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77 ISSN 2238-0205 ARTIGOS Geograficidade | v.7, Número 1, Verão 2017 REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A INSERÇÃO DO GRAFFITI E DA PICHAÇÃO NA PAISAGEM URBANA: UMA ARTE “CONTRA-RACIONAL”? Theoretical reflections about graffiti insert in urban landscape: an “counter-rational” art? Fernando Domingues Caetano 1 1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; especialista em Gerenciamento de Obras pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTF- PR; bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo - USP; Analista de Desenvolvimento Municipal no Serviço Social Autônomo PARANACIDADE. [email protected]. Rua Deputado Mário de Barros, 1.290, 1º andar, Centro Cívico, Curitiba, PR. 80530-913. Resumo As paisagens urbanas estão impregnadas de manifestações artísticas e culturais que fazem parte do cotidiano das pessoas que moram em cidades. A arte pública é incorporada à paisagem urbana de diferentes modos, sendo o graffiti e a pichação uma das principais formas de manifestação deste tipo de arte. O objetivo do presente artigo é explorar abordagens teóricas que, por meio do graffiti e da pichação, discutem a relação dialética estabelecida entre arte, movimentos de resistência e paisagem urbana. O exercício de olhar de forma crítica para o graffiti e a pichação enquanto formas de manifestação da arte urbana demanda necessariamente por parte da crítica uma reflexão sobre o que é arte. A reflexão ampla sobre as formas de arte urbana, representadas pelo graffiti e a pichação, induz a aprofundar o debate sobre a democracia da paisagem urbana. Palavras-chave: Paisagem Urbana. Arte. Geografia Cultural. Abstract Urban landscapes are steeped in artistic and cultural expression that are part of the daily lives of people in the cities. Public art is incorporated into the urban landscape in different ways, and the graffiti is one of their main forms of expression. The purpose of this article is to explore theoretical approaches that, through the graffiti, discuss the dialectical relationship established between art, resistance movements and urban landscape. The exercise of looking critically to graffiti, like an expression form of urban art, necessarily demand critical reflection on what art is. A broad reflection on the forms of urban art, represented by the graffiti, induces deepen the debate on urban landscape democracy. Keywords: Urban Landscape. Art. Cultural Geography.

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Reflexões teóricas sobre a inserção do graffiti na paisagem urbana: uma arte “contra-racional”Fernando Domingues Caetano

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REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A INSERÇÃO DO GRAFFITI E DA PICHAÇÃO NA PAISAGEM URBANA: UMA ARTE “CONTRA-RACIONAL”?Theoretical reflections about graffiti insert in urban landscape: an “counter-rational” art?

Fernando Domingues Caetano1

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; especialista em Gerenciamento de Obras pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTF-PR; bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo - USP; Analista de Desenvolvimento Municipal no Serviço Social Autônomo PARANACIDADE. [email protected].

RuaDeputadoMáriodeBarros,1.290,1ºandar,CentroCívico,Curitiba,PR.80530-913.

Resumo

Aspaisagensurbanasestãoimpregnadasdemanifestaçõesartísticaseculturaisquefazempartedocotidianodaspessoasquemoramemcidades.Aartepúblicaéincorporadaàpaisagemurbanadediferentesmodos, sendo o graffiti e a pichação uma das principais formas demanifestação deste tipo de arte. O objetivo do presente artigo éexplorarabordagensteóricasque,pormeiodograffitiedapichação,discutemarelaçãodialéticaestabelecidaentrearte,movimentosderesistênciaepaisagemurbana.Oexercíciodeolhardeformacríticaparaograffitieapichaçãoenquantoformasdemanifestaçãodaarteurbanademandanecessariamenteporpartedacríticaumareflexãosobreoqueéarte.Areflexãoamplasobreasformasdearteurbana,representadaspelograffitieapichação,induzaaprofundarodebatesobreademocraciadapaisagemurbana.

Palavras-chave:PaisagemUrbana.Arte.GeografiaCultural.

Abstract

Urban landscapes are steeped in artistic and cultural expression

that are part of the daily lives of people in the cities. Public art is

incorporated into the urban landscape in different ways, and the

graffiti isoneof theirmain formsofexpression.Thepurposeof this

articleistoexploretheoreticalapproachesthat,throughthegraffiti,

discussthedialecticalrelationshipestablishedbetweenart,resistance

movements and urban landscape.The exercise of looking critically

tograffiti, likeanexpression formofurbanart,necessarilydemand

critical reflection onwhat art is.A broad reflection on the forms of

urbanart,representedbythegraffiti,inducesdeepenthedebateon

urbanlandscapedemocracy.

Keywords:UrbanLandscape.Art.CulturalGeography.

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Introdução

As paisagens urbanas estão impregnadas de manifestaçõesartísticas e culturais que fazemparte do cotidiano das pessoas quemoramemcidades.Quantomaioremaispopulosaforacidademaispresentes e perceptíveis tendem a ser as expressões artísticas noespaçopúblico.Acidadeéporexcelênciaumlocaldeencontroedecomunicação,pessoasdasmaisdiversasorigens,formaçõeseclassessociaisencontramnascidadesasmaiorespossibilidadesdecriação,produçãoeexperimentaçãoartística.Apaisagem,sejaruralouurbana,possuiváriasformasdeleiturase

interpretação,apartirdoolhardoserhumanoqueaobserva(MEINIG,2002). Dentre 10 formas possíveis de interpretação da paisagempropostas pelo autor, pelo menos duas delas se aproximam dediscussõesdapaisagemurbanaapartirdasintervençõesdograffitiedapichaçãoa“paisagemcomoideologia”ea“paisagemcomoestética”.Apaisagemcomo ideologiaé frutodapresençadeumconjuntodesímbolosquetransmitemascrençasevaloresdedeterminadacultura;jáapaisagemcomoestéticaconstitui-senumelementopotencialparadespertardiversostiposdeemoçõesnoserhumano,apartirdesuapercepçãoesensibilidade.ParaGonçalveseEstrella(2007)aarteeacidadesãoimportantes

operadores discursivos e participam, em conjunto com outroselementosda vida social, dosprocessosde constituiçãodosmodosde vida e da comunicação na atualidade. Para os autores, a cidadetemsidocadavezmaispercebidanãoapenascomoinspiraçãoparaacriaçãoartística,pelocontrário,passaaserumdosobjetosprincipaisdeexperimentaçãodosartistas,queproduzirammovimentoschamadosdeartepública,arteurbanaouartecontextual.Estes processos de intervenção artística na paisagem urbana

podemser resultadodasmaisvariadas intenções,desde lúdicasaté

contestatórias.Aartepúblicatentaseexpressarnumespaçocadavezmaisindividualizadoeindiferenteaoentorno,ondeaspessoasqueporalipassam,eeventualmenteparam,têmseussentidoscondicionadosapercebereseorientarapartirdosmeiosdecomunicaçãoemmassa,queestimulamaproduçãoeoconsumoquesustentamasociedadecapitalista. Essemodelode sociedade se reproduz tambémapartirdosvaloresesímbolosmaterializadosprincipalmente,naspaisagensurbanas,oqueastornampaisagensideológicasimpostasporgrupossociaisdominantes.Aindiferençaeaalienaçãodocidadãourbanocontemporâneo,que

não consegue ou não lhe interessa enxergar elementos estranhos,presentes na paisagem urbana reproduzida no sistema capitalista,serãoobjetodeenfrentamentodeintervençõesartísticasquebuscam

a retomada da condição estética da cidade, enquanto local de

excelênciadaexpressãohumana,earecomposiçãodasuadimensãocoletivanoambienteurbano(GONÇALVES;ESTRELLA,2007).Para Linhares, Rodrigues e Braga (2015) a arte urbana torna-se

públicapelatransformaçãodasinquietaçõesdoartista,cadavezmaiscontaminadas pelo cotidiano da vida urbana, instigando o artistaademarcar a cidade comsuaarte e, aomesmo tempo, fazerpartedavidadaspessoasqueporalipassam.Osautoresafirmamque,seporumladoaarteurbanasurgecomoumaexpressãoderesistênciaaos sistemas simbólicos vigentes das ideologias dominantes, comosefosseuma“invasãoestéticaindesejável”,poroutro,foiganhandonovos formatos e configurações que passaram a ser incorporadoscomo mais uma forma de linguagem artística de grupos sociaisascendentes, e assim valorizados comercialmente no mercado daarteinstitucional.Barja(2008)valorizaoespaçopúblicocomolocaldecriaçãoartística,poistornaaartemaisacessívelemenos“museável”,devidoàspossibilidadesdaartedediscutir,noespaçopúblico,diversas

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questõesdecidadaniaedoslugaressocialmenteidealizados.Paraoautor,intervirartisticamentenacidadeéinteragircomela,causandoreaçõesdiretase indiretasnaspessoas,ondeaobradeartepassaafazer parte da paisagem urbana, estabelecendo diversos tipos derelações,tantodeafirmaçãocomodecontestaçãodoselementosquecompõemapaisagememqueseinsere.É interessante como Barja (2008) relativiza a necessidade de

genialidadedoartistaparacausar impactonapaisagemurbanapormeio da intervenção artística. Segundo o autor, para alcançar esseimpacto, e de alguma forma despertar o interesse das pessoas,bastaqueaobradeartecoloqueemdiscussãotemascomplexosdedeterminadolugar,bemcomodeseusgrupossociais.Nesse sentido, o valor estético da arte pública vai além das

habilidadestécnicasdoartista,epassaaresidirnaspossibilidadesdeintervençãodoartistainterrogaravidaeahistóriae,aomesmotempo,produzirpossibilidadesderespostas,poisaartetemacapacidadedeapresentar o lado ignoradoou esquecidodomundohabitadopeloshomens, e, ao mesmo tempo, inventar uma nova linguagem pararevelaralgoquenemsemprefoiclaro(BARBOSA,2009).Énotrabalhodecriaçãodoartistaquesepodedistinguir“oqueé

obradearteeoqueésimplesmenteumprodutoordináriodaindústriacultural”(BARBOSA2009,p.71).Sobessaótica,acriaçãodelinguagensou outras formas de expressão por pichadores e/ou grafiteiros,mesmo que questionadas suas “qualidades estéticas”, podem ser“classificadas”comoartísticas,poisforamobjetodecriaçãodeumouváriossujeitos.Arepresentaçãoéaformapeloqualoserhumanobuscaestabelecer

conexõesentreoreal(físico)eoabstrato(consciência).Barbosa(2009)reforçaapresençadosujeitonesteprocesso,eque,portanto,osmodosde representação são profundamente influenciados pelas maneiras

deinterpretaçãoeaçãodessesujeitonomundo.Alémdisso,oautoraponta o potencial revelador da representação, que pode ser umacriaçãoplenadehistoricidade,epor issopoderevelarasdimensõesocultadas pelo discurso e a imagem estabelecidos pelo status quo.Dentreasdiversasformaspossíveisdesedefinir“arte”,escolheu-seaquela que define a arte enquanto elemento da paisagem urbana,frutodastransformaçõesproduzidasnapaisagem,pelatrajetóriadosváriosgrupossociaisquehabitamacidade,comdestaqueparaaquelesligadosaograffitieàpichação.Nasuaproduçãoartística,essesgrupossociaisestabelecemembatescomosgruposdominantesnabuscade(re)conhecimentoedeespaçofísicoparamanifestaçãoartística,cujosconflitossãoconstantementereveladosnacidade(PROSSER,2006).Mesmo que muitas vezes despercebida, o autor afirma que, comosistemadepensamento,aartefazpartedocotidianodacidade,eestápresenteemtodososseusconstrutos,como“nasmoradias,notraçadourbano,nosparques,naspraças,nasparedes,nosmuros,nosjardins,nosmonumentos,nosgraffitis,nospichosetc”(PROSSER,2006,p.4).Nesta perspectiva de arte como marcas das trajetórias sociais

de indivíduos ou grupos, julga-se plausível considerar o graffiti e a pichação comomanifestações artísticas. E como tal, caracterizam-secomoasprincipaisformas,ouasformasmaisrecorrentes,deartepública incorporada à paisagem urbana do cotidiano (TARTAGLIA,2015). Para o autor, este tipo de arte urbana também correspondea uma forma simbólica de delimitação de territórios de grupos degrafiteiros e pichadores. Pormeioda alteração e da reconfiguraçãoda paisagem urbana, estabelecem-se disputas entre grupos rivais,e entre esses grupos e os defensores da ordem pública, visando aapropriaçãosimbólicadeespaçospúblicoseprivados.Oobjetivodopresentetextoéexplorarabordagensteóricasque,pormeiodograffiti edapichação, discutema relaçãodialética estabelecida entre arte,

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movimentos de resistência e paisagem urbana. Para a elaboraçãodestetexto foi feitapesquisabibliográficadepublicaçõescientíficasnacionaiseinternacionaissobreadimensãogeográficaeartísticadograffitiedapichaçãoenquantoelementosconstituintesdapaisagemurbana.Dentreostextoscientíficospesquisados,foramselecionadosaqueles

quemaisseaproximamdoobjetivodestetexto,deformaaextrairdosmesmosaspectosrelevantesparaareflexãosobreessetemaecontribuirparafomentodeumdebatecoletivoacercadademocratizaçãoedatransgressãodospadrõesartísticospré-estabelecidos,pormeio,nãodeumaarteracionaldaindústriacultural,massimdemanifestaçõesartísticascontra-racionaisecontra-estéticasvindasdasruas.

O graffiti, a pichação e a paisagem urbana

ParaTartaglia(2013,p.195)“umdosprocedimentosmaiscomunse importantes da prática dograffiti no espaço urbano é perceber apaisagem”.Paraoautor,aspaisagensurbanasestimulamapercepçãoeasensibilidadedosgrafiteiros,deformaaperceberaspossibilidadesqueaspaisagensoferecemparaavisibilidadeeapermanênciadesuaartenoespaçourbano.Ografiteiroprocuraelementospaisagísticosque o instigue a deixar suamarca visual, de forma a amplificar aomáximo as múltiplas experiências sensoriais dos demais indivíduosquecotidianamentesedeslocampelacidade.Ograffiti eapichaçãonoespaçourbanopossibilitamvários tipos

deleituraseinterpretaçõessobreseusimpactosnapaisagem.Paraosensocomum,apaisagemurbanamarcadapelograffitie/oupichaçãoéfrequentementeassociadaàbaderna,sujeira,desordem,degradaçãoetc. (MONDARDO; GOETTERT, 2008). Porém, essa é apenas umaformade leitura,quepredominana sociedadecapitalistaeencobreoutraspossibilidades.Ograffitieapichação,quenãosãoexatamente

amesmacoisa,dãovazãoàexpressãodegruposminoritáriosque,pordiversosmotivosoptaramporessaspráticas.Aaçãodosgrafiteiros,podeserinterpretadacomoformaderesistênciaàordemestabelecidapelos grupos dominantes da sociedade e do Estado. As marcasdeixadaspelograffitieapichaçãopossibilitamquegruposexcluídose/oumarginalizados(grafiteirosepichadores)delimitemeseapropriemdeterritóriosurbanosdominadospelasnormaseregrasestabelecidaspelos grupos dominantes. Nessa apropriação, os grafiteiros epichadorespassamaestabelecercanaisdecomunicaçãoentresi,pormeio de mensagens codificadas e intencionalmente ilegíveis paragrandepartedapopulaçãourbana(MONDARDO;GOETTERT,2008).Cabe, neste momento, apontar algumas características que

distinguem a pichação do graffiti.A pichação caracteriza-se “comoletrasouassinaturasdecarátermonocromático,feitascomsprayourolodepintura”(SPINELLI,2007,p.113).Segundooautor,opichosepopularizou,emumestilopróprio,apartirdacidadedeSãoPauloedifundiuno restantedoBrasil.Jáograffiti caracteriza-secomoumaexpressãovisualdomovimentohip-hop,surgidonosEstadosUnidos,e,diferentementedopicho,seaproximamaisdasartesplásticas,oqueotornamaistolerávelpelopoderpúblicoemaisaceitopelaindústriacultural(SPINELLI,2007).Senasdécadasde1960/70,asuaorigemograffitieraamarcade

identidade visual da resistência urbana do movimento hip-hop nosEstadosUnidos (OLIVEIRA;TARTAGLIA, 2011), nas últimas décadaso graffitisedifundepelomundocomo“expressãocultural” legítima,cada vez mais reconhecida e valorizada por interesses públicos e

privados(CAMPOS,2013).Apesardeserpossívelidentificaraspectosquedistinguem,noBrasil2,ograffitidapichação,MondardoeGoettert(2008)afirmamquenãoháconsensosnestetipodecategorização.

2 NoMéxico,porexemplo,apalavragraffitiéutilizadaparadesignar“todasasprodu-çõesrealizadascomaerossolououtrosutensíliosemateriaiscomointuitodedivulgarseusnomesdegrafiteiros”(CRUZ,2004,p.198apudSPINELLI,2007,p.119).

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A adrenalina causada pela transgressão da legalidade

é um dos principais fatores que inicialmente atraem

indivíduosparaomundodograffitiedapichação.Emsua

grandemaioria, os grafiteiros e/ou pichadores são jovens

do sexomasculino que se propõem a viver numuniverso

social fechado, à margem da sociedade hegemônica, e,

consequentemente, alvos de perseguição da polícia e de

proprietáriosdopatrimônioviolado(CAMPOS,2013).

Prosser aponta alguns aspectos que conferem força e

fragilidadeaestetipodeartepública.Segundooautor:

[...] a força se manifesta na intensidade de suaexpressão,naagressividadequemuitasvezesveicula,natransgressãoquegeralmentecarregaconsigo,naiconoclastia, na usurpação e na ressignificação deespaçosurbanos, sua fragilidade resideno fatodequenodiaseguinteàsuaelaboração,outroartista(?), vândalo (?), proprietário (?) ou autoridade (?)podeseapossardomesmomuro,interferindosobreoque foipintadoou simplesmente, cobrindo-odeumatintaqualquer(PROSSER,2006,p.3).

Na argumentação de Prosser (2006), as ações dos grafiteiros e pichadorestornama cidade umpalco de conflitos por umbemprecioso nas disputas depoderterritorial:apossesimbólicadapaisagem.Apossesimbólicadapaisagemgaranteaopossuidorumsuporteparaasuaexpressão,poisapaisagemnãodeixadeserummeioativodecomunicação.Paraalémdosconflitosterritoriais,aaçãodosgrafiteirospodeserlida,numdeterminadoespectro,comoaressignificaçãoehumanizaçãodosespaçosurbanospadronizadosemonótonosdasociedadecapitalista,e,noutroespectroantagônico,comopoluiçãovisualedepredaçãodo patrimônio, o que causaria consequências “indesejáveis” para a sociedade(PROSSER,2006).Outra possibilidade de leitura e discussão da espacialização na cidade da

arte dos grafiteiros e pichadores, levantada por Prosser, é o choque entre apropriedadeformaleodomínioterritorialdosespaçosurbanos,pormeiodaartederua.Paraosartistasderua,apropriedadeeaterritorialidadenãosãomais

Figura 1: Graffiti em paredevoltadaparaciclovia–Curi-tiba

Foto: Fernando D. Caetano,abrilde2015.

Figura 2: Deposição de entulho ao lado de pi-chação emmuro.Aspecto simbólico da au-sênciadopoderpúblicoeprivadonodomíniodoterritório?

Foto:FernandoD.Caetano,abrilde2015.

Figura 3: Comunicação visual de propriedadeprivadaversuscomunicaçãovisualdaartederua.Conflitoterritorial?

Foto:FernandoD.Caetano,abrilde2015.

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definidas “pormeio de uma escritura em cartório,maspelarelaçãoentreaquelequeconvivecomdeterminadoespaçoeopróprioespaço”(PROSSER,2006,p.9).SegundoProsser(2006),ograffitieapichaçãoresgatam

modelos antigos de convivência em comunidade, semregras estabelecidas de comportamento. O constantedesrespeito, dos grafiteiros e pichadores, das regras enormas que visam “respeitar” a integridade física dosespaçospúblicoseprivados,alémdedesafiaraautoridadeinstituída, remetem à volta ao contato interpessoal e àcomunicação direta com os demais indivíduos de seucontextosocial,“nãomediadapormeioeletrônicooudecomunicaçãodemassa”(PROSSER,2006,p.7).Alinguagemcodificadadestetipodearteurbanabusca,

em grande parte, enfrentar o poder das autoridadespoliciais, desafiando-os a decifrar seus codinomes, acompreender seus códigos e contemplar suas imagens,com o objetivo de alcançar admiração e popularidadeentre seus pares (LÓPEZ, 1998). Além disso, Prosser(2006)afirmaqueaslinguagensespecíficasdografiteedapichaçãoseconfiguramcomoumanegaçãodaindústriacultural, pois não se baseiam na reprodução emmassade conceitos, em geral, hipnotizantes. Nesse sentido,pode-se dizer que o graffiti e a pichação apresentamcomponentesqueafrontamalógicapré-estabelecidadereproduçãoculturaldasociedadecapitalista.Gonçalves eEstrella (2007) traçamumparalelo entre

movimentosartísticosdevanguardaeograffiti.Segundoos autores, os movimentos de vanguarda e o graffiti se apresentam como operações de resistência, com a

consciênciadarelaçãoentrearteepolítica.Porém,diferentedosmovimentosde

vanguarda,ograffitinãoseorganizaapartirdeumprojetoe/ouprogramaartístico,

emesmo assim apresenta competência em se agenciar visualmente como um

choqueeumaprovocaçãocomunicativa,numaespéciede“contra-racionalidade”.

Mondardo e Goettert (2008) afirmam que, em alguns territórios onde,

principalmente,ograffitisefazpresente,eéinstitucionalmenteaceito,omesmo

acabasendoencaradocomoexpressãocultural,ouseja,incorporadoàindústria

cultural.Emoutros,ograffitieapichaçãopossibilitamidentificarpaisagensurbanas

deterritóriosderesistênciaàexclusãoeàlegitimaçãodostatus quovigenteque

tenta produzir uma cidade única, sem contradições, conflitos, desigualdades,

dramasemazelasdoserhumano.Ocontra-espaçodaresistênciadograffitieda

pichaçãodeveserperceptívelnacidade,pois, segundoosautores, fazpartedaestratégiadopoderhegemônicoinvisibilizaraprópriadominação,considerandoqueacidade,paraalémdesuasfunçõestradicionaisdecircular,habitar,trabalhare recrear, traz consigo redes de significações coletivas e/ou individuais que

Figura 4: Pichação sobre letreirode imóvel co-mercial.

Foto:FernandoD.Caetano,abrilde2015.

Figura 5:Pichaçãoemimóvelresidencialdisponí-velparalocação.

Foto:FernandoD.Caetano,abrilde2015.

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transcendemnossa“moderna”formacompartimentadadeconhecer,éantesdetudoumdiscurso(MONDARDO;GOETTERT,2008).Apesar dograffiti e da pichação, quando não autorizados, serem

considerados contravenções previstas nos artigos 163 a 165 doCódigoPenalBrasileiro,porsetratardeumatentadoaopatrimônio(MONDARDO; GOETTERT, 2008), o entendimento deste tipo deprática, noBrasil, tem caminhado “para uma transformaçãoda suacondiçãodecrimeambientalepráticaestéticamarginalizadaparaseadequaraumarealidademercadológicadeconsumosoboestatutodeartepública”(TARTAGLIA,2015,p.127).Para “tirar” o graffiti e a pichação da “marginalidade”, o poder

público lança mão de um conjunto de normativas para disciplinaro “uso e ocupação” da paisagem urbana, de modo a promovera visualidade adequada de imagens dirigidas a um público alvoespecífico (TARTAGLIA,2015).Assim,seatendidosospré-requisitosestabelecidospelopoderpúblico,comoaconteceunarequalificaçãodasáreascentraisdediversascidadesbrasileiras,ograffitieapichaçãosão institucionalmentereconhecidoscomoarteurbana,mesmoquecontrariandoaessênciaqueosoriginaram.

O graffiti e a pichação: seus territórios e identidades

Portrásdasaçõesdenormatizaçãodapaisagemurbanaestáumadiscussãosobreadisputapelavisibilidade,quesecaracterizapor“umadisputapolíticadediferentesgrupossociaisnacenapública(eprivada)embuscadaconstituiçãodeumaautoimagemenquantosujeitoembusca de outra forma de ser visto e, por assim dizer, reconhecido”(TARTAGLIA, 2015, p.129). Assim, conforme o autor, a paisagemurbana torna-se objeto de disputas por visibilidade, onde sujeitosocultados por regimes de visibilidade, que determinam os padrõesestéticosdeordenamentodacidade,buscamreconhecimento.

Para Tartaglia (2015), os regimes de visibilidade podem definirumamaneiradeordenaroespaçourbano,potencializando,deformahierárquicaeorganizada,avisibilidadedecertosobjetoseimagensnapaisagem,paracaracterizar(autorizar?)opertencimentoaumlugar,ou torná-los cada vez mais ocultos diante dos olhares alheios. Osregimesdevisibilidadetêminterferidonaproduçãoartísticadograffiti noespaçourbanodoRiodeJaneiro.A legislaçãocariocaclassificouum conjunto de temáticas consideradas indesejáveis na produçãodo graffiti, como conteúdo pornográfico, racista, que apresenteapologias ilegais ou ofensas religiosas.Diante disso, o autor afirmaquetodoograffitiquemanifestaralgocontrárioataisdeterminaçõesestaráàmargemdalei.Aconfiguraçãoestéticadapaisagemurbanaestácondicionadaàsdisposições legais,delimitandoosconteúdosenarrativasvisuaisdograffitinacidadedoRiodeJaneiro,bemcomooestabelecimentodosespaçosadequadospara talpráticaartística.Atentativade“domesticação”,pormeiodanormatização,destetipodearteurbanaaindaestálongedealcançarseusobjetivos.ParaCampos(2013)aaçãodograffitiseassenta,basicamente,naapropriaçãoilícita

doespaçopúblico,pormeiodeumatoquemarcaapaisagem,visando

estabeleceralgumtipodecomunicação.Arebeliãoadvindadestetipo

deatosurgedaintençãodoatordeusoilegaldoespaçoedafabricação

de uma linguagem comunicável, porém inacessível à maioria dapopulação.Segundo o autor, do ato de rebeldia desponta algo queé vital à autenticidade do graffiti e da pichação como arte, e que,provavelmente, justificaa imersãodos jovensurbanosnessemundoàmargemda sociedade: o gozoda transgressão.A transgressão, arebeldiaeasubversãosãoalgumasdasprincipaismolaspropulsorasquefazemcomquealinguagemdograffitiedapichaçãotenhamcadavezmaissetornadoalinguagemuniversaldejovensurbanos,nasmaisdiversaslocalidadesdomundo.

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Neste contexto, a paisagem urbana da cidade tradicional é“impregnada” demarcas territoriais de grupos cujas “regras” estãorelacionadas:àtransgressão,àsubversão,aosexcessos,aosriscos,aosprazereseàsemoções intensas,queacabamatraindograndepartedosjovens(CAMPOS,2013).Segundooautor,ouniversoculturaldograffitiécompostodeelementospróprios,comovocabulários,gírias,estilos, gostosetc, queemconjunto servempara criar identidadeesentidodecomunidade,distinguindo-osdosdemais.Os riscos inerentesavivernestemundofazemcomqueos feitos

destesjovens“artistas”ostransformemnumaespéciedeheróiparaseuspares.Camposcolocaqueopercursoparachegaraesteestágioé duro e espinhoso, sendo que para adquirir estima ou “ascendersimbolicamente nessemeio depende da acumulação de feitos que,quanto mais grandiosos forem, mais valor transferem para seuprotagonista” (CAMPOS, 2013, p.5). Omesmo autor aponta que apresençadorisconavidadosgrafiteirosepichadoresinvocaadesordemprovisória das certezas, decorrente da consciência da ilegalidade edoscontextosemqueograffitiéexecutado.Parao jovem“artista”,a sensação de perda do controle, do abandono ao imprevisível dodestinoedasujeiçãoàsameaçasàsua integridadefísicaéoqueosmoveeosexcita.Aoaproximarojovem“artista”aum“herói”ofazporque a gestão do risco ao qual o “artista” está constantementesujeitonãodeixadeserumatestadodesoberaniadoindivíduo,quese“libertou”dasnormasopressivasàsquaisoindivíduoqueviveemsociedadedevesesubmeter(CAMPOS,2013).Estetipodeexcitaçãodecorrentedatransgressãoéoprincipalfator

que justifica amanutenção dograffiti e da pichação na ilegalidade,onde“brincar”comamorteecomoimponderável“inverteosentidoordenadodomundoeahierarquianormaldasemoções”(CAMPOS,2013,p.6).Nessasinversões,osjovensdescobremoutrasdimensões

do próprio “Eu”, tornando-os indivíduos que ignoram qualquer tipodesensaçãodemedo.Emgeral,“amaioriados‘pixadores’3participadeumagangue,CREWoubonde,quesãocoletivosde ‘pixadores’epassamaassumiruma identidadebaseadanonomedessecoletivo,que será riscado por todos os integrantes desse grupo juntamentecom sua tag4” (SANTOS, 2013, p.13).Não é apenas a adrenalina doriscoquedeterminaasaçõesdessesindivíduos,mastambémaideiade competição os fascina, competição essa que transforma gruposdistintos de grafiteiros ou pichadores em rivais e inimigos, cujo oenfrentamentodemandapreviamenteaosgruposodesenvolvimentodeestratégiasindividuaisecoletivasde“combate”(CAMPOS,2013).Viver nestemundo significa estar constantemente predisposto a

“dar-seavereesconder-se”(CAMPOS,2009,p.3).Paraisso,segundoo autor, o “artista” deve criar mecanismos para gestão de suasidentidadespessoais e coletivas, que refletirão a forma comoessesjovensdesejamserreconhecidospublicamente.Algunsjovensoptampor executar o graffiti na obscuridade, concebendo para isso um“novo” nome, que “resulta de umprocesso aparentemente simplese espontâneo, carrega uma carga simbólica importante e marca atransiçãoparaumnovocamposocial,comassuas lógicas internas”(CAMPOS, 2009, p.11). O autor afirma que os grafiteiros criamassinaturasoutags,queidentificamsuaobra,esãoreconhecidasporumnúmerolimitadodepessoas.Porvezesostagssãosubstituídosporoutros,quepodeocorreremfunçãodasaturaçãodotag,restringindoaatividadecriativadosujeito,oucomoumaestratégiaquevisadespistarasautoridadespoliciais.Assim,ograffititambémofereceaosjovensapossibilidadedejogaremcomidentidades,inclusivedeformalúdica,

3 Valedestacarqueaautoraprefereutilizaragrafia“pixadores”aoinvésdaformanor-malmentecorreta“pichadores”,portambémrepresentarumaformadecontestaçãoàordemhegemônica.

4 Assinatura.

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recriando identidades secretas, assim comoosheróis dasestóriasemquadrinhos.Porém,paraestes“heróis-artistas”oproibidopassaaserpermitido(CAMPOS,2009).ParaMondardoeGoettert(2008,p.307,grifonooriginal):

O graffiti e a pichação são grafias simbólicas emateriais que delimitam um território que busca(quando expressadas por atores subalternos) ademocracia através da criatividade daqueles edaquelas que tem a esperança de uma vida maisdigna,melhor,quesonhamcomoutraspossibilidadesemumacidademaisabertaàsinúmerasdimensõesdo viver, e por extensão, de novas expressões docotidianodaarte,dapolíticaedacultura.

Comograffiti e apichação,osmurose asparedesdas

cidades são ressignificados, e passam a ser “ao mesmo

tempo lugar privilegiado de observação do que acontece

nasviaspúblicas,espelhoqueéobservadopelopedestree

portaqueseabreaomundointeriordassubculturasjuvenisqueacidadeinterativaproduz”(LÓPEZ,1998,p.191).Esse

éomotivopeloqualograffitieapichaçãodespertamdiversostiposdeinteressenoscidadãosenoEstado,que“quersaberquemtomaapalavraequemreproduzas imagensquepassarama configuraro imagináriopopulardosmais jovens”(LÓPEZ,1998,p.191).AestratégiaadotadapeloEstadodereprimirepunirquemnãosedeixacontrolarcaracterizaumjogodeforçasquedisputamodomíniodadimensãosimbólicadapaisagemurbana,marcadapelosconflitosterritoriaisdediferentesgrupossociais(LÓPEZ,1998).Para além da dimensão representativa, a produção artística “pode ser

consideradanãoexatamentecomoumespelhodeumasociedade,mastalvezcomoummapaondefossepossívellocalizarosmodoscomooshomensproduzemseusvalores,problematizamsuaexistênciae,aomesmotempo,atransformam”(GONÇALVES; ESTRELLA, 2007, p. 107). Nesse contexto, tomando por baseCampos (2013), é possível considerar o grafiteiro e o pichador umartista, emfunçãodesuacapacidadedefundarumagramáticaeumatécnicavisualdignaderegistro,poiséreconhecidaporsuacomunidade,combaseemsuasconvençõesestilísticas,comumbemestéticoúnicoquemereceapreciação.

Figura 6:PichaçãocomtagFoto: Fernando D. Caetano,abrilde2015.

Figura 7:Pichaçãoemgrafias,tamanhosecoresdiferentes.Disputasterritoriais?

Foto:FernandoD.Caetano,abrilde2015.

Figura 8:Pichaçãosobrepichação.Disputaster-ritoriais?

Foto:FernandoD.Caetano,abrilde2015.

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Diantedisso,coloca-secomodesafiorepensaropapeldograffitiedapichaçãocomoartespúblicas,quando“filtradas”por regimes de visibilidade que normatizam a paisagemurbana, permitindo o seu reconhecimento como “Arte” esua utilização para atender a demandas outras, que nãodaprópriaarte(TARTAGLIA,2015).Omesmoautorafirmaaindaque:

A paisagem é hoje um elemento altamentevalorizadoemsetoreseconômicoscomooturismo,a especulação imobiliária e o planejamentourbano. Por isso o seu uso deve ser pensado deforma criteriosa em que o cuidado estético e avalorização econômica não sejam seletivos, e simum elemento democratizado no espaço urbano,e que sirvam para beneficiar aqueles que vivem ecirculam cotidianamente na cidade em que vivem(TARTAGLIA,2013,p.201).

Ograffitieapichaçãoremetem,pormeiodatransgressão,ao papel contestatório da arte, que desafia os padrõessocialmentereconhecidoseaceitospelamaioria.Mesmose

tratandodeumaarte“àmargem”dasociedade,ograffitieapichaçãoconseguemsefazerpresentesdeformasignificativanocotidianodosmoradoresdascidades,imprimindo suas linguagens sobre a paisagem urbana “disciplinada” pelosvaloreseregrasdeconvivênciaestabelecidospelosgrupossociaisdominantes.Essesartistasrepresentamapenasmaisumdosdiversosgruposminoritários

que vivem nas cidades, porém, diferentemente de outros grupos, buscamna obscuridade de uma vida à margem da sociedade conquistar seu espaçona paisagem, e assim se tornarem “visíveis”. A concretização desse tipo deintervenção artística oferece ao observadormais atento e sensível chaves deleituradasforçasdepoder,implícitase/ouexplícitas,queestãopresentesequedeterminam,pelosmaisdiversostiposdeinteresses,aconfiguraçãopaisagísticadosespaçosurbanos.

Considerações finais

Oexercício de olhar de forma crítica ograffiti e a pichação enquanto umaformademanifestaçãodaarteurbanademandanecessariamenteporpartedacríticaumareflexãosobreoqueéarte.Maisacessívelaosgruposprodutoresemarginalizadosdasociedade,ograffitieapichaçãotemsidoumcanaldevazãode sentimentos reprimidosdeumaparcela considerávelde jovensquevivemnascidades.Alémdisso,esses“artistas”quevivemàmargemdasociedade,eporissodesconsideramnormaseregrasdeconvíviosocial,acabamporimprimirnapaisagemurbanamarcasque,dentreoutrosobjetivos, “maculam”os seuspadrões estéticos definidores, oriundos valores estabelecidos pelos gruposhegemônicos.Diferentementedasformastradicionaisdeproduçãoeexposiçãodeobrasdearte,desassociarograffitieapichaçãodocontextourbanoondefoiproduzidodescaracterizaoaspectomaisimpactantedestetipodemanifestaçãoartística,queéadialéticaestabelecidaentreaarteeoseucontexto.Osconflitosde leiturae interpretaçãodeste tipodearteurbana,oracomo

poluiçãoedegradaçãovisual,oracomohumanizaçãoevalorizaçãodapaisagem

Figura 9:PichaçãoouGraffiti?Vandalismoou“arte”?

Foto: Fernando D. Caetano,abrilde2015.

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urbana,mostramqueosensocomumsobreoqueébeloeoqueéfeio,econsequentementesobreoqueéarte,é frutodeumaconstruçãosocial,ondeosvaloresdosgruposhegemônicosseimpõemsobreosgruposmarginalizados.Apaisagemdoscentrosurbanosexprimeosconflitosecontradiçõeshumanas,dasociedadecontemporânea,deformalatente.Areflexãoamplasobreasformasdearteurbana,representadaspelo

graffitiepelapichação,induzaaprofundarodebatesobreademocraciadapaisagemurbana.Aquemcabeestabeleceroquepodeeoquenãopodeseraceitonapaisagem,diferenciandoaquiloqueagridedaquiloqueagradaaosolhosdoscidadãosquevivemnascidades?Qualéafunçãodapaisagemurbana?Aquemeladeveservir?Entenderacidadecomoumaobradeartequeseexpressapeloconjuntodeintervençõesfeitasporaquelesquecomelaseinter-relacionaméumprimeiropasso

paraelucidaressasquestões.

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SubmetidoemMarçode2016.RevisadoemJulhode2016.AceitoemAgostode2016.