de vida do empre-gado. Mas esse retorno para os empregados é muito longo e, àsvezes, inexistentes E as pessoas podem vir a se conscientizar e sedar conta. . ." E. para o supervisor da Produção da UF: "No ano passido, a empresa teve um ano muito bom e não deu nem uma cestade Natall Então o meu contramestre me disse: 'Como é que a gente vai se motivar com uma empresa que não dá nada pra gente?AÍ. eu disse: 'Olha, do ponto de vista da empresa, eu não posso fazer nada. O meu poder é o mesmo que o teu nisso aí

Nesse sentido, as preocupações dos gerentes responsáveispelo processo fazem-se sentir de modo agudo, pois reconhecemque nada ou muito pouco $e tem feito a este respeito. "A gente nãoestá abordando o aspecto humano. . . Ainda que tudo se implementeou venha a se implementar e que se saiba que tudo passa pela cons-cientização e pela educação, nada se tem feito neste aspecto. Atése ensaia alguma coisa, como, por exemplo, proporcionar estudopus pessoas... Mas não é tradicional na empresa olhar a qualidadede vida no trabalho. Não que se trate de uma empresa que não tenha benefícios. Tem bastantes e bons; mas olhar o dia-a-dia daspessoas. o local de trabalho, temperatura, ruídos... Não é uma coisatrabalhada com a intensidade que deveria. Evidentemente, issoexige vontade e investimentosl " (gerente da Qualidade).

Dessa forma, expressa-se, nos gerentes e em outros escalões,uma certa inconfomlidade para com a cúpula dirigente da empresa,revelando-se tensões em seu relacionamento com a mesma. Reconhecem as dificuldades de interlocução, tomando claro que ainda éo estilo empresarial atravessado pelo autoritarismo dos superiores,pela instabilidade nas relações de trabalho, pela falta de constânciae coerência nas propostas. De um outro modo, l;al inconformidaderevela-se bastante distante de uma profunda crítica ao sistema capitalista de produção, já que parece, de acordo com as palavras dosupervisor entrevistado, ser uma cesta de nata/ estímulo suficientepara restabelecer/manter a motivação e o entusiasmo do operariado, bem como para evitar suas possíveis reivindicações

A tradição paternalista da empresa, caracterizada pela ênfasenas figuras dos dirigentes e pela falta de investimentos na qualifi-cação sistemática do operariado, ao qual "assiste" como desvalido, parece aqui, nestes atuais tempos, gerar uma importante contradição. A anual geração de gerentes, em sua ampla maioria com-posta de engenheiros, vê-se pressionada a tornar concretas asmedidas deliberadas pelos conselhos superiores do grupo empre-sarial, ao mesmo tempo em que é defrontada com os desafios eobstáculos da produção diária. Situados num lugar de chefes dis-tantes, percebem a existência de uma parcialidade nas exigên-cias, que se diügem, unilateralmente, ao "pessoal da fábrica" , semque se lhes sejam atendidas questões básicas de qualidade devida no trabalho. A permanência de condições adversas à saúde, àsegurança e ao bem-estar do operariado pode vir a criar, segundoopinião do gerente de Qualidade. um efeito inverso, visto que aslições" a respeito de qualidade, uma vez aprendidas pelos/as

operadores/as, poderão vh a fundamentar suas reivindicações so-bre melhorias nas condições de trabalho: "Não sabemos bem o

Do conjunto de tais considerações, faz sentido examinar aquestão dos novos paradigmas organizacionais, não só a partir docontexto fabril, mas desde a pluralidade de racionalidades quepemieia o tecido social e cultural mais amplo. A articulação empresa e sociedade permite visualizar que as características autori-tárias e predatórias da sociedade como um todo se manifestam dediferentes formas nas instituições sociais. A inserção de tais insti-tuições (empresas e escolas, por exemplo) na ordem fornecida pelos "novos" modelos propostos, recoloca e recria, de forma muitasvezes mais elaborada, a perversidade implicada no ordenamentoda sociedade capitalista. Tais modelos encontram-se. portanto.

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longe de terem seus "méritos" considerados, como referem algunsautores, pela maior ou menor amplitude de aplicação de seuspressupostos. Eles refletem as necessidades oriundas do movimento da própria acumulação capitalista e dela são frutos diremos.não estando, como se quer fazer pensar, voltados para a busca dobem-estar social e coletivo'

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1{co e a fragmentação/desqualificação do trabalho (Brigton, 1991) -nelas se inscrevem de forma vigorosa, sendo importante ressaltarque as "mudanças" já efetuadas na empresa e outras ainda em im-plementação deveriam ser questionadas a partir do que HenríqueRattner (1994, p. 77) denomina de "qualidade da cultura" . Ou seja,que os fatos ocorridos no interior de uma organização. seus movimentos e flutuações organizativos/as não podem ser compreendi-dos/as e analisados/as como se a empresa fosse "a única ou exclusova determinante de uma tendência histórica e social muito maisampla e geral"

Dessa maneja. a campanha ideológica pela qualidade desen-volvida na empresa não pode ser vista como mudança da conaciência social dos dirigentes e donos do capital. Fundamentan-do-se em estratégias de e/2xugamento e redução de custos, combaixos investimentos em capacitação tecnológica, as estratégiasimplantadas pela empresa, além de manterem concentrado o po-der na cúpula diretiva, conservam ambiguidades e contradiçõesem relação a seus objetivos. Fazem colidir, em seu interior, porexemplo, tendências opostas. como a de buscar estabilizar a mãode-obra através de treinamento específico e a de manter uma polí-tica sazonal de aproveitamento da mesma, o que se constitui, emsi, em fatos altamente estimulante à rotatividade no emprego-

Assim, as inovações tecnológicas, como as reestruturaçõesprodutivas verificadas na empresa, encontram sua lógica derivadade um contexto social, político e económico marcado pelas crisesfinanceiras. sociais (conflitos entre capital e trabalho) e de merca -do (concorrência intercapitalista). Mesmo que considere que foram introduzidas algumas máquinas de alta velocidade no âmbitoda produção. é preciso reconhecer que as inovações propostas referem se muito mais aos aspectos organizacionais do trabalhoverificando-se, pois, na fabricação, a permanência de processosde trabalhos convencionais, com pequeno conteúdo inovativo

As práticas adotadas parecem revelar uma disposição apenasparcial para a "modemização"(no que diz respeito aos interesses daacumulação capitalista). O uso predatório da força de trabalho émantido como uma constante, seja por seus baixos salários, sejapela possibilidade de que a mesma se veja dispensada a critério daempresa, independentemente de seu empenho e dedicação. As po-líticas de estabilização e envolvimento da mão-de-obra contrastam,não apenas com a íragihdade tecnológica da empresa, mas igual-mente com seu próprio processo de trabalho, no qual prevalecem afragmentação e a constituição de postos com tarefas simplUicadas.

O importante questionamento de Rattner (1994, p. 12) sobre aimpossibilidade de se falar de alguma "modernização revolucioná-ria" fundamenta-se na idéia de que todos os processos de modemnização empresarial já realizados são conservadores e arl;icula-seao pensamento de Tomaz Tadeu da Salva (apud Celso Ferretti,1994, p. 14), quando este argumenta existir uma tendência de serestringir o debate a uma definição exclusivamente fisiológica etécnica, minimizando-se os elementos sociais e políticos aí en-volvidos. Para o autor. as inovações tecnológicas e organizadonais, bem como seus derivados em tempos do possível alargamen-to da base de aptidões envolvidas no processo de execução, "nãosignificaria, de modo algum, que se tenha ultrapassado a barreirada separação socíaJ e política entre concepção e execução, entretrabalho mental e manual"

Assim. parece fazer mais sentido falar, de acordo com MarcoAntõnio de Oliveira (1994, p. lO), "de um processo de desestrutu-ração do que propriamente de reestruturação do processo produti-vo" , visto que a empresa não se afasta da tendência geral verificada nas empresas brasileiras de realizar transferências muito parciaisdos novos paradigmas do trabalho. A inserção das empresas emuma nova ordem, de acordo com Saem (1994), dá-se de forma per-versa, uma vez que a transferência de possíveis ganhos salariais epolíticos aos/às trabalhadores/as continua lhes sendo sonegada.As leis imanentes ao processo de trabalho capitalista a divisãoentre trabalho intelectual e trabalho manual. o controle hierárqui-

A expressão de uma grande fainíba para uma grande fábrica.que orientou o desenvolvimento de uma trajetória de quase meioséculo dessa empresa, a partir do conjunto da discussão realizada,encontra agora sentidos mais precisos. Assim, a caracterização daempresa, seja como família, seja como fábrica, diz respeito, prefe-

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rencialmente. a seus diferentes modos de gerenciamento da mãode-obra, falando, portanto, de formas específicas de transformação de mulheres em operárias.

Ihadoras. Elas permanecem ocupando um lugar inferiorizado naprodução, seja do ponto de vista dos postos que assumem/ou nãoassumem, dos salários que ganham/ou deixam de ganhar, dos impedimentos à carreira e à qualificação

São elas, todavia, que sustentam a base da produção, "colan-do-se" às máquinas, detectando seus desvios. auxiliando em suaregulagem, sendo ainda capazes de enfrentar os "picos" produti-vos e a intensificação da jornada, transformando sua própria vidaprivada e familiar em mero apêndice da fábrica. Desdobram-se emduplas ou triplas jomadas, incorporam se às demandas produtivasfazendo. muitas vezes. da fábrica a sua vida. Suportam a tendência sazonal da produção como de seu oscilante aproveitamento noemprego, figurando no mercado de trabalho como uma populaçãoüstáve], de alta rotatividade

A idéia de família que adjetiva a fábrica dos trinta primeirosanos mostra que a empresa elegeu, para a gestão de seus recursoshumanos, elementos extraídos de uma certa concepção a respeitode vida familiar. fundamentada tanto em relações interpessoaisafetivas e personalizadas como na assistência às necessidades básacas, no convívio de parentesco e no predomínio da figura e auto-ridade paterna, representada, na empresa, pelos funcionários ocu-pantes dos cargos de alta chefia. Sua caminhada para uma grande/ábãca faz-lhe descer o véu que encobria sua substantiva identidade de estabelecimento produtivo e económico.

Os acontecimentos que movimentaram/movimentam a em-presa desde 1977 e, mais precisamente, desde 1980 até os dias anuais,confimiam sua marcha em direção a um novo modo de existir/so-breviver, movido por uma espécie de racionalidade que expurga osensível. obrigando este último a viver em meio a frestas e brechas,pna que se mantenha vivo. A concepção gerencial do trabalhocomo sinónimo de produção, aliada à aMa/ tendência de produzaum su/eito fechado, mais descon/lado e amedrontado, segundo ogerente da Ouahdade, parece diminuir a capacidade de controle so-bre os/as trabalhadores/as, visto que a linguagem daí constituída éfruto da alquimia de diversos silêncios, os quais se espremem e es-tendem, com vida, nos interstícios dos espaços fabris.

Em contraste, algumas delas, com os anos de dedicação aotrabalho, cultivam uma atitude que as torna vinculadas exatamente ao que pouco as recompensa e/ou estabiliza. Dão existência, nointerior da fábrica, a uma espécie de apego, impregnado de valo-res rigorosamente inversos àqueles que permeiam as políticas desua gestão enquanto trabalhadoras

A frieza, a racionalidade e o distanciamento presentes nasanuais práticas de gestão confrontam-se. assim. com suas própriaspráticas, erigidas, pelo que parece, a parta de algo que não dualizacorpo e alma. tampouco separa razão, sensação e emoção. Não sedeixam dissolver como um pedaço de cera aproximado do fogoNo processo de sua constituição enquanto operárias, tais mulheres enfrentam as ameaças de sua invisibilização, lutando contra asameaças de sua ausência e ocultação, lutando por se fazerem pre-sentes e visíveis. como se quisessem restituir-se ao$ olhos domundo. Caracterizando-se como peritas em desenhar imagenscom sombras. elas próprias se tornam um enigma. Falta-lhes mui-tas vezes a cidadania, mas esbanja-se nelas o humano

Tratando-se de uma empresa cuja mão de obra é predomi-nantemente de mulheres, não se pode deixar de ressaltar que oconvívio com o trabalho não as beneficiou no passado - como nãoas beneficia no presente - com ganhos profissionais, salariais, sedais, culturais e políticos. O que aprenderam/aprendem foi/é, emsua maioria, junto ao "chão de fábrica", através de colegas maisexperientes. O saber adquirido "na prática" e tornado seu patri-mónio deve, aos olhos da anual gerência. ser Ihe extraído, paraque venha a se transformar em instruções a serem seguidas de for-ma constante e "correra", garantindo, assim, condições para os caminhos da qualidade no fazer.

Que mecanismos poderosos são esses capazes de gerar tama-nhas cumplicidade e devoção? Que mundo é esse, o da fábrica,que abriga outros mundos dentro de si, operando como uma fantástica rede capaz de fazer transmutar sentidos, unir, quando tudoé concebido para separar e apelar se, quando tudo se orienta parao distanciamento e a frieza?

Desse modo, por mais que se alterem os modos de produzir eas formas de conceber a produção nessa empresa, continuam, contudo. inalterados seus modos de des/valorizar as mulheres tuba

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Considero, por fim, que o exame da trajetória empresarial atéentão realizado permitiu verificar que, para cada transformação degestão ocorrida, conesponde uma outra na contrapartida operária,tornando-se fundamental não atrbuir autonomia aos desenvolvi-mentos das forças produtivas e sequer da tecnologia, visto que omovimento da história social e das organizações em geral se dáatravés da correlação de múltiplas forças que, imbricadas, reve-lam-se nas lutas entre classes, entre os gêneros e raças.

CAPÍTULO 3

DEUSES/AS. VITIMAS ou CYBORGS?

As mulheres dos trinta anos iniciais se fizeram operárias abravés de formas de gestão diversificadas das anuais, comportaram-se diferentemente de suas correspondentes atuais, resistiram e seacomodaram às pressões de múltiplos modos, sendo que as muIheres do passado e do presente a velha e a nova geração de ope-rárias - podem ser vistas como expressão dos modos de subjetivação utilizados pela empresa em seus diferentes momentos de ges-tão da mão-de obra e da produção. Nesse sentido, amalgamam sediversos elementos, desde os gerais e externos ao contexto fabril,àqueles que lhes são particulares e singulares.

Em diversos momentos dos capítulos e seções que compõemeste livro, tentei deixar claro tratar-se de um trabalho intencional-mente inscrito no terreno da inconíormidade e até da indignaçãoA necessidade de mudanças e transformações sociais foram aponfadas em cada um e entre os campos teóricos percorridos - TubaIho/Educação/Gênero -, tornando-se certo deduzir que seus argu-mentos se revestem, simultaneamente. de denúncia e de desejode mudança. A despeito do tom pessimista que muitas vezes recobre a lógica argumentativa que adorei. pode se perceber nelauma "vontade de cura". Sustentem a melhor tradição dos estudosfeministas que não dissocia da luta pela desopressão social toda aprodução acadêmica. O dilema que se coloca, contudo, é engen-drado pelos mesmos condicionantes lógicos que constituíram osdesejos de mudanças. Os referenciais teóricos utilizados delimi-tam e definem, por sua vez. chances e possibilidades, tornando-secapazes de "domar" as tendências espontaneísta e voluntaristaque podem alimentar os sonhos de fazer de cada intelectual um/uma "revolucionário/a

Tentei aqui concretizar um esforço na direção de compreen-der, mesmo que sabidamente de forma parcial, tais articulações eimplicações, trazendo à tona a discussão de algumas das formaspelas quais as mulheres trabalhadoras vivem, sobrevivem. entrame saem no/do mercado de trabalho. Além disso, busquei compreender algumas formas de lutas através das quais as mulheres empendam-se por se inserir na sociedade, por se tomarem "economi-camente ativas" e por se evidenciar como depositárias de umagrande capacidade de (in)suportabilidade às discriminações so-ciais e políticas. Minha intenção íoi tomar visível e visíveis, nó âm-bito do trabaho industüal, tanto o sujeito feminino quanto os me-canismos de sua opressão social.

A dinâmica social foi apreendida desde um sistema de rela-ções entre campo social e habitos dos agentes, que configura, as-sim. uma espécie de "circularidade temível", cujo conhecimen-to/reconhecimento podem gerar a trivialização e a desesperança arespeito das estratégias de mudança social. Todavia, é dessa própeia construção argumentativa que se extraem as raízes da "iratal como expressa David Blacker (1994), visto a mesma tornar possável captar a inconíormidade com as formas hegemónicas de percepção e apreciação do mundo social. Seriam seus argumentospassíveis de serem denominados de crítica descompromissada'POu estariam eles dizendo das contradições das práticas sociais eda luta pela hegemonia discursiva? Seria possível realizar uma ar-gumentação lógica de oposição crítica de forma externa aos pa-

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drões estruturantes da cognição? Seria possível pensar a inconíormidade para além e para fora das estruturas objetivas de dominação que tornam possíveis os modos de pensar dos agentes sociais?Seriam válidos aqueles pressupostos cuja lógica, apesar de desvendam e desnaturalizar os fatos sociais, não necessariamenteaponta soluções ou "saídas para cura"? Poder se ia pensar emcura" quando se rejeitam as categorizações normatizadoras ca

pazes de cleíinir como normais e patológicos tão-somente aquelesatrüutos e situações desejáveis ao jogo dos dominantes?

vada podem ser acolhidas como fruto do trabalho realizado, desdeque se pense que ele também afeta o/a seu/sua produtor/a.

Colocar a educação como um dos campos importantes e indispensáveis à construção da dominação social e concebê la comoestruturada no$ pressupostos do arranjo social capitalista e patliarcal provoca a impactante reação de que o campo educativo tãocaro aos discursos "humanistas" de educadores/as, empresários/ase políticos/as - não se encontra em posição social "neutra", transcandente e "de mãos limpas", em relação às regras que fecundam ojogo de poderes instituído. Educação e expansão capitalista conso-lidam a ideologia da livre iniciativa e. de fomla solidária, tomam justificáveis as iniquidades e fracassos sociais tributados, de fomla exclusiva. aos "talentos e dons" individuais dos agentes sociais.Impregnada e impregnante de um moralismo calcado no cinismosocial, a educação manifesta se como uma das faces mais poderosas da dominação social, quando faz crer como culpados/as exata-mente aqueles/as que vivem sob condições de vítimasi quando, assim, exorciza os "males e as desgraças sociais e particUares" atra-vés de um consenso social que invisibiliza e transmuta os sentidosimplicados nas relações sociais entre dominadores/as e domina-dos/as, entre exploradores/as e explorados/as

Partindo da utilização de um compus teórico firmemente estoufurado, toma se difícil apontar soluções emergentes e muito menosprescrições a serem seguidas. Portanto, estou muito, mas muitodistante, aqui, de qualquer intenção ingênua de traçar as tão espe-radas e mágicas saídas redentorasl Rompendo com a "melhor" dastradições das Ciências Humanas e Sociais, este livro não se dispõe enão deve se dispor a ser instrumento de normatização e disciplinarização social. Acredito que minha responsabilidade e coerência es-tão em apontar, desde seu interior, alguns impasses, desconfortos etalvez tendências einbüonárias, e não em defendê to como redutoda "verdade" e tampouco do renascimento do social. Os limites e aspossibilidades de uma "análise sobre a análise" se instalam exata-mente no momento em que este texto como um filho e uma filha -é apreciado como um dos efeitos possíveis no vasto campo das op-ções epistemológicas, conceituais e políticas.

O que disse aqui permite apreender a sociedade como umaconfiguração de redes de dominação e exclusão constituídas desde mecanismos que dispensam a coerção física e explícita sobreos agentes; falei de cumplicidades e de possessão mútua entre es-tes e o campo social, entre sua confomlação e suas lutas cogniti-vas. O percurso no terreno das práticas cotidianas situou-as emuma visualização fundamentalmente "antinarcísica" , por derrotar a idéia do sujeito da razão e da consciência e revelar "a ausência de charme, a feição um pouco triste da reflexividade (...)"IBourdieu, 1992, p. 51)

Explicitar e desvendar alguns sentidos cronicamente impreg-nados no tecido social e inculcados nos particulares modos deconhecer o mundo significa igualmente deixar invisíveis, marginaif e não problematizados outros tantos que lhes são implícitos .Os "pontos cegos" ou o space o# (Teresa de Lauretis, 1994, p.237) de um texto fazem parte dele, habitam seus interstícios,sendo possível sua leitura a partir daquilo que se tornou visível.Assim, torna-se certo supor que as palavras não contêm apenasvozes claras e audíveis à razão, sendo constituídas também por si-lêncios, derivados dos constrangimentos impostos pelos enquadramentos teóricos escolhidos.

C)s fundamentos deste livro inscrevem-no em um compromisse político de "desnaturahzar" o mundo, destruir os mitos que habi-litam o exercício do poder e perpetuam a dominação. Tenta reconstituir detahes de um particular mundo do trabalho industrial, procurando tomar evidentes algumas das múltiplas tramas que o atra-vessam. Nesse sentido, penso terem focado claras as necessárias in-terseções de diferentes instâncias sociais(família e escola), que ce-lebram no campo da produção uma dominação espetacular em

Dessa forma, tanto o produzir quanto o encerrar uma produção teórica revelam se como faces de um processo permeado detensões entre a vontade de poder e saber dizer tudo e a limitaçãoem íazê lo. A experiência de finitude e de transitoriedade daí cieri-

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sua eficácia e terrível em seus efeitos. A tese que sustenta o queapresento aqui, ao mesmo tempo que fala, insistentemente, dadominação e da exploração de mulheres pelo capital, fala também,e na mesma medida, da inconformidade com tais pressupostos.

plicativas, não redutoras e simpMicatórias. Nem por isso. entretanto, abandonei ou me omita diante dos enfoques críticos ao capi-talismo e ao trabalho erigido sob seu signo. Este, despido em seussutis e ativos mecanismos, mostra-se sempre revelador da lógica daexploração e da acumulação nele contidas. O poder económico,apesar de não centralizar de fomla exclusiva as discussões. manáfesta-se também como importante mobilizador de interesses, tantodos capitalistas como dos/as trabalhadores. constituindo-se empólo agregados em tomo do qual se realizam lutas pelas vantagensdele advindos. Este estudo, entretanto. não atribuiu a qualquer umadas categorias sociais e espécies de capital(classe/gênero; capitaleconómico e simbólico) supremacia ou predomínio. mas orien-tou se, como sugere Castão (1992), para uma espécie de "alqui-mia" que pemlite a combinação daquelas/es em múltiplas organi-zações dos sistemas de privilégios que afetam as relações sociais.

Este livro pode ser desconfortante a alguns interesses, masnão se coloca, necessariamente, como uma espada que separapessoas boas das pessoas mási não opera, como certos princípios

educativos" . na base da culpabilização de indivíduos. Indica feiações sociais objetivas que os antecedem e das quais se fazem efei-tos incorporados, o que significa dizer que a "formação" humananão se dá no vácuo social e tampouco no registro da consciênciaindividual, sendo forjada na obscuridade do habitas, que, comouma espécie de "superego" - exterioridade interiorizada -, regulaas percepções e fomenta as práticas individuais e coletivas em di-reção da conservação e reprodução sociais.

Se. de um lado, concebi a estruturação dos/das agentes - do-minantes e dominados/as - como movida por forças extemas aeles/elas, de outro apontei-a, sem dúvida, não para seu inocenta-mento, pois não se trata de acusa-los, mas para a perspectiva deobserva-los/las e entendê-los/las desde suas vontades, crenças.esperanças e modos de ser - como produto estruturado a parta deintenções e interesses não explícitos, dos quais os/as agentes tor-nam-se os/as legitimadores/as e devotados/as seguidores/as.

As implicações resultantes de tal modo de observar e analisaro processo social fazem-se presentes, não só na possibilidade dese "sociologizar a psicologia", como de se "psicologizar a sociologia". enquanto disciplinas científicas. que, ao se orientarem parauma configuração híbrida de ciência, podem expurgar as tendên-cias objetivistas e subjetivistas implicadas em suas tradições. Po-dem pem)itir ir além das concepções interacionistas, funcionalis-tas e desenvolvimentistas. seja a respeito da sociedade, seja a res-peito dos/as agentes sociais. Implicam reconhecer a subjetividadecomo tributária do social e como parte, logo, de um sistema econâmico, cultural e político, antes do que produto da interioridadeautónoma do sujeito psíquico ou de exclusivo efeito das forças ex-temas. Remetem. outrossim, conforme Sandra Harding (1993). aoreconhecimento das instabilidades das categorias e dos regimesde sua institucionalização, dando indícios de que se percorre umterreno nada assemelhado ao pertencente à "ciência normal". denominada por Kuhn (1987, p. 24) como aquela que se baseia nopressuposto de que a comunidade científica sabe como o mundo ée. portanto, refere-se a uma forma de ciência que "freqüentementesuprime novidades fundamentais

A formidável lógica argumentativa a respeito da adesão e interiorização pelos/as agentes dos princípios de sua própria domi-nação comparece aqui como expressão do requinte intelectualque pemleia as conceitualizações desse campo teórico que é con-fortante enquanto explica e provoca inconformidade. e se faz des-confortante enquanto "desilude" pela lógica de seu hipenealismo,capaz de visibilizar e tomar dizíveis as banalidades cotidianas nasquais se encontra entranhado e dissimulado o poder simbólico.

Coloquei associadas e alquimizadas - diversas categorias,que se intercruzam e interpenetram tanto na objetividade das es-truturas sociais como na interioridade dos agentes. De algummodo, afirmei e reafimlei a multiplicidade dos poderes e dos sujei-tos e o possível salto para fora do economicismo sem deixar de re-conhecer a importância política da economia. Ao reconhecer osagentes sociais de íomla multifacetada. procurei conjugar classesocial e gênero(dentre outras categorias) como possibilidades ex-

Assim é que os pressupostos que oüentaram meu pensamen-to se enquadram em uma epistemologia que. antes de unificar acompreensão do mundo social e de seus/suas agentes em torno deuma única razão, supõe que suas estruturações se processam me-diante múltiplos arranjos - contextualizados e "conjunturaliza-

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dos". Ficam-lhe implícitas as necessidades de mudanças, nãoapenas nas teoüas. mas, principalmente, nos sistemas de pensar ede construir o conhecimento. Dizer que o "grande texto" das ciên-cias sociais e humanas se mostra permeado de "pontos cegos" impõe o reconhecimento de que a ciência tem sido construída de for-ma a ser capaz de dizer as espécies que o universo contém. mastambém, implicitamente, aquelas que não contém. Ou seja, que aciência se encontra distante de sua pretendida "neutralidade'visto que, ordinariamente, revela sua capacidade de violentar arealidade social através da supressão/ou prevalência de alguns deseus componentes. Revela-se, aqui, a necessidade de subversãodos compromissos conservadores que asfixiam a existência domundo e dos sujeitos do mundo em "cárceres" conceituais regidos pela "razão eurocêntrica, masculina, branca, burguesa, setentesta" (Sirva, 1994a, p. 256).

Algo que é sempre muito difícil, porque de certa íomla conde-nável, do ponto de vista científico. diz respeito à falta de coerênciaepistemológica que pode marcar os estudos realizados, quandoestes recorrem a referenciais teoricamente ineconciliáveis. TantoScott quanto Louro são, contudo, ótimas parceiras e condutorasnas iniciativas de certa ousadia teórica e de um profícuo diálogocom as diferenças implicadas entre sistemas teóricos não de todoconespondentes. Percorrer as noções do pós-estruturalismo, deli-mitar em que aspectos tal referencial auldlia e em que pontos setoma incómodo, constitui-se em uma atitude científica que nãoteme pensar para fora de seus habituais cânones e que adora,como regra, a desterritorialização dos conceitos ao invés de suacontenção e retenção no inerte. Para Louro,

a utilização de instrumentos pós-estruturalistas pelo pensamentofeminista foi - e é - bastante polêmica. Não podemos esquecerque, na construção teórica do feminismo, há elementos que o fazem se identificar com as teorias sociais modernas. como a idéiade universalidade(especialmente nas vertentes que se inclinampor uma teoria geral da opressão das mulheres) e a proposição deuma utopia libertária, ou seja, a colocação de um ideal de emanci-pação feminina (1995, p. 110)

Nesse sentido, o trânsito pelos/nos estudos feministas podelevar a entender um dos componentes que constituem a "heredivariedade cultural e acadêmica" de meu texto. As recentes leiturasde autoras como Joan Scott (1994a, 1994b), Teresa de Lauretis11994). Donna Haraway (1994) e Guacira Lopes Louro (1995) con-duzem a análises que possibilitam questionar o conceito maiscentral da tradição feminista e também deste estudo: o gênero. Dessa maneira, Scott (1988, p. 4), mesmo não se preocupando

- "e por que deveria íazê-lo". indaga Louro - em autoclassihcarsua proposta teórica. indica e justifica suas opções, afirmando:

As reflexões contidas no artigo de Louro (1995) intituladoGênero. história e educação: construção e desconstrução" tor-

nam-se importantes no sentido de sistematizar uma história dogênero enquanto categoria de análise, história essa reveladorade um modo feminista de pensar que se caracteriza, sobretudo,pela busca incansável da construção de conhecimentos que nãorepitam os princípios da ciência androcêntrica, tidos como totali-zadores e universalizantes. Os pressupostos da ciência de cunhofeminista se colocam, portanto, compromissados com a necessi-dade de estabelecer nítidas correspondências entre conceitosteóricos e realidade social. O conhecimento, entendido como ins-trumento de poder. não pode e não deve, desde tal perspectiva,asfixiar a realidade, invisibilizar seus aspectos e seus agentes,calar suas contradições e seus desconfortos. Trata-se, enfim, deuma tentativa de fazer ciência desde as intrincadas tramas so-ciais, desfatalizando-as e colocando-as em conexão direta compossibilidades de lutas políticas.

Uma política feminista mais radical(e uma estória feminista maisradical) parece me exigir uma epistemologia mais radical. Preci-samente porque coloca questões de epistemologia, relativiza ostatus de todo o conhecimento. liga conhecimento e poder. e teo-riza-os em termos de operações de diferença, penso que o pós-estruturalismo(ou ao menos algumas abordagens geralmenteassociadas a Michel Foucault e Jacques Derriça) pode oferecer aofeminismo uma perspectiva analítica poderosa. Não estou suge-rindo a aplicação(dogmática dos ensinamentos de qualquer filósolo particular e estou ciente das críticas feministas a eles. Toda-via, quero indicar os locais onde e os caminhos pelos quais. paramim. as aberturas dadas pelas novas direções intelectuais semostraram não apenas promissoras mas frutíferas (1990, p. l lO)

Nesses tempos, torna-se fácil concluir que revisitar e reanalisar, assim, a história da categoria gênero e os impasses nela impli

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cados revela se mais do que a necessidade de manter vivos/as osestudos e as lutas íeministasl revela se como um novo modo demanter vivas as próprias ciências humanas e sociais

bém há diferença no sentido de que um género desvia. adia oususpende a consumação do outro (1995, p. 113)

O contado com tais recentes reflexões conduz a verificar que,ainda que tenha me apoiado no conceito de gênero elaborado porScott (1990), muitas das análises por ela suportadas podem revelara falta de reflexão aprofundada "sobre as implicações que o uso deseu instrumental pode acarretar" (Louro, 1995, p. 104).

Assim, aceitar as diferenças como estão constituídas significareforçar o encarceramento das possibilidades de existência socialem oposições binárias. Essas oposições apenas servem para con-firmar e legitimar as espécies que o mundo contém e para excluiraquelas que não podem ser reconhecidas e legitimadas, apesar deconcreta e visivelmente vivas e existentes. Implica corroborar aexistência feminina, nos termos de Terry Eagleton (1983, p. 143),como "o oposto, o 'outro' do homem: ela (a mulher) é o não-ho-mem, o homem a que falta algo, a quem é atribuído um valor so-bretudo negativo em relação ao princípio primeiro masculino

Caracterizando as categorias "homem" e "mulher" como "vaziase transbordantes", ScoH, em seu já clássico artigo "0 gênero comocategoria útil de análise histórica"(1990, p. 19), mostrava que, "quando parecem fixas, elas recebem, apesar de tudo, definições altemativas, negadas e repiiinidas" . Ou seja, apontava para o fato de que "temos necessidade de uma rejeição do caráter fixo e pemlanente daoposição binária, de uma historicização e de uma desconstrução autênticas dos tempos da diferença sexual" lidem, p. 13).

Tais novas reflexões se encontram alinhadas com a consciência crítica das/os estudiosas/os da questão e apontam para o fatode que os conceitos de feminino e de masculino construídos mosEram-se tensionados, quando aplicados aos sujeitos sociais comoseres históricos e de "relações reais". Homens e mulheres, nessesentido, acham-se dentro e fora do gênero, visto que os atuaisconceitos se encontram impregnados pelos ímpetos da categori-zação normativa, que, enquanto explica, também aprisiona e su-prime, orientando-se para a legitimação e manutenção de suasimposições dicotomizadoras

Dessa fomla. dizendo respeito ao potencial simbolicamenteviolentador imbricado nas categorias teóricas feminino/masculino, homem/mulher, as anuais reflexões mais aprofundadas sobreas mesmas problematizam e instabilizam a própria teoria, ao conter a revelação de que esses conceitos sustentam as mulherescomo "um grupo desviante", ou seja, referido desde a perspectivade que "seu comportamento se distancia, diverge do modelo gerali o gênero masculino estando na base da elaboração da regra'ICosta et a/., 1985, p. 5).

Da mesma forma, vale a pena notar que. no pensamento pau-tado pelas oposições fixas, também fica "subentendida uma édencidade em cada um dos termos, ou seja, não se põem em questãoas diferenças no interior de cada pólo". Assim, trata-se o "ser mu-lher como se todas as mulheres o fossem de modo idêntico"(Lou-ro, 1995, p. 1 15). Tais considerações revelam que o amplo e recor-rente conceito de MULHER é incapaz de fundar o mito politicamente potente chamado "nós", mostrando-se antes como uma'desculpa para a matriz das dominações femininas sobre as outrasmulheres" (Haraway, 1994, p. 251). Nesse sentido, para a autora, anova palavra que se mostra capaz de fazer emergir avanços e soli-dariedades não é "identidade", e sim "afinidade

Desse modo, as tentativas de desconstrução das oposições bi-nárias, que fundam os tradicionais e metafísicos sistemas de pensa-mento. revelam que a oposição homem/mulher, masculino/femini-no desencadeia "uma hierarquia aparentemente universal e edema'(Louro, 1995, p. 110), colocando como consequência direta a suges-tão de que "a igualdade é o único terreno no qual pode se proclamara e(cidade em nível de direitos políticos e sociais"(Scott, 1994a, p.7). As recentes desconstruções feministas a respeito da oposiçãodos gêneros levam a fomlular, segundo Louro. que

um termo da oposição difere do outro tanto no sentido de que nãoé idêntico, como no sentido de que 'suspende a consumação' dooutro. Talvez fosse possível então aí dizer que. na oposição dosgêneros (.. .). há diferença enquanto gêneros distintos; mas tam-

Construir objetos teóricos desde esses possíveis e novos olhares implica violar fronteiras, realizar fusões potentes na contramaré das oposições binárias, reconhecer que as categorias classegênero e raça não podem íomecer a base para a crença na unida

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de. O conceito de mulher, nessa perspectiva, mostra se desistegrado em uma imagem de rede das mulheres de nosso tempo,apenas podendo ser aceitas as identidades forjadas na alteridade ena diferença. Deve se reconhecer que a consciência de gênero,raça e classe "é uma conquista que nos íoi imposta por meio datemível experiência histórica das realidades sociais contraditóriasdo patriarcado, do colonialismo e do capitalismo" (Donna Hajaway, 1994, p. 250).

tortos que podem ser acolhidos nas mais recentes críticas e produções do pensamento feminista. Aqui estou me referindo à formade utilização do conceito de gênero que transparece em algumasanálises, o que pode vir a ser entendido como uma maneira de postclonar a subjetividade feminina como que contida no sujeito masculino, resultando, presumivehnente, na retenção de outras formasemergentes de ser mulher. engendradas para além e para fora dosanuais pressupostos conceituais a respeito da feminilidade.

E, para que obtenha o encorajamento da esperança de se de-senvolver como "teoria radical" e "prática de transformação socio-cütural" o feminismo, segundo Lauretis (1994, p. 219), deve manter a negatividade crítica de sua teoria e a positividade afirmativade sua política, que se constituem, portanto, tanto como sua conlição histórica de existência quanto sua condição teórica de possüilidade. Parece oportuno, desse modo, estender o pensamentode Haraway às demais autoras até então citadas:

Trata se, por conseguinte, de reconhecer a coexistência de múltiplas "heranças" que constituíram este texto, simultaneamentecomo rede de contradições, inconíomlidades e críticas, e de con-servação e reprodução. Ou seja. na medida em que pressupõe a alquimia de categorias sociais, o que torna impossível a totahzaçãodas mulheres estudadas sob um único conceito a respeito do que éser mulher, em outros momentos da análise. faz uso do conceito degênero feminino como que fundado nos referenciais sinüólicos an-drocêntricos ordenados pelo contrato social patriarcal

A permanente parcialidade dos pontos de vista feministas acarre-ta consequências para a nossa expectativa de forma de organização política e de participação. Não necessitamos de uma totalidadepara que trabalhemos melhor (1994. p. 272).

Tal constatação, entretanto, distante de gerar um "pânico nar-císico" , revela, produz e me compromete com uma prática de crítica científica (lue. ao pensar o pensamento que pensa, me faz saberque não é possível realiza-lo fora das estruturas que o constituíram. Tais estruturas, contudo, como se viu, não produzem apenasa voz monoteísta, sendo capaz de fazer ver e ouvir tendências per-turbadoramente vivas que convivem nos mesmos espaços da apa-vorante inércia reprodutora. O poder de sobrevivência da produção científica de cunho feminista reside exatamente em sua des-pudorada vontade de perder a inocência original

A capacidade de "analisar o pensamento que pensa" tem seconstituído, pois, em um dos importantes pilares da ciência de cunho feminista, que, nas poucas décadas de sua existência, mostra se capaz de se estabelecer, não apenas a partir da problematiza-ção do real e sim desde sua capacidade de problematizar os própriosmodos de pensa-lo e representa-lo. A conquista de seu estatuto ci-entíõco não se apóia nas fomiulações conceituais ({ue vem realizan-do, pois, uma vez que são persistentemente abaladas e instabilizadas, não permitem instituir íomlas acabadas e "saciadas" de pensamento. A problematização que tem sofrido o conceito de gênero omais central de tais estudos leva a pensar na perspectiva estimu -lance e criativa de novos modos de fazer ciência.

Este livro, feito a partir da minha tese de doutorado, minhaherdeira e de muitos/as outros/as autores/as, traz consigo contanuidades e rupturas e evidencia-se como produto legitimador desuas origens. mostrando se impregnado pelos impasses dos campos teóricos que o sustentam. Revela se como obra aberta quepossa vir, talvez, através de seus posteriores desdobramentosem outros estudos. a fomentar outras espécies de "herdeiros/as", e, como sugere Haraway (1994, p. 283). indicar atravésdeles/as "uma maneira de sair do labirinto dos dualismos", depercorrer "um mundo sem gênero", habitado por cyborgs - criaLuras íiccionais. irónicas e sem gênero - que não querem mais ne-nhuma matriz natural de unidade, mas que não desistem das tape

Se tais pressupostos (des)organizadores e instituidores de novos ordenamentos se aplicarem ao que expus, vê se, de fato, que otexto deste livro é tributário de suas matrizes reprodutivas. Comoque constituído no balanço das instabilidades do gênero sua ca-tegoria central e embora norteado pelo semanal conceito de gêneto elaborado por Scott (19901, abriga certos impasses e descon

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fas de manter conexões reais. mesmo que parciais. A produção dec;yborgs deve se realizar sem nenhuma relação com a bissexualidade e tampouco deve depender do mito da unidade original -mãe e filho/a e alimentar o sonho da unidade "essencial"Cyborgs são "herdeiros" criados para a insurreição, pois são en-gendrados na insubordinação aos sentidos hegemõnicos e àsoposições binárias. São, logo, anunciadores de um necessáriotrabalho intelectual e político.

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