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IV Encontro Anual da ANDHEP 08 a 10 de outubro de 2008, Vitória (ES) Grupo de Trabalho 06: Violência Social, Políticas de Segurança Pública e Direitos Humanos Gestão compartilhada de políticas públicas e Direitos Humanos Autores: Alexandre Compart - UFMG - Instituto Elo Renato Moraes - USP - Instituto Elo Fabiano Neves - PUC/ MG - Instituto Elo

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IV Encontro Anual da ANDHEP

08 a 10 de outubro de 2008, Vitória (ES)

Grupo de Trabalho 06: Violência Social, Políticas de Segurança Pública

e Direitos Humanos

Gestão compartilhada de políticas públicas e Direitos Humanos

Autores:

Alexandre Compart - UFMG - Instituto Elo

Renato Moraes - USP - Instituto Elo

Fabiano Neves - PUC/ MG - Instituto Elo

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A relação entre Estado e Sociedade Civil, no Brasil, tem sofrido

profundas transformações desde o fim da ditadura militar. Embora os

relacionamentos entre organizações não-governamentais e Estado em todo o

mundo, ao longo da história tenham sido, em grande medida, marcados pelo

confronto e pela rivalidade, atualmente a percepção desta relação, em especial

no Brasil, aproxima-se, em acelerado ritmo, do consenso enquanto inevitável e

potencialmente positiva. Dificilmente nos dias de hoje podem ser encontrados

atores, seja atuantes em organizações não governamentais ou integrantes do

poder publico, assim como em outros segmentos quaisquer da sociedade, que

aberta e seriamente manifestem-se contrários ao estabelecimento de parcerias,

convênios, etc., entre a sociedade civil organizada e o poder público, no que se

refere à execução de políticas públicas, programas ou projetos sociais. Posto

isto, este estudo tem por objetivo discutir a execução partilhada de políticas

públicas e seus possíveis impactos para a consolidação dos direitos humanos,

tomando como principal objeto a experiência empreendida no estado de Minas

Gerais na gestão da política de Prevenção à Criminalidade, empreendida por

meio de parceria estabelecida entre a secretaria de defesa social - SEDS e o

Instituto Elo, organização não governamental. O estudo será organizado em

dois complementares núcleos analíticos. No primeiro, será discutida a

contribuição das ações empreendidas nos quatro programas de prevenção

executados por meio da parceria entre o Instituto Elo e a SEDS/ MG para

prevenção e a redução da violência e respeito aos direitos humanos; e no

seguinte serão discutidos os efeitos potenciais da adoção de modelos de

gestão compartilhada para a consolidação dos direitos humanos. A presente

abordagem é, como se poderá apreender introdutória. Carente e limitada em

muitos aspectos, ficará também evidente que as questões aqui pontuadas

poderão em muito ser desenvolvidas se empreendidas, no futuro, empresas

outras de maior profundidade analítica e amplitude investigativa. No entanto,

acreditamos contribuir, por meio deste inicial passo, ainda que provisório e

raso, para o aclarar de nuances importantes relativas à relação compartilhada

de políticas públicas e seus reflexos na promoção e garantia de respeito aos

Direitos Humanos.

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Nas últimas décadas, o recrudescimento da violência nas suas mais

variadas facetas tem suscitado calorosos debates em todas as esferas sociais,

entre os quais se destaca a discussão acerca das estratégias de segurança

pública no combate à criminalidade1. Por muito tempo a área de segurança

pública concentrou suas ações apenas sob o prisma da repressão ao crime de

forma isolada e descontextualizada. Na década de 1980 e, principalmente, na

década de 1990, experiências exitosas, como, por exemplo, as empreendidas

nas cidades de Nova York, nos Estados Unidos, e Bogotá, na Colômbia,

acabaram por se apresentarem como casos paradigmáticos para o

enfretamento dessa questão, demonstrando que o enfrentamento bem

sucedido da violência e da criminalidade requer não apenas ações de

repressão qualificada ao crime, mas principalmente mecanismos e ações de

prevenção estratégica, sendo que o caráter inovador nestes dois casos residiria

exatamente na adoção de políticas de prevenção focalizadas. Neste mesmo

período começa a tomar corpo no Brasil um processo de aproximação entre o

poder público e as organizações não-governamentais.

“A partir de 1985, e mais claramente na década de 1990, inicia-se um processo de diálogo entre o governo federal e organizações não-governamentais na busca de soluções para o problema da criminalidade violenta e da impunidade nas áreas rurais e nos grandes centros urbanos do país. Esse processo levou a uma cooperação entre o governo federal e organizações não-governamentais na formulação de políticas de proteção e promoção dos direitos humanos no Brasil”. (NETO, 2003: 01)

No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatística, no início dos anos 2000, a violência já era a maior causa de morte

na população jovem masculina entre 15 e 24 anos. O quadro apresenta-se

mais grave na Região Sudeste, onde a violência seria a causa de 79,64% das

mortes dos jovens do sexo masculino de 15 a 24 anos. Além de vítimas, os

jovens seriam também os principais agentes da criminalidade. Segundo o

Anuário de Informações Criminais de Minas/ 2005, 53,27% da população

carcerária do Estado neste ano, seria formada por homens entre 18 e 29 anos.

Neste contexto, o poder executivo mineiro protagonizou a adoção de uma

estratégia de combate à criminalidade empreendida por meio de uma política

1 A esse respeito ver: Filho, Cláudio C. Beato. Políticas de Segurança e: Equidade, Eficiência e Accountability, retirado do site: http://www.crisp.ufmg.br consulta realizada em 29/09/2008.

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pública de prevenção2, sendo a incorporação do conceito de gestão

compartilhada um dos principais diferenciais do desenho desta iniciativa, ou

seja, a gestão da política de prevenção à criminalidade no Estado passou a ser

partilhada com outros atores que não o próprio Estado, entre os quais, figura

como elemento destacado a sociedade civil organizada. Desde setembro de

2005, a OSCIP Instituto Elo mantém uma parceria com o Governo de Minas

Gerais, por meio da Superintendência de Prevenção à Criminalidade (SPEC) e

da Secretaria de Estado Defesa Social (SEDS). O objetivo dessa parceria é o

desenvolvimento de ações relativas à prevenção social da criminalidade e da

violência, por meio da implantação, desenvolvimento e consolidação de

Núcleos de Prevenção à Criminalidade (NPCs). Estes núcleos se constituem

como espaços da execução de 04 (quatro) programas, adotados pela política

pública de prevenção à criminalidade do Estado de Minas Gerais. São eles, o

programa “Fica Vivo!”, o programa de Mediação de Conflitos, o programa

Central de Acompanhamento a Penas e Medidas Alternativas - CEAPA e o

programa de Reintegração Social dos Egressos do Sistema Prisional. Estes

centros de referência são divididos em duas categorias: 1) Os núcleos de base

local, encarregados da prevenção primária; e 2) os núcleos centrais,

encarregados da prevenção secundária e terciária. Desde o estabelecimento

da parceria entre o Instituto Elo e o poder público mineiro o número de

atendimentos dos programas nos NPCs foi significativamente ampliado. O

número de atendimentos do programa “Fica Vivo!”, por exemplo, que no

primeiro semestre de 2005 chegou a 4.000, em 2007 foi ampliado para mais de

12.000. Do mesmo modo, houve significativa ampliação dos atendimentos nos

programas de Mediação de Conflitos (de menos de 3.500 em 2005 para mais

de 15.000 em 2007), Reintegração Social dos Egressos do Sistema Prisional

(de menos de 200 em 2005 para mais de 1000 em 2007) e CEAPA (de 1.000

atendimentos em 2005 para mais de 7.000 em 2007). Essa parceria inaugurou

uma nova forma de fazer política pública no Estado, baseada na atuação

conjunta entre o governo e a sociedade civil organizada. Atualmente são 31

(trinta e um) os NPCs em atividade em Minas Gerais.

2 A Política Pública de Prevenção à Criminalidade se constitui com um dos eixos do Plano Estadual de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais implantado a partir de 2003.

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Nos núcleos de base local funcionam dois programas: o programa de

controle de homicídios “Fica Vivo!” e o programa Mediação de Conflitos. Sua

distribuição geográfica é definida com base em um diagnóstico dos índices de

violência e homicídios de forma a focalizar sua implantação em locais com

altas taxas de criminalidade violenta. Atualmente, existem 22 núcleos de base

local em todo o Estado de Minas Gerais, sendo nove na capital do estado, sete

na região metropolitana de Belo Horizonte, localizados nas cidades de

Contagem, Betim, Ribeirão das Neves, Vespasiano, Sabará e Santa Luzia; e

seis no interior do Estado, nas cidades de Montes Claros, Uberlândia,

Governador Valadares, Ipatinga e Uberaba. O programa “Fica Vivo!” tem como

público alvo jovens com idade entre 12 e 24 anos, em situação de risco social,

tendo sido criado com base em experiências outras de prevenção, objetivações

de idéias como as de que por meio de elementos como o controle social

informal, a coesão social e a confiança entre vizinhos (SILVEIRA, 2007, poder-

se-ia atingir resultados positivos na prevenção à criminalidade e no

enfrentamento da violência. A operacionalização do programa dá-se em duas

frentes de atuação: 1) A proteção social e 2) a intervenção estratégica. No que

se refere à proteção social, esse eixo de atuação do programa tem como

finalidade desenvolver ações nas comunidades, em especial com os jovens

envolvidos na criminalidade, através das demandas levantadas em oficinas

temáticas, fóruns comunitários de discussão, e grupos temáticos de trabalho.

Com relação a intervenção estratégica o programa organiza interferências

pontuais caracterizadas pela abordagens voltada para toda comunidade e não

apenas para o público jovem, ou seja, fomento e incentivo a organização

comunitária, organização de eventos culturais de objetivo educativo,

campanhas de combate a violência, organização de eventos esportivos, etc.

Essas intervenções têm como foco a interação com a comunidade a fim de que

ela tome parte nos processos de discussão acerca da violência. Em

consonância com estas ações são desenvolvidas intervenções diretas junto ao

público jovem, procurando a execução de ações capazes de despertar o

interesse deste, como as oficinas temáticas. Essas oficinas procuram abarcar

um conjunto amplo de atividades, desde ações educativas, passando pela área

da cultura e do lazer, como também de comunicação e inclusão produtiva.

Além dessas ações diretas, a partir da localização de demandas em casos

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específicos o programa faz outros tipos de encaminhamentos à rede social de

proteção. Isso acontece em casos de ameaça de morte, brigas de gangues,

demandas por atendimento clínico, etc. Em julho de 2008 as equipes do

programa “Fica Vivo!” atenderam 12.999 jovens, o que representa um

acréscimo superior a 250% em relação aos meses iniciais de implantação do

programa em 2005. No cerne de constituição do programa está constituição de

um grupo de intervenção estratégica. Conforme descrito anteriormente, a

implementação da política pública de prevenção à criminalidade, através de

ações complementares e articuladas, dentre outros aspectos, constitui-se como

uma tentativa de responder às altas taxas de homicídios. Para tanto, além da

atuação na prevenção, figura importante um empenho para se alcançar maior

agilidade na resolução dos casos notificados à polícia a ao sistema judiciário.

Dessa forma, a articulação e composição deste grupo composto por

representantes do sistema de justiça criminal (policias militar, civil e federal,

ministério público, poder judiciário, etc.) permite a atuação ampliada por meio

de variadas frentes de trabalho além de permitir o transito informacional

estratégico. Essa metodologia de atuação está inserida numa concepção mais

ampla do sistema de defesa social que passa pelos fenômenos de

modernização e integração das polícias3. Ao grupo de intervenção estratégica

cabe, portanto, articular os atores do sistema de defesa social na tentativa de

oferecer maior agilidade aos processos da justiça. Em articulação como o

Programa “Fica Vivo!”, atuando nos núcleos de base local, funciona o

programa de Mediação de Conflitos. Como eixos de atuação deste figuram a

mediação de casos de conflito com atendimento individualizado, a mediação de

conflitos comunitários, ações e Projetos Temáticos e ações e projetos de

fortalecimento institucional de grupos e organizações comunitárias como

associações de moradores, etc. As ações do programa de mediação de

conflitos são empreendidas de modo a considerar o contexto social mais amplo

e suas influências sobre os sujeitos, os grupos e as famílias, com ofertas de

intervenções em todos esses níveis, procurando promover o desenvolvimento

da consciência da importância da busca contínua da resolução pacífica de

3 A esse respeito ver: Integração e Gestão de Segurança Pública: uma solução viável e eficiente na execução da política pública de segurança. Informativo eletrônico número 7, ano 5, março de 2007. Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais.

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conflitos. Nesse sentido o grande desafio é agir na direção de uma

transformação social e, ao mesmo tempo, acolher cada pessoa na

singularidade de suas experiências. Através da utilização e formação de

recursos emocionais e cognitivos, e valorização de saberes, as ações

desenvolvidas no programa pleiteiam minimizar riscos, de forma a propiciar

otimizadas condições para o exercício da cidadania, ou seja, propiciar uma

consciência do papel social de cada beneficiário e a contribuir para que se

tornem protagonistas na transformação de sua realidade de vida.

Nos núcleos centrais são desenvolvidos os programas “CEAPA”, Central

de Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas, e o programa de

Reintegração do Egresso do Sistema Prisional, tendo sido o primeiro instituído

pelo Ministério da Justiça em setembro de 2000 através da CENAPA - Central

Nacional de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medidas Alternativas o qual

fomentou a criação de centrais estaduais para ajudar no monitoramento das

execuções das penas alternativas no Brasil e o segundo, implementado com

base na lei de execuções penais. Em Minas Gerais, o CEAPA iniciou suas

atividades no segundo semestre de 2002, sendo inicialmente gerido

exclusivamente pela secretaria de defesa (agosto de 2002 a setembro de 2005)

e posteriormente por meio da parceria Instituto Elo/ SEDS. Na política de

prevenção empreendida pelo governo estadual mineiro este programa é

considerado de prevenção secundária, pois tem como público alvo indivíduos

que já cometeram algum tipo de delito que permite a transação penal, ou seja,

a substituição da pena de reclusão por uma outra de prestação de serviço

comunitário, pecuniária, etc. Seu objetivo principal é garantir a execução da

pena ou medida alternativa aplicada através do encaminhamento e

monitoramento do apenado. Encaminhado pelo sistema judiciário o beneficiário

é atendido pela equipe técnica do programa, constituída por advogados,

psicólogos e assistentes sociais. Estes profissionais são responsáveis por um

diagnóstico inicial do perfil do beneficiário e pela definição, com base no perfil

deste e das demandas apresentadas pelo judiciário, dos encaminhamentos a

serem dados a partir da integração ao programa para instituições cadastradas

e instituições parceiras. Já o programa de reintegração objetiva auxiliar na

reintegração de indivíduos egressos do sistema prisional. Assim como o

CEAPA, o programa de reintegração social foi criado em 2002 e gerido pela

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Secretaria de Estado e Defesa Social até setembro de 2005, sendo a partir daí

administrado através da parceria entre a SEDS e a OSCIP Instituto Elo. Nessa

política este programa é considerado de prevenção terciária, pois objetiva

controlar o índice de reincidência criminal. Para o alcance dos objetivos do

programa suas equipes são compostas por dois técnicos sociais (sendo um

advogado e o outro um profissional de serviço social ou psicologia) e dois

estagiários. Atualmente, existem onze núcleos centrais, sendo um na capital,

quatro na região metropolitana de Belo Horizonte e seis no interior do Estado,

nas cidades de Ipatinga, Governador Valadares, Juiz de Fora, Uberlândia,

Uberaba e Montes Claros. Com relação à contribuição do programa de

reintegração social dos egressos do sistema prisional para a garantia do

respeito aos direitos humanos, pontuamos seu caráter em certo sentido

reparador de traumas e violências sofridas pelos apenados quando do

cumprimento de sua sentença. De inegável factualidade, reconhecimento

próximo do consenso e histórico a remontar mesmo ao principiar da povoação

do território brasileiro, o desrespeito à dignidade humana e o sofrimento físico

no sistema prisional brasileiro são não apenas repudiáveis, como também, em

perspectiva pragmática, muito podem ser com justiça, considerados elementos

fundamentais na construção do fracasso ressocializador deste.

“Não é novidade nenhuma que as condições de detenção e prisão no sistema carcerário brasileiro violam os direitos humanos, fomentando diversas situações de rebelião onde, na maioria das vezes, as autoridades agem com descaso, quando não com excesso de violência contra os presos”. (DROPA, 2000: 02)

Empreender esforços a objetivar a reintegração de indivíduos

estigmatizados pela passagem pelo sistema prisional configura-se tarefa não

pouco árdua, principalmente considerada uma ainda muito presente percepção

de que ações alinhadas à garantia do respeito aos direitos humanos seriam

algo cujas objetivações se resumissem à proteção de criminosos, como a

excluir este conjunto de indivíduos da condição humana. O trabalho de

reintegração social considerado, entre muito outros, este elemento dificultador,

se vê obrigado procurar impactar em dois distintos públicos e ter em foco

diferentes linhas de ação. Em primeiro lugar deve se prender à sua função e

objetivos centrais, seja, apoiar os egressos em seu processo de retorno à

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liberdade, e em segundo, mas não menos importante lugar, deve também

procurar contribuir para uma transformação cultural na sociedade, de modo a

contribuir para a erradicação de uma resistência à recepção de indivíduos que

readquirindo sua liberdade precisam ser reincorporados ao corpo social.

“Infelizmente, terminada a parte mais repressora do regime militar, a idéia de que todos, independentemente da posição social, são merecedores da preocupação com a garantia dos direitos fundamentais – e não mais apenas aqueles chamados de presos políticos, que não mais existiam – não prosperou como era de se esperar. A defesa dos direitos humanos (DH) passou a ser associada à defesa dos criminosos comuns que, quando são denunciados e apenados, pertencem, em sua esmagadora maioria, às classes populares” (...) “O tema dos DH, hoje, permanece prejudicado pela manipulação da opinião pública, no sentido de associar direitos humanos com a bandidagem, com a criminalidade. É uma deturpação”. (BENEVIDES, 1998: 3)

Informado o leitor acerca das características elementares da parceria

estabelecida entre o poder executivo mineiro e a OSCIP Instituto Elo referentes

à gestão compartilhada da política pública de prevenção à criminalidade,

empreendida por meio das ações desenvolvidas nos núcleos de prevenção, e

das características elementares dos programas de prevenção em execução

nos núcleos de prevenção à criminalidade, a partir deste ponto, encetaremos o

primeiro núcleo analítico proposto, ou seja, a discussão acerca da contribuição

das ações empreendidas nos quatro programas de prevenção executados por

meio da parceria entre o Instituto Elo e a SEDS/ MG para a redução da

violência e respeito aos direitos humanos. Posta a temática a delimitar e definir

nosso empenho neste momento, pontuamos agora, as principais perguntas

sobre as quais nos debruçaremos a seguir, sejam: 1) A adjetivação dos

resultados das ações empreendidas por meio da gestão compartilhada aqui

utilizada como objeto de análise como “bem sucedida” pode ser defendida com

base em que conjunto argumentativo?; 2) em que medida os resultados

positivos alcançados, se alcançados, por meio desta parceria, estabelecida em

um campo complexo e delicado como o da segurança pública e da prevenção à

criminalidade, podem ser creditados à gestão compartilhada das ações?; e 3)

em que sentido os programas empreendidos por meio da gestão entre a

OSCIP Instituto Elo e o poder executivo mineiro contribuiriam para a redução

da violência e a promoção dos direitos humanos?

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Como acima exposto, a ampliação das ações empreendidas por meio da

parceria estabelecida entre o executivo mineiro e o Instituto Elo desde sua

inauguração em 2005 é algo claro, no entanto, cremos, não configuraria objeto

heuristicamente produtivo de discussão. Nos mesmos termos figura a

ampliação do número de beneficiários nos quatro programas, que sem um

aprofundamento analítico poderia incorrer, ou imprimir uma imagem, o que em

termos práticos em pouco diferiria, em uma publicização de impressão

simplesmente publicitária. Apesar do significativo interesse acadêmico

despertado pela política pública de segurança gerida por meio desta parceria,

pouco até o momento foi posto em execução a objetivar a mensuração do

impacto das ações destes programas para a prevenção da criminalidade e a

redução da violência. Mesmo diante desta carência, algumas pontuações

podem ser feitas sem que orbitemos junto à doxa. Em primeiro lugar cabe

lembrar o caráter complementar dos programas de prevenção e o cuidado com

a escolha dos locais onde são implementados os núcleos. A organização da

política, a contemplar tanto a prevenção primária, direcionando suas ações

tanto para o público jovem como para o adulto, como de prevenção secundária

(programa CEAPA) e terciária (programa de Reintegração Social dos Egressos

do Sistema Prisional) constitui-se, entre outros, elemento diferencial a contribuir

para o sucesso da política. Neste sentido, um outro ponto positivo a ser

destacado é o fato de a parceria estabelecida ser responsável pela execução

dos quatro programas. Entre outras vantagens advindas deste fato figuram a

centralização dos dados relativos à prevenção em outro ator que não o Estado

(o que permite uma leitura diferenciada, a favorecer não apenas o diálogo

dentro de um mesmo universo informacional, mas, principalmente, a permitir o

debate e a controvérsia), a promoção da integração entre as equipes

responsáveis pela execução dos programas e o acompanhamento integrado

dos resultados. Empreendida por meio do mapeamento das principais áreas

de risco social no Estado e índices de homicídio e violência, a definição assim

fundamentada das regiões de implantação dos núcleos de base local para a

implementação dos programas de mediação de conflitos e “Fica Vivo!”

configura-se um outro ponto importante a auxiliar na consecução dos objetivos

da política de prevenção implementada. O diagnóstico, neste caso, para além

da contribuição para a adequação entre necessidades e ações também se

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configura um importante instrumento de otimização de investimentos e

estratégia de ação.

Na década de 1950 teve início uma amplo debate entre estudiosos e

militantes engajados na efetivação dos direitos humanos a pleitear a

construção de um referencial analítico/ conceitual capaz de adequadamente

articular as idéias de cidadania e direitos humanos. Conforme relata Cano

(2001) o universo dos direitos humanos não se limita aos direitos civis e

políticos, eles extrapolam os limites geográficos e legais de determinados

territórios. Entretanto, conforme afirma Gustin (2003) as estruturas políticas e

econômicas dos países delimitam a concretização dos Direitos Humanos. Um

exemplo emblemático do dilema apresentado acima se refere à área da

segurança pública. Conforme prevê a Constituição de 1988, a segurança é

responsabilidade de todos e dever prioritário do Estado. Essa prerrogativa

estatal na garantia da segurança advém, obviamente, do modelo moderno de

estado nacional cujas premissas permitem sua adjetivação, em termos

weberianos como de monopólio do uso da força. Sob esse prisma, muito

embora a concepção do Estado acerca das ações de controle social tenha

adquirido novos contornos desde o fim da ditadura militar, em várias esferas, o

próprio Estado se constitui como o grande violador dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, vários autores relatam que a efetivação dos Direitos Humanos

exige uma grande vigília. Desse modo, as parcerias entre a sociedade civil

organizada e o poder público, como a parceria entre Instituto Elo e Secretaria

de defesa social mineira, podem e devem constituir-se não apenas enquanto

contrapeso político nesse processo, mas principalmente uma presença

vigilante e combativa. Para além das atividades operacionais de gestão de

recursos financeiros, monitoramento e avaliação de metas pré-estabelecidos, a

sociedade civil organizada deve encarnar o papel de vigília ativa a garantir que

as premissas definidas constitucionalmente e dadas em documentos

internacionais de universalização de direitos sejam respeitadas.

A execução de programas de prevenção à criminalidade além de, claro,

dever, por definição, contribuir para a diminuição e controle dos índices de

criminalidade e violência, deve pautar-se pela garantia do acesso à justiça e

aos direitos e pela descriminalização de populações tradicionalmente

estigmatizadas. Os programas de prevenção acima descritos necessitam, não

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há dúvida, assim como a própria política de prevenção, em muito serem

aperfeiçoados, afim de que objetiva e terminantemente possam contribuir do

modo mais efetivo possível para redução da criminalidade e da violência e para

consolidação e garantia dos Direitos Humanos. Apesar disso, a

complementaridade de ações, a diversificação do público alvo, bem como o

desenho dos programas, e a gestão partilhada da política, permitem inferir,

acreditamos, sua condição positiva na resposta às demandas de redução das

taxas de criminalidade bem como na contribuição para a garantia de direitos.

Passíveis de localização tanto na literatura científica como em textos de

caráter jornalístico, figuram, ainda hoje, no entanto sem significativa

tempestividade debatedora, ou quase isso, discursos controversos com relação

à aproximação entre organizações civis e o Estado, em outras palavras,

coexistiriam na atualidade tanto posicionamentos contrários às parcerias entre

o poder público e organizações civis não-governamentais, a valer-se de

argumentos em grande medida fundamentados na idéia de que tal

aproximação seria nociva, principalmente para as segundas, vislumbrado um

potencial risco à capacidade de crítica destas e à possibilidade de cobrança em

relação ao poder público; como posicionamentos favoráveis a esta

aproximação, antevista neste caso a potencial oportunidade de ampliação da

atuação e mesmo possibilidade de, talvez, influir em processos decisórios

definidores de políticas públicas, por parte destas organizações e, para o poder

público, a oportunidade de ganhos na execução de projetos e políticas, como

por exemplo, a redução de custos e maior entrada em contextos onde o Estado

teria, talvez, algum grau de dificuldade em inserir-se. Ambos os lados tem sua

razão de ser. Mas escapando ao embate entre a resistência ao pluralismo

institucional e sua defesa, a gestão compartilhada de políticas públicas no

Brasil nos dias atuais é fato e como tal deve se buscar seu entendimento. Esta

ampliação das relações e conseqüente aproximação entre o poder público e as

organizações civis não governamentais podem ser explicadas pela ação de

duas correntes de força, sejam: 1) O interesse do Estado pelas ONG´s, dado

em função, em especial, de recentes objetivações da idéia de exercício de uma

postura centrada na coordenação e financiamento, retraída a idéia de auto-

suficiência do Estado na execução direta de projetos ou programas; e 2) o

interesse das organizações civis não governamentais em participar da

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execução de políticas públicas, serem financiadas e daí garantirem sua

existência e potencial de ação.

No culminar dessa confluência de interesses mudanças legais e políticas

vieram a tona, ampliando o locus de participação das organizações civis não

governamentais e permitindo a variação funcional de sua atuação na execução

de políticas públicas em geral. Como já referido, uma das atualmente mais

debatidas e muitas vezes entusiasticamente comentadas formas de interação

entre o Estado e a sociedade civil organizada é a chamada parceria público-

privada. Um avanço que não se limitou aos mecanismos organizacionais/

instrumentais da abertura à ação, mas também em muito repercutiu na

interação dialogal entre os atores protagonistas.

A associação entre o poder público e organizações do terceiro setor

pode contribuir entre outras coisas com a otimização dos investimentos

públicos, ampliação da efetividade e impacto de políticas públicas, e

incremento à adequação diante das atuais exigências de transparência e

eficiência de gestão. As iniciativas de em campos complexos e estratégicos

como o da prevenção à criminalidade e defesa social, por exemplo, como a

parceria estabelecida entre a secretaria de defesa social mineira e o Instituto

Elo (acima tomada como objeto de análise), constituem-se mesmo rupturas,

uma vez que inéditas ou inovadoras e enfrentam resistências em variadas

frentes, destacada uma cultura de certo modo avessa, ainda presente no

funcionalismo público, e implicariam em certa medida na reinterpretação do

próprio Estado, pressupondo mesmo a “redescoberta” de um novo corpus

político até então deixado à margem, senão eclipsado: o setor público não-

estatal, sobretudo o sociedade civil organizada. A iniciar neste ponto nossa

discussão acerca dos efeitos potenciais da adoção de modelos de gestão

compartilhada para a consolidação dos direitos humanos, segundo núcleo

analítico a figurar em nossa exposição, teceremos, em primeiro lugar, algumas

considerações acerca da problemática referente à historicamente muito

conturbada relação entre o enfrentamento da violência e da criminalidade e o

respeito neste enfrentamento aos direitos humanos.

Ótica presente tanto em nossas lembranças como em nossas

experiências cotidianas o enfrentamento da criminalidade e da violência com

violência e crime, fins justificando meios e meios se contrapondo à vida, à

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tolerância e ao respeito, somente com muita dificuldade vem sendo superada.

A prevenção, em um passado recente e em um presente ainda facilmente

encontrável, igualada à repressão, aos poucos e com muito esforço, de ainda

não tantos braços e mentes com exige o vasto trabalho, vem sendo re-

significada como um trabalho de educação, apoio e garantia de direitos. Se a

polícia neste lugar de sombra era a única a ser identificada com a prevenção

da criminalidade e da violência, atualmente atores, que há muito tempo

figuravam a margem dos holofotes, mas próximos dos problemas e das

pessoas, passaram a ter seu papel revisto e seu potencial reconhecido. O

trabalho de organizações civis, antes apenas entendido como de assistência

social, de luta pela garantia e respeito a direitos e de apoio psico-social, passa

a integrar a pauta da prevenção à violência e à criminalidade. O desvio e o

conflito com a lei passam por uma releitura e nesta, que em um curto espaço

de tempo ultrapassa os altos muros da academia e chega ao coração e mente

das massas, é destacado o grande potencial de ressocialização, ainda que

tardia, do ser humano e o enorme peso, mesmo talvez quase que exclusivo, do

aprendizado na definição da ação. As mentes a fazer girar a máquina pública

deixam aos poucos a idéia da auto-suficiência do Estado, ou são substituídas

por novas mentes e essa idéia já chega germinada, e passam a olhar lados,

pessoas e ações. Com o tempo passam a conhecer essas pessoas e estas

ações e a perceber que é possível o diálogo e o trabalho conjunto. A

reconhecer capacidade e potencial nestes atores.

A estruturar-se de inúmeras maneiras, o trabalho conjunto entre

organizações civis não governamentais e o poder público não é algo recente

mesmo no Brasil. No entanto, no caso brasileiro, o papel dos primeiros até a o

promulgação da lei de OSCIPS em 1999 restringiu-se, quase na totalidade a

auxilio informal, marginal e quase sempre esporádico. Com as portas abertas

ao estabelecimento de gestões partilhadas de projetos, programas e políticas

entre os dois atores, objetivou-se a possibilidade de fato de as organizações

civis terem participação ativa nestes processos. Mudanças que permitiram as

ONG’s trabalhar de modo diferente, ou seja, não mais apenas sobre projetos

isolados, mas em políticas amplas com o apoio do Estado. Essas mudanças

significam não apenas o acesso das organizações não governamentais à

participação direta, por exemplo, no desenho/ re-desenho e execução de

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políticas públicas, mas um incentivo, ainda que em base obrigatória para uma

reestruturação positiva de sua capacidade gerencial e administrativa.

Pontuados, ainda que resumidamente, dadas as características e

limitações desta empresa, os pontos positivos da gestão compartilhada de

políticas públicas, cabe neste momento a crítica, o enfrentamento e a

exposição das questões potencialmente problemáticas da execução repartida.

Fazendo uso da idéia, apresentada por Hulme e Edwards (1997), de que as

relações entre organizações não governamentais e Estado, quando não

reduzidas à posição de conflito, aversão ou impossibilidade de diálogo, podem

ser definidas em termos de barganha e negociação, pontuamos os riscos

potenciais inerentes aos papéis diferenciados desempenhados pelos parceiros

na gestão partilhada de políticas públicas regidas por termos de parceria.

Riscos em primeiro lugar relativos à possibilidade sempre presente de a

relação tornar-se coercitiva, claro, em prejuízo da atuação das ONG´s, em

razão da unilateralização deste poder de barganha, neste caso inviabilizada a

possibilidade de influencia das ONG´s para com o poder público. Inviabilizada

esta possibilidade de influência, figuraria inoperante a consecução dos

objetivos mesmos da abertura à possibilidade do estabelecimento de parcerias

público-privadas para a execução de políticas, projetos e programas públicos.

A compor este universo de empoderamento e influência não podem ser

esquecidos os mecanismos de controle direto e indireto presentes nas relações

entre Estado e organizações civis não governamentais, em alguns casos

positivos, como a persuasão argumentativa, mas em outros perniciosos como a

utilização de incentivos financeiros como base exclusiva de negociação e a

coerção direta via ameaça/ terrorismo, como por exemplo, pautada em termos

de renovação não renovação de termos de parceria por motivos outros que não

os de competência e resultados alcançados definidos no termo. Um ponto

importante nesse sentido é a necessidade, sob o risco de tornar-se refém a

organização, do Estado, de vivencia das organizações civis não-

governamentais em condição de não dependência integral de financiamento

unilateral do poder público.

Outro ponto problemático a este primeiro relacionado é a assimetria de

poder entre os parceiros, algumas vezes negada pelo poder público, outras,

enfaticamente afirmada. Na relação entre figuras estatais e organizações da

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sociedade civil a assimetria de poder é algo evidente, ressaltado e,

infelizmente, inevitável. Na gestão compartilhada de políticas públicas, ambos

os protagonistas devem se manter atentos para que esta condição não tome

dimensões que interfiram tanto na construção dialogal como em processos

outros influentes na consecução de resultados. Funções e papéis, claro, são

definidos quando dos iniciais passos do estabelecimento da relação de

cooperação, mas esta fixação não deve de forma alguma dar-se na contramão

da idéia de parceria, a definir/ reduzir a relação a simples versão de

mecanismos outros de ação conjunta como os convênios para a execução de

ações isoladas dentro de políticas amplas ou, ainda pior, constituir-se em

terceirização de serviços, como contratação de empresa de recursos humanos

sem fins lucrativos. A idéia de parceria entre organizações civis e o poder

público é pautada na idéia de execução conjunta e não na exclusiva execução

pelas primeiras de proposições definidas com exclusividade pela segunda.

Para as organizações civis, participar na gestão de políticas públicas enquanto

parceiro do Estado deve ser entendido também como ter voz para discutir

soluções, mudanças e problemas. Como não servir apenas aos interesses do

Estado, enquanto instituição ou aparato burocrático, mas, de fato, servir o

Estado, entendido esse enquanto reunião de cidadãos.

De um número expressivo de desafios a serem enfrentados pelos

protagonistas nas parcerias entre o poder público e a sociedade civil

organizada figuram em especial os relativos aos processos de assimilação

cultural desta possibilidade em universos cognitivos muitas vezes avessos a

esta aproximação. Assim como muitas organizações civis não-governamentais,

seja por uma trajetória de enfrentamento e/ ou vivencia em contextos de

repressão política, seja por considerações baseadas na reflexão e tomada de

posição a partir desta, tomam por difícil, senão indesejável, ou apenas aceita

pesados fatores exclusivamente pragmáticos relacionados a possibilidade de

enfrentamento e sobrevivência, esta aproximação, também o poder público

enfrenta problemas nesse sentido. Deixar a execução direta de políticas

públicas consiste, para não poucos espíritos integrantes da máquina

administrativa estatal um esforço que em muitos casos caminha no limiar

entre o fracasso e a mediocridade. Um ponto a figurar importante nesta

problemática, a aclarar de certo modo parte desta questão, em especial no

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Brasil e em alguns outros países da América Latina, assim visto, é o ainda

recente retorno da democracia, o que em tese poderia explicar uma certa falta

de clareza para os atores de seus papéis e funções. Esta falta de clareza, entre

outras conseqüências, podendo ocasionar atitudes não pautadas pelo apoio

mútuo, mas pela competição e pela lógica do máximo ganho individualizado

mesmo que em prejuízo da relação entre os parceiros.

“Até meados da década de 1980, o governo federal se limitava a negar a existência de violações dos direitos humanos, ou a negar a sua responsabilidade nessas violações, atribuindo-as a problemas relacionados ao subdesenvolvimento do país e, nas décadas de sessenta e setenta, a problemas relacionados à guerra suja entre defensores e adversários do regime autoritário que se instalou no país em 1964”. (...) “As organizações não-governamentais se limitavam a criticar e atacar o governo federal e os governos estaduais, responsabilizando-os pelas violações dos direitos humanos no país. Prevalecia então uma situação de conflito radicalizado e quase impossível cooperação entre o governo federal e organizações não-governamentais para proteção e promoção dos direitos humanos”. (NETO, 2003: 01)

Um outro ponto a figurar como potencialmente negativo nesse sentido é

a possibilidade, a se ter sempre em vista, de a organização civil em suas

ações, uma vez que em grande medida dependente da relação com o poder

público, ver confundida sua atuação e sua própria personalidade com este

último. Mesmo nos casos onde a organização não governamental possui um

longo histórico de atuação em separado do Estado, e uma individualidade bem

definida, este risco não pode ser esquecido. Principalmente, neste sentido,

encontrar-se-iam em posição de vulnerabilidade instituições que foram

constituídas especificamente tendo por objetivo a atuação compartilhada em

uma política já definida ou já em execução tanto pelo Estado de modo

exclusivo como por outras organizações. Os principais diferenciais da gestão

compartilhada se comparada à execução integral de políticas, projetos e

programas públicos pelo Estado, segundo nossa percepção, sejam, presença

de uma segunda perspectiva não estatal, potencialmente mais bem informada

e próxima de pessoas e problemas sociais e da atenção aos direitos humanos,

o que em termos práticos poderia incrementar a garantia do fluxo informacional

para além do Estado e o embate diante de problemas diretamente relacionados

a este, neste caso poderiam ver-se comprometidos.

Outro ponto a não se perder de vista é a possibilidade de figurar a ação

do Estado, mesmo que não institucionalizada sua carga intencional, mas a ser

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objetivada enquanto conseqüência de ações particulares ou conjuntas de

atores específicos, enquanto de caráter controlador e cerceador da liberdade

de ação das organizações civis não governamentais. O caráter político da

atuação das organizações civis não governamentais não pode ser posto de

lado, e resumir-se sua atuação, em termos exclusivamente operacionais, na

prestação eficiente de serviços. Em especial deve se ter sempre em vista o

risco de configurarem-se as parcerias pseudo-aberturas apenas.

Uma outra conseqüência trágica a orbitar nas relações estabelecidas

entre o poder público e as ONG´s é a possibilidade por parte das últimas de a

partir de uma situação de dependência ou “conforto” se distanciarem de suas

aspirações e objetivos, tornando-se simples braço do Estado, despersonalizado

e carente de razão de existência que não a redução de custos para o Estado

na execução de suas políticas, uma vez que, em tese, sem fins lucrativos.

Outro aspecto a dificultar o sucesso das gestões partilhadas de políticas

públicas e de certo modo a contribuir para o empoderamento do discurso

contrário a esta é a possibilidade, antevista, principalmente, por sujeitos não

atuantes na administração pública, de uma suposta, muitas vezes constatada,

ineficiência de órgãos estatais, ser definidora do fracasso de uma política e a

consideração desse fracasso e ineficiência “manchar” a imagem de

organizações civis frente a outros parceiros. Em contraposição a esta

argumentação, no entanto, podem ser levantadas pontuações positivas como a

possibilidade de maior presença midiática, incremento em legitimidade e

credibilidade. Além disso, esta aproximação representaria outros ganhos para

ambos os lados como a obtenção por parte do Estado de serviços

especializados a um custo reduzido se comparado a iniciativa privada e por

parte das ONG´s uma possibilidade interessante de conhecimento do

funcionamento interno da máquina e acesso a informações antes nem sempre

disponibilizadas com facilidade pelo poder público.

A parceria entre a sociedade civil organizada e o poder público, se

intencionado o potencial máximo conseqüente de benefícios para a sociedade,

deve necessariamente pautar-se pela união de esforços entre os parceiros, a

integrar tanto a divisão de papéis como a de responsabilidades, pelo diálogo

entre estes, a escapar de nuances de dependência entre os parceiros, bem

como de posições de controle. A atuação das organizações civis não deve, ser

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pautada na exclusiva atenção a instrumentalidade eficiente e consistir na

simples execução de um serviço definido de cima para baixo, controlado e sob

uma hierarquia onde o Estado figura como mandatário. Ainda que em um

grande número de casos a política pública a ter sua gestão partilhada possa

ser apresentada pelo poder público sem abertura inicial para discussão com a

organização civil parceira, esta última não pode, ou não seria, em nossa

opinião, desejável, pautar sua atuação no assentimento acrítico e na

submissão, eclipsando sua personalidade e abandonando seus objetivos e

razão de existência. Por fim, as parcerias público-privadas para a gestão de

políticas públicas devem pautar-se, fugindo a simples obtenção de vantagens

comparativas e exclusiva atenção a gerencia eficiente, pelo diálogo, não só

entre os parceiros, mas principalmente para com outros sujeitos da sociedade,

em especial aqueles diretamente afetados pelas ações, pela autonomia entre

os parceiros, pela manutenção de personalidades distintas, pela flexibilidade e

pelo foco no bem social.

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