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GERALDA DE FÁTIMA LOPES PASCHOAL A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT MESTRADO EM EDUCAÇÃO PUCPR CURITIBA 2006

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GERALDA DE FÁTIMA LOPES PASCHOAL

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA À LUZ DO

PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

MESTRADO EM EDUCAÇÃO

PUCPR

CURITIBA 2006

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GERALDA DE FÁTIMA LOPES PASCHOAL

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO CURSO DE PEDAGOGIA À LUZ DO

PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Peri Mesquida

CURITIBA 2006

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Agradeço: aos meus pais, Manuel e Lurdes e aos meus irmãos pela alegria e pelo afeto; ao Edmilson, meu marido, agradeço de uma forma especial pelo companheirismo desde o ensino fundamental e o incentivo ao longo de toda minha trajetória acadêmica. A você, o meu muito obrigado pelo que me ajudou e continua ajudando; às minhas filhas, Tânia e Aline, que entenderam minha ausência nos momentos em que tanto precisavam de minha atenção; ao Professor Dr. Peri Mesquida pela, orientação paciente durante o período de realização do mestrado; aos demais professores do mestrado, que de diversas maneiras contribuíram para o desenvolvimento desta pesquisa;

aos meus colegas professores, pelo incentivo e carinho.

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“É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. Michel Foucault

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RESUMO Este trabalho desenvolve um estudo conceitual e interpretativo acerca do pensamento de Michel Foucault e sua presença na educação escolar, apresentando os três momentos de sua trajetória: Arqueologia, Genealogia e Ética, com o objetivo de destacar o tipo de relação saber/poder, suporte teórico deste estudo. A partir desse referencial teórico, é feita uma análise interpretativa de algumas ementas de Programas de Aprendizagem dos cursos Formação de Professores e de Pedagogia de uma instituição de ensino superior privada, bem como do Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógica que orienta o curso. O trabalho está organizado em três capítulos. No primeiro, tem-se um estudo das principais obras que marcaram a trajetória das pesquisas de Michel Foucault. No segundo, uma abordagem da questão da sociedade disciplinar e o estudo interpretativo das três formas de organização do poder, tendo em vista os mecanismos de vigilância e controle, em especial na sua articulação com a educação escolar e as práticas educacionais. No terceiro, uma análise do programa dos cursos de Formação de Professores e de Pedagogia, procurando identificar o conceito de “disciplina”, com a intenção de observar a presença de Foucault no programa dos cursos em questão.

Palavras-chave: educação, formação de professores, disciplina, vigilância, controle, saber, poder.

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ABSTRACT This work presents a conceptual and interpretative study regarding the Michael Foucault’s thought and his presence in scholar education, presenting three moments in his trajectory: Archeology, genealogy and ethics with the goal of highlighting the kind of relation knowledge/power that will be a theoretical support for this study. By means of this theoretical reference we have achieved an interpretative analyses of some learning programs for teachers and pedagogy courses in private institutions as well as the institutional project and didactic pedagogical organization that drives the course. The work is organized in three chapters. In the first one, we have pointed out the main works of Michael Foucault, taking into account those with great importance in his research pathway. In the second part, we have broached the disciplinary society issue, through an interpretative study of the three ways of the power organization focusing the surveillance mechanism and control, mainly in its articulation with scholar education and the educational practices. In the third chapter we have analyzed the formation program courses for teachers and pedagogy courses, trying to identify the concept for “discipline” with intention of observing his presence in the programs of these courses. Key-words: education, teachers education, discipline, control, vigilance, power, know.

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SUMÁRIO

RESUMO

ABSTRACT

INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 1

1. APRESENTAÇÃO GERAL DOS TRÊS MOMENTOS DO

PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT ..................................................... 6

1.1 Características gerais do eixo arqueológico ................................................. 7

1.2 As obras do período arqueológico................................................................. 10

1.2.1 História da loucura ..................................................................................... 11

1.2.2 O nascimento da clínica............................................................................... 15

1.2.3 As palavras e as coisas................................................................................. 18

1.2.4 Arqueologia do saber................................................................................... 22

1.3 Últimas considerações sobre a arqueologia................................................... 25

1.4 Características gerais da genealogia.............................................................. 27

1.5 As obras do período genealógico................................................................... 31

1.5.1 Vigiar e punir................................................................................................ 32

1.5.2 História da sexualidade: a vontade de saber.............................................. 35

1.6 Últimas considerações sobre a genealogia..................................................... 37

1.7 Características gerais do eixo denominado ético........................................ 38

1.8 As obras do período ético................................................................................ 39

1.8.1 História da sexualidade: o uso dos prazeres.............................................. 40

1.8.2 História da sexualidade: o cuidado de si.................................................... 42

1.9 Últimas considerações sobre o momento ético.............................................. 43

2. OS MECANISMOS DISCIPLINARES E SUA PRESENÇA

NA EDUCAÇÃO ................................................................................................... 44

2.1 As formas de punição...................................................................................... 44

2.1.1 O suplício....................................................................................................... 44

2.1.2 A teoria dos reformadores................................................................................ 48

2.1.3 A prisão......................................................................................................... 50

2.2 A sociedade disciplinar.................................................................................... 52

2.3 O panótico........................................................................................................ 57

2.4 Um bio-poder................................................................................................... 59

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2.5 As técnicas disciplinares e as instituições de ensino..................................... 61

2.6 Os mecanismos que permitem o funcionamento da disciplina................... 65

2.7 O espaço da visibilidade (modelo panótico) nas instituições

educacionais........................................................................................................... 67

2.8 O papel da avaliação para o funcionamento do poder disciplinar.............. 69

3. O PODER DISCIPLINAR E OS CURSOS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES:

UM ESTUDO DE CASO............................................................................. 77

3.1 As técnicas disciplinares e o Curso de Formação de Professores............... 77

3.1.1A arte das distribuições................................................................................ 78

3.1.2 O controle da atividade............................................................................... 79

3.1.3 A organização das gêneses................................................................................ 83

3.1.4 A composição das forças................................................................................... 84

3.2 Os recursos para o bom adestramento e o curso de Pedagogia e de

Formação de Professores .......................................................................................... 85

3.2.1 A vigilância hierárquica.................................................................................... 86

3.2.2 A sanção normalizadora.............................................................................. 87

3.2.3 O exame......................................................................................................... 88

3.3 Últimas considerações sobre a pesquisa documental................................... 94

CONSIDERAÇOES FINAIS ............................................................................... 101

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................ 104

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INTRODUÇÃO

Ao lado de pensadores como Martin Heidegger, Antonio Gramsci, Jürgen

Habermas e Jean Paul Sartre, Michel Foucault (1926-1984) foi um dos principais

pensadores do século XX. No campo da filosofia, sua recepção foi significativa em todo

o mundo. No Brasil, são vários os comentadores que fazem a recepção do pensamento de

Foucault, dentre os quais pode-se citar Roberto Machado, no Rio de Janeiro, Salma

Tannus Muchail, em São Paulo, e Inês Lacerda Araújo, em Curitiba. Esses

comentadores, além de apresentarem ao grande público o pensamento de Foucault,

estabelecem linhas de leitura do filósofo, que destacam um aspecto ou outro de sua

filosofia. Por exemplo, é visível a diferença entre a leitura de Salma Tannus Muchail, que

se ocupa preferencialmente do Foucault da genealogia, das relações entre saber e poder

que o filósofo desenvolve a partir da década de 1970, e a leitura desenvolvida por Inês

Lacerda de Araújo, que lê Foucault a partir, preferencialmente, de As Palavras e as

Coisas e outros textos da década de 1960, privilegiando a análise do filósofo sobre

formações discursivas e o estabelecimento do estatuto das ciências humanas.

No caso da Educação, não poderia ser diferente: o pensamento de Foucault vem

ocupando um lugar significativo, tanto como “referencial teórico” de algumas

dissertações de mestrado, quanto em livros e artigos de intelectuais, da área, interessados

em novas perspectivas para suas análises. Como referencial teórico, Foucault, vem

ampliando os horizontes do pensamento educacional brasileiro, que foi marcado, após o

período tecnicista, por uma forte influência de Marx e Engels, que foram tomados como

pontos de partida para uma interpretação que atribuía ao intelectual não mais um papel

de interpretar o mundo, mas de transformá-lo, recorrendo para isso a uma leitura dialética

da realidade e procurando identificar seus próprios trabalhos, como um movimento

engajado em transformações.

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Nesse contexto, no Brasil, em especial no campo da educação e das ciências

sociais, a presença de um autor que não se alinhava com as análises marxistas não

parecia muito bem vista. Inicialmente tido como estruturalista, depois de não apresentar

saídas para os problemas que apontava, parecia que Foucault não teria lugar no campo

das discussões sobre a educação.

Porém, nos últimos anos, alguns estudiosos da área da educação, como Veiga Neto,

Adriana de Oliveira Lima, Capriano Luckesi, entre outros, têm apresentado análises de

problemas educacionais a partir da filosofia de Foucault, bem como aspectos do próprio

pensamento de Foucault que contribuem, de modo significativo, para o pensamento

educacional brasileiro.

Os livros dos autores em questão, da área de educação, não apenas se associam às

diferentes leituras do filósofo que se tem na sua recepção no Brasil pela Filosofia, como

também caracterizam uma recepção peculiar do pensamento de Foucault no campo da

Educação, destacando aspectos como a noção de “sociedade disciplinar”, bem como a

leitura da educação como um dispositivo que se encontra nas escolas, mas também nas

fábricas, nos hospitais, nos quartéis e nas prisões, enfim, nas instituições que, segundo

Foucault, se ocupam do “seqüestro” (FOUCAULT, 1978, p. 96) dos indivíduos com a

promessa de “melhorá-los”, tornando-os dóceis e produtivos.

Nesse sentido, toda a seriação que se tem na escola, assim como as normas, o

controle do tempo e das atividades, o exame e, acima de tudo, a sua atuação a partir do

princípio da visibilidade – Panoptismo – (FOUCAULT, 1987, p. 173), passam a ser

entendidos a partir de uma correspondência com um propósito que se estabelece em

relação a um sujeito que não se apresenta mais como senhor do conhecimento e da

natureza, mas produzido por meio de sempre novas subjetivações (sujeições).

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Trata-se, portanto, de uma análise que considera o sujeito como produto de jogos de

poder que se articulam com instituições – como a educacional – além de mostrar que um

sujeito, uma vez entendido como um produto, uma invenção, pode sempre ser

reinventado. Vem daí o aspecto revolucionário de Foucault, que ensina ao homem que

ele tem mais liberdade do que imagina, uma vez que pode ser, como um artista, inventor

de si mesmo.

Acredita-se ser de fundamental importância para a formação docente que o

professor tenha consciência do tipo de educação com a qual está envolvido, podendo

avaliar a própria prática em sala de aula como parte de um projeto de formação de

indivíduos e articulada com certas formas de exercício de poder. A título de ilustração do

que pode ser este tipo de avaliação da ação docente, pretende-se fazer um estudo

interpretativo e crítico do programa do curso de Pedagogia em instituições privadas, a

partir de conceitos foucaultianos, com destaque para aqueles ligados à noção geral de

“disciplina”.

Assumindo o ponto de vista de Foucault, de que os homens, em seus discursos,

falam de práticas e relações de poder, serão analisados alguns enunciados presentes no

Projeto Institucional e na Organização Didático-Pedagógica do curso supra citado para o

período de 2000 a 2005. Pretende-se verificar se os mecanismos de controle estão

expressos nos discursos daquele projeto no período proposto, levando em conta,

especialmente, algumas ementas das disciplinas em estudo e o sistema de avaliação

proposto no programa do documento em questão.

A análise do material tem como referência a discussão da relação saber/poder, que

se concretiza em práticas disciplinares. Nesse sentido, as obras Arqueologia do Saber, As

Palavras e as Coisas, Vigiar e Punir, bem como a coletânea de textos intitulada

Microfísica do Poder, de Michel Foucault, assumem um papel central na realização deste

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trabalho, na medida em que permitem a compreensão de enunciados, como aqueles que

se tem em um projeto pedagógico, como parte de um discurso, que possui modalidades

particulares de existência e cujo aparecimento e manutenção se relacionam com formas

de exercício de poder.

Estabelecendo um recorte nesta proposta de estudo, embora não se deixa de tomar

as ementas como material primário de trabalho, a análise irá ocupar-se de forma especial

do quesito “avaliação”, que tem como objetivo aprovar ou reprovar o aluno de uma

determinada série, a partir de conteúdos pré-estabelecidos, como um mecanismo que

permite uma triagem que define a permanência ou o desligamento do aluno de uma

determinada etapa do processo ensino-aprendizagem ou sua ascensão para outras etapas.

O sistema de avaliação é, ao certo, o que permite retomar de forma mais clara alguns

conceitos trabalhados por Foucault, principalmente o conceito de poder, como um

exercício, que se torna possível por meio da disciplina, que controla e normaliza os

indivíduos.

Ao abordar esse aspecto, uma das obras de Foucault passa a se destacar em relação

às demais: trata-se de Vigiar e Punir, no qual o autor analisa os mecanismos de punição e

de vigilância, enfim, do poder disciplinar. Essa obra é o principal referencial para a

análise da dinâmica disciplinar na prática educacional. Em relação ao exame, tem-se nela

a explicitação de que, na educação, é esse mecanismo que permite o estabelecimento da

verdade sobre os indivíduos, um saber indispensável para o exercício do poder

disciplinar.

Este trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, intitulado Apresentação

geral dos três momentos do pensamento de Michel Foucault, é feita uma abordagem

geral da trajetória do pensamento de Foucault, considerando a divisão que o toma em três

períodos: Arqueologia, Genealogia e Ético. No segundo capítulo, Os mecanismos

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disciplinares e sua presença na Educação, é trabalhado o conceito de sociedade

disciplinar, tendo em vista os mecanismos de vigilância e controle, em especial na sua

articulação com a educação e as práticas educacionais. No terceiro capítulo, Análise

interpretativa do Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico do curso

de Pedagogia de uma instituição particular, é feito um resgate do conceito de

disciplina com a intenção de observar sua presença no programa do curso em questão e

no sistema de avaliação sugerido.

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2. APRESENTAÇÃO GERAL DOS TRÊS MOMENTOS DO

PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT

Os escritos de Michel Foucault apresentam uma unidade determinada pelo fato

de serem pesquisas realizadas acerca dos saberes sobre o homem, bem como sua

constituição e possibilidades. Porém, quanto aos procedimentos, conceitos e objetivos,

esses escritos formam uma trajetória marcada por modificações, que são reconhecidas

e divididas por vários comentadores em três eixos que apresentam as seguintes

denominações: eixo arqueológico, eixo genealógico e eixo, ético. A intenção que se

tem neste capítulo é fazer uma apresentação de forma descritiva de tais períodos,

realizando um levantamento das principais características das obras que formam os

três momentos do pensamento de Michel Foucault (MUCHAIL, 2001, p.7-8).

Segundo Dreyfus e Rabinov, o próprio filósofo afirma, em entrevistas dadas, a

divisão de seu pensamento em três momentos, quando diz: “procurei criar uma

história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos

tornaram-se sujeitos” (DREYFUS & RABINOV, 1995, p. 231), reforçando mais uma

vez a classificação feita por estudiosos que o tomam como referencial teórico para

suas pesquisas, conforme os eixos citados acima.

Para desenvolver esta apresentação, pretende-se fazer, num primeiro momento,

uma exposição das principais características do conjunto de obras que formam o

denominado eixo “arqueológico”, que se constituiu especialmente na década de 1960.

Em seguida, pretende-se, da mesma forma, apontar as características do pensamento

de Foucault, que correspondem, na década de 1970, ao eixo genealógico. Por fim, far-

se-á uma abordagem do terceiro momento, denominado eixo ético, que tem lugar no

final da década de 70 até o ano de 1984, quando se dá morte do filósofo.

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1.1 Características gerais do eixo arqueológico

Em suas pesquisas, Michel Foucault reivindica para sua “arqueologia” um lugar

no movimento de transformação dos procedimentos metodológicos da história,

conhecida como história nova. Segundo ele, com a história nova, o problema das

descrições historiográficas deixa de ser o encadeamento de fatos e o estabelecimento

de relações de causalidade entre todos os acontecimentos de uma determinada época e

passa a ser o projeto de uma história geral. (FOUCAULT, 1987, p.3-20).

Para o filósofo, cabe aos novos historiadores o empenho em estabelecer uma

série de acordos com a especificidade e o nível dos acontecimentos. No entanto, a

descontinuidade dos saberes, segundo o filósofo, assumiu um papel fundamental nessa

nova metodologia e deve ser trabalhada e analisada pelos historiadores, de vez que

ela- a nova metodologia- fez surgir o projeto de uma história geral no lugar da prática

tradicional, que buscava descrever o processo de evolução linear do ser humano,

fundado na hipótese de que todos os acontecimentos históricos fizeram parte de uma

mesma série e que existe um centro em torno do qual todos os fatos encontram um

razão de ser.

Para Foucault, o projeto de uma história geral surge a partir da desconfiança

frente às totalizações da história, como as que descrevem a consciência de uma época,

a sua visão de mundo ou, ainda, o espírito de um povo. Segundo ele, a história nova

procurava organizar e descrever conjuntos de acontecimentos, que poderiam ser

entendidos como constituídos por meio das relações que efetivamente ocorrem entre

os elementos desses conjuntos. Por isso, o surgimento da história nova corresponderia

a um deslocamento para fora dos domínios da historiografia tradicional e da reflexão

clássica sobre a filosofia da história. Não se trata, nesse caso, de saber quais são os

fins últimos da história que regulam as sucessões dos fatos humanos, pois o que

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interessa é a possibilidade de descrevê-los em sua positividade e efetividade naqueles

conjuntos específicos.

No domínio da história das idéias e das ciências, as novas descrições dos

discursos resultaram num desvelamento de formações discursivas, que nem sempre

obedeciam à mesma cronologia utilizada para demarcar os acontecimentos políticos,

econômicos e sociais; da mesma forma, nem sempre mostravam, por exemplo, o

nascimento de uma ciência a partir de outra. As novas descrições historiográficas

passaram a tomar como pressuposto, em oposição à linearidade da história tradicional,

uma série de descontinuidades, que podem ser definidas como cortes epistemológicos

ou, ainda, como uma leitura das estruturas arquitetônicas das formas de discursos.

Sobre esse ponto de vista, essas análises não se reportaram mais a um sujeito

absoluto que governa, de fora, a evolução de uma idéia, o progresso de uma ciência, o

refinamento de um conceito ou ainda a evolução de uma mentalidade. Não se tratava

mais de se procurar uma norma que, externa aos discursos, regularia suas

proliferações. A atenção se voltava, então, para a descrição interna da estrutura dos

discursos e das mutações que elas sofreram em momentos precisos da história da

humanidade. Nesse caso, as análises deixavam de lado o interesse pelas “escolas”,

“movimentos”, e “autores”, abandonando noções como “séculos” e “influências”.

Passaram a procurar uma forma de fixar precisamente as modificações pelas quais os

conceitos de uma ciência foram reutilizados por outras ciências mais novas e, ainda,

em saber como uma teoria deu lugar a outra, considerando em especial as mudanças

ocorridas no sistema dos discursos.

Embora não discordando da idéia de que os fatos discursivos são correlatos ao

contexto social, político e econômico de uma época, em sua forma de fazer história,

Foucault não concede que aí se dê uma relação em que os saberes sejam simples

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reflexos de sistemas econômicos. Para ele, a explicação das relações entre os agentes

sociais não possui uma determinação causal dada, por exemplo, por fatores

econômicos apenas, que acabariam constituindo grandes continuidades e fariam

aparecer um processo de determinações causais numa história totalizante.

É no espaço daquela história contínua e global que se refugiava, segundo

Foucault, a figura do sujeito, a qual, desde o final do século XVIII, funciona no saber

ocidental como seu fundamento. As pesquisas “arqueológicas”, realizadas por

Foucault, colocam em questão tal fundamento.

Para Foucault, o conjunto que essas pesquisas organizam foi formado a partir

das questões do método, colocadas pela história epistemológica (história nova).

Porém, dada a especificidade de sua temática (o nascimento das ciências humanas), a

arqueológica se voltou para uma análise das ciências, sem, contudo, deter-se no nível

anterior da epistemologia, entendida como uma explicação interna da ciência.

Tal especificidade, que se refina a cada livro de Foucault, desenvolve-se a partir

da análise arqueológica, fazendo com que a arqueologia mesmo se modifique e se

retifique a cada momento. Pode-se dizer que isso se deva às exigências específicas

adotadas para a realização de cada pesquisa, mas também à especificidade da própria

análise, pois o que se vê desde a publicação de A história da loucura na idade

clássica, em 1961, até A arqueologia do saber, em 1969, são livros que abrem e

fecham o período arqueológico, são deslocamentos temáticos e uma constante

mudança de objetivos e do sistema argumentativo.

Em linhas gerais, os acontecimentos que foram descritos nas pesquisas

(arqueológicas) ocorreram em sua maioria entre os séculos XVI e XX e foram

escolhidos por Michel Foucault para uma reflexão sobre o homem enquanto sujeito e

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objeto do conhecimento. É uma reflexão que se dá na busca de condições históricas e

de possibilidade de saberes sobre o homem.

1.2 As obras do período arqueológico.

O conjunto das obras, que representam o eixo arqueológico das pesquisas de

Foucault, é composto por: História da loucura na idade clássica, de 1961, O

nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico, de 1963, As palavras e as

coisas, uma arqueologia das ciências humanas, de 1966, e A Arqueologia do saber,

de 1969.

Nesse conjunto de obras, Foucault faz um estudo aborda a questão da formação

do saber discursivo e das relações estabelecidas entre eles, sendo que, nas obras da

década de 1960, observa-se que o discurso é entendido como uma enunciação restrita

ao âmbito da linguagem verbal, ao mesmo tempo em que o estudo proposto não se

limita ao seu conteúdo e à sua forma. Diferentemente, interessa ao filósofo entender

os processos de transformação ocorridos nos discursos que, por exemplo, deixaram de

ser tomados como representação do mundo e das idéias, para serem percebidos como

práticas produzidas e, ao mesmo tempo, produtoras de materialidades. Passando por

essa transformação, o discurso deixa de ser simplesmente uma expressão verbal no

sentido formal e passa a ser a própria prática dessa instância da linguagem que é a

prática discursiva.

É importante não confundir a prática discursiva com os modos pelos quais as

idéias são apresentadas, nem com o raciocínio que por, inferência, cria sucessões de

palavras, e muito menos como resultante da sabedoria de um sujeito que tem

capacidade de formar ou construir frases gramaticais. Ao contrário, na arqueologia do

saber, o discurso é entendido como um agrupamento de regras que foram definidas,

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historicamente, inscritas em tempos e espaços, e que criam as condições de

possibilidades de exercício das funções enunciativas, em cada época, para áreas,

como: a social, a econômica, a geográfica ou a lingüística. Em sua trajetória histórica,

o processo discursivo é percebido por um movimento de finitude que se dá numa rede

microfísica, que permite seu surgimento como uma prática social na qual se inserem

as relações de poder. A materialidade, que é produzida na constituição de um

discurso, explica que ele não apenas fala da luta e da repressão, mas ele próprio é

parte de tal constituição, edificando-a e alimentando-a ao mesmo tempo em que se

constitui nela.

1.2.1 História da loucura

A História da loucura na idade clássica foi sem dúvida o primeiro livro que

marcou a trajetória das pesquisas arqueológicas de Foucault. Nessa obra, o filósofo

apresenta a análise de um discurso científico, o da psiquiatria, seguindo o propósito de

deixar de lado a história das ciências propriamente ditas, bem como o saber sobre a

loucura produzido pela própria psiquiatria.

As análises que Foucault realiza nessa obra não compreendem um período

posterior ao início do século XIX. Porém, não pode ser considerado um livro que faz

apenas uma abordagem sobre o nascimento da psiquiatria, ou que investiga apenas o

discurso teórico sobre a doença mental. Dessa forma, não se poderia afirmar que suas

análises se limitariam à fronteira espacial (geográfica) e temporal (Época Clássica,

Europa) da prática psiquiátrica ou da psiquiatria como ciência. Mais do que isso, ele

vai buscar relações entre o saber psiquiátrico e outras formas de saber, buscando

localizá-lo em uma episteme que tem sua origem dada a partir de certas

circunstâncias.

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O objetivo do autor é estabelecer relações entre os saberes para que, dessas

relações, surjam compatibilidades e incompatibilidades que possam estabelecer

regularidades, de modo a permitir individualizar uma determinada formação

discursiva. A análise arqueológica apresentada na obra referida está centrada num

período, que tem início na segunda metade do século XVI e se encerra no final do

século XVIII, denominado por Foucault como Época Clássica. Seu alvo principal é a

prática do enclausuramento do louco, bem como a relação da loucura com a medicina.

Segundo Foucault, na Idade Clássica a loucura se encontra em meio ao grupo da

desrazão, que é apartado da sociedade para o grande enclausuramento juntamente com

a pobreza, a homossexualidade, entre outras formas tidas como estranhas ao convívio

social. “O classicismo inventou o internamento, um pouco como a Idade Média [o fez

com] a segregação dos leprosos” (FOUCAULT, 1989, p.53). Nessa época, tem-se, por

exemplo, a passagem de uma visão religiosa da pobreza: “De um lado, haverá a

religião do bem, que é o da pobreza submissa e conforme a ordem que lhe é proposta”

(FOUCAULT, 1989, p.61). Para uma outra, que atribui a ela uma negatividade, uma

desordem moral é um obstáculo à ordem, social condenando-a e exigindo sua

reclusão. “Do outro, a religião do mal, isto é, da pobreza insubmissa, que procura

escapar a essa ordem”. Dessa forma, “a primeira aceita o internamento e aí encontra

seu descanso. A segunda se recusa a tanto, e por isso o merece” (FOUCAULT, 1989,

p.61).

Segundo Machado, (1982,p,64), “o grande enclausuramento assinala, assim, o

nascimento de uma ética de trabalho”, pois o mesmo é moralmente concebido como o

grande antídoto contra a pobreza: “(...) o trabalho não parece ligado a problemas que

ele mesmo suscitaria; é percebido, pelo contrário, como solução geral, panacéia

infalível, remédio para todas as formas de miséria” (FOUCAULT, 1989, p.71), mas

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também contra tudo o que poderia ser entendido como desatino e não racional.

“Trabalho e pobreza situam-se numa oposição simples; suas amplitudes estão na razão

inversa uma da outra” (FOUCAULT, 1989, p.71). O que Foucault pretende esclarecer

na obra, em questão é que a internação do louco, na Época Clássica, não segue

critérios científicos expressos pela medicina; diferentemente, sua internação obedece a

uma ordem ética na medida em que a desrazão remete à idéia do não razoável. “A

partir da era clássica e pela primeira vez, a loucura é percebida [pela] condenação

ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho”

(FOUCAULT, 1989, p.73). O principal objetivo de Foucault, nesse sentido, é mostrar

a impossibilidade de associação que se tem nesse período entre o conhecimento da

loucura e o saber médico.

Em sua História da loucura Foucault demonstra que a psiquiatria é uma ciência

recente, que tem seu nascimento na ruptura entre a medicina clássica, que desconhece

a loucura como doença, e a medicina moderna, que se dirige ao louco a partir da

categoria de doença mental, deixando claro que não se pode mais falar em doença

mental antes do final do século XVIII, momento em que se deu o início da

patologização do louco. Mais do que uma história da psiquiatria, Foucault procura

mostrar que ela é resultado de um processo histórico mais amplo, que de modo algum

diz respeito à descoberta de uma natureza específica de uma essência da loucura.

(MACHADO, 1982, p.79-80).

Para Roberto Machado (1982, p. 58), um aspecto fundamental daquela obra é o

reconhecimento da insuficiência de uma leitura da ordem da história interna da clínica

psiquiátrica, para dar conta da questão das condições de possibilidade de seu

nascimento. Para ele, na História da loucura não se tem propriamente uma história da

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ciência no sentido epistemológico, mas uma análise das rupturas e o estabelecimento

de certas mudanças na ordem do saber (Ibidem).

Ainda segundo (1982, p. 86), na História da loucura a arqueologia tem um

sentido preciso e restrito de investigação das condições de possibilidade mais

profundas do que as dadas ao nível da própria ciência. Para Machado (Ibidem), não há

propriamente, em História da loucura, uma arqueologia do saber. O que se formula

naquele livro de 1961 é uma arqueologia da percepção, que não exclui o saber, mas

toma-o não por sua garantia de verdade ou de cientificidade, mas enquanto uma

formação discursiva sobre a loucura que é bem mais ampla do que o saber oficial e

que inclui, inclusive, as formações extra-discursivas e o que elas dizem sobre o louco

e a loucura.

Por formação extra-discursivas, Foucault entende as instituições, no caso o

Hospital Geral, com sua forma arquitetônica, as disposições das pessoas, as formas de

isolamento, tudo isso “diz” como o louco é percebido e não apenas as formações

propriamente discursivas, entre as quais considera, por exemplo, os registros de

internamento e outros relatórios, que nem sempre seriam considerados como um saber

científico.

Em sua História da loucura, Foucault não se limita a fazer uma história

normativa definida pelo presente de uma ciência, isto é, pela maneira como a ciência

se apresenta naquele momento, como se fosse o resultado de uma evolução que

levasse a ela, mas a toma como produto de certos jogos em que certas formações não

evoluem para ela, mas têm que desaparecer para dar lugar ao valor conferido hoje, por

exemplo, ao saber médico.

Para a epistemologia o progresso em geral se apresenta como uma característica

da ciência. É um processo finalizado em direção à verdade e de uma verdade cada vez

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mais aperfeiçoada e depurada dos erros iniciais. Diferentemente, as análises de

Foucault não se ocupam tanto em apresentar uma contribuição para a história da

ciência psiquiátrica, compreendida como um progresso. Ele identifica as diferenças

entre as várias instâncias sociais que terminavam por recolher o louco no Hospital

Geral, na Idade Clássica, de um discurso próprio ao saber médico, que se constitui a

partir do século XIX e que tem um lugar privilegiado no Asilo e no Hospital

Psiquiátrico. “O século XIX aceitará e mesmo exigirá que se atribuam exclusivamente

aos loucos esses lugares nos quais cento e cinqüenta anos antes se pretendeu alojar os

miseráveis, vagabundos e desempregados” (FOUCAULT, 1989, p.73).

Por fim, com esse livro tem lugar uma nova maneira de se pensar a psiquiatria,

tanto como ciência como parte de um processo de subjugamento do louco que se

revela na teoria e na prática.

1.2.2 O nascimento da clínica

Na obra O nascimento da cíinica, Foucault retoma o problema da diferença

entre a medicina moderna e a medicina clássica apontada em História da loucura, por

meio de uma arqueologia da percepção (MACHADO, 1982, p.85). Segundo ele, não

se deve opor simplesmente a medicina ao seu passado, mas investigar uma ruptura

muito mais ampla da própria positividade do saber com seus objetos, conceitos e

métodos. Por exemplo, enquanto a medicina clássica se dá como parte da história

natural, a medicina moderna encontra seus princípios na Biologia.

Algumas peculiaridades caracterizam esse novo livro. A primeira, mais

evidente,é a mudança de objeto. Enquanto na História da loucura se ocupava da

loucura e da doença mental, O nascimento da clínica passa a analisar a doença em

termos mais amplos (e não mais a psiquiatria) o que tem início no século XIX

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(MACHADO, 1982, p.85). a segunda a diferença é que, em O nascimento da clínica,

sua preocupação está centrada na observação, ou seja, numa arqueologia do olhar que

extrapola a anteriormente denominada arqueologia da percepção, embora não a

abandone. Não se trata apenas de fazer uma análise que apresente a ruptura operada

pela medicina moderna, que era um recorte de um novo domínio e a demarcação de

um espaço da representação para um espaço objetivo, isto é, a passagem de um espaço

de configuração da doença tida como nosográfica, classificatória, para um espaço de

localização da doença no espaço do corpo individual, identificada a partir de sintomas,

como foi trabalhado na obra anterior. O que se percebe em O nascimento da clínica é

a transformação no modo de existência do discurso médico, o qual não utiliza a

mesma linguagem que se tem antes da ruptura da medicina moderna. O que Foucault

compara no livro de 1963 entre a medicina clássica e a moderna é a forma como os

casos são observados. “Para a medicina classificatória, quanto mais geral fosse a

essência, mais simples ela seria. Para a clínica, ao contrário, a simplicidade está ao

nível dos elementos e a complexidade dos casos individuais é dada pela combinação

desses elementos” (MACHADO, 1982, p. 105). Assim, a clínica, diferentemente da

medicina nosográfica, se caracteriza pela prática do estudo de casos, do exame

simples de indivíduos. O que se tem, nesse sentido, é o desaparecimento da medicina

ocupada com o ser da doença e o surgimento de outra medicina, preocupada com o

corpo doente.

Metodologicamente, segundo Roberto Machado (1982, p. 106), O nascimento da

clínica, está situado em dois níveis considerados necessariamente conjugáveis: a

percepção e a linguagem, sendo que, quando Foucault fala em “linguagem”, pretende

deixar claro que não se trata de conteúdos temáticos, mas sim da “estrutura falada do

percebido”. Segundo ele, O nascimento da clínica é inteiramente construído para

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refutar a tese histórica tradicional de que a medicina se tornou científica ao se

transformar em um conhecimento empírico (MACHADO, 1982, p.115). Foucault não

nega em momento algum que a medicina moderna seja empírica, porém, faz uma

crítica à dicotomia estabelecida pelos historiadores entre a teoria e a experiência. Para

ele, é a arqueologia e não a epistemologia que permite observar a ruptura entre a

medicina clássica e a moderna.

A arqueologia, nesse contexto, pretende dar conta da produção de um tipo de

conhecimento que não pode ser estudado pela epistemologia, pois não se trata do

estudo de um discurso científico. O projeto de análise arqueológica contempla a

ruptura que inaugurou a medicina moderna e a exposição do caráter original deste

novo conhecimento: o saber médico moderno estruturado na clínica. Para isso vai

correlacionar o olhar e a linguagem, usando expressões como: “percepção médica”,

“experiência médica” e “olhar médico”, para definir o conhecimento (MACHADO,

1982, p.117).

A linguagem médica moderna pode ser compreendida, segundo a arqueologia,

como uma botânica dos sintomas, um complemento indispensável para a percepção do

olhar que, segundo Foucault, não se trata do “olhar de qualquer observador, mas o de

um médico apoiado e justificado por uma instituição, o de um médico que tem poder

de decisão e intervenção (...). Finalmente, é um olhar que não se contenta em constatar

o que evidentemente se dá a ver; deve permitir delinear as possibilidades e os riscos; é

calculador” (FOUCAULT, 1994, p. 101).

A doença se deixa transparecer nos sintomas, no corpo doente. E os sintomas,

tomados nesse sentido, não remetem a algo específico, mas são signos a serem

decifrados pelo observador atento que é o médico. O mesmo que se tem “no tocante às

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relações entre esta linguagem, de ação que é o sintoma, e a estrutura explicitamente

lingüística do signo” (FOUCAULT, 1994, p. 105).

Não se trata, portanto, de um estudo que considera exclusivamente a linguagem

médica. O filósofo trata também de uma análise da linguagem da gramática dos

signos, do corpo do doente, do que ele fala. enquanto na Época Clássica a linguagem

era a representação do pensamento, algo que, como um símbolo, remete a uma

entidade anteriormente dada, a doença, que antes era classificada pela nosografia. A

própria linguagem possuía um papel de catalogação, em conformidade com as regras

da representação.

Talvez essa seja a principal diferença entre a arqueologia que se tem na História

da loucura e aquela do O nascimento da clínica. Nessa última não se tem um estudo

predominantemente histórico-descritivo, mas conceitual. Ao longo de suas páginas,

percebe-se uma modificação no projeto arqueológico que foi apresentado em A

história da loucura como uma análise da percepção e do conhecimento. Trata-se de

níveis heterogêneos e com pouca comunicação. Observa-se que em A história da

loucura, a percepção assinalava a relação com o louco no espaço institucional; já em

O nascimento da clínica, o que se vê é a pretensão de dar conta do conhecimento em

dois aspectos: o olhar e a linguagem. Lá, o corpo como signo; aqui, o olhar como

percepção.

Por fim, em O nascimento da clínica, não aparece uma definição para a noção

do saber como uma categoria metodológica, nem uma percepção institucional, como

na de 1961, o que vai ocorrer mais tarde, em As palavras e as coisas. Na obra de

1963, o que define a arqueologia é o olhar médico. Trata-se de uma arqueologia do

olhar.

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1.2.3 As palavras e as coisas

A obra As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas

(publicada em 1966)- parece ser a radicalização do projeto arqueológico de Foucault.

Nela, o filósofo defende a tese de que só pode haver as ciências humanas a partir do

momento em que aparecem as ciências empíricas, como a Biologia, a Economia e a

Filologia Moderna.

Para explicar o nascimento das ciências humanas na modernidade1, em As

palavras e as coisas Foucault toma como crivo da análise arqueológica o regime de

erudição, o comentário e a gramática geral e procura analisar essas três considerações

históricas no Renascimento, no século XVI, na Idade Clássica, nos séculos XVII e

XVIII, e na Modernidade, século XIX até este momento. “(...) As ciências humanas

não receberam por herança um certo domínio já delineado, dimensionado talvez em

seu conjunto, mas não-desbravando, e que elas teriam por tarefa elaborar com

conceitos enfim científicos e métodos positivos” (FOUCAULT, 1990, p.361).

A análise realizada naquela obra foi a dos acontecimentos discursivos no nível

em que eles se tornaram possíveis. Aqui, o olhar do arqueólogo não se voltou para as

relações entre os fatos sociais econômicos, políticos e os do de saber. O objetivo foi

mostrar que, antes da Modernidade, a figura epistemológica do homem ainda não

havia surgido no saber ocidental.

O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito de antemão:

nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que

fosse, nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou

das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como homem, pois o

homem não existia (FOUCAULT, 1990, p. 361-362).

1 É importante ter presente que, para Foucault, o termo modernidade compreende o final do século XVIII, o século XIX e o XX. O período anterior, que vai da segunda metade do século XVII até o final do século XVIII, ele chama de Idade Clássica.

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Em As palavras e as coisas, constatou-se que as relações entre o pensamento e a

cultura se modificaram e que, com essas modificações, alteraram-se também os

sistemas de signos por meio dos quais emergiram diferentes formas de conhecimento.

A arqueologia do saber mostrou que a história da filologia não é herdeira do regime da

erudição e do comentário que se teve no Renascimento, e nem é um aperfeiçoamento

da gramática geral que teve lugar na Idade Clássica. Para essas três formas de saber,

não é o mesmo objeto que se apresenta.

Segundo Foucault,

o domínio das ciências humanas é coberto por três “ciências” ou três regiões epistemológicas,

todas subdivididas no interior de si mesmas e todas entrecruzadas uma com as outras; essas

regiões são definidas pela tríplice relação das ciências humanas em geral, como a biologia, a

economia, a filologia (FOUCAULT, 1990, p.372).

Em cada uma delas, a linguagem aparece como um estatuto distinto e funciona

de acordo com regras singulares, coisas e formas de seu conhecimento próprio.

Segundo Roberto Machado (1982, p. 123-125), o propósito da arqueologia em

As palavras e as coisas, é descrever os sistemas formados pelos modos de

relacionamento entre os elementos do saber e da cultura. A descrição desses sistemas

se dá ao nível das relações interdiscursivas, pois é nesse nível que se pode visualizar a

característica particular de cada sistema e as modificações pelas quais uns dão lugar

aos outros. Naquela obra, Foucault descreve a ruptura que separou o saber do

Renascimento do saber da Idade Clássica e o que fez nascer a Modernidade.

Os critérios da análise arqueológica na obra referida acima não foram os graus

de racionalidade e de cientificidade atingidos pelas atuais ciências da linguagem, mas

as regras internas dos discursos, aquelas pelas quais se definiram os lugares ocupados

pelo sujeito de conhecimento, o tipo de objetivo que foi tomado como configurações

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empíricas ou transcendentais pelos discursos, as positividades correlativas aos

domínios estudados e as relações que se estabelecem entre essas positividades. Se

estudadas em seu conjunto, essas regras dão lugar ao que Foucault denominou

epistémè, que nada mais é do que o saber positivo de uma época.

A radicalidade das análises arqueológicas dos discursos consiste em identificar

as regras pelas quais determinadas formas de subjetividades aparecem na história e

não outras. Do mesmo modo, estudar as empiricidades do conhecimento, em seu nível

arqueológico, consiste em procurar as regras que tornaram possíveis os aparecimentos

de certos objetos de conhecimento e não de outros. Essas regras são as mesmas que

regulam o nascimento e o funcionamento das ciências da vida e das riquezas nos

períodos descritos em As palavras e as coisas, a forma como gramática a Geral, a

História Natural e a Análise das Riquezas, na Idade Clássica, a Filologia, a Biologia e

a Economia Política, na Idade Moderna, constituíram-se como ciências. Também no

seu livro de 1966, Foucault não privilegiou o discurso formalmente investido como

estatuto de ciência para analisar o que efetivamente foi dito, na história da cultura

ocidental, a respeito da linguagem da vida e dos objetos de desejos; ele utilizou

também, entre outros, os discursos literário e filosófico.

Dessa forma, descobriu configurações que não foram institucionalizadas como

ciências, mas que funcionaram como princípios que regularam a formação de

conceitos, domínios, modos de percepção e de articulação do conhecimento e que

abriram espaços para a formação das ciências possíveis em cada época estudada. No

entanto, mesmo aqui, a arqueologia não se fundamenta numa teoria do conhecimento,

pois não tem como função principal explicar as causas das transformações que

incidiram sobre o conhecimento, no geral. Seu propósito fundamental é descrever,

passo a passo, os acontecimentos que marcaram as alterações das positividades

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epistemológicas. Esse procedimento, que opera na descrição do nascimento das

ciências humanas, não constitui uma regra universal para a explicação de todo e

qualquer acontecimento discursivo.

Dessa forma, as mudanças que alteram o espaço geral do saber no fim do século

XVIII e no início do século XIX, foram descritas pela “arqueologia” em sua

positividade, ou seja, essas descrições não foram orientadas por uma teoria, mas pela

especificidade dos objetos descritos.

Para Foucault, a descrição do funcionamento da Gramática Geral e do

nascimento da Filologia Moderna não mostra a pura e simples evolução da linguagem.

Ela apresenta uma forma de articulação do saber, que vem se modificando por meio

da descrição arqueológica do nascimento da Filologia Moderna. Segundo ele,

nessas condições era necessário que o conhecimento do homem nem surgisse, com seu corpo

científico, como contemporâneo e do mesmo veio a Biologia, a Economia e a Filologia, de tal

sorte que nele se viu, muito naturalmente, um dos mais decisivos progressos realizados na

história da cultura européia pela racionalidade empírica (FOUCAULT, 1990, p. 372).

Com uma análise das modificações ocorridas na linguagem, pode-se

compreender a relevância dos recortes que a arqueologia do saber operou no campo da

história das idéias. Com ela é possível dar conta dos acontecimentos discursivos, ao

nível de sua própria constituição, reportando-se ao momento de sua enunciação.

O propósito de Foucault em As palavras e as coisas foi descrever a constituição

das ciências humanas a partir de uma inter-relação de saberes ou uma rede conceitual

que lhes crie o espaço de existência, deixando de lado as relações e as estruturas

econômicas. Seu principal objetivo foi aprofundar e generalizar as inter-relações

conceituais, capazes de situar os saberes constituídos das ciências do homem sem

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pretender articular as formações discursivas com as práticas sociais: a questão da

articulação do saber com os saberes extra-discursivos.

1.2.4 Arqueologia do saber

Em 1969, é publicado o livro Arqueologia do saber, obra que encerrou a fase de

pesquisas arqueológicas de Michel Foucault sobre a história da psiquiatria clínica, da

medicina, das ciências da vida, da linguagem e das riquezas, na cultura ocidental.

Nessa última obra, Foucault busca uma tentativa de sistematizar o método

arqueológico que havia sido utilizado nos trabalhos anteriores, procurando apresentar

as possíveis conseqüências que a metodologia nova pode trazer à Filosofia e à

História.

Seu projeto, naquela obra, é fazer uma reflexão sobre as idéias que foram

apresentadas nas pesquisas realizadas anteriormente, e resolver as dificuldades

encontradas no desenvolvimento de suas pesquisas. Nesse sentido, a obra Arqueologia

do saber passa a ser um projeto desenvolvido com o intuito de propor uma revisão,

um aprofundamento e uma retificação dos resultados adquiridos nas pesquisas

anteriores. Sua intenção é fazer uma análise reflexiva sobre as pesquisas já realizadas

e sistematizar o que já foi praticado, buscando uma nova definição para a história

arqueológica.

Do ponto de vista da arqueologia, no entanto, a novidade dessa obra não está na

explicitação do critério do método utilizado, mas na forma como os discursos são

tematizados.

A análise do discurso, nessa obra, não se prende às regras tradicionais de

distribuição dos discursos em ciências, poesias, romances e filosofia. Para Foucault,

os discursos, quando interrogados pela arqueologia, se mostram em níveis mais

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baixos, sendo passíveis de uma neutralidade somente enquanto discurso. Em

Arqueologia do saber, falar sobre o discurso é falar de relações discursivas ou, ainda,

de regularidades discursivas e de articulações entre discursos. A arqueologia,

deixando em segundo plano a questão da cientificidade, acaba interrogando as

condições de existência de discursos. Nesse sentido, Foucault deixa claro que sua

tarefa foi uma tentativa de libertar a história do pensamento de sua sujeição à

transcendência. Essa questão fica mais clara quando afirma:

Meu objetivo era analisar a história na descontinuidade que nenhuma teologia haveria de reduzir

de antemão, (...) permitir que ela fosse desdobrada numa anonimidade sobre a qual nenhuma

constituição transcendental imporia a forma do sujeito; abri-la para uma temporalidade que não

prometesse o retorno de qualquer aurora. Meu objetivo era depurá-la de todo narcisismo

transcendental (FOUCAULT, 1987, p. 200).

Nessa obra, Foucault caracteriza o discurso como sendo um agrupamento de

regras historicamente definidas e inscritas em tempos e espaços específicos, nos quais

se têm as condições de possibilidades para o exercício das funções enunciativas que

são analisadas em cada época, para áreas como a social, econômica, geográfica ou

lingüística. Na História, o acontecimento discursivo é percebido como um movimento

de finitude que se dá numa “rede microfísica”, permitindo seu surgimento, nas

instituições, como prática social. Essa materialidade, que não é produzida por um

sujeito constituinte, explica que o discurso não fala simplesmente da luta e da

repressão, mas que é o próprio poder, desempenhando-se poder que edifica saber e é

por ele realimentado, ou seja, é um poder que se exerce.

Um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar

inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado,

de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para

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si mesmo uma existência remanescente no campo da memória, ou na materialidade dos

manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo o

acontecimento, mas está aberto a repetições, à transformação, a reativação; finalmente, porque

está ligado não apenas a situações que o provocam e a conseqüências por ele ocasionadas, mas

ao mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o

precedem e o seguem (FOUCAULT, 1987, p. 32).

Foucault ainda mostra que um enunciado não é uma enunciação no sentido da

filosofia analítica, isto é, que não está fechado sobre si mesmo. Segundo ele, “é

necessário que um enunciado tenha uma substância, um suporte, um lugar, uma data”

(FOUCAULT, 1986, p 99).

Para o filósofo, a função enunciativa só se exerce no interior de outras

formulações e sempre de maneira contextualizada. Porém, o enunciado não pode ser

confundido com a enunciação, pois, para ele, “há enunciação cada vez que um

conjunto de signos for emitido. Cada uma dessas articulações tem seu individual

espaço-temporal... a enunciação é um acontecimento que não se repete...”

(FOUCAULT, 1987, p.116).

Com isso, pode-se verificar que o discurso, em hipótese alguma, pode ser

simplesmente um recurso de linguagem, pois ao discurso é atribuído um papel mais

importante:

Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, à medida que se apóiem na mesma

formação discursiva... O discurso, assim entendido, não é uma forma ideal e intemporal que

teria, além do mais, uma história; o problema não consiste em saber como e porque ele pôde

emergir e tomar corpo num determinado ponto do tempo; é, de parte a parte, histórico –

fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria historia, que coloca os problemas de

seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações, dos modos específicos de sua

temporalidade, e não de seu surgimento abrupto em meio às cumplicidades do tempo

(FOUCAULT, 1987, p. 135-136).

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Nesse sentido, a linguagem não é vista como um simples meio para

representação do mundo ou para a transmissão de pensamentos ou, ainda, para

enunciar algo. Cabe a ela fazer muito mais que isso, pois é marcada pelo tempo e pelo

espaço, constituindo o que Foucault chama de “prática discursiva”, que reforça a idéia

de que o discurso precisa ser apreendido pelo que ele é e não pelo que possa

representar. Deixa de ser um simples meio para se chegar a uma realidade ou para

representar a materialidade e torna-se criador de realidades, com o poder de

transformar e recriar o mundo constantemente. Dessa forma, ele pode ser entendido

como uma materialidade e, sob esse aspecto, o discurso é o próprio poder.

1.3 Últimas considerações sobre a arqueologia

Para Foucault, a análise arqueológica se distingue da análise epistemológica das

ciências humanas, pois para a arqueologia a análise dos saberes não consiste apenas

em descrever os processos de superação dos obstáculos epistemológicos, muito menos

em julgar a história de uma ciência sob a perspectiva do seu momento atual. Seu papel

é apresentar as regras que dão coerência aos discursos de um determinado período

histórico.

A norma que orienta a abordagem arqueológica é a possibilidade de por meio da

descrição de uma dispersão de fatos discursivos, mesmo que não sejam ciências e não

apresentem afinidades entre seus domínios, encontrar as regras pelas quais, em certos

períodos da história, do pensamento, puderam aparecer determinados saberes. Essas

regras também explicariam porque certos objetos, tipos de subjetividades, teorias e

temas epistemológicos não puderam aparecer em outras configurações do saber.

Se a abordagem arqueológica, propositadamente, se afasta da Filosofia das

Ciências, tal como ela se configura com o positivismo de Augusto Comte, da teoria do

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conhecimento, tal como foi formulada a partir de Kant, e da análise do sentido, tal

como a empreendem as análises do discurso no século XX, é porque a “arqueologia” é

uma tentativa de suprimir o papel fundamental que o sujeito, ou a consciência, têm

exercido na história das idéias e das ciências, em que tradicionalmente, o sujeito teria

assumido a soberania da produção do conhecimento e dos fatos históricos. Com isso, a

historiografia tradicional, que foi fundada tendo por pressuposto a noção de sujeitos

soberanos, faz uma seqüência linear de fatos organizados pelo tempo e classificados

como fases da evolução da consciência humana.

A Arqueologia do saber, que fecha as obras do período arqueológico, aponta a

homogeneidade dos instrumentos metodológicos, encontrados em cada período

histórico, como um fator que clarifica questões desenvolvidas nas obras anteriores, ao

mesmo tempo em que, ao apontar a esfera do poder, característica central do período

genealógico, sinaliza para os próximos trabalhos do filósofo que se passa a tratar na

seqüência.

1.4 Características gerais da genealogia

Na década de setenta, Michel Foucault tem como foco de seus estudos a

genealogia. Nessa fase, ele parte da seguinte questão: o porquê do surgimento do

saber. Nesse momento, sua preocupação volta-se para o esclarecimento do surgimento

dos saberes a partir de condições de possibilidades externas aos próprios saberes

imanentes e é na análise dos porquês dos saberes imanentes que Foucault pretende

explicar sua existência e as transformações que sofrem, situando-os como peças de

relações de poder ou dispositivos políticos.

Para Foucault, toda a teoria é provisória e acidental. Dessa forma, nem a

arqueologia e nem a genealogia têm como objetivo fundar uma teoria, mas, sim,

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realizar análises fragmentárias e transformáveis. Ademais, deve-se ter presente que a

análise genealógica de Foucault produz um importante distanciamento em relação à

Ciência Política, que se limita ao âmbito do Estado na investigação sobre o poder. Em

suas pesquisas, Foucault descobre a diferença entre Estado, poder absoluto e poder,

deixando evidente a existência de formas de exercícios de poder que são diferentes

do poder do Estado. É nesse contexto que surge a distinção entre a macro e a micro

formas de poder, tendo-se, por um lado, as grandes transformações do sistema estatal,

por exemplo, as mudanças de regime e, por outro, um poder capilar, que se situa ao

nível do próprio corpo social e que penetra no cotidiano e é caracterizado como

micro-poder.

Portanto, a microfísica do poder significa mais do que um deslocamento do

espaço, mas um deslocamento do nível em que o poder se efetua. O aparelho de

Estado é um instrumento específico de um sistema de poderes que não se encontra

localizado unicamente nele, mas que o ultrapassa e o complementa. Dessa forma, nem

o controle e nem a destruição do aparelho do Estado transformariam, em suas

características fundamentais, a rede de poderes que impera na sociedade.

Metodologicamente, Michel Foucault procura dar conta do nível molecular do

exercício de poder, sem partir do centro para a periferia, isto é, sem partir do macro-

poder que se poderia apontar no Estado, para as micro-relações de poder. Ele reluta

em relação à idéia de que o Estado seria um órgão central e único de poder. Partindo

da questão colocada, o fato de que existem técnicas de poder relacionados com a

produção de determinados saberes, seria mais produtivo analisar como os micros-

poderes, que têm uma existência própria e formas específicas ao nível mais elementar,

se articulam com o poder mais geral, constituído pelo aparelho de Estado.

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29

Porém, se é certo que Foucault propõe uma análise ascendente do poder, é certo

também que, para ele, os “poderes” não estão localizados em nenhum ponto

específico da estrutura social, mas funcionam como uma rede de dispositivos ou como

um mecanismo de que ninguém escapa e que não existe limites. O poder não existe

como um ser, em si. O que existe são práticas de relação de poder nas quais esse se

exerce, se efetua e funciona. Ele está presente em tudo. O poder é luta, afrontamento,

relação de forças, situação, estratégia. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto

que alguém possua. O poder está nas relações e é algo que se exerce numa disputa e

não algo de que se poderia tomar posse.

Na genealogia, Foucault procura mostrar o poder não na sua concepção negativa,

como algo que diz não, que impõem limites, reprime ou castiga. Sua preocupação é

apresentar o poder como uma concepção positiva que extrai saberes e uma

produtividade. Para fazer uma reflexão positiva sobre o poder, Foucault tem como

modelo o corpo humano, que na modernidade não é tomado para ser supliciado ou

mutilado, mas para ser adestrado de tal forma a se aproveitar ao máximo suas

potencialidades e aperfeiçoar suas capacidades, ou seja, o poder permite formar

homens dóceis politicamente e produtivos economicamente.

As análises genealógicas de Foucault nem são gerais, e nem globalizantes. Trata-

se de apresentar um resultado de investigações limitadas com objetivos bem

demarcados. São análises que não podem ser aplicadas indistintamente sobre novos

objetos, nem podem assumir a pretensão de uma metodologia de valor universal. É,

antes, uma leitura do presente, entendido como parte de um jogo de forças, no qual o

filósofo busca um posicionamento. Elas surgiram explicitamente quando o autor

pesquisava sobre a penalidade, os castigos que se impunham aos condenados.

Voltando-se em especial para a modernidade, os estudos genealógicos de Foucault

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focalizam as tecnologias de controle exercidas sobre os corpos enclausurados

(prisão), em relação aos quais detectou um tipo específico de poder o qual chamou de

“poder disciplinar”.

O poder disciplinar cria um tipo de homem que é extremamente necessário ao

funcionamento e à manutenção da sociedade industrial capitalista e, segundo

Foucault, pode ser caracterizada da seguinte maneira:

- é um tipo de organização de espaços de técnicos, de distribuição dos corpos em

espaços individualizados classificatórios e combinatórios, nos quais os indivíduos

ocupam espaços fechados, esquadrinhados e hierarquizados para desempenhar as

funções que lhes são exigidas. Esse princípio está presente, entre outros, nos hospitais,

nas fábricas, nas instituições de reclusão, nos orfanatos, nas escolas, etc;

- é um controle que se exerce sobre o corpo, uma sujeição do corpo para

produzir o máximo de rapidez com eficácia. Um exemplo característico desse aspecto

é observado nas fábricas, que são divididas em setores para facilitar a vigilância e o

controle de pessoal, visando a uma maior produção. Outro exemplo pode ser apontado

nas instituições de ensino superior, que são divididas em departamentos, cursos, com

toda uma burocracia e classificação, visando, hoje, igualmente, à produção;

- é um princípio de vigilância que se exerce como um instrumento de controle, e

que atua de forma contínua e permanente por um olhar invisível. Pode-se notar a

presença da vigilância em locais de grande aglomerado de pessoas e de forma

privilegiada nas instituições sociais como as fábricas, os quartéis, as prisões, as

escolas, etc;

- é uma prática contínua de registros de conhecimento sobre indivíduos,

permitindo uma articulação entre o exercício do poder e a produção de um saber sobre

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aqueles em que se investe o poder, um saber que é um efeito do poder disciplinar e

que permite a sua manutenção.

Todos esses aspectos são inter-relacionados e se adaptam às necessidades

específicas das diversas instituições que realizam um objetivo similar do ponto de

vista político (tornar o homem útil e dócil). Segundo Foucault, essas técnicas são

vistas e compreendidas como positivas. As pessoas pedem por mais vigilância, por

mecanismos mais aprimorados de produção, por mais disciplina, etc.

Nas leituras realizadas até o momento acerca do pensamento de Foucault,

percebe-se que as ciências humanas, cuja constituição histórica é uma questão central

em sua investigação desde seus primeiros livros, abordadas sob a perspectiva de uma

arqueologia do saber, são retomadas no contexto da genealogia, que não se ocupa

tanto com o surgimento das ciências humanas, porém, mais propriamente, com as

ciências do homem, ou técnicas que se aplicam sobre os homens e, ao mesmo tempo,

um saber sobre o homem, que não é exatamente nobre, como se pretende um

conhecimento científico ou ideológico, mas um conhecimento surgido de registros que

permitem a formação tanto de sujeitos quanto dos domínios de saber.

Nesse universo, não se pode falar de um saber neutro, pois todo saber tem

pretensões políticas, de domínio e possui sua gênese em relações de poder. Para

Foucault, em seus estudos genealógicos, saber e poder se implicam mutuamente e

caminham sempre juntos. Dessa forma, todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo

tempo, um lugar de formação de saber, acúmulo e transmissão de saber. Em especial,

podemos apontar as instituições ligadas ao ensino e à aprendizagem.

1.5 As obras do período genealógico

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O chamado período genealógico dos escritos de Foucault é composto por dois

livros: Vigiar e punir: nascimento da prisão, de 1975, e História da sexualidade: a

vontade de saber, de 1976. Nessas duas obras tem-se a análise histórica da questão

do poder que é compreendida, segundo Foucault, como um instrumento aplicado à

produção de saberes.

Nessas duas obras Foucault apresenta um estudo da formação do poder

disciplinar enquanto forma de exercício de poder. Nelas observa-se a relação entre

formações discursivas e o exercício do poder, além de se observar, novamente,

Foucault ocupando-se do que se poderia chamar de extra-discursivo: as instituições

sociais, como se teve na História da loucura. Aqui, as disposições espaciais e de

tempo dizem tanto quanto os discursos sobre os loucos, presos e estudantes. De forma

análoga, também ao que se teve em alguns escritos da primeira fase de seu

pensamento, o filósofo voltará a olhar para a história, considerando em especial a

passagem da Idade Clássica para a modernidade, em que ele identifica o surgimento

daquele tipo de exercício de poder que denominou de disciplinar e que está ligado ao

funcionamento das prisões, escolas, etc.

Apresenta-se seguidamente, notas introdutórias apenas dos livros, sem

considerar os cursos, conferências e as diversas publicações do filósofo, hoje, em sua

maioria, apresentados como livros e, em grande parte, traduzidos para a língua

portuguesa. Na apresentação das obras do período genealógico buscar-se-á um

tratamento mais sintético, uma vez que esta pesquisadora voltará com mais

freqüência a esses textos nos próximos capítulos.

1.5.1 Vigiar e punir

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A obra Vigiar e punir: nascimento da prisão foi, sem dúvida, a que melhor

caracterizou o termo genealogia, utilizado por Michel Foucault nesta segunda fase de

suas pesquisas. Nela Foucault apresenta o propósito de fazer uma “genealogia da

‘alma’ moderna” (FOUCAULT, 1987, p. 31), na forma de uma análise microfísica do

poder punitivo. Para ele essa “alma” sintetiza tanto o universo dos saberes, nos quais

se produz o indivíduo na modernidade, quanto a própria alma do indivíduo, que é

colocada em julgamento e recolhida nas prisões.

Segundo Foucault, “não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno da superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos” (FOUCAULT, 1989, p. 31). Tanto ela existe, que é o alvo de um poder que não se volta mais diretamente com o intuito de descarregar nele sua ira, mas a ele recorre para atingir sua alma, uma alma sob a qual um corpo se prende, recebe investimentos, é modelado para se buscar resultados que vão para além dele.

Nessa obra, Foucault deixa claro que as características de relações de poder são

diferentes das características do poder do Estado e seus aparelhos, e busca mostrar que

o poder não está centrado em um ponto específico da estrutura social, ou seja, o

Estado não é o centro do poder, mas funciona como uma rede de dispositivos ou

mecanismos de poder do qual nada e ninguém escapa, pois todos estão sujeitos a essa

rede de dispositivos do poder. Segundo ele, não existe ponto exterior possível a essa

rede, constituída pelas práticas ou relações de poder da qual nada e ninguém está

isento ou imune. Também nela, Foucault não desconsidera a repressão, porém enfatiza

que não se pode definir o poder simplesmente como algo que diz não, impõe limites e

castiga.

Em Vigiar e punir, a análise da “alma” moderna em julgamento pode ser

entendida como um estudo do aparecimento da prisão, que no final do século XVIII

coexiste com o suplício e as teorias dos reformadores, como forma de punição e que,

curiosamente, acaba suplantando as demais e tornando-se a forma de punição por

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excelência da modernidade. A substituição do modelo representativo e da festa

bastarda, que caracterizava o suplício pela prisão, só pode ser explicada se for

entendida no conjunto da própria sociedade disciplinar e a prisão mesma como uma

instituição própria dessa sociedade.

Em sua análise, Foucault pretende isolar o momento de passagem da aplicação

das punições generalizadas para o aprisionamento, como revelador da formação de um

novo tipo de exercício de poder, possuidor de novas exigências e necessidades. Com

isso, ele pretende mostrar que os procedimentos de uma ou de outra forma de

repressão, bem como os resultados de sua aplicação, estão diretamente ligados a uma

maior forma de rentabilidade na economia dos exercícios de poder.

Seu objetivo é mostrar que a forma de poder que se estabelece a partir do final

do século XVIII, apresenta aspectos positivos e produtivos na medida em que não

apenas exclui ou reprime, mas produz. Ele produz a própria realidade, os indivíduos e

o conhecimento que se tem sobre ele.

Dessa forma, tem-se a ênfase num tipo de poder cuja positividade tem como

alvo o corpo humano. O poder objetiva diminuir suas possibilidades de revolta,

tornando-o dócil politicamente e, ao mesmo tempo, produtivo. Assim, aumenta-se a

força econômica dos indivíduos ao mesmo tempo em que se diminui sua força

política.

Em Vigiar e punir, tendo como ponto de partida as prisões, Foucault faz uma

análise das instituições disciplinares, mostrando que tanto do ponto de vista

econômico quanto do ponto de vista político, o objetivo é tornar o homem um ser útil

e dócil, ou seja, o poder disciplinar não mutila, nem destrói, nem descarta o cidadão,

mas fabrica um indivíduo que não é o outro do poder, nem é anulado por ele, mas,

sim, um de seus mais importantes efeitos. A obra assinala a passagem dos

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mecanismos de punição corporal para os mecanismos disciplinares caracterizados, por

exemplo, pela vigilância, tão constante, estruturada e interiorizada que dispensa a

presença física da vigia que tem por si mesma, o efeito moralizador da ação. Para

caracterizar essa vigilância permanente, Foucault recorre ao projeto arquitetônico de

Bentham, do final do século XVIII, chamado de panóptico, que se caracterizava por

uma construção na forma de anel, no centro da qual encontrava-se uma torre de

vigilância e ao redor, como um anel, as celas onde ficariam os prisioneiros expostos, o

tempo todo, ao olhar do vigia. Tal princípio, pensado inicialmente para as prisões,

acabou se tornando um modelo da arquitetura para as mais variadas instituições

modernas, um vez que se descobriu que aquele olhar, que parte de um para muitos, é

extremamente produtivo e pouco dispendioso.

Essas instituições modernas, dentre as quais se destaca a escola, caracterizaram-

se não apenas pela vigilância permanente, mas também pelo modo peculiar de

organizar o espaço, de controlar o tempo, de vigiar e registrar continuamente o

indivíduo em sua conduta.

Nessa sociedade disciplinar, onde se tem o nascimento dos saberes que vão ser

denominados ciências humanas, o exame constitui um mecanismo privilegiado de

obtenção da verdade. Com o exame, se tem, mais uma vez, um exemplo de um modo

de poder no qual a sugestão não se faz apenas na forma negativa da repressão, mas,

sobretudo, no modo mais sutil do adestramento, da produção positiva de

comportamentos que possam definir o indivíduo ou o que ele deve ser, segundo o

padrão da normalidade.

1.5.2 História da sexualidade: a vontade de saber

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36

Ao lado de Vigiar e punir, a obra A vontade de saber é uma peça importante

para a composição do chamado eixo genealógico do pensamento de Foucault. Como

em Vigiar e punir, também nessa obra Foucault não pretende fazer uma reflexão sobre

o poder tendo em vista o Estado e seus aparelhos. A questão que ele procura abordar é

a do poder, entendida como uma peça chave para a construção e produção do saber,

um poder que não é analisado e nem visto como uma dominação global. Em especial

nessa obra, o autor tem como objeto de estudos a sexualidade na sociedade e, com ela,

procura mostrar que as relações de poder não se dão fundamentalmente nem ao nível

do direito e nem ao nível da violência. Conforme Foucault,

permanecemos presos a uma certa imagem do poder-lei, do poder-soberania que os teóricos do

direito e a instituição monárquica tão bem traçam. E é desta imagem que precisamos liberar-nos,

isto é, do privilégio teórico da lei e da soberania, se quisermos fazer uma análise do poder nos

meandros concretos e históricos de seus procedimentos. É preciso construir uma analítica do

poder que não tome mais o direito como modelo e código (FOUCAULT, 1988, p. 86-87).

Nessa obra Foucault pretende mostrar que a dominação capitalista não

conseguiria se sustentar, se fosse essencialmente repressiva. Igualmente, é nesse

momento que se tem a noção de micro-poder e, com ela, a idéia mencionada acima, de

que o aspecto negativo do poder não é tudo e talvez não seja o fundamental.

É interessante ressaltar que, em suas obras, Foucault não nega a existência da

repressão. Ao contrário, ele a considera como uma primeira forma de dominação.

Porém, mostra que não se pode definir o poder apenas como algo que diz “não”, que

impõe limites e que castiga. Para o filósofo o poder possui um lado produtivo e

transformador por meio de seu exercício nas instituições disciplinares, tanto do ponto

de vista econômico quanto do ponto de vista da sexualidade, abordado de forma

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especial em A vontade de saber, em que aquele autor apresenta uma interessante

correlação entre a produção da verdade e a produção de prazeres.

No caso particular de A vontade de saber, ao voltar-se para a constituição dos

diversos discursos sobre a sexualidade, tendo em vista a relação saber/poder, mas

também a que se dá nos pólos do poder/prazer, Foucault faz uma abordagem histórica

do poder em sua importância para construir uma economia política do saber. Porém,

numa postura um tanto diferente de Vigiar e punir, em que não se tem uma

explicitação teórica do poder, mas uma utilização prática, nessa obra ele se propõe a

sistematizar seus fundamentos teóricos, como fizera em seu texto de 1971, intitulado

“Nietzsche, a Genealogia e a História”, em que expusera a concepção de genealogia

que marcaria seu livro de 1975. Ressalte-se que nesse item em particular, revela-se

não apenas uma nova explicitação, mas um refinamento de sua concepção de poder,

explicitada até então. Essa possibilidade de mudança fica clara quando Foucault

afirma: “trata-se, portanto de, ao mesmo tempo, assumir outra teoria do poder, formar

outra chave de interpretação histórica e, examinando de perto todo um material

histórico, avançar pouco a pouco em direção a outra concepção de poder. Pensar, ao

mesmo tempo, o sexo sem a lei e o poder sem o rei” (FOUCAULT, 1988, p. 87).

Esse refinamento pode ser identificado como uma genealogia do bio-poder, um

poder que, lançando mão da sexualidade, pretende controlar os corpos dos indivíduos,

um tipo de poder que está diretamente ligado às atividades socioeconômicas, ao

capitalismo em geral. Segundo Foucault, “o bio-poder, sem a menor dúvida, foi

elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pode ser garantido

às custas da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e, por meio de

um ajustamento, dos fenômenos de produção ao processo econômico” (FOUCAULT,

1988, p. 132).

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Tal otimização do processo econômico só acontece se houver um controle rígido

e acentuado sobre os corpos no aparelho de produção, o que Foucault procura

entender, nesse momento, a partir da sexualidade, que, “longe de ter sido reprimida na

sociedade contemporânea, está, ao contrário, sendo permanentemente suscitada”

(FOUCAULT, 1988, p.139). Segundo Foucault, retomando sua leitura da

modernidade a partir da Idade Clássica tais procedimentos de controle foram

colocados em ação a partir do final do século XVIII e início do século XIX, e fizeram

com que surgisse a analítica da sexualidade que marca, juntamente como uma

analítica do poder disciplinar, a sociedade em que se vive.

1.6 Últimas considerações sobre a genealogia

O propósito de Michel Foucault, neste segundo momento de seu pensamento,

que denominou-se eixo genealógico, foi de apresentar os vínculos entre a verdade e o

poder. Nessa fase de seus estudos, ele procurou redirecionar a questão dos saberes, já

presentes no momento arqueológico, correlacionando-os com formas de exercício de

poder. Nesse sentido, o filósofo foi além de fazer uma simples busca do passado que

constituiu os saberes pré-existentes. Ao remexer a memória do passado, ele procurou

uma resposta para as atuais táticas de utilização dos saberes. Com as pesquisas

genealógicas, o filósofo não apenas identifica certas maneiras de descrever os saberes

em determinados períodos da história ocidental, mas correlaciona tais descrições com

o presente. Sua análise se torna uma crítica do presente, na medida em que a

genealogia mesmo não poderia ser apenas um estudo do passado, que é tomado como

estratégia para a compreensão do presente, no qual o genealogista identifica um jogo

de forças em que pretende tomar uma posição.

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Assim, além de identificar e descrever saberes nos escritos do período

genealógico, Foucault se volta para “explicitar de que maneira o surgimento e o

funcionamento, as transformações e o desaparecimento de saberes desqualificados

têm correlatos indissociáveis nas práticas sociais; não apenas enunciá-las, mas

também denunciar as relações que aquelas regras ou condições de surgimento de

‘verdades’ mantêm, recíproca e circularmente, com mecanismo de poder”

(MUCHAIL, 2001, p. 09).

Conclui-se, portanto, que a genealogia não busca respostas para uma verdade

situada num determinado momento, a partir do conhecimento de suas origens, mas

introduz o acaso e o descontínuo num jogo que, aparentemente estático, deve assumir-

se novamente como dinâmico, solto e sem resultados previamente definidos. Segundo

Salma Tannus Muchail, diferentemente dos historiadores tradicionais, que buscam um

ponto de apoio, a genealogia, reduz todo o absoluto à relatividade do devir

(MUCHAIL, 2001, p. 11). E essa é sua principal estratégia.

1.7 Características gerais do eixo denominado ético

Na visão de Foucault, a ética faz parte da moral e dos códigos que dizem

respeito ao comportamento humano, tomado do ponto de vista do que é certo e do que

é errado. Particularmente para Foucault, ela diz respeito à constituição que o indivíduo

faz de si mesmo como um sujeito moral, dono de suas próprias ações, na relação

consigo mesmo e com o mundo. Ainda segundo aquele filósofo, no plano ético o jogo

das verdades remete a uma reflexão sobre as relações existentes entre o falso e o

verdadeiro, tendo presente o que é certo e o que é errado não apenas do ponto de vista

lógico, mas também do ponto de vista moral. Este jogo, entre o certo e o errado, faz

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um balanço do entendimento que cada indivíduo tem do mundo e de si mesmo, como

cada indivíduo se vê no mundo.

Em seus dois últimos livros, que se caracterizam por uma genealogia da ética,

Foucault propõe uma abordagem sobre a questão ética na qual a preocupação do

indivíduo é com o seu próprio “Eu” na relação com os outros e com a verdade. Um

indivíduo que se pode dizer produzido, como se teve nos escritos da década de

setenta, porém, aqui, produzido deve significar produzido por si mesmo e não mais

pelos outros, por instituições ou jogos de poder de que não se tem um controle de

forma efetiva por meio de normas definidas pelos códigos jurídicos ou religiosos. O

indivíduo é produzido por práticas como as do cuidado de si. Verifica-se, desse modo,

uma variação do sujeito, entendido como produto das malhas tecidas pelo poder, para

um sujeito que procura gerar, constituir a si mesmo.

Vale notar ainda que Foucault não nega suas análises anteriores, mas parte delas

para chegar a novas conclusões. Pode-se dizer que, nesses últimos escritos, a

genealogia, enquanto um engajamento, no presente assume novos contornos. Porém,

não se trata de um projeto diferente. O próprio engajamento do filósofo é o mesmo. O

que se altera são os meios.

1.8 As obras do período ético

As obras publicadas por Foucault, que compõem o terceiro momento de sua

produção filosófica são: História da sexualidade II: O uso dos prazeres e História da

sexualidade III: O cuidado de si. Nessas duas obras, Foucault pretende centrar suas

pesquisas em alguns aspectos da ética ocidental ligados à sexualidade, tendo em vista,

de forma especial, o mundo grego - romano e a ruptura que o cristianismo vai

significar em relação ao mundo antigo. Nessa fase, a principal preocupação do

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filósofo é investigar e analisar como se dá a relação do indivíduo consigo mesmo e, a

partir daí, a constituição da sua subjetividade.

Para desenvolver esse trabalho Foucault propõe dividir sua História da

Sexualidade em seis volumes; porém, sua morte interrompeu essa atividade,

limitando-o apenas aos três primeiros: A vontade de saber, que ainda se caracteriza

pela investigação do sujeito como produto de relações de poder, O uso dos prazeres e

O cuidado de si, além do quarto volume, inacabado, que inauguram essa nova

preocupação do filósofo.

Em sua história da sexualidade Foucault não pretendia estudar o

comportamento, a conduta ou as práticas sexuais dos indivíduos. Seu principal

objetivo era investigar o funcionamento da sexualidade, entendida como um grande

sistema que leva ou possibilita o sujeito a falar sobre si mesmo e de seus desejos, algo

aparentemente proibido pela sociedade moralista e controladora.

Nas obras desse período, Foucault tem postura contrária à idéia de um sujeito

preexistente, transcendental ou psicológico. Da mesma forma, ele questiona a idéia de

um sujeito que pudesse ser tomado como mero organizador e unificador de um

determinado grupo de enunciados. Assim, embora se afaste de uma concepção de

sujeito como produto de relações de poder, ele recusa também a idéia de um sujeito

livre, ou de livre arbítrio, portanto, de um sujeito constituinte. Para ele, a subjetividade

não se localiza no nível da representação, mas, sim, no nível da própria produção. Ela

é, ao mesmo tempo, produzida e produtora, ou seja, é uma forma de ver e construir o

mundo.

1.8.1 História da sexualidade: o uso dos prazeres

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Mantendo a intenção de não privilegiar o poder como repressão, em O uso dos

prazeres Foucault volta-se para a sexualidade como um objeto de um tipo de cuidado

que estabelece uma série de códigos e normas de conduta. Diferentemente do que

fizera em textos anteriores, no entanto, suas análises extrapolam a Idade Clássica e se

iniciam pelo mundo antigo. Nesse volume, em especial, pelo mundo grego.

Entretanto, ficou claro que empreender essa genealogia me afastava muito de meu projeto

primitivo. Devia escolher: ou manter o plano estabelecido, fazendo-o acompanhar de um rápido

exame histórico desse tema do desejo, ou reorganizar todo o estudo em torno da lenta formação,

durante a Antiguidade, de uma hermenêutica de si (FOUCAULT, 1984, p. 11).

Nessa obra Foucault mostra que, antes da intervenção cristã sobre a sexualidade,

que passou a ser associada ao pecado, é possível identificar uma outra que não a toma

nesse sentido, porém, que não significa uma ausência de regras ou uma liberalização

sexual. No mundo grego, Foucault identifica um investimento cuidadoso sobre as

práticas ligadas à sexualidade, porém, estabelecidas a partir de outro princípio. Não se

tem a imposição de regras com relação à sexualidade por associá-la ao pecado, mas a

uma série de fatores que Foucault identifica como dietética, uma econômica e uma

erótica, termos que utiliza para sintetizar os fatores que levam o homem grego a

cumprir certos preceitos, qual seja: o respeito a uma moralidade não se fez sempre por

princípios estanques.

Duas hipóteses são formuladas por Foucault nessa obra. Na primeira hipótese ele

pretende mostrar que as normas à obediência e às morais codificadas, estão sempre

associadas a uma ética: a uma prática modificadora de si mesma, uma ética que

implica num conhecimento de si mesmo e a busca de uma sabedoria. Na segunda

hipótese, ele supõe que, embora os códigos estejam sempre associados às práticas

individuais, a constituição às técnicas de cuidado de si e da relação consigo e com os

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outros seguem certos padrões que estabelecem preceitos que os indivíduos se dão a si

mesmos, como condições para a constituição de sua subjetividade.

A formulação dessas duas hipóteses apresenta a possibilidade da realização de

uma história genealógica, que dá privilégios aos modos pelos quais os homens

colocaram para si próprios o problema do apetite sexual, o uso dos prazeres e a

relação dos prazeres com a verdade, tornando-se senhores de seus desejos e

responsáveis por suas práticas.

1.8.2 História da sexualidade: o cuidado de si

Foucault aponta no mundo grego um tipo de cuidado de si que deixa claro como

o homem é constituído como sujeito, por meio da expansão da vontade de

poder/saber, que é produtora de subjetividade.

Recusando mais uma vez a perspectiva da repressão, em que o sujeito foi

pensado a partir da Ciência e da Filosofia Moderna, Foucault vê o sujeito como um

triplo resultado: como exigência do discurso, como peça momentânea e, ainda, como

produto de práticas de controle. Para Foucault não há qualquer instância unitária e

substancial que mereça ser considerada sujeito, como acredita a Filosofia Moderna, se

afirmarmos que o sujeito não é sinônimo de consciência, tampouco podemos torná-lo,

agora, como sinônimo de “instintos” e imaginação, ou do “corpo” como unidade do

“ser humano” (FOUCAULT, 1988, p. 51-59).

Igualmente, em O cuidado de si Foucault não entende o poder como uma

instância perene, nuclear e constituidora da subjetividade. Mesmo quando aponta a

relação entre o poder e o individuo, Foucault não deixa de lembrar que não se trata de

se substancializar qualquer um deles.

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Em sua análise, Foucault afirma que a sexualidade moderna foi determinada pela

pastoral cristã que, a partir do século XVIII, se voltou ao controle dos indivíduos e à

moralização de seus costumes. Segundo ele, o cristianismo contribuiu de forma

considerável para que a experiência moderna da sexualidade tenha se tornado, com

mais ênfase, objeto de conhecimento científico, do que o campo para o uso das

faculdades que os homens têm de serem senhores deles mesmos.

1.9 Últimas considerações sobre o momento ético

Como se vê, numa perspectiva foucaultiana a ética faz parte da moral, do

processo comportamental e dos códigos que apontam o que é certo e o que é errado,

do conjunto das coisas que se pode ou que não se pode fazer. Cabe a ela, atribuir

valores positivos e negativos, bem como às diferenças comportamentais do sujeito. A

peculiaridade de suas análises é que, nesse universo, o indivíduo pode constituir a si

mesmo como um sujeito moral. Portanto, sua ética se constitui como uma

preocupação do indivíduo consigo mesmo.

Para Foucault, a ética é um jogo de verdades. É a relação entre o falso e o

verdadeiro e tal relação tem a função de balizar o entendimento que cada indivíduo

tem para consigo mesmo e, conseqüentemente, o entendimento que cada um tem do

mundo.

Sobre esse aspecto, não se trata de fazer uma história sobre uma prática em si

mesma, mas, sim, de um estudo relacionado às práticas que podem ser discursivas ou

não e que permitem essa relação de si para consigo, que faz com que cada um veja a si

mesmo como sujeito ético (VEIGA-NETO, 2003, p. 98-99).

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Seguindo os pressupostos teóricos aqui apresentados, pretende-se, no próximo

capítulo dessa dissertação, aprofundar a expressão da relação de poder na concepção

de Foucault sobre sociedade disciplinar voltada para a Educação.

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2. OS MECANISMOS DISCIPLINARES E SUA PRESENÇA NA

EDUCAÇÃO

Este capítulo apresenta um estudo das três formas de organização do poder de

punir que existiam no final do século XVIII: o direito monárquico, as teorias dos

reformadores e a prisão, para chegarmos ao que Foucault denomina de poder

disciplinar. Nesse ponto, passamos a uma abordagem descritiva e interpretativa de

algumas características do exercício de poder disciplinar, tendo em vista

especialmente a educação, em geral, e a educação no Brasil, em particular.

Para desenvolver este capítulo pretende-se fazer, num primeiro momento, um

estudo interpretativo das três formas de organização de poder, buscando uma possível

correlação com o sistema educacional. Num segundo momento, tenta-se fazer uma

apresentação da sociedade disciplinar por meio de um levantamento interpretativo das

suas principais características e sua relação com a educação, apontando-a em especial

as práticas pedagógicas como parte da “sociedade disciplinar”.

2.1 As formas de punição

Tomando como referência especialmente o livro Vigiar e punir, pretende-se

apontar as principais características das três formas de punição identificadas por

Foucault no final do século XVIII, a saber: o suplício, as teorias dos reformadores e a

prisão. Essa análise é imprescindível para se chegar à prisão como o suporte

institucional do poder disciplinar, uma vez que, conforme veremos, embora não

tivesse um suporte teórico como, por exemplo, as teorias dos reformadores, nem o

efeito teatral do suplício, a prisão acaba se impondo sobre as demais e permanecendo

como a forma de punição por excelência nos séculos XIX e XX.

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2.1.1 O suplício

O suplício está diretamente ligado ao poder monárquico, que pode ser

identificado na Europa de meados do século XVI até o final do século XVIII, e é

caracterizado por uma compreensão do direito como extensão da vontade do rei e o

império, como extensão do corpo do rei, que não era simplesmente entendido como

uma metáfora, mas como a representação de uma realidade política.

O direito monárquico era uma cerimônia de manifestação do poder real na qual o

rei se coloca no processo, pessoalmente ou por um representante, não como um

mediador, mas como parte atingida e que deve ser reposta. Essa reposição da soberania,

que por um instante foi lesada, acontece pela tomada do corpo do infrator, que é vencido,

destruído e morto em uma execução, que deve ser pública. Nessas execuções, a

participação do público se dava como espectador e testemunha, chegando, em alguns

casos, a tomar parte na execução, porém, mesmo nesses casos, sem desconhecer que o

poder de punir ou perdoar o condenado é uma atribuição do soberano e não pertence, de

forma alguma, ao povo. Dessa forma, o soberano permitia a participação violenta do

povo no suplício, por um instante, opondo limites a essa manifestação no momento

seguinte, deixando sempre claro que ele era a fonte do direito e da força que fazia com

que a lei fosse cumprida. Em resumo, o corpo da lei era o corpo do soberano.

A principal característica do direito monárquico era a aplicação do suplício,

sinônimo do poder monárquico e base da aplicação da lei nesse período, em especial em

se tratando de imposição de penas aos condenados. No poder monárquico, mesmo

havendo a prática de diferentes penalidades, como o banimento e a multa, o suplício era

uma peça importante, uma vez que, por exemplo, antes do banimento se aplicava o

açoite. O suplício, no entanto, acabou se tornando mais característico no caso em que a

pena imposta era a morte do condenado. Nesse caso, a morte não era entendida apenas

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como a privação da vida ou do condenado para a sociedade, mas sim como "o termo

final de uma graduação calculada de sofrimentos" (FOUCAULT, 1987, p. 34). Aqui, o

suplício ainda pode ser entendido como a "arte de reter a vida no sofrimento”

(FOUCAULT, 1987, 34).

Sobre isso, Foucault afirma que:

O suplício é uma técnica e não deve ser equiparado aos extremos de uma raiva sem lei. Uma

pena, para ser um suplício, devia obedecer a três critérios fundamentais: produzir uma certa

quantidade de sofrimento, que se possa suportar se não medir exatamente, ao menos apreciar,

comparar e hierarquizar; a morte é um suplício na medida em que ela não é simplesmente

privação do direito de viver, mas a ocasião e o termo final de uma graduação calculada de

sofrimento: (...) a morte-suplício é a arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a a ‘mil

mortes’ e obtendo, antes de cessar a existência... (FOUCAULT, 1987, p. 34).

Quanto à execução, o suplício deveria ser equivalente ao crime cometido pelo

condenado. Era executado na forma de um ritual organizado e calculado para realizar

uma "marca" naquele que o recebia. Essa "marca" deveria se estender, também, aos que

assistiam ao suplício, os quais, vendo-o, não cometeriam os atos que levaram à sua

realização. Seria, portanto, uma ação exemplar, no sentido de que ninguém se atrevesse

a cometer aquele crime pelo qual o condenado estava sendo supliciado, pois teria um

castigo idêntico.

Nesse sentido, pode-se afirmar que é possível ainda hoje apontar traços do suplício,

não mais como aplicação de uma pena originada do poder do rei, mas como a aplicação

de castigos exemplares, como se tem, por exemplo, ainda hoje, nas escolas, em que a

punição aplicada visa a produzir um efeito sobre o faltoso e também sobre os demais

membros da comunidade escolar.

No entanto, deve-se ressaltar que o objetivo da punição que se tem nos dias de hoje

não é eliminar o corpo do condenado, mas atingir sua alma e ampliar suas

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potencialidades de tal maneira que se obtenha corpos dóceis, tanto naquele que é punido

quanto nos demais alunos. Não se trata, assim, simplesmente da vingança do rei, do

inimigo vencido, mas de algo pensado no conjunto de um projeto educacional.

No poder monárquico, a exposição pública do supliciado, além de imprimir uma

“marca” naqueles que o assistiam, era, ainda, uma manifestação pública do poder que

pune. Nesse contexto, a presença física do corpo do rei era necessária para o bom

funcionamento da ordem social, pois “organiza-se uma iconografia, uma teoria

política da monarquia, mecanismos jurídicos que, ao mesmo tempo, distinguem e

ligam a pessoa do rei e as exigências da Coroa” (FOUCAULT, 1987, p. 30-31).

O suplício tinha, na manifestação pública de seus procedimentos, a chave de sua

eficácia, pois tanto a exposição do corpo do indivíduo supliciado, que mantivesse a

força do soberano, quanto a representação dos castigos, permanentemente

apresentados para a sociedade, apoiavam-se sobre o conhecimento que o público tinha

de seus métodos e, acima de tudo, de seus efeitos.

O conhecimento dos métodos e efeitos das formas de punição era o que permitia

e possibilitava as relações de poder que as sustentavam e que mantinham em

funcionamento a sociedade monárquica. Nesse sentido, é possível afirmar que a

manifestação pública de tais formas de práticas punitivas era uma estratégia

fundamental, sem a qual não poderiam ser instrumentos eficazes para a afirmação das

relações de força a ela ligada. Novamente tendo presente o ambiente de sala de aula,

pode-se dizer que, em muitos casos, o professor se impõe como uma figura de poder

aos modos do poder monárquico, garantindo o cumprimento de suas ordens por meio

de sua própria presença autoritária.

Se, por um lado, a punição era pública, por outro, o processo que ia da acusação

à condenação era secreto; o réu não podia ter acesso ao processo e nem constituir

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advogado. O poder que o julgava era absoluto e somente o rei, cujo corpo havia sido

atingido pelo crime, detinha o poder de punir.

No final do século XVIII, a despeito de toda a aparente eficácia desse tipo de

punição, as grandes fogueiras que caracterizavam o suplício vão desaparecendo da

Europa. O próprio povo, que tinha uma participação no suplício, como expectador,

testemunha e participando da festa bastarda que era aquela forma de punição, aos

poucos deixa de ser um agente do suplício para tornar-se um problema, pois, na

medida em que o criminoso agredia o corpo do rei, ele poderia ser um herói, uma vez

que era capaz de enfrentar o soberano que nem sempre era uma figura querida pelos

súditos.

O fato, no entanto, é que o novo modo de produção, que se tem no final do

século XVIII, com a segunda revolução industrial, já não mais pode descartar corpos,

mas adestrá-los e, ao mesmo tempo, não pode mais ocupar-se quase que

exclusivamente de crimes de sangue, como se tinha no suplício, mas do crime contra a

propriedade privada. A punição deveria ser mais abrangente e mais eficaz para o novo

modelo que se formava.

2.1.2 A teoria dos reformadores

Por volta do final do século XVIII e início do século XIX, o suplício (punição

generalizada e violenta) foi aos pouco substituído pelo aprisionamento, que deixa de

ser visto como uma espera pela punição e passa a ser concebido como a própria

punição. Essa mudança, como já se assinalau, relaciona-se com a mudança no setor

produtivo, mas também com as novas necessidades que essa mudança provoca, em

especial nos aglomerados urbanos, em que a população passa a se constituir como

uma riqueza, pois viabiliza o funcionamento da indústria, mas, ao mesmo tempo, um

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perigo em função das possibilidades de assalto, greves e mesmo de uma guerra civil e

tudo o mais que está ligado ao aglomerado humano que se tem no interior e do lado de

fora das fábricas.

Pode-se dizer que a reforma foi uma estratégia do poder de punir para responder às

novas ilegalidades populares que surgiam contra a indústria e o comércio. Com essa

nova forma de poder o monarca deve renunciar ao seu direito de misericórdia, de forma

que o sistema punitivo seja eficaz, inflexível, baseado em leis que se tornaram públicas.

Com a reforma a intenção que se tem é de que a verdade do crime seja comprovada.

Nesse caso, deve haver, também, a certeza de que a punição será realizada. Para que isso

aconteça, era necessário individualizar o criminoso de tal forma que se pudessem

detectar, por exemplo, os casos de reincidência e, isso ocorrendo, aplicar a eles um

tratamento mais rigoroso.

Essa nova realidade exige uma nova estratégia do poder de punir e é disso que

passam a tratar as teorias dos reformadores que, a título de exemplo, pode-se citar:

Beccaria Servsn, Dupay, ou Lacertelle, Duport, Pastoret, Target e Bergasse, que não

negam a necessidade da prática da punição, mas reivindicam, paralelamente à

necessidade de um abrandamento das punições caracterizadas pelo suplício, formas de

punição mais abrangentes e eficazes, especialmente no que se refere ao crime contra a

propriedade privada.

Essa mudança faz parte "de todo um mecanismo complexo, onde figuram o

desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma valorização jurídica e moral

maior das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um

policiamento mais estreito da população, técnicas mais bem ajustadas de descoberta, de

captura, de informação" (FOUCAULT, 1987, p. 72).

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Com esse novo modelo, criou-se também a necessidade de, segundo Foucault,

“fazer da punição e da repressão das ilegalidades uma função regular, coextensiva à

sociedade; não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade

atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais

profundidade no corpo social o poder de punir” (FOUCAULT, 1987 p. 76).

As críticas realizadas pelos reformadores contra o direito monárquico eram mais

pela sua desordem do que pela sua severidade. Segundo eles, as leis não eram

devidamente aplicadas e, quando o eram, aconteciam os excessos, fato normal se fosse

considerado o super-poder monárquico. Em suas concepções o que se esperava era um

maior alcance desse poder e que ele fosse exercido de forma mais humana, porém, com

muito mais ênfase se esperava que ele fosse exercido de forma contínua e eficaz,

buscando atingir o espírito das pessoas, por meio dos sinais que usam e da forte ligação

que apresentam entre o crime e o castigo.

2.1.3 A prisão A terceira forma de punir, que pode ser identificada no final do século XVIII e

início do século XIX, segundo Foucault, é a prisão. Essa nova forma de punição consiste

na reclusão pura e simples do cidadão que comete um crime. Com esse novo modelo

de punição, aparentemente a única coisa que o condenado perde é sua liberdade de ir e

vir na sociedade. Pode-se dizer, na realidade, que a prisão é uma instituição bem mais

complexa do que aparenta. Com ela tem-se uma ruptura com as formas de punição da

Idade Clássica e o estabelecimento de uma nova forma de constituição do exercício do

poder.

Com a prisão, a preocupação com o bem social deixará de ser prioridade e

passará a ser tratada num segundo plano. Esse novo modelo de punição tem em seu

foco e objetivo atingir o indivíduo que se desvia da norma em seu comportamento

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moral e psíquico. Com a prisão, o indivíduo deverá ser punido não apenas por seus

atos, mas pelas suas intenções. Dessa forma, deverá ser avaliado não somente pelo

crime que ele possa ter cometido, mas por seu potencial de periculosidade para a

sociedade. Nesse momento, a justiça terá a função de corrigir as virtualidades, tendo

como principal objetivo a privação da liberdade e a reformulação das atitudes

comportamentais dos indivíduos.

Nos julgamentos, as circunstâncias em que o crime fora cometido passam a ser

consideradas importantes, bem como o grau de periculosidade do criminoso. E isto não

se faz apenas por meio de um julgamento e de uma condenação, mas de um julgamento e

de uma condenação perpétua, que vai além do tribunal do júri, estendendo-se à prisão,

não apenas como privação da liberdade mas também como instância de julgamento e de

uma constante reavaliação da pena.

A prisão se encontra no centro da sociedade disciplinar. Ela é seu principal suporte

institucional na medida em que, frente à prisão, as demais instituições são inocentadas,

pois nenhuma é tão cruel quanto ela. Porém, por outro lado, a prisão mesmo reivindica

uma inocência na medida em que, o que nela ocorre, não é diferente do que ocorre nas

escolas, fábricas, quartéis, etc.

Com o estudo das três formas do exercício do poder de punir que se deu no final do

século XVIII e início do século XIX, percebe-se que a prisão não estava prevista no

direito monárquico nem nos códigos dos reformadores. Ela é um movimento que só pode

ser entendido como parte de uma modificação que ocorre e que institui a própria

sociedade moderna.

Quanto ao suplício, este vai desaparecendo no final do século XVIII e na primeira

metade do século XIX, quando não só os reformadores levantam suas vozes,

condenando-o, mas também o povo. No final do século XVIII e início do século XIX,

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foram desaparecendo, um a um, a confissão pública, o pelourinho e a fogueira, que

eram os principais instrumentos que constituíam o suplício. É nesse momento que o

direito monárquico cede lugar à teoria dos reformadores e à prisão, pois essas duas

formas de exercício de poder concordavam, entre si, que o direito não era uma

prerrogativa do soberano, mas, sim, de toda a sociedade. É evidente que nem por isso

concordavam quanto à forma de se executar esse direito.

As teorias dos reformadores não conseguiram se impor em substituição ao

direito monárquico, cabendo à prisão esse papel. Essa nova forma de punição (prisão)

se generalizou como forma de punição por excelência, na modernidade; isso ocorreu

porque a prisão é uma instituição apropriada à sociedade disciplinar, na qual a forma

de exercício de poder se dá por meio da vigilância e do controle do corpo, ou seja, o

exercício de poder se dá pela forma de “adestramento” característica, fundamental da

sociedade disciplinar.

2.2 A sociedade disciplinar

Segundo Foucault, o surgimento da sociedade disciplinar está ligado à expansão do

capitalismo, que necessita de corpos dóceis, produtivos e disciplinados. Diferente do

poder monárquico e da teoria dos reformadores, o corpo não é destruído e nem exposto

exemplarmente à sociedade. A disciplina pretende tornar o corpo dócil e apto para

aprodução. Ela não somente acentua a dominação, mas aumenta as aptidões do corpo. O

corpo, que é alvo e objeto do poder disciplinar, pode ser construído, pode ser modelado

de acordo com a necessidade da sociedade moderna, para ter suas aptidões aumentadas

por meio de métodos e técnicas voltadas para tal controle.

A descoberta do corpo como alvo do poder, no entanto, não é uma invenção

moderna, ela ocorre, segundo Foucault, nos séculos XVII e XVIII:

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houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder (...). É

dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e

aperfeiçoado. (...) Não se trata de cuidar do corpo, em grosso modo, como se fosse uma unidade

indissociável, mas trabalhá-lo detalhadamente; de exercer sobre ele uma coerção sem folga, de

mantê-lo ao nível mesmo da mecânica (...). Esses métodos, que permitem o controle minucioso

das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma

relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de as disciplinas (FOUCAULT,

1987, p. 125-126).

Para ele, a disciplina não foi criada ou inventada por um único idealizador, mas

foi resultado de adaptações, cópias, leitura das mais diversas e diferentes práticas,

como se tem, por exemplo, nos mosteiros na Idade Média. O mesmo se observa nos

mecanismos ou recursos adotados para se obter, com o máximo de aceitação e

eficiência, a dominação sobre os corpos dos indivíduos, um conhecimento acumulado

por séculos. Portanto, pode-se inferir que a disciplina sempre foi utilizada como um

dispositivo para assegurar a ordem. A novidade que se vê, a partir da sociedade

moderna, é que ela, além de se generalizar, passa a atender três critérios, os quais

Foucault classifica como:

1) tornar o exercício do poder o menos custoso possível (economicamente, pela pouca despesa

que acarreta; politicamente, por sua discrição, sua fraca exteriorização, sua relativa visibilidade,

o pouco de resistência que suscita); 2) fazer com que os efeitos desse poder social sejam levados

a seu máximo de intensidade e estendidos tão longe quanto possível, sem fracassos, nem lacuna;

3) ligar, enfim, esse crescimento econômico do poder e o rendimento dos aparelhos no interior

dos quais se exerce (sejam aparelhos pedagógicos, militares, industriais, médicos). Em suma

fazer crescer ao mesmo tempo a docilidade e a utilidade de todos os elementos do sistema

(FOULCAULT, 1987, p. 191).

Percebemos, nesse caso, que a disciplina deixou de ser um dispositivo de

controle para tornar-se um padrão, o modelo disciplinar, que passa a ser não apenas

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aplicado, mas constitutivo de colégios, quartéis, hospitais, etc. Nesses espaços, a

disciplina constitui uma verdadeira anatomia política do detalhe. Neles, a organização

espacial, por exemplo, se faz de forma quadricular, permitindo que os indivíduos

sejam facilmente localizados e monitorados, ficando fácil identificar sua presença ou

ausência, bem como seus movimentos. A constituição do próprio espaço em que se

tem essas instituições segue a disciplina por princípio, num fenômeno que expressa

uma forma de relação entre saber e poder voltada para o controle dos indivíduos e

para a produção. Nela, a atenção aos menores detalhes, o que hoje se denomina de

qualidade total, não é um detalhe, mas faz parte de uma estratégia política.

Segundo Foucault,

não se trata de fazer aqui a história das diversas instituições disciplinares, no que pode ter cada

uma de singular, mas de localizar, por uma série de exemplos, algumas das técnicas essenciais

que, de uma a outra, se generalizam mais facilmente. Técnica sempre minuciosa, muitas vezes

íntima, mas que tem sua importância: porque definem um certo modo de investimento político e

detalhado do corpo, uma nova ‘microfísica’ do poder, e porque não cessaram, desde o século

XVII, de ganhar campos cada vez mais vastos, como se tendessem a cobrir o corpo social inteiro

(...). A disciplina é uma anatomia política do detalhe (FOUCAULT, 1987, p. 128).

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente ao aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que, no mesmo mecanismo, o torna tanto mais obediente quanto mais útil.

A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e exercitados, corpos

dóceis (...). A disciplina aumenta a força do corpo e diminui essa mesma

força. Ela dissocia o poder do corpo, faz dele, por um lado, uma ‘aptidão’

e, por outro lado, a energia, a potência que poderia resultar disso e faz

dela uma relação de sujeição estrita (...). A coerção disciplinar

estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e

uma dominação acentuada (FOUCAULT, 1987, p. 127).

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A disciplina não implica, como no caso do suplício, em grandes atos teatrais de

punição. Ela é sutil, porém, insidiosa, é sub-reptícia, vai se apoderando dos corpos

sem que esses tomem ciência dela. Trata-se de “pequenas astúcias dotadas de um

grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente

suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram

coerções sem grandeza” (FOUCAULT, 1987.p. 128). O cuidado no detalhe, a

coerente atenção às minúcias, tudo isso articulado a um todo que se caracteriza e se

mantém pelo funcionamento desses detalhes.

A disciplina é uma anatomia política do detalhe que, aparentemente, é indolor e não produz efeitos colaterais. Provavelmente seja por essas peculiaridades insidiosas que os sistemas disciplinares se encontram tão arraigadamente incrustados na sociedade moderna, fazendo-se presentes em todas as mais variadas atividades humanas, participando de todo o cotidiano das pessoas sem que elas se apercebam da sua presença, ou mais, sendo aceita tacitamente, pois parecem fazer parte da essência da vida, de uma vida tão boa, quanto produtiva. Quando, no entanto, os mecanismos disciplinares são notados e, por algum motivo, relevante ou não, demonstra-se alguma insatisfação, rebelando-se contra eles, afrontando-os, revelando um corpo não tão dócil, tal procedimento será criticado, taxado de indisciplinado e, conseqüentemente, penalizado por dispositivos aparentemente tão “naturais” quanto a própria disciplina. Também as sanções estão previstas em regulamentos, e os julgamentos que se seguem devem ser sumários e as punições certas.

O que surpreenderá sempre é que a discussão sobre o certo e errado parece dar-se sempre como uma tentativa de interpretar e julgar o comportamento dos indivíduos, no caso, daquele não tão dócil quanto se esperava e nunca dos próprios sistemas disciplinares, pois esses se apresentam acima do bem e do mal e o próprio poder disciplinar se pretende incontestável.

Não se trata de uma obrigação contratual, mas mecanismos que fazem funcionar uma subordinação não reversível, que se apresenta como “natural”. O conjunto de técnicas e estratégias que constituem a disciplina, fluem por onde a vida parece seguir seu “curso natural” ou, mais do que is,o, “a minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo darão em breve no quadro da escola (supervisor, inspetor escolar, etc.), do quartel, do hospital ou da oficina, um conteúdo localizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo místico do ínfimo e do infinito” (FOUCAULT, 1987, p. 129).

Embora não se possa concordar que o modelo disciplinar faça parte da natureza

do homem, o certo é que a observação minuciosa do detalhe, num esmiuçamento da

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vida, em processos de saber e poder, que tem por objetivo o controle e a utilização dos

indivíduos, é um fator constitutivo do homem moderno, do sujeito moderno.

Para Foucault, o aparecimento dos mecanismos disciplinares responde aos

seguintes critérios básicos: que o exercício de poder seja o menos custoso possível e

que os efeitos de poder sejam levados ao máximo de intensidade. E isso ocorre porque

a vigilância está diluída no tecido social. Parece ter se tornado natural o direito de

punir, coagir e, também, que todos assumam papel de juízes. Foi esse funcionamento

indiscriminado do poder disciplinar, que inclui sujeições e treinamentos, que tornou

possível o trabalho tal como ele é na economia capitalista. Todo esse aparato formado

pela disciplina, o controle do espaço, o controle do tempo, a correção corporal, foram

meios que contribuíram para a formação acumulativa do capital juntamente com a

acumulação de homens.

Na modernidade, o poder disciplinar demonstra-se mais eficiente e mais contínuo

na cobertura dos pequenos espaços em que, no suplício, proliferavam as imposições.

Utilizando-se apenas do olhar, a forma de exercício de poder da sociedade disciplinar

pode ser mais contínua e com um custo muito inferior à da Idade Clássica.

Com relação aos reformadores, enquanto eles procuravam uma forma de punição

que pudesse reconstituir o corpo social, a disciplina elabora processos para a coerção

individual dos corpos e, por meio desse investimento sobre indivíduos, obter a ordem

social, evitando, por exemplo, a guerra civil.

Esses conceitos, de Foucault, são fundamentais para a da discussão das

pedagogias educacionais, desenvolvidas nos séculos XIX e XX, com todas as suas

características coercivas e insidiosas, visivelmente poderosas e dominadoras, pois

percebe-se que essas técnicas disciplinares são aplicadas, ainda hoje, em instituições

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de ensino e instituições de formação de professores, conforme se tentará deixar claro

na continuação dessa dissertação.

2.3 O Panóptico.

Uma das principais características da sociedade disciplinar é a visibilidade. Nela,

o exercício do poder se faz por meio da transparência. Segundo Foucault, o projeto

arquitetônico que traduz de forma mais clara o princípio da visibilidade é de Benthan

e se chama Panóptico. Foucault descreve esse novo projeto arquitetônico da seguinte

maneira:

o princípio é conhecido: na periferia, uma construção em anel; no centro,uma torre; esta é vazada

de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em

celas, cada uma atravessando a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o

interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permitindo que a luz

atravesse a cela de lado a lado, um doente, um condenado, um operário, ou um escolar. Pelo

efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recordando-se exatamente da claridade, as

pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia, tantas janelas, tantos pequenos teatros, em que

cada ator está sozinho perifericamente individualizado e constantemente visível. (...). Em suma,

o princípio da masmorra é invertido (FOUCAULT, 1987, p.177).

Segundo o mesmo autor, a ação contínua de poder que o panóptico provoca no

indivíduo, é permanentemente assimilada por ele, pois o panóptico induz as pessoas

colocadas nele a se comportarem de acordo com as regras pré-estabelecidas pela

aplicação do princípio do olhar contínuo: “plena luz e o olhar de um vigia captam

melhor que a sombra, que finalmente protegia” [e nesse sentido], pode-se afirmar que

“a visibilidade é uma armadilha” (FOUCAULT, 1987, p.177).

No panóptico, pouco importa quem esteja vigiando. Trata-se de um poder que é

exercido de forma impessoal. A própria disposição arquitetônica permite o

funcionamento do poder. Existe de uma espécie de coação, bem como a possibilidade

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de se extrair o máximo de produtividade dos que são vigiados, sem com isso ter de

recorrer à força física, pois para se ter um comportamento desejado bastava apenas o

olhar atento do vigia. Com o modelo panótico, inverte-se a posição, pois o que antes

se queria esconder, agora é exposto: “daí o efeito mais importante do panóptico:

induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade, que assegura o

funcionamento automático do poder” (FOUCAULT, 1987, p.177). O princípio

arquitetônico da Idade Clássica, das grandes construções como forma de exercício do

poder do rei, as fortalezas de guerra para se dobrar o inimigo, é substituído por outro

princípio, por uma arquitetura mais leve por meio da qual a luz deve passar e, com ela,

o olhar vigilante.

O panóptico é um exercício constante de afirmação de um poder ramificado que

se multiplica, se fixa, impõe comportamentos, distribui e organiza os espaços. A partir

do ideal de multiplicação e fortificação, no final do século XVIII, os números de

instituições transformadoras desenvolveram-se de tal maneira, que possibilitava

observar uma família a partir do comportamento de uma criança na escola. Tomando a

escola cristã como exemplo, Foucault afirma que ela “não deve simplesmente formar

crianças dóceis; deve também permitir vigiar os pais, informar-se de sua maneira de

viver. A escola tende a constituir minúsculos observatórios sociais para penetrar até

nos adultos e exercer sobre eles um controle regular” (FOUCAULT, 1987, p.186).

Seria dispensável mencionar que, nos dias de hoje, o princípio da transparência e

da visibilidade está mais presente e arraigado do que nunca. Os anúncios de que se

está sendo filmado estão por toda parte e, por mais que pareça curioso, quer-se cada

vez mais câmaras que filmem as pessoas. Outro efeito perverso desse princípio está

nos programas que exploram com muito sucesso de público a exposição de pessoas

permanentemente vigiadas em programas de televisão. Todos exemplos que ilustram a

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atualidade do tema do panóptico, além do refinamento e importância que ele recebe

em nossos dias.

2.4 Um bio-poder

Um outro aspecto indispensável para se compreender a forma como se dá o

exercício do poder na sociedade disciplinar,é traduzido com a expressão bio-poder,

que exprime a necessidade que se estabeleceu na sociedade contemporânea não de

anular forças, mas de produzi-las, fazê-las crescer, otimizá-las, de tal maneira que o

indivíduo possa ser útil, dócil e integrado ao sistema econômico de maneira eficaz e

controlada. Segundo Foucault, “o bio-poder, sem a menor dúvida, foi elemento

indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pode ser garantido às custas

da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um

ajustamento dos fenômenos de produção ao processo econômico” (FOUCAULT,

2001, p. 132).

O bio-poder funciona como uma anátomo-política do corpo humano e, também,

como uma bio-política voltada para a população. Segundo Foucault, “as disciplinas do

corpo e as relações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se

desenvolveu a organização do poder sobre a vida” (FOUCAULT, 2001, p. 131). Em

relação a esse olhar sobre o indivíduo e sobre a população, é possível apontar uma

profunda transformação em relação à Idade Clássica, no momento em que o direito da

vida e da morte deixa de pertencer ao soberano e passa a apoiar-se numa estrutura de

poder que tem por finalidade gerar e garantir a vida, “razão porque a sexualidade,

longe de ter sido reprimida na sociedade contemporânea está, ao contrário, sendo

permanentemente suscitada” (FOUCAULT, 2001, p.129). Porém, é importante

lembrar que esse poder que garante e controla a vida da população não possui um

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caráter humanista. Ele tem seu fundamento na razão de ser do poder disciplinar e na

lógica de seu exercício, que tornaram cada vez mais intenso o olhar sobre a

população, sua saúde, enfermidades e o que ela viabiliza pela saúde que possui, por

exemplo.

O bio-poder, que substituiu a velha potência de morte e um certo desperdício da

vida, que simbolizava o poder monárquico, permitiu o desenvolvimento rápido das

escolas e colégios não apenas como local do ensino, mas do cuidado sobre o corpo das

pessoas e local de investimento sobre a população.

A articulação entre a disciplina e as bio-políticas, como dois conjuntos de

técnicas orientadas ao homem: o primeiro voltado, para o homem-corpo, no cerne de

uma anatomia política que treinava e adaptava os organismos vistos de uma forma

mecanizada, ainda que percebidos como um corpo individual; o segundo, voltado para

o homem-espécie, alvo de uma biologia política que regulamentava os fatores vivos

da população, percebendo-a esta como algo que se massifica. Embora cada um dos

pólos apresentasse um conjunto de mecanismos e dispositivos de poder, ambos

constituíam instrumentos de normalização, destinados a aumentar a forças humanas

com vista à sua utilidade.

A manutenção do bio-poder se faz, segundo Foucault, por meio das instituições

médicas, educacionais, administrativas de poder, que mantinham as relações de

produção no nível dos processos econômicos, operando como fatores de segregação e

hierarquização social e do investimento no corpo vivo para retirar dele sua força

distributiva. Isso se tornou possível com a entrada dos fenômenos próprios à vida

humana no universo da saber, do conhecimento, isto é, com a constituição do homem

como objeto de conhecimento de uma determinada ciência, ou conjunto de ciências

que tem o homem como objeto.

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Em tese, Foucault afirma na História da sexualidade: vontade de saber, que toda

a produção do saber gera um poder capaz de articular formas de controle. Assim, é

possível afirmar que tanto o saber-poder como a análise do bio-poder funcionam

como suportes para um conhecimento sobre o homem que permitem manter em

funcionamento instituições como a universidade.

Ligadas às mudanças nas formas de punição, está uma série de mecanismos os quais vão desde uma transformação arquitetônica até um tipo de investimento nos corpos dos indivíduos e no corpo social que permitem a nova forma de exercício de poder que, conforme se verá não irá se limitar à prisão, mas recobrirá também os quartéis, fábricas, escolas. A nova arquitetura se caracteriza pela visibilidade e os mecanismos são as técnicas de relação de poder. É nesse momento que se estabelece um novo modelo arquitetônico, conhecido como panóptico e também uma nova forma de investimento sobre os indivíduos denominado bio-poder. É com esse novo modelo de arquitetura (panóptica) e de cuidado sobre os corpos, que a repressão é substituída pelo poder disciplinar, poder esse, que tem seu fundamento e sua sustentação no controle do tempo, na vigilância constante e na produção do conhecimento.

Seguindo os pressupostos teóricos aqui apresentados, pretende-se, nos próximos

itens, aprofundar a análise dessa forma de relação de poder, que se constitui no final

do século XVIII e início do século XIX, tendo como foco central, a partir desse

momento, a Educação e as práticas escolares.

2.5 As técnicas disciplinares e as instituições de ensino

Para Foucault, as principais funções da sociedade disciplinar têm sua base e seu

fundamento no controle do tempo e dos corpos. Pode-se dizer que o controle do tempo

é exercido como prática contínua não só nas fábricas, nas prisões, nos orfanatos, nos

hospitais, nas casas de recuperação, mas também nas instituições educacionais, mais

precisamente nas instituições escolares, que tomamos como objeto privilegiado para

este estudo. Na educação, essa nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil se traduz

numa utilização exaustiva do tempo, com o objetivo de intensificar seu uso nas

atividades. Nesse contexto, a rapidez se apresenta como uma virtude, mas não

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somente ela, trata-se do cuidado com os prazos para a entrega das atividades, a

finalidade e assiduidade ao cronograma de atividades propostas, etc. Em resumo, o

que se busca é a eficiência e, para tanto, deve-se atentar para algumas características

do ambiente em questão, dos atores envolvidos e da própria integração entre ambiente

e indivíduo.

O cuidado com os hábitos deve instigar à ação. Não cabe à disciplina produzir

corpos sobre os quais seja preciso fazer incidir constantemente uma parcela de

coerção e intimidação. Ao contrário, são corpos aptos para a ação sem que isto

implique na necessidade de se ter presente, a todo o momento, a coerção. Por ser

dispendioso na economia de forças empregadas, tal procedimento seria alheio a seus

mecanismos. Para essa economia é muito mais interessante “fabricar assim corpos

submissos e exercitados, corpo dóceis” (FOUCAULT, 1987, p. 127).

A disciplina postula, igualmente, que se deixe de lado os aglomerados de

pessoas, a massa desarranjada e disforme. Diferentemente, ela propõe uma disposição

de indivíduos no espaço físico, que se separem convenientemente os corpos, que se

mantenha a devida distância entre eles, e que cada um esteja individualmente

ocupando o seu devido e próprio espaço, o clássico “espelho de classe”, não mais que

isso, suficiente para que cada indivíduo exerça a sua atividade, sem interferir e sem

que seja interferido pelos demais. Somente nesse sentido é que se pensa, na sociedade

disciplinar, o conceito de coletivo, no sentido de unidade, de participação, de

colaboração e, principalmente, de eficiência. Não importa se o espaço físico é aberto

ou fechado, o importa é que o mesmo seja totalmente preenchido, de acordo com as

necessidades da atividade.

Outros instrumentos que devem estar presentes para o funcionamento do poder

disciplinar, em especial na educação, são o olhar hierárquico, a sanção normalizadora,

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além do exame, que combina os dois primeiros. Tal combinação de fatores pode ser

aplicada nas mais diferentes atividades. Os militares utilizam-se da “ordem unida”,

nos quartéis, ou a disposição das camas, nos alojamentos, as disposições das mesas

nos setores administrativos dos grandes escritórios, a distribuição do maquinário na

indústria e, nas escolas e nas instituições de ensino superior, a organização das

carteiras em filas demonstra que o principio é sempre o mesmo (FOUCAULT, 1987,

p. 132-135). Deve-se ter presente que o fim das filas e a organização em círculos, por

exemplo, não significa senão uma nova opção para o olhar do professor. É

interessante notar também que é o exame que qualifica os estudantes para a evolução

em séries, que são dispostas gradualmente.

É evidente que de nada adianta um corpo, ainda que individualmente bem

treinado e adestrado, se não for capaz de executar os procedimentos a ele

determinados sem o devido sincronismo com os outros corpos. Com isso, Foucault

decompõe o conceito de disciplina em mais um componente, qual seja o tempo, que é

necessário e indispensável para que a eficiência seja alcançada. Assim, cada atividade

deve começar e terminar em horários pré-estabelecidos e o desenrolar das tarefas

obedecerá a um sincronismo próprio.

Mas a disciplina busca uma espécie de auto-regulação. No caso das instituições

educacionais, quanto mais eficiente for o sistema disciplinar, menor será o número de

inspetores, de colaboradores e outras figuras que se agregam ao universo escolar com

o objetivo de manter a ordem, corrigir, organizar, fixar, regulamentar e, em última

instância, transformar o que não é útil em utilidade e eficiência, conforme se lê a

seguir:

A escola torna-se um aparelho de aprender, onde cada aluno, cada nível e cada momento, se

estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino.

Um dos grandes partidários da escola mútua dá a medida desse processo: Numa escola de 360

crianças, o professor que quisesse instruir cada aluno, por sua vez, durante uma sessão de três

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horas, só poderia dar meio minuto a cada um. Pelo novo método, todos os 360 alunos escrevem,

lêem ou contam durante duas horas e meia cada um (FOUCAULT, 1987, p. 149).

O controle rigoroso, aliado a outras regulamentações, forma um sistema punitivo

composto por um mecanismo de dispositivos disciplinares, que é o que faz funcionar

as normas gerais da educação. Tais normas permitem a mediação dos desvios e a sua

redução por meio da ampliação de micropenalidades a pequenos desvios, como

atrasos, ausências, interrupções das tarefas, desatenção, negligência, falta de zelo,

desobediência, tagarelice, insolência, atitudes incorretas, gestos não conformes,

sujeira, imodéstia, indecência, etc, uma vez que “o treinamento dos escolares deve ser

feito da mesma maneira: poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um

silêncio total que só poderia ser interrompido por sinais” (FOUCAULT, 1987, p.

149).

Essas técnicas disciplinares, entendidas como o controle sobre o espaço e o

tempo, além da vigilância e do saber que produz saber, acrescidas de tantas outras

formas sutis de aprisionamento dos corpos, são a garantia para o bom adestramento,

para a boa subordinação. E elas se aplicam de forma privilegiada na escola: “a escola

mútua levará ainda mais longe esse controle dos comportamentos pelo sistema dos

sinais a que se tem que reagir imediatamente. Até as ordens verbais devem funcionar

como sinalização” (FOUCAULT, 1987, p. 150). Dessa forma, se tem que a escola não

é apenas uma representante das instituições disciplinares, mas um espaço privilegiado

tanto para o controle sobre os indivíduos quanto, o que é mais importante, para a

produção de sujeitos, se não docilizados, ao menos tão rebeldes quanto o próprio

sistema permite e precisa.

2.6 Os mecanismos que permitem o funcionamento da disciplina

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Da mesma maneira que os colégios confessionais, as instituições educacionais

de ensino superior são bons exemplos da presença de mecanismos disciplinares, tais

como a seriação e a distribuição espacial. Entre outras características, é possível

observar que essas instituições separam convenientemente os estudantes que são

distribuídos em classes, em grupos de trinta a quarenta e cinco alunos, ou com

algumas turmas maiores, como é o caso de até sessenta alunos nas instituições

particulares.

Com esse esquema de distribuição e divisão em classes, é possível garantir a

visualização e o controle de tudo o que está acontecendo dentro das salas de aula,

possibilitando, assim, verificar e observar se todas as turmas, dos mais diferentes

cursos, estão cumprindo as tarefas que lhes foram designadas.

Além da seriação do ensino e da distribuição dos alunos em pequenos grupos,

tem-se também o cuidado de que as atividades de todos os grupos iniciem e terminem

no mesmo horário, o qual é estipulado no início do ano letivo, seguindo normas

estabelecidas pela própria instituição educacional a partir da crença de que, com o

tempo fracionado, com horários bem definidos de entrada, saída e intervalos, o ritmo

coletivo e obrigatório, produto da programação de uma série de gestos previamente

definidos, permite o ordenamento na sala de aula, que parece, em alguns casos, ser

mais importante do que os conteúdos ali trabalhados. Tal rigor no cumprimento dos

horários com vista à constituição de um tempo das ações integralmente úteis é,

segundo Foucault (1987, p. 137), uma das “virtudes fundamentais” que se cultiva

naquelas instituições.

A atenção voltada para o relógio não cuida apenas de “construir um tempo

integralmente útil” (FOUCAULT, 1987, p. 137), mas de fazê-lo visando a “uma

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espécie de esquema anátomo-cronológico do comportamento” (FOUCAULT, 1987, p.

138).

O fracionamento do tempo é articulado com o fracionamento dos espaços,

objetivando de que cada indivíduo se encontre e permaneça em seu devido lugar, bem

como o fracionamento dos gestos, “a posição do corpo, dos membros, das

articulações; para cada movimento é determinada uma direção, uma ampliação, uma

duração; é prescrita sua ordem de sucessão. Assim, o tempo penetra o corpo, e com

ele todos os controles minuciosos do poder” (FOUCAULT, 1987, p. 138).

Tais gestos não são apenas previamente definidos, mas correlacionados entre si,

visando “à atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e de rapidez”,

enfatizando, dessa forma, em relação ao corpo, um princípio geral da disciplina: “No

bom emprego do corpo, que permite um bom emprego do tempo, nada deve ficar

ocioso ou inútil: tudo deve ser chamado a formar o suporte do ato requerido”, [pois]

“corpo bem disciplinado forma o contexto da realização do mínimo gesto”

(FOUCAULT, 1987, p. 138). Ora, “um corpo disciplinado é a base de um gesto

eficiente (...). A disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com

o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro”

(FOUCAULT, 1987, p. 139).

No caso das instituições de formação de professores, conforme se verá adiante, a

pesquisa mostrou que o mesmo sistema de vigilância e controle é praticado, porém,

em alguns casos, de uma forma mais sutil. Todavia não se pode deixar de constatar

que as aulas seguem o princípio da seriação, que o espaço físico é dividido em blocos,

salas, seguindo o princípio da visibilidade que, em cada sala são colocados

determinados grupos de alunos, dispostos em filas, com horários pré-definidos para

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entrada, saída e intervalos, etc. Daí que as exigências de escolarização são, em si,

disciplinares.

2.7 O espaço da visibilidade (modelo panóptico) nas instituições educacionais

Em sua arquitetura e divisão do espaço interno, nas instituições educacionais, da

mesma forma que em algumas repartições públicas, é comum encontrar uma recepção

separando o ambiente interno do ambiente externo. Esse tipo de separação, feita na

entrada, tem por objetivo não permitir que os desejáveis internos se evadam ou

circulem nos ambientes externos e que indesejáveis estranhos ao sistema circulem

nele.

Por sua vez, nessas instituições educacionais, os corredores devem estar vazios

durante as aulas, principalmente de alunos, pois se eles estiverem fora de seus lugares

durante as atividades, serão imediatamente identificados pelos ruídos de seus passos e

de suas vozes e passiveis de receberem as punições previstas. Esse exercício de poder

mostra-se econômico, nesse sentido, pois se esse mecanismo de controle funcionar,

todos serão facilmente vigiáveis.

Com cada turma de aluno em sua sala é desfeito o aglomerado perigoso e

imprevisível de milhares de alunos, que são divididos em pequenos grupos e cada um

desses grupos alocados em compartimentos, salas, que podem ser estrategicamente

vigiadas, como é igualmente o caso das salas com vidros cobertos com películas de

insul-filme nas portas, no espírito proposto pela arquitetura panóptica.

No caso do curso em estudo, o grupo de alunos é formado por aproximadamente

400 “corpos dóceis”: “O corpo, do qual se requer que seja dócil até em suas mínimas

operações, opõe e mostra as condições de funcionamento próprias a um organismo. O

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poder disciplinar tem por correlato uma individualidade não só analítica e ‘celular’,

mas também natural e ‘orgânica’” (FOUCAULT, 1987, P. 141).

Dessa forma, para garantir o bom funcionamento do trabalho nessas instituições,

cada indivíduo -o aluno, o professor, o coordenador, o pedagogo, etc. - deve estar em

seu lugar e cumprindo sua função. O corredor vazio durante as atividades escolares é

tomado como sinônimo de que os professores estão ensinando, os alunos estudando e

os funcionários desenvolvendo suas funções. Significa que o tempo, medido e pago,

no caso especial de instituições privadas, está sendo utilizado sem deixar espaços para

impurezas ou defeitos. Durante o transcurso de um tempo limpo e de qualidade, “o

corpo deve ficar aplicado a seu exercício (...). A exatidão e a aplicação são, com a

regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar” (FOUCAULT, 1987, p.

137).

De forma análoga ao que se tem em outras instituições disciplinares, nas

educacionais foi criado uma estrutura própria, de forma a proporcionar um olhar que

vigia e controla. No caso das instituições de ensino, essa vigilância é feita de forma

horizontal, aluno-aluno, professor-professor e também vertical, professor-aluno,

coordenação-professor, etc. Nessa organização, a hierarquia e a vigilância,

curiosamente, movem-se também no sentido da base para o pico, na medida em que

os estudantes são também vigilantes e cobram o bom andamento da instituição, em

especial no que tange à ordem estabelecida.

Esse processo de dominação e controle é praticado, de forma transparente, em

qualquer repartição pública ou privada ou em qualquer outro aglomerado humano,

devidamente organizado em torno de alguma tarefa. Esse processo de controle é

praticado em especial quando se trata de instituições educacionais, pois é muito forte

a crença de que, para existir eficiência nas atividades propostas, há também a

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necessidade de uma ordem, bem como o empenho de cada indivíduo no cumprimento

de suas tarefas, as quais devem ser realizadas no menor espaço de tempo possível.

Nesse contexto, além de corpos dóceis e produtivos, é necessário também que eles

sejam desnudos, totalmente visíveis a uma vigilância que deve ser contínua e

ininterrupta, uma vigilância à qual os indivíduos, que não podem se ocultar da luz em

cantos escuros estão constantemente expostos, de maneira contínua e perpétua.

Os registros contínuos do que é vigiado constitui um curioso saber, não no

sentido de um conteúdo clássico a ser aprendido, mas um saber sobre pessoas, sobre

seus comportamentos e os seus desvios diante da norma, um saber que permite o

estudo de formas de se evitar o desvio dessa mesma norma, o que não deixa de ser

tematizado nas ciência do homem, permitindo, conforme já se viu, uma relação entre

saber e poder não por um conhecimento clássico que confere ao professor um status

de sábio, mas porque ele e a instituição de ensino acumulam um saber fruto da

vigilância, algo parecido com o saber de um padre sobre o que confessa, ou de um

analista sobre seu paciente.

Ainda que o processo disciplinador possa parecer perfeito, com os corpos

devidamente separados e individualizados, exaustivamente treinados pelas sucessivas

repetições de exercícios com complexidade crescente, sincronizados pelo tempo pré-

estabelecido, não se terá a certeza da sua eficiência se não se estabelecer um sistema

de controle avaliativo, o qual exigirá a identificação e o registro de cada indivíduo

numa série em que se têm pequenas punições e pequenas recompensas. Como parte do

exame, periodicamente são aplicadas avaliações com conotações de prêmio e castigo,

com o intuito de separar os bons dos maus, os competentes dos incompetentes, os

aptos dos inaptos, conforme se verá a seguir.

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2.8 O papel da avaliação para o funcionamento do poder disciplinar

A questão da avaliação, à luz do pensamento de Michel Foucault, e como parte

de relações de poder vem sendo analisada por diversos autores no Brasil. Entre eles,

merece destaque Adriana de Oliveira Lima, que toma o pensamento de Foucault como

referência para realizar um estudo das relações de poder, presentes no processo

ensino-aprendizagem. Em suas análises, dando ênfase às questões de disciplina,

dominação, punição e submissão, a autora toma, como objeto de estudo, provas

realizadas por estudantes, as quais são utilizadas como modelo para explicar como se

constituem um dos principais mecanismos de um tipo de exercício de poder, de tal

forma que “vão tomando abrangência de tal forma que chegam a perder sua relação

com a avaliação da aprendizagem” (LIMA, 1996, p.21).

Segundo aquela autora, é possível, com estudos foucaultianos, compreender

“que o instrumental provas e testes tem sua origem justamente no contexto da

apropriação e/ou divisão do poder e que, dessa forma, o âmago da discussão está em

desvendar os mecanismos do exercício de poder... Esses mecanismos de vigilância, de

punição e de disciplina certamente nos demonstram a luta contínua em sua existência

no concreto, no especifico” (LIMA, 1996, p. 31-32).

É nos instrumentos de avaliação que estão expostos os conhecimentos que

permitem o sucesso ou determinam o fracasso do indivíduo. A avaliação constitui-se

um espaço de legitimação, hierarquização, exclusão de conhecimentos, um campo do

saber que está embutido no currículo e nos programas de formação de professores. É

certo que não se trata apenas do currículo em si, mas, sim, do discurso sobre o

currículo, que constitui um dos elementos-chave da relação saber/poder. A eficácia do

poder disciplinar deve-se, como procuramos salientar, ao emprego sistemático de

instrumentos bastante corriqueiros: a vigilância, que é hierárquica, contínua e

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silenciosa; a medição, que é comparativa; a punição, que é corretiva, diferenciadora e

normalizadora. Porém, é a combinação de tudo isso, num procedimento específico que

é o exame, que representa o cerne desse modelo. Dessa forma, a análise do sistema de

avaliação permite, segundo Foucault, “captar o poder em sua extremidade e em suas

últimas ramificações, lá onde ele se torna capilar..., ele se prolonga, penetra nas

instituições, corporifica-se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção

material” (FOUCAULT, 1982, p. 182).

Os exames, formas de vigiar, controlar, punir e criar indivíduos, permitem a

circulação do poder em instituições e têm por finalidade, a princípio, transmitir e

produzir conhecimentos num sistema em que, segundo Lima,

o poder não poderá ser percebido como fenômeno de dominação maciço e homogêneo

(individuo, grupo ou classe sobre os outros), mas como circular, em cadeias, algo do qual

ninguém pode apropriar-se como no caso de um bem. Dessa maneira, compreender o poder é

aproximar-se mais do micro, de sua existência social mais concreta (ao nível de buscar suas

formulações gerais) e perceber “como” realizar seus desdobramentos para os níveis celulares da

sociedade. Assim, nas relações intra-escolares, há uma produção de saber que lhe é específica e

constitui um “sistema de verdades” (...) em que sistema de verdade, sob que “saber” subsiste a

escola em seu “saber” e “verdades” internas (LIMA, 1996, p. 34).

Para exemplificar o cotidiano pedagógico e sua relação poder/saber, a autora

usa, como exemplo, a resolução do cálculo num texto que trata da significação do

poder no interior de uma prova. “O cálculo é estruturado de maneira que o único

meio de resolução seja a montagem do ‘esquema’ dado pelo professor” (LIMA, 1996,

p. 43), um esquema que já vem, na maioria das vezes, preparado ou indicado pelo

sistema de ensino dentro da sua norma padrão, que o professor também deve obedecer

e seguir determinadas regras. Segundo a referida pesquisadora, “em nenhuma prova

aparece a tentativa de emprego de novos meios para se tentar chegar às soluções das

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questões” (LIMA, 1996, p. 43). Com isso, é possível perceber “um poder ainda mais

celular exercido pelo professor, que consiste na maneira como devem ser resolvidas as

questões” (LIMA, 1996, p. 43). Dessa forma, pode-se afirmar que o professor, ao

utilizar a forma costumeira e normativa de se resolver determinadas questões, acaba

na maioria das vezes, passando ao largo ou deixando escapar um conjunto de

respostas criativas, que são ou que poderiam ser produzidas por seus alunos. Isso

porque as resoluções criativas fogem ao padrão normal apresentado pelo sistema de

ensino.

Não se pode perder de vista que tal procedimento é imposto, em muitos casos,

também ao professor pelo sistema de ensino, que chega à escola já determinado em

muitos de seus detalhes. Com essa prática, tanto na escola regular como no ensino

superior, o estudante é levado a seguir sempre o esquema normativo que o mestre lhe

propõe ou impõe.

Essa mesma questão (da avaliação) é abordada e analisada por Cipriano Carlos

Luckesi, que também utiliza o pensamento de Michel Foucault como referência para

seus estudos. Em sua pesquisa, ele mostra como a avaliação tem sido tomada como

instrumento de exercício de poder disciplinar sobre o aluno. Segundo ele, “A

avaliação da aprendizagem constituiu-se num lugar especial, por onde, através do

nível micro das relações interpessoais, se processa uma larga e consistente forma de

administração do poder, que conforma os sujeitos a um modo de ser, a um caráter”

(LUCKESI, 1992, p. 03).

Com base na obra Vigiar e Punir, Luckesi declara que existe uma rede

microfísica, na qual emerge na forma de um exercício de poder, na qual a avaliação da

aprendizagem escolar possui várias instâncias julgadoras, que tornam evidentes os

aspectos positivos e negativos de cada estudante. Desse modo, “a avaliação da

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aprendizagem, articulada com outras esferas da ação pedagógica, cria condições para

um engessamento da personalidade do educando” (LUCKESI, 1992, p. 05).

O processo de avaliação permite a constituição de dados e a descrições de fatos

que podem ser utilizados com a finalidade de legitimação de comportamentos e

habilidades, ou para a reprovação e mudanças de outros. Dessa forma, ela facilita a

definição dos destinos sociais dos sujeitos, classificando-os, hierarquizando-os,

aprovando-os e reprovando-os. Nesse contexto, a linguagem não é mais vista como

veículo ou mediação da realidade, como se teve no período da representação. Ela

mesma é um instrumento de constituição, de produção de realidades, ou seja, um

instrumento de exercício de poder.

Se analisarmos os discursos que constituem os currículos, percebemos que eles

corporificam noções particulares sobre o conhecimento, sobre a forma de organização

da sociedade, sobre os diferentes grupos sociais. Esses discursos indicam qual

conhecimento é legítimo, qual é ilegítimo, quais formas de conhecer são válidas e

quais não são. Eles têm o poder de autorizar ou desautorizar, incluir ou excluir. Nesse

processo discursivo, o indivíduo é produzido como um sujeito particular,

economicamente produtivo e politicamente dócil. O poder está inscrito nos currículos

que controlam, regulam e governam o conhecimento acadêmico veiculado nas

instituições de ensino, um conhecimento que não se separa das regras de regulação e

controle que definem suas formas de transmissão e sua forma de avaliação.

Observa-se nesta pesquisa que, nas instituições de ensino e em particular no

curso de formação de professores, objeto de estudo desta dissertação, estão

subordinadas a funções de controle, nas quais o currículo é o elo de ligação entre o

conhecimento e as regras que determinam sua transmissão e, por sua vez, a avaliação

é vista como elo de ligação entre o que é transmitido e o que se aprendeu. Vale ter

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presente que a avaliação permite o controle do desempenho individual, tendo como

pano de fundo os conteúdos propostas nos programas de aprendizagem do curso.

No currículo tem-se claro, por meio da vigilância hierárquica e em especial do

exame constante, o que deve ser considerado como qualidade, tanto no que se refere

ao trabalho do discente quanto do docente. Tais mecanismos possibilitam o

estabelecimento de saberes sobre aqueles que se vigia, bem como a ligação entre o saber

que deles se extrai e o poder que se exerce sobre eles. Nesse caso, o registro permanente

será o instrumento fundamental do poder disciplinar, que pode ser mais individualizado e

contínuo do que na Idade Clássica, estudada por Foucault, em que o exercício do poder

se dava de forma descontínua, global e confusa. O exame possibilita a retirada do

indivíduo do anonimato, identificando nele desvios ou méritos, que poderão ser punidos

ou recompensados. O indivíduo deve exteriorizar o que sabe no exame e, por meio dessa

exteriorização, se estabelece um saber sobre ele. O exame é, na escola, uma constante

troca de conhecimentos entre o professor e o aluno, reservando um conhecimento

específico do professor sobre o aluno, mas também da instituição sobre o professor, em

especial no quadro de avaliações institucionais que tomam o professor como objeto de

avaliação.

O exame faz a individualidade tornar-se visível e entrar num campo

documentário, em que tudo é registrado, além de ser premiado ou recompensado

conforme o caso. A sanção normalizadora é uma arte de punição fundamentada no

desempenho de cada indivíduo em relação aos colegas ou às regras desse conjunto.

Sua função, a partir da aferição feita pelo exame e pela subseqüente classificação dos

indivíduos, é coagir aqueles que apresentam um rendimento abaixo do esperado,

tomando parte no mesmo processo classificatório que define a ascensão dos níveis

subseqüentes das classes escolares ou a ocupação de outros espaços institucionais em

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níveis graduais. A própria classificação e a ascensão, ou não, a níveis mais elevados já

é, ela mesma, parte da punição ou da recompensa, uma vez que a aprovação e a

reprovação são apresentadas como castigo ou recompensa.

Por meio dos dispositivos da avaliação, as instituições de ensino básico e de

formação de professores julgam, segundo seus padrões de verdade, a verdade

discente, definindo sobre as medidas apropriadas a serem tomadas para garantir a

aquisição do conhecimento, projetando modos de correção, elaborando diagnósticos e

prognósticos. Com a avaliação, o professor põe em prática seu poder de julgar e

sentenciar o lugar a ser ocupado pelo indivíduo que passou pelo processo avaliativo.

A avaliação, nesse contexto, é o olhar que compara, estabelece as diferenças,

hierarquiza, homogeneíza e inclui, aluno e professor, na topologia social. É ela que

define o lugar que cada indivíduo deve ocupar, em nível intelectual, na hierarquia

social.

No sistema educacional brasileiro, o exercício de poder não acontece em casos

isolados. Nele há sempre uma ordem panótica que é necessária para possibilitar a ação

pedagógica. O exame é um fator inestimável num sistema que avalia alunos,

professores, instituições, programas de pós-graduação, correspondendo à afirmação de

Foucault, quando afirma que uma escola

se torna uma espécie de aparelho de exame ininterrupto, que acompanha em todo o seu

comprimento a operação do ensino. Tornar-se-á cada vez menos daquelas justas em que os

alunos defrontavam forças e cada vez mais de uma comparação perpétua de cada um com todos,

que permite ao mesmo tempo medir e sancionar (FOUCAULT, 1987, p. 166).

O que se vê, a partir das análises de Foucault, é a necessidade de se fazer uma

reflexão do tipo de profissional que é necessário ser formado pelas instituições de

ensino e, em especial, as instituições que formam profissionais que atuarão na área da

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educação. Será que esses devem se submeter aos interesses dominantes e deixar na

exclusão milhares de jovens? Será que, ao buscar a inclusão de todos no sistema

educacional, o que se visa é de fato uma melhoria da qualidade de vida das pessoas ou

a viabilização da produção de corpos menos perigosos e mais aptos a certas tarefas?

Qual será a posição assumida nas instituições de formação de professores, tendo em

vista o cidadão-profissional que se propõe a preparar, frente aos jogos de poderem que

eles estão inseridos? Como estão sendo trabalhados os conceitos de disciplina, saber e

poder nos discursos pedagógicos de formação desses profissionais, que atuam como

formadores e educadores das futuras gerações?

Por meio de suas análises e dos conceitos mencionados anteriormente, Foucault

permite que se remeta àquelas questões de maneira muito atual e profunda, mostrando

que as instituições de formação de professores passam a constituir-se num

observatório político, num aparelho que permite o conhecimento, o controle de seus

componentes. Na busca por respostas a tais indagações e para verificar a prática dos

conceitos saber/poder no curso de Pedagogia de uma instituição de ensino superior

privada, far-se-á, no terceiro capítulo desta dissertação, uma análise dos documentos

que delegam competências a todos os envolvidos no programa do curso, com a

finalidade de investigar e fiscalizar todas as etapas desse programa, bem como

algumas das ementas utilizadas entre 2000 e 2005.

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3. O PODER DISCIPLINAR E OS CURSOS DE FORMAÇÃO DE

PROFESSORES: UM ESTUDO DE CASO

Neste capítulo será feita uma análise interpretativa do programa de formação de

professores do curso de Pedagogia da instituição em estudo, considerando o Projeto

Institucional e a Organização Didático-Pedagógico no período de 2000 a 2005. O

objetivo proposto é verificar a presença, nesse documento, dos conceitos ligados à

temática da disciplina trabalhados por Foucault. Esse estudo levará em conta

especialmente algumas ementas de Programas de Aprendizagem constantes na

programação do curso em estudo, bem como o programa de avaliação institucional

descrito no Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico do curso.

Organizar-se-á esta análise tendo-se como referência, em primeiro lugar, o que

Foucault aponta como as “técnicas” (FOUCAULT, 1987, p. 130), ligadas à disciplina,

e, em segundo lugar, o que ele denomina de “recursos para o bom adestramento”

(FOUCAULT, 1987, p. 153).

3.1 As técnicas disciplinares e o Curso de Formação de Professores

As técnicas disciplinares são alguns mecanismos simples, desenvolvidos pela

sociedade industrial moderna a partir da descoberta de que o homem não é dado pela

natureza, como se tinha até o início do século XVII, que era a figura do soldado ideal,

alguém que já se reconhece como tal por seus traços de nascença. No caso do soldado,

pela sua força, vigor e coragem. Diferentemente, a partir da segunda metade do século

XVIII, descobriu-se que o homem, da mesma maneira que um soldado, é algo que se

fabrica: “a partir de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a máquina de que

se precisa” (FOUCAULT, 1987, p. 125).

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Essas técnicas surgem, assim, a partir da descoberta de que posturas podem ser

corrigidas, que uma coação pode percorrer lentamente as partes do corpo,

assenhorando-se dele para torná-lo disponível para aquilo que se espera dele, a partir,

portanto, da descoberta do corpo como “objeto e alvo do poder” (FOUCAULT, p.

125). São elas que permitem a união entre o corpo analisável e o corpo manipulável,

visando a aumentar suas aptidões e, ao mesmo tempo, acentuar sua dominação.

Considerar-se-á, neste primeiro grupo, as seguintes técnicas: a arte das

distribuições, o controle da atividade, a organização das gêneses e a composição das

forças, e serão tomados alguns exemplos que ilustrem a presença desses aspectos nas

ementas estudadas e também na organização do documento em estudo.

3.1.1 A arte das distribuições

O primeiro elemento que constitui o primeiro conjunto, a arte das distribuições,

corresponde à organização do espaço, partindo do princípio do quadriculamento

individualizante, conceito já mencionado no segundo capítulo desta dissertação.

Com a prática do quadriculamento, os indivíduos devem ocupar espaços

determinados em que possam ser vigiados e controlados permanentemente. Essa

prática é possível de ser verificada na ementa do Programa de Aprendizagem

“Educação infantil – 0 a 6 anos: conhecimentos e metodologias”, que tem a seguinte

redação: “Concepções existentes sobre a Educação Infantil, função atual da Educação

Infantil, o cuidar, educar e aprender em situações orientadas. Desenvolvimento e

aprendizagem na etapa de 0 a 6 anos. Características evolutivas. O currículo da etapa.

As áreas curriculares e os principais blocos de conteúdos. Os ciclos na etapa de

Educação Infantil. O planejamento da ação educativa. A jornada escolar na creche e

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na pré-escola. A organização do espaço em uma creche. Áreas do planejamento a

serem planejadas e implementadas na Educação Infantil”.

Essa ementa se constitui claramente dentro do modelo em questão. Nela pode-se

notar a preocupação, com o professor que está sendo formado, em conhecer “a

organização do espaço em uma creche”. Isto remete à idéia de que o espaço não é algo

dado, mas que deve ser pensado, planejado e construído a partir de certas finalidades

esperadas.

Outro aspecto que aparece na ementa e que traduz a “arte das distribuições” é a

seriação do ensino, especialmente quando se fala em “etapas” e em “características

evolutivas”. A idéia que está presente aqui é de que cada indivíduo, de acordo com a

idade e o nível intelectual, deverá ser colocado num determinado lugar, com um

determinado grupo de nível intelectual semelhante. Com esse modelo, cada indivíduo

deve ocupar seu lugar num espaço pré-determinado.

A utilização desse novo modelo (seriado) em oposição às organizações maciças

e, ao mesmo tempo confusas, é considerada de grande importância no contexto

educacional, a partir do final do século XVIII até os dias atuais. A organização do

espaço e a disposição das carteiras são preocupações marcantes nesse modelo, e

elementos indispensáveis ao controle das atividades e à vigilância hierarquizada,

condições indispensáveis ao bom funcionamento e à produtividade no sistema

educacional.

3.1.2 O controle da atividade

Um segundo dispositivo característico da disciplina, o controle da atividade,

também pôde ser observado como uma preocupação presente nas ementas do curso

estudado e que foram analisadas. Conforme se observou no segundo capítulo desta

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dissertação, o controle da atividade consiste numa arte do corpo humano, na qual os

gestos passam a ser decompostos, observados na forma como são realizados, de modo

que se possa descobrir os menores gestos para cada ação, aquele que ocupa menos

tempo e é o mais eficaz. Para isso, o tempo é decomposto com o objetivo de se tornar

o mais útil possível. Esse dispositivo penetra cada ato, cada gesto, por menor que seja,

determinando sua direção e tempo de duração, constituindo, por fim, um controle

anátomo-cronológico do comportamento do indivíduo.

O controle da atividade foi observado, por exemplo, na ementa dos seguintes

Programas de Aprendizagem:

a. “Estágio supervisionado no Ensino Fundamental – 1a e 2a séries do 1o

ciclo”, que tem a seguinte redação: “Diagnóstico da realidade,

procedimentos e instrumentos de coleta de dados, organização e

sistematização da análise de dados, aplicado à docência no 1o ciclo,

propondo e desenvolvendo estratégias que atendam às necessidades e

expectativas individuais e coletivas do contexto de atuação”.

“Estágio supervisionado no Ensino Fundamental – 3a e 4a séries do 2o

ciclo”, que possui a seguinte redação: “Diagnóstico da realidade,

procedimentos e instrumentos de coleta de dados, organização e

sistematização da análise de dados, aplicado à docência no 1o ciclo,

propondo e desenvolvendo estratégias que atendam às necessidades e

expectativas individuais e coletivas do contexto de atuação”.

b. “Estágio supervisionado na Educação Infantil”, que possui a seguinte

redação: “Pesquisa diagnóstica, projeto de pesquisa, mapeamento da

realidade, procedimento de coleta de dados, organização de instrumentos e

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análise dos dados obtidos (Projeto Institucional e Organização Didático-

Pedagógico). Elaboração de projeto de intervenção de forma inovadora”.

c. “Estágio supervisionado em classes de alfabetização”, que possui a seguinte

redação: Pesquisa diagnóstica, procedimentos e instrumentação de coleta de

dados, organização, sistematização e análise aplicadas à docência na

educação infantil. Reflexão sobre a prática pedagógica, propondo

alternativas que atendam às especificidades do contexto de atuação”.

d. “Estágio supervisionado (educação de jovens e adultos)”, que é descrita

como segue: “Pesquisa diagnóstica. Elaboração de um projeto institucional

para intervenção na realidade, tendo como foco o processo ensino-

aprendizagem de jovens e adultos”.

e. “Atividades acadêmico – científico – culturais”, que têm a seguinte redação:

“A realização de pesquisa na ação docente, enfocando a construção do

conhecimento por meio de levantamento diagnóstico, elaboração de projeto e

relatórios de pesquisa, divulgação dos resultados em eventos promovidos

pelo CSFP e outras instituições (Seminários, Semana de Extensão,

Encontros de educadores etc.)”.

Nota-se, nessas ementas, a idéia de se produzir um gesto eficiente, articulado

com os demais corpos e objetos do aparelho de produção escolar, no mínimo de tempo

possível, como diz Foucault. É o que se lê, por exemplo, na primeira ementa, quando

se coloca em foco com “o contexto de atuação”; na segunda, quando se tem presente o

desenvolvimento de estratégias “que atendam às necessidades e expectativas

individuais e coletivas do contexto de atuação”; na terceira, quando, novamente, se

apresenta a preocupação com um “mapeamento da realidade”, aspectos que permitem

a articulação entre espaço, tempo e corpos numa atividade controlada.

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Pode-se verificar que a mesma intenção de controle das atividades se faz

presente também no Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico do

curso, por exemplo, onde se lê: “O cumprimento das atividades pertinentes a cada

campo de estágio será condição básica para aprovação do professor/estudante. No

estágio supervisionado, estará automaticamente reprovado o professor/estudante que

faltar mais de 10% da carga horária estabelecida para o estágio”. Nesse caso,

independente do motivo que levou o professor/aluno a faltar no estágio, o mesmo

deverá repor de qualquer maneira essa falta, mesmo que essa seja devidamente

justificada. “O professor/estudante poderá ter atraso de, no máximo, 10 (dez) minutos

nos dias de estágio (...). Quando ocorrem 02 (dois) atrasos superiores a 10(dez)

minutos do horário do estabelecimento, estes serão computados como 1(uma) falta”.

Caso o supervisor de estágio julgue necessário, “o professor/estudante poderá repor o

máximo, de 10% de faltas com tarefas e atividades pedagógicas”.

Esse mesmo mecanismo (o controle) pode ser relacionado com o diagnóstico da

clínica médica, como já se viu no primeiro capítulo desta dissertação, em que se

percebe que, em relação á medicina clínica, “quanto mais geral fosse a essência mais

simples ela seria” (MACHADO, 1982, p. 105). Em relação á clínica “a simplicidade

está ao nível dos elementos e a complexidade dos casos individuais é dada pela

combinação desses elementos” (MACHADO, 1982, p.105).

Para Foucault, “a gênese da manifestação da verdade é também a gênese do

conhecimento da verdade. Não existe, portanto, diferença de natureza entre a clínica

como ciência e a clínica como pedagogia” (FOUCAULT, 1994, p.125). Dessa forma,

segundo Foucault,

forma-se, assim, um grupo, constituído pelo professor e seus alunos, em que o ato de reconhecer

e o esforço de conhecer se realizem em um único movimento. A experiência médica, em sua

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estrutura e em seus dois aspectos de manifestação e de aquisição, tem agora um sujeito coletivo;

não é mais dividida entre o que sabe e o que ignora; é feita solidariamente por aquele que

descobre e aqueles diante dos quais se descobre (FOUCAULT, 1994, p.125).

3.1.3 A organização das gêneses

A organização das gêneses é a terceira das técnicas disciplinares que pode ser

observada nas ementas das disciplinas do curso estudado. Considerando o indivíduo num

processo de desenvolvimento, ela divide o período de um determinado aprendizado em

segmentos sucessivos (séries ou ciclos), que devem ser ministrados sucessivamente, sem

que uma nova etapa se inicie antes que a anterior tenha sido concluída e avaliada.

Esse conceito foi observado, por exemplo, na ementa do seguinte programa de

aprendizagem: “Parâmetros Curriculares Nacionais – 1a e 2a séries ou 1o ciclo”, que

tem a seguinte redação: “A origem dos parâmetros curriculares nacionais e o contexto

sócio-político, econômico e educacional do país. A natureza e função dos Parâmetros

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. A promoção, repetência e evasão

no Ensino Fundamental. A qualidade do ensino no país e o desenvolvimento dos

alunos e professores nesse processo. O projeto educativo e a gestão participativa. Os

Parâmetros Curriculares Nacionais e os temas transversais”.

Nesse caso, a disciplina supõe uma sucessão temporal que comporta dificuldades

crescentes, com um aspecto cumulativo que permite um controle maior. Torna-se claro

que a “promoção, repetência e evasão” devem constituir preocupações do futuro

profissional da educação, um profissional que deve estar atento ao processo, sem, no

entanto, possuir uma visão crítica sobre ele, seu alcance, o poder que circula por ele, etc.

Nessa ementa, foi possível observar ainda outro conceito trabalhado por Foucault, ou

seja, a composição das forças, que se verá a seguir, da mesma forma que a ementa que

apresentada poderia também ser tomada para exemplificar a organização das gêneses:

“A origem dos parâmetros curriculares nacionais e o contexto sócio-político,

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econômico e educacional do país. A natureza e função dos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o Ensino Fundamental. A promoção, repetência e evasão no Ensino

Fundamental. A qualidade do ensino no país e o desenvolvimento dos alunos e

professores nesse processo. O projeto educativo e a gestão participativa. Os

Parâmetros Curriculares Nacionais e os temas transversais”.

No Projeto Institucional do curso estudado, a preocupação com o processo

classificatório define os níveis, classes e ocupação dos espaços, ou seja, não se constitui

em uma preocupação voltada apenas para os alunos, mas para o próprio curso. Dessa

forma, para garantir um bom resultado na avaliação do MEC e manter seu

credenciamento, a Instituição de Ensino Superior elaborou seu próprio programa de auto-

avalição. Esse programa tem como finalidade “verificar a eficácia das relações

educativas entre professores e alunos, dos programas e disciplinas, bem como sua

dinâmica nos diferentes cursos de graduação. Desta forma, possibilitou tomar decisões

em relação a mudanças e aperfeiçoamentos nas práticas internas e à definição de novas

propostas para o ensino”.

Dessa forma, tem-se a avaliação como um princípio que abrange todo o sistema

educacional como condição para possibilitar a ação pedagógica.

3.1.4 A composição das forças

A composição das forças parte do princípio de que o movimento articulado das

partes definirá o bom resultado do todo. Nesse contexto, a eficiência se manifestará na

produtividade das forças compostas. O corpo individualizado (seriado) passa a ser uma

unidade inserida em um conjunto que se caracteriza pela formação de um tempo,

composto por meio do ajustamento das forças dos indivíduos entre si, possibilitando a

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extração da máxima quantidade de força e uma eficiência maior do conjunto assim

articulado como, funciona uma empresa capitalista.

Alguns exemplos de ementas para essa técnica podem ser apontados nos seguintes

Programas de Aprendizagem:

a. “Parâmetros Curriculares Nacionais – 3a e 4a series ou 2o ciclo”, que apresenta a

seguinte ementa: “A origem dos parâmetros curriculares nacionais e o contexto sócio-

político, econômico e educacional do país. A natureza e função dos Parâmetros

Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. A promoção, repetência e evasão no

Ensino Fundamental. A qualidade do ensino no país e o desenvolvimento dos alunos e

professores nesse processo. O projeto educativo e a gestão participativa. Os Parâmetros

Curriculares Nacionais e os temas transversais”.

b. “Organização do Centro de Educação Infantil”, com a seguinte redação:

“Atender às demissões externas e internas das instituições de educação infantil.

Contemplar as características sócio-culturais, valorizando-as e incorporando-as

nas intervenções pedagógicas, permitindo propostas pedagógicas significativas,

que devem ser fruto do trabalho coletivo, respeitando o desenvolvimento da

criança em suas diferenças individuais. Esse trabalho deve ser dinâmico,

intencional, sustentando uma prática democrática”.

Dessa forma, fica clara a noção de conjunto em expressões como “gestão

participativa”, bem como na noção de processo, que se expressa na frase: “o

desenvolvimento dos alunos e professores nesse processo” ou, ainda, na valorização de

propostas pedagógicas que sejam fruto do “trabalho coletivo”.

3.2 Os recursos para o bom adestramento e os cursos de Pedagogia e de

Formação de Professores

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O segundo conjunto utilizado nas instituições disciplinares, que se articula com

as técnicas já analisadas, permitindo a circulação e o exercício do poder disciplinar é

denominado por Foucault de “recursos para o bom adestramento” (FOUCAULT,

1987, p.153). Nesse segundo grupo serão considerados os seguintes elementos: a

vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame.

Apresentar-se-á, na seqüência, cada recurso individualmente, como foi feito com

as técnicas disciplinares, deixando claro que tais recursos e técnicas são

interdependentes e que a apresentação, em partes, corresponde apenas a um propósito

de sistematizar à própria exposição, tornando-a clara. Tal opção permite apontar a

relação de certas ementas com certos dispositivos, porém, sem perder de vista que

cada uma reúne mais de um desses dispositivos.

3.2.1 A vigilância hierárquica

Como já foi mencionado no segundo capítulo deste trabalho, a vigilância

hierárquica, primeiro elemento que forma o conjunto de recursos para o bom

adestramento, é a articulação do olhar de forma piramidal, produzindo efeitos de

poder penetrando nos lugares mais distantes, ocupando todos os espaços. Esse

conceito está presente, por exemplo, na ementa dos seguintes Programas de

Aprendizagem: “Parâmetros Curriculares Nacionais – 1a e 2a séries ou 1o ciclo” e

“Parâmetros Curriculares Nacionais – 3a e 4a séries ou 2o ciclo”, já apresentadas

anteriormente, neste mesmo capítulo.

Uma análise do princípio da visibilidade, como já mencionado no segundo

capítulo desta dissertação, deveria ir para além dos elementos discursivos que se está

tomando em consideração para esta análise: as ementas dos Programas de

Aprendizagem. Deveria considerar também os elementos extra-discursivos, como a

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própria visibilidade prevista nas estruturas arquitetônicas, nas portas com vidros, nos

espaços sem pontos de ocultamento, etc.

O objetivo inicial desse olhar vigilante, que se permite por meio da “presença

constante da luz”, é ser conhecido por aquele que, vigiado, constitui sobre ele um

princípio de controle. Porém, a meta final é que o indivíduo possa olhar a si mesmo,

sem que isso se processe por um fator externo, transferindo o ponto de vigilância de

uma torre fora para a consciência que produz dentro de si e que resulta no olhar atento

do indivíduo sobre si mesmo.

O controle do tempo de chegada e de permanência do aluno na sala de aula reflete

um controle sobre o próprio corpo e sobre a “produção”, preparando o futuro profissional

para o exercício das tarefas que lhe forem designadas, com rapidez e eficiência. Em uma

empresa capitalista, o uso do tempo está intimamente relacionado com a quantidade de

produção e/ou a diversidade do serviço prestado. Em instituições de ensino superior

privadas, que atuam como se fossem empresas, a mesma coisa acontece.

3.2.2 A sanção normalizadora

Um segundo recurso desse conjunto, a sanção normalizadora, pode ser

observado nas mesmas ementas mencionadas no item anterior. Ela se pauta na

dualidade castigo-recompensa, que deve atingir todo o comportamento que será

colocado, por exemplo, no campo das boas e das más notas, as quais tem o poder de

classificar e diferenciar, pela micro-economia da recompensa e da penalidade, cada

indivíduo. Com isso, conforme se viu anteriorment, a própria classificação dos

indivíduos se tornará uma forma de punir ou recompensar.

A sanção normalizadora pode ser observada, também, no discurso do Projeto

Institucional e Organização Didático-Pedagógico do curso em estudo, quando se

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estabelece punições, como a reprovação, por exemplo, para aqueles estudantes que

não alcançam “nota igual ou superior a 7.0 (sete) e freqüência mínima de 75% (setenta

e cinco por cento) nas aulas e demais atividades acadêmicas previstas”( Projeto

Institucional e Organização Didático-Pedagógico).

Dessa forma, a avaliação em geral no sistema educacional pode ser analisada como

o olhar que compara, diferencia, hierarquiza, mas também que pune o aluno no mesmo

momento em que o classifica e define seu lugar na hierarquia.

Nesse contexto pode-ses afirmar que a classificação, ao mesmo tempo que

identifica as pessoas, conforme suas aptidões e comportamentos, exerce também uma

pressão constante, isso porque não é interessante pertencer ao grupo dos incompetentes.

É por meio dessa justificativa que é exercitado o poder discriminador, desenvolvendo um

saber que se projeta no interior dos saberes pedagógicos e das ciências humanas, os

especialistas em avaliação, os que ensinam ao professor como avaliar:

“A avaliação será feita de forma processual e contínua, considerando-se aspectos

quantitativos e qualificativos do trabalho do professor/estudante realizado junto aos

campos do estagiário, que deverá atingir um mínimo de 70% de aproveitamento ao final

do estágio. A nota final do estágio supervisionado será a media resultante das notas

obtidas em atividades desenvolvidas no estágio” (Projeto Institucional e Organização

Didático-Pedagógico).

3.2.3 O exame

Nas instituições educacionais, a prática da avaliação constitui o cerne da

disciplinarização e da edificação de uma topologia para os indivíduos inseridos nesse

sistema, antecipando a previsibilidade de suas colocações e distribuições futuras na

sociedade moderna. Essa prática é a concretização do poder/saber que se

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instrumentaliza por meio do exame que, por sua vez, é configurado na articulação

entre a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora (recursos estratégicos para

garantir a classificação, segundo os quais os alunos são incluídos em lugares

diversos).

O exame é um instrumento que se soma à vigilância hierárquica e à sanção

normalizadora, na forma de um registro contínuo. Esse conceito está presente, por

exemplo, no discurso da ementa do Programa de Aprendizagem “Trabalho de

conclusão de curso”, que tem a seguinte redação: “Organização e apresentação de

relatório de pesquisa realizado para o seminário de apresentações”. Esse registro

permanente será o instrumento fundamental do poder disciplinar. Ele possibilita o

estabelecimento de saberes sobre aqueles que se vigia, fazendo a ligação entre o saber

que deles se extrai e o poder que se exerce sobre eles.

É por meio da avaliação que se faz um diagnóstico das aptidões e dos desvios,

tanto no bom funcionamento e qualidade dos cursos quanto no aprendizado do

educando e na capacidade do professor. De acordo com o resultado, é aplicada, no

caso positivo (aprovação), a premiação e, no caso negativo (reprovação), a punição.

Com o processo de avaliação as instituições educacionais, segundo seus padrões de

verdade,julgam a verdade discente, definidos sobre as medidas apropriadas a serem

tomadas para garantir o aprendizado, projetando modos de correção, elaborando

diagnósticos, prognósticos, etc.

Na investigação dos documentos Projeto Institucional e Organização Didático-

Pedagógico do curso de Pedagogia da instituição em estudo, foi possível relacionar a

questão da avaliação, presente no documento em estudo, bem como as disciplinas e

suas ementas, com a visão de Foucault, notadamente ao se perceber a existência,

consentida, de uma indiscreta e intensa relação de poder. É um poder que, em sua

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minúcia reguladora, delineia o ritual do olhar que atravessa do centro à periferia para

definir os critérios e a adequação da avaliação, levando em conta as previsões

comportamentais e o desempenho do estudante que comporão as estatísticas de

aprovação ou de reprovação. A estatística se transforma num parâmetro de julgamento

do próprio programa dos cursos de Formação de Professores e de Pedagogia, ambos

objeto de estudo nesta dissertação.

Um segundo aspecto que chama a atenção no que diz respeito à avaliação, em relação ao Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico dos cursos em

estudo, é o aspecto da avaliação institucional, que se mencionou anteriormente. Como se sabe, a avaliação de um curso de graduação é feita por um grupo de professores, designado pelo MEC que, como avaliadores, exercem o poder de julgar, sentenciar,

premiar e punir os cursos e instituições avaliadas. No interior da instituição, organiza-se uma avaliação permanente, tanto prevendo a avaliação externa quanto visando-a

uma otimização do curso. “Ao inserir novos procedimentos para cada curso de graduação, a instituição vem desenvolvendo uma avaliação dos programas de

aprendizagem e dos docentes, buscando a superação dos problemas diagnosticados; a auto-avaliação institucional cria estratégias para garantir sua autonomia em relação às

outras instituições (Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico). Nesse sentido, é possível verificar que a sanção normalizadora não está presente

apenas no processo de auto-avaliação no âmbito exterior, mas também presente e atuando constantemente, no interior dos indivíduos, os quais, para se manterem em

determinados cargos do sistema de ensino superior, se auto-vigiam e ao mesmo tempo se auto-controlam e, de uma certa maneira, praticam uma espécie de auto-punição

constantemente cobrando sempre mais e mais produção. Com essa estratégia, a instituição em estudo busca uma prática permanente de

avaliação, bem como garantir autonomia no gerenciamento e intervenção no que diz

respeito à prática de ensino dos docentes e à aprendizagem dos alunos dos cursos de

graduação.

A avaliação dos cursos consolida-se, assim, na regência das normas, do

planejamento, que define qual a resposta a dar tanto no sentido do saber dos conteúdos

quanto dos comportamentos. Dessa forma, tanto para um quanto para o outro exigem-

se padrões de verdade que se sustentam na sanção normalizadora (mecanismo de

pena ou recompensa), visando a corrigir desvios em relação ao regulamento, à lei, ao

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horário estabelecido, à duração de um exercício, ao tempo do aprendizado e à

quantidade dos conteúdos aprendidos.

Diz o documento que a avaliação institucional deve se constituir num processo

de aperfeiçoamento constante e de crescimento com qualidade:

“Com relação à melhoria contínua, os gestores dos cursos de graduação estarão

desenvolvendo análise diagnóstica dos dados coletados com vistas à superação dos

problemas detectados, assim como a proposição de ações para a manutenção e o

aperfeiçoamento de novos procedimentos já consolidados, devendo pautar-se pela

coerência das atividades quanto à concepção e aos objetivos do projeto pedagógico e

quanto ao perfil profissional a ser formado, validação das atividades acadêmicas por

colegiados competentes; orientação acadêmica individualizada; adoção de

instrumentos variados de avaliação interna; disposição permanente de participar de

avaliação externa. Com base na avaliação, desenvolvida de 1996 a 2002, e

considerando as demandas relativas à criação e implantação de um programa de

avaliação institucional, foi ampliada a concepção de avaliação acadêmica para outras

dimensões básicas da instituição, configurando uma ampla auto-análise institucional”

(Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógio).

Dessa forma, a avaliação institucional deverá ser processual, diferenciada,

progressiva, qualitativa e continuada, fruto de um acompanhamento mais próximo por

parte dos agentes dos processos de ensinar e aprender, isto é, os docentes deverão

passar por um processo contínuo de aperfeiçoamento intelectual, pois a Instituição

tem como objetivo garantir a qualidade do profissional que compõe o quadro e

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também a qualidade do profissional que se pretende formar, adequando-o ao mercado

de trabalho.

Nesse caso, a título de exemplos aponta-se alguns aspetos relevantes que serão

avaliados pela própria instituição, entre esses estão presentes:

- “Aperfeiçoar continuamente a qualidade dos processos de ensino e

aprendizagem nos cursos de graduação da instituição.

- Aperfeiçoar a gestão administrativa dos processos de aprendizagem, de ensino e

de apoio para a qualidade dos cursos de graduação. Capacitar cada agente, aluno,

professor-administrador ou funcionário da equipe de apoio a realizar um processo

contínuo de auto-avaliação em relação a seu papel no aperfeiçoamento constante da

qualidade dos processos de aprendizagem e de ensino nos cursos de Graduação da

instituição em estudo.

- Envolver progressivamente todos os agentes relacionados com o ensino de

Graduação no processo de auto-avaliação, de seu papel no aperfeiçoamento da

qualidade da aprendizagem e do ensino nos cursos de Graduação da instituição em

questão.

- Subsidiar a Pró-Reitoria Acadêmica com dados que orientem as decisões

gerenciais de aperfeiçoamento constante de qualidade de ensino da instituição em

estudo.

- Instrumentalizar os gestores dos cursos de graduação para manter, corrigir e

aperfeiçoar os diversos processos inerentes às práticas educativas de tais cursos”

(Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico).

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Além desses aspectos a serem considerados, todos os cursos da instituição em

estudo devem atender às exigências de Resolução 56/2003, que norteia o sistema de

avaliação da aprendizagem previsto para todos os cursos da instituição. Dessa forma,

as dimensões a serem avaliadas, de acordo com o programa de auto-avaliação, são:

- “Organização e processos de ensino e aprendizagem”.

- Características do corpo docente.

- Infra-estrutura: instalações, laboratórios e recursos necessários à qualidade da

aprendizagem.

- Corpo discente e processos de ensino e de aprendizagem” (Projeto Institucional

e Organização Didático-Pedagógico).

Em relação à organização relativa aos processos de ensino e aprendizagem

(organização didático-pedagógica). O programa de auto-avaliação visa:

- “À gestão de curso”;

- à organização acadêmico-administrativa;

- ao atendimento aos alunos;

- aos projetos pedagógicos do curso;

- ao sistema de avaliação;

- à articulação entre as diferentes atividades relativas ao ensino, à pesquisa e à

extensão;

- ao corpo docente;

- à formação acadêmica e profissional.;

- à condições de trabalho;

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- ao desempenho acadêmico;

- à infra-estrutura;

- ao espaço físico;

- aos equipamentos;

- aos serviços;

- à biblioteca;

- a laboratórios, clínicas e instalações específicas” (Projeto Institucional e

Organização Didático-Pedagógico).

Não se deve perder de vista que essa avaliação se desdobrará em instâncias

menores, até atingir todos os segmentos envolvidos no processo ensino-

aprendizagem. Da mesma forma, a instituição recebe o mesmo poder, de avaliar,

julgar, punir e premiar os membros que compõem seu quadro. No caso do

professor/aluno avaliado, o professor avaliador exerce o mesmo poder deixando clara

a presença do segundo conjunto utilizado pela disciplina, ou seja, a vigilância

hierárquica, a sanção normatizadora e o exame, conjunto de recursos para o bom

adestramento.

3.4 Últimas considerações sobre a pesquisa documental

No desenvolvimento desta pesquisa, foi possível observar que o poder de

controle se encontra disposto no documento analisado tanto nas ementas dos

Programas de Aprendizagem quanto nos critérios de avaliação que envolvem os

programas dos cursos de Pedagogia e de Formação de Professores da instituição em

estudo. Esses critérios são permeados de estratégias “eficazes” e sistemáticas, com o

intuito de assegurar o funcionamento de mecanismos de controle e o exercício do

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poder. Essas estratégias se dão por meio de níveis que estão subordinados uns aos

outros, de forma hierárquica, visando a atingir “o desenvolvimento dos alunos e

professores nesse processo”.

Dada a avaliação, a divulgação dos resultados, bem como qualquer adaptação ou

readaptação às diferentes interpretações, também está prevista no sistema avaliativo

dos referidos cursos. De acordo com o artigo 5o da Resolução 60/2002 - “Devem ser

divulgados aos alunos todos os resultados referentes às atividades de avaliação,

reservados os critérios específicos para o Estágio Supervisionado, a Prática de Ensino,

o Internato Hospitalar e os trabalhos de conclusão de curso” (Projeto Institucional e

Organização Didático-Pedagógico).

Pelo controle estatístico, o controle da atividade intelectual também está

garantido: “O cumprimento das atividades, pertinentes a cada campo de estágio, será

condição básica para aprovação do professor/estudante” (Projeto Institucional e

Organização Didático-Pedagógico).

Com já se viuanteriormente, é possível observar que o controle perdura durante

todas as fases do programa e em todas as disciplinas que foram analisadas, pois as

especificidades de cada segmento são minuciosamente controladas. A eficiência desse

controle está garantida em uma minuciosa subdivisão e hierarquização de níveis, que

se desenvolvem da seguinte forma: MEC, coordenação geral, coordenador de

departamento, professor regente em sala e, por último, o próprio professor/aluno que,

por sua vez, controla os demais colegas e o corpo docente. Dessa forma percebe-se a

difusão do olhar que esquadrinha, que vigia a delegação do exercício de poderes

pequenos e fragmentados, como garantia de resultados que reforçam o poder do pólo

difusor.

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98

Nota-se também, que o documento foi elaborado de acordo com a topologia da

instituição, no qual é delegada a competência que cabe a cada individuo, bem como

seu cargo de ocupação em que se dão os procedimentos do conhecimento do que é o

processo de avaliação. Nesse documento, Projeto Institucional e Organização

Didático-Pedagógico, fica claro um dos instrumentos do poder disciplinar: a

normalização. É possível observar, também que o documento em estudo tem por

objetivo orientar e normalizar a função e a atuação de todos os indivíduos que estão,

de uma forma ou de outra, envolvidos nesse programa educacional, mais precisamente

no programa de formação de professores da instituição estudada.

Da análise documental podemos inferir também que os mecanismos de controle

tanto do corpo docente quanto do corpo discente formam uma complexa pirâmide de

olhares, os quais estão praticamente sempre de acordo com a hierarquia, de acordo

com a ocupação e a importância de cada membro que compõe o processo num todo. O

controle, a vigilância, a normalização, a produção de conhecimento ocorrem do início

ao fim do processo de desenvolvimento do documento Projeto Institucional e

Organização Didático-Pedagógico.

Em relação à avaliação de cada disciplina em estudo, percebemos que a

vigilância e o controle estão explícitos, o que é possível observar até mesmo no

momento da orientação de como o indivíduo deve proceder no dia e no momento da

avaliação. O mesmo acontece com o professor que, de certa maneira, também está

sendo observado, controlado e avaliado, uma vez que o mesmo deve seguir as normas

que são impostas pelo próprio sistema de ensino. Caso o professor atrase com a

correção e os resultados da avaliação, o mesmo é advertido, pois tem um prazo

estipulado para a entrega das notas. Nesse caso, há cobrança tanto por parte da

coordenação do curso quanto dos alunos, ansiosos para saber se foram premiados com

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a aprovação ou punidos com uma eventual reprovação. Esse procedimento revela a

teoria foucaultiana sobre a disciplinarização: “A disciplina exerce seu controle, não

sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento” (FOUCAULT, 1996,

p.106).

A disciplina, enquanto vigilância constante, pode ser percebida nas atribuições

que constam no projeto pedagógico dos cursos: “A disciplina é uma técnica de poder

que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às

vezes, ou ver se o que fizeram é conforme a regra. É preciso vigiá-los durante todo o

tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide de olhares” (FOUCAULT,

1996, p.10).

Esse sistema se desdobra no aperfeiçoamento, na multiplicação e na

diversificação de instrumentos de vigilância, de modo que as instituições cumpram as

funções de controle do tempo e do espaço, que respondem à estruturação e ao

desenvolvimento da sociedade disciplinar. Além do controle do espaço, há também o

controle do tempo da produção do conhecimento: o poder disciplinar atribui funções

e controla o exercício dessas funções. No caso da Instituição em estudo, no curso de

Pedagogia, uma das figuras que garante o exercício do poder disciplinar é o diretor ou

coordenador do curso. Cabe a ele operacionalizar, vigiar e punir, pois é ele quem

responde por todo o processo de produção e cumprimento do regulamento, firmado

em documento com o conhecimento e aval de todos.

O coordenador do curso deve pôr em prática e fazer funcionar os mecanismos de

exercício do poder. No caso da avaliação, o documento em estudo, Projeto

Institucional e Organização Didático-Pedagógico, deixa claro quais são os

mecanismos e instrumentos que o coordenador do curso, e o corpo docente devem

usar. O coordenador e todos os membros que compõem o quadro são responsáveis

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pelo processo de execução da avaliação realizada no curso em suas diferentes fases,

sendo a mesma discutida anteriormente, planejada e implantada no projeto pedagógico

dos cursos. No caso do curso, em estudo, a figura do coordenador confirma a seguinte

observação de Michel Foucault: “a disciplina implica um registro contínuo. Anotações

do indivíduo e transferência da informação de baixo para cima, de modo que, no cume

da pirâmide disciplinar, nenhum detalhe, acontecimento ou elemento disciplinar

escape a esse saber” (FOUCAULT, 1996, p.106).

É possível observar, no documento em estudo, um fortalecido controle do que se

denomina qualidade da educação. Tal controle se observa por meio do monitoramento

contínuo, o qual tem como objetivo comparar, classificar e, em última instância,

responsabilizar-se pelo sucesso ou pelo fracasso do grupo, devido aos mecanismos

que estimulam a competição entre os cursos das várias instituições.

Na realidade, existe um processo seletivo pelo qual aquele que não se submete

ao poder disciplinar torna-se excluído do programa. Tal fato se dá pela inadequação

ou incapacidade para o sucesso. Como a instituição interiorizou o papel de controlar,

vigiar, normatizar a produção e transmissão de conhecimento, o indivíduo que não se

adapta ao programa pode, até mesmo, prejudicar e comprometer o próprio processo de

avaliação exigido pelo MEC.

Dessa forma, é possível arriscar dizer que é por meio da avaliação que se torna

possível conhecer e controlar cada aluno que compõe o programa, catalogando-o e

dispondo-o, lado a lado com outros alunos, de acordo com o quadro de

“competências” esperadas. É por meio da avaliação que se pode observar a figura do

aluno desviante como avesso complementar do aluno exemplar e normatizado. Com

isso, é possível afirmar que os indivíduos das sociedades disciplinares transformam-se

em agentes de normatização, na medida em que, convencidos da racionalidade das

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normas, passam a exigir para si mesmos e para os outros, uma adequação a tais

normas: esses indivíduos se transformam em agentes do poder-saber que os constitui

como indivíduos normais.

No presente estudo, para se enquadrar dentro da normalidade, os alunos dos

cursos de Pedagogia e de Formação de Professores devem estar necessariamente

subordinados à funcionalidade da avaliação como instrumento de controle desse

sistema e, de certa maneira, indiretamente, devem se submeter à relevância do

currículo, do programa, de acordo com a proposta curricular do curso de formação de

professores estipulado pelo MEC, de acordo com o nível em que o aluno se encontra,

na definição prévia dos padrões de eficiência exigida pelo sistema educacional.

Portanto, a avaliação também está subordinada a discursos que, com a pretensão

de científicos, exercem poder mediante a produção e divulgação de um determinado

conhecimento tido como mais adequado, o melhor e verdadeiro. Com isso, percebe-se

a grande proliferação discursiva em torno de uma necessidade generalizada de avaliar.

Na busca de um pretenso intercâmbio público de análises confiáveis, avaliam-se

alunos, professores, disciplinas, currículos, cursos, instituições, programas e sistemas

educacionais numa grande rede de vigilância, controle, normalização e normatizaçao

de um exercício de poder que, para quem o exerce, aparece como produção de saber.

Esse processo se dá por meio do que Foucault caracteriza como poder hierárquico e

foi possível verificar seu funcionamento no âmbito dos documentos analisados.

Dessa forma, pode-se afirmar que o conceito de disciplina está presente no

documento do programa de formação de professores em exercício a partir de 2000, do

curso de Pedagogia da instituição em estudo. Percebemos, também, uma estreita

ligação no sistema educacional brasileiro com a estrutura de poder, de acordo com o

pensamento de Michel Foucault. Esse processo de vigilância e controle, presente no

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sistema educacional, tem a possibilidade de se transformar em contra-poder e exercer-

se dentro desse poder:

É nesse campo de correlações de força que se deve tentar analisar os mecanismos de poder. Com

isso, será possível escapar ao sistema Soberano-Lei que por tanto tempo fascinou o pensamento

político. E se é verdade que Maquiavel foi um dos poucos – e nisso certamente o escândalo do

seu ‘cinismo’ – ao pensar o poder do Príncipe em termos de correlações de força, talvez seja

necessário dar um passo mais, deixar de lado a personagem do Príncipe e decifrar os

mecanismos de poder a partir de uma estratégia imanente às correlações de força (FOUCAULT,

1980, p. 92).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho foi fazer um estudo conceitual e interpretativo acerca

do pensamento de Michel Foucault e sua presença na Educação escolar, em particular.

No primeiro capítulo foi feita a leitura e o estudo das obras que marcaram os três

períodos da trajetória de Foucault começando pelo estudo interpretativo da primeira

fase dessa trajetória, Arqueologia, tendo como foco a questão da análise do discurso e

o processo de formação do conhecimento sobre o homem. As atenções de Foucault se

voltam para a descrição das estruturas internas do discurso e mutações que elas sofrem

em momentos preciosos da história da humanidade. O segundo momento da trajetória

de Foucault é denominado genealógico. Nessa fase, Foucault direciona suas pesquisas,

voltando-se para o esclarecimento do surgimento dos saberes a partir de condições de

possibilidades externas aos próprios saberes imanentes. É nesse período que surge a

distinção entre a macro e a micro-forma de poder, tendo-se, por um lado as grandes

transformações do sistema estatal, as mudanças do regime e, por outro, um poder que

se situa ao nível do próprio corpo social e que penetra no cotidiano e é caracterizado

como micro poder. Nesse período de suas pesquisas, Foucault faz uma análise

ascendente do poder que tem uma existência própria e formas especificas ao nível

mais elementar, mostrando que os poderes não estão localizados em nenhum ponto

específico da estrutura social, mas funcionam como uma rede de dispositivos ou como

um mecanismo a que nada ou ninguém escapa e que não existe limites. Com o estudo

das obras da fase genealógica foi possível entender o conhecimento escolar como

resultante da apropriação pedagógica do conhecimento, produzida pelos diferentes

campos do saber. Foi possível, ainda, perceber que sua forma é estruturada em

diferentes teorias e princípios metodológicos no campo do ensino-aprendizagem. Por

meio da análise do conceito disciplinar da relação de poder e saber pode-se concluir

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que o poder disciplinar, presente nas instituições de ensino, produz um campo de

saber sobre o aluno, o professor, o ensino e a avaliação. Verifica-se que o poder

disciplinar discutido por Foucault, por meio das técnicas de organização do tempo, do

espaço e das técnicas de vigilância, que constituem um campo de conhecimento sobre

a avaliação, classifica e monitora o estudante, adequando-o e moldando-o para

participar da sociedade em que vive. No terceiro momento do pensamento de Michel

Foucault, denominado eixo ético, o filósofo toma como objeto de estudo o

comportamento humano, do ponto de vista da formação de um sujeito moral. No eixo

ético, a principal preocupação que se tem é com o indivíduo na relação consigo

mesmo e na sua produção a partir de práticas, como as do cuidado de si.

No segundo capítulo, fiz-se um estudo sobre os mecanismos disciplinares

apontando a relação desses mecanismos com a educação. Inicialmente, trabalhau-se

de forma interpretativa as três formas de organização de poder, tomando como

referência a obra Vigiar e punir. No estudo dessa obra foi possível analisar as três

formas de punição que Foucault identifica no final do século XVIII: o suplício, as

teorias dos reformadores e a prisão, bem como os motivos que levam a prisão a

tornar-se a forma de punição por excelência da modernidade, qual seja: é uma

instituição moderna, assim como as escolas, os hospitais, os quartéis, etc, uma

instituição na qual circula o poder disciplinar e que, ao mesmo tempo, permite que ele

circule em outras instituições da chamada sociedade disciplinar, na qual se tem um

investimento no corpo, intencionando atingir a alma dos indivíduos. Passou-se, em

seguida, ao estudo da sociedade disciplinar, a qual, segundo Foucault, está

diretamente ligada à expansão do capitalismo e à sua necessidade de produção de

corpos dóceis. Com a disciplina nasce uma arte do corpo que o torna menos perigoso

e, ao mesmo tempo, mais obediente e mais útil. Com a disciplina, pretende-se que o

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exercício de poder seja o menos custoso possível e que o poder seja eficiente. Uma

das principais características da sociedade disciplinar é o modelo panóptico e uma das

instituições mais importantes para seu funcionamento é a escola, voltada à produção

de subjetividades.

No terceiro capítulo, procedeu-se a uma análise interpretativa do programa de

formação de professores e do curso de Pedagogia da instituição em estudo,

verificando se os conceitos relacionados à temática da disciplina trabalhados por

Foucault estão presentes na sua organização e nas ementas de alguns programas de

aprendizagem. Num primeiro momento, foram analisadas as técnicas: a arte das

distribuições, o controle da atividade, a organização das gêneses e a composição das

forças, tomando alguns exemplos que ilustraram a presença desses aspectos na

organização do documento Projeto Institucional e Organização Didático-Pedagógico e

também nas ementas estudadas. Em seguida,foram tratados os recursos para um bom

adestramento, composto pelos seguintes elementos: a vigilância hierárquica, a sanção

normalizadora e o exame. Neste estudo foi possível observar que o poder de controle

se encontra disposto tanto nas ementas dos Programas de Aprendizagem quanto em

seus critérios de avaliação. Foi possível observar, também que o controle está

presente em todas as etapas do programa e em todas as disciplinas. Constatou-se

também que o documento, mencionado acima, foi elaborado de acordo com a

topologia estabelecida pela instituição. Na análise do referido documento ficou clara a

presença do exercício do poder disciplinar. Dessa forma, pode-se afirmar que o

conceito de disciplina está presente no documento do programa de formação de

professores em vigor a partir de 2000, nos cursos de Pedagogia e de Formação de

Professores da instituição em estudo.

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