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GIORDANO BRUNO THE GIORDANO BRUNO SOCIETY Guido del Giudice O PROFETA DO UNIVERSO INFINITO Tradução Flavia Wass

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GIORDANO BRUNO

THE GIORDANO BRUNO SOCIETY

Guido del Giudice

O PROFETA DO UNIVERSO INFINITO

Tradução Flavia Wass

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INTRODUÇÃO

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Giordano Bruno era um pensador genial à frente no tempo, tan-to, que se considerava um dos “Mercúrios” enviados à Terra na-queles períodos estabelecidos e inspirados numa visão profética da humanidade e universo. Como todos os seres dessa estirpe, foi e será sempre odiado por aqueles homens mesquinhos, invejosos de tudo aquilo que não conseguem entender, fechados nos seus obtusos “particulares”, que temem ver tudo desaparecer na pre-sença da imensidão. Era um homem que conhecia o próprio va-lor e respeitava os do outro, o verdadeiro, não aquele estabeleci-do pela tradição e conveniências. Era um homem que dizia “pão ao pão e vinho ao vinho”. Era um homem que amava a vida em todos os seus aspectos e em todas as suas manifestações reconhe-cia a expressão do divino. E era com certeza, o inimigo im-placável e convicto de que todos “aqueles homens estúpidos e desprezíveis, aqueles que não reconhecem nobreza, a não ser on-de reluz o ouro, o tilintar da prata, e o favor de pessoas similares, tripudiam e aplaudem” (Oratio Valedictoria). Foram estes os ideais que perseguiu por toda a vida, até a extrema consequência: a fo-gueira da Piazza Campo de’ Fiori. Este triste epílogo, teria sido até mesmo inevitável, pela forma como tudo andava naquele tem-

po, porém, perdura igualmente como um aviso, para que uma infâmia assim, não se repita nunca mais. A intuição subversiva, dessa ou da infinitude do universo nasceu nele, através, do conhe-cimento das antigas doutrinas herméticas, egípcias, gregas, que continham desde sempre, o embrião e os princípios geradores da concepção “infinitista”. Mas, o filósofo infunde em tudo seu ini-gualável ardor intelectual. No momento em que, “ à luz de Co-pernico” vem dar sustentação às suas ideias, então se escancarou diante dos pés do pequeno frade dominicano, a imensidade de Deus. Assim, como desse universo de Deus no Universo, onde so-mos a sombra, o negativo que somente por meio de um processo de “inversão intelectual”, contemplamos a imagem positiva do Todo. É o jogo dimensional no tempo e no espaço sempre presen-te em Bruno, é a vicissitude universal: “... Se a mutação é verda-deira, eu que estou na noite espero pelo dia, e aqueles que estão no dia esperam pela noite, tudo aquilo que é, ou é aqui ou lá, ou é perto ou longe, ou agora ou depois, ou cedo ou tarde.” (Cande-laio). Frequentemente, acentua-se o fato que as suas ideias repou-sam somente na intuição, certamente genial, mas não com a aprovação do emergente espírito científico, pela falta de qual-

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O Profeta

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quer “matematização”. No entanto, é justo aqui a grandeza de Bruno, tudo que faz dele um verdadeiro profeta, o fascínio da sua complexa personalidade, do culto da magia natural e sua mnemotécnica. Todas atividades evocadoras e precursoras dos avanços de modernos desenvolvimentos. Quando, em setembro de 1599, pressionado pelas intimações do Santo Ofício, que bem havia intuído as devastadoras implicações da sua filosofia, deci-diu não abjurar às fortalezas dessa. Pois, o seu espírito não era aquele de um mártir, mas de um pensador iluminado e coerente até ao extremo. A sua experiência terrena nos dá uma direção, um método, um ensinamento, que vai além das contradições, distorções ou obscuridade da sua obra. Uma inestimável herança que o Nolano deixou a todos os homens de pensamento livre. O leitor contemporâneo encontra nele o estímulo a iluminar, inces-santemente, essa realidade, que por ser “sombra profunda”, po-de ser conhecida por todos, com a aplicação e o estudo, e supera-da através de um esforço “heroico”, capaz de nos revelar o divi-no, que temos em nós. Purificado da escória das disputas teológi-cas, que pouco o interessaram, Bruno espera ainda hoje ser lido, julgado e entendido por sua filosofia, a visão da natureza e do

cosmos, além de cada instrumentalização. E nesta ótica, procuro contar a você leitor, a experiência terrena deste gigante do pensa-mento.

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Assinatura próprio punho de Giordano Bruno

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Capítulo 1

“NASCIDO SOB O MAIS BENEVOLENTE CÉU”

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✦ Nola, com a sua tradição de indomáveis guerreiros, a qual da mesma estirpe descendia teu pai, então é uma pátria digna de um Mercúrio.

✦ É uma terra dos fortes humores e nisto sinto, também nos meus defeitos, pois sou seu filho genuíno e orgulhoso de ter na-scido naquele céu benevolente. Não poderia nunca esquecer as doces encostas do Monte Cicala, onde adolescente embre- nhava-me e aventurava entre as heras, os ramos da oliveira, dos frutos da montanha, o louro, o mirtilo e o alecrim. Sentia a natureza animar e informar tudo com um potente dinami-smo que dentro da semente ou raiz lança e opera o brotar; dentro desse brotar caça os ramos, dentro dos ramos outros ra-mos são formados e dentro desta definição as gemas, dentro da forma, a figura entrelaça, como nervos das folhagens, as flo-res e os frutos. Advertia a presença de Deus, natureza infinita, em todas as coisas pela qual não é preciso procurá-lo em ou-tro lugar, porque o temos por perto, na realidade dentro, mais do que nós mesmos somos dentro de nós. Assim, tudo se ani-ma, tudo se responde, das coisas grandes às vis minúcias, da árvore à flor para o fio da erva tudo, embora mínimo, está sob infinitamente grande providência, porque as coisas grandes

Giordano Bruno nasce, nos primeiros meses de 1548 em Nola, na região de San Giovanni del Ciesco, aos pés do Monte Cicala, de uma família certamente não abastada. A mãe, Fraulisa Savolino, pertencia a uma família de pequenos proprietários de terra. O pai, Giovanni, era um soldado de profissão, fiel ao rei da Espanha e em sua homenagem impôs ao filho o nome de batismo do príncipe herdeiro, Filippo. Da terra natal, a gloriosa Nola que rejeitou Annibale e acolheu o último suspiro de Augusto, herdou o orgulho e o espírito combativo. E mesmo que, tenha abandonado Nola aos 14 anos para estudar em Napoli, Filippo Giordano Bruno permanecerá para sempre, o Nolano.

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“NASCIDO SOB O MAIS BENEVOLENTE CÉU”

O Nolano

Nola no século XVI

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são compostas de pequenas e as pequenas por pequeníssi-mas. É o complicado que se explica, Deus que se faz natu-reza, a luz que se faz sombra e vice-versa.

✦ No sugestivo cenário de Cicala, as experiências e aventu-ras juvenis estimulavam a sua fantasia, alimentando uma vocação inata à intuição cósmica, a projeção da faculdade imaginativa e cognitiva, muito além, das formas e das aparências.

✦ Quantas vezes sentado sob as muralhas do castelo e à som-bra de uma castanheira, admirei lá do alto aquele inesque- cível pôr-do-sol pintar de vermelho o céu, destacando ao fundo da imensa planície, a negra forma do Vesúvio. Os raios de sol se irradiando nas brechas, entre as ruínas proje-tavam nas paredes fantásticas imagens animadas. Contem-plando aquele espetáculo sentia que não estava sozinho na-quele instante. Percebi as inumeráveis presenças que povo-am a imensidade do universo e as correspondentes mágicas dos elementos, porque também nós somos céu para aqueles que são céu para nós. Nesse, como em outros mundos infi-nitos, o espírito flutua de uma matéria a outra, regulado pe-las mesmas leis, permeado pelo mesmo instinto vital.

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A face de Giordano Bruno

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✦ Verdade seja dita, que o teu carácter inquieto, relutante e estranho não atraía muitas simpatias. Na infância nolana e ain-da mais, em Nápoles, num período cuja comunidade monacal de San Domenico Maggiore se encontrava no auge de uma ex-trema degeneração dos costumes, tudo isto esbarra na ex-plosão das blasfêmias, das piadas populares e na “procax fe-scennina iocatio”, que irá alimentar todo o Candelaio e que emerge dos conteúdos inventivos, ali e aqui, nas tuas obras ou relatos dos testemunhos do processo e companheiros da prisão.

✦ Quando cheguei aqui, devorado pela sede do saber, fiquei fascinado por esta grande religião, que conseguia impor sua força espiritual e a sua organização.

✦ E ainda, era uma época de tormentos para a ordem Domini-cana: lutas internas, indisciplina, vícios, delitos, punições ca-racterizavam a vida monacal. O hábito eclesiástico era para muitos somente um pretexto para garantir-lhes asilo e pro-teção de práticas dissolutas e libertinas.

✦ As naturezas bestiali se reconhecem mesmo que, carreguem uma veste de religioso. Mas, fiquei com uma impressão desta

Em Nápoles frequentou os estudos superiores e seguiu as lições privadas e públicas de dialética, lógica e mnemotécnica de Teofilo de Vairano, Giovan Vincenzo Colle, conhecido tal como O Sarnese, e Mattia Aquario. Em junho de 1565, em idade tardia para este tipo de escolha, decide ingressar na carreira eclesiástica e adentrou, com o nome Giordano, na ordem dos pregadores no convento de San Domenico Maggiore. No seminário a sua célula era adjacente aquela que foi de S. Tomaso d’ Aquino. Frei Giordano se revelou pelo agudo engenho e a particular habilidade na arte da memória, mas também pela intolerância às rigorosas regras da estrutura religiosa e sua insaciável curiosidade intelectual. Cerca de um ano depois, acusado de ter desprezado o culto à Maria e todos os Santos, incorre nas primeiras censuras disciplinares.

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“NASCIDO SOB O MAIS BENEVOLENTE CÉU”

Os anos de formação

San Domenico Maggiore

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igreja forte e bem organizada. Sobretudo, depois de ter con-hecido as outras no decorrer da minha peregrinação, sinto que essa permanecerá basicamente a melhor. A única por-tadora de um carisma e uma estrutura capaz de compor sob o comando de um único líder e guia as diferenças reli-giosas. Ainda que, o viver dos religiosos não fosse mais co-mo aquele dos apóstolos, a igreja ainda tinha poder e in-fluência, capaz de realizar o projeto do irenismo, a paz ideológica entre os povos. Bastava abandonar aquele dog-matismo intransigente e deixar que os problemas teológicos e filosóficos fossem geridos por uma casta sacerdotal ilumi-nada. Enquanto, o clero retornasse a pregar a mensagem evangélica para manter o povo na paz e na concórdia. Nu-ma industriosa tranquilidade, sem o envolvimento com as disputas doutrinárias, que criam somente ódio e divisão.

✦ Isto entendeu, quando em pleno processo afirmou falar co-mo filósofo e não teólogo?

✦ Não me interessava discutir sobre uma divindade, a qual, não podemos verdadeiramente conhecer, a não ser como sombra ou vestígio. A minha sede de conhecimento e a

construção da minha filosofia passam por uma vida, anos de estudos. Muitos autores, heréticos ou não: pude ler Erasmo, porém admirei Aquinate. Interessei-me pela here-sia de Ario e também amei o divino Cusano. A religião nun-ca foi o meu principal problema e andei por todas as igrejas, onde encontrei asilo, católico ou protestante, calvini-sta ou luterano. O conceito de igreja tinha justificativa para mim somente sob a ótica da paz, da concórdia entre as pes-soas. Bastava para mim poder continuar a cultivar as min-has ideias filosóficas. Para isto, resistia até quando aceita-vam minha adesão formal às várias religiões e deixavam-me difundir o meu pensamento.

✦ Deve admitir, que a sua intolerância às regras, mal se adap-tava à vida monacal. A diplomacia não era por certo o seu forte.

✦ Certa vez, num dos raros momentos de relaxamento em S. Domenico, em que nos concediam a nós noviços e então, jogávamos com o livro da sorte para verificar o nosso desti-no. Quando foi a minha vez fui abençoado com um verso de Ariosto: “De cada lei inimigo e de cada fé”.

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✦ Dos numerosos conventos, que visitou naqueles anos, S. Bartolo-meo foi o único ao qual citou e recordou o momento do processo.

✦ Um dos poucos lugares onde fiquei sereno: experimentei e encon-trei pela última vez um abraço quente com a minha terra natal.

✦ Quando chegou escalando no dorso de um burro, pelas curvas inacessíveis, qual a impressão você teve? Um pequeno monastério dos padres pregadores e das encostas da colina de Gerione, em ci-ma das ruínas, na fortaleza.

✦ Não acreditava no que meus olhos viam: parecia uma magia! Era impressionante a semelhança de Gerione e Cicala, duas gotas de água, dois irmãos gêmeos. Parecia, que tinha voltado para minha casa. Quem poderia imaginar que naquele lugar perdido teria aquela impressão de rever a paisagem de onde nasci e que tanto me fazia falta, naqueles anos em que estive em S. Domenico Mag-giore?

✦ A cela que foi concedida a você no pequeno convento dava para ver da janela uma estreita trilha pedregosa e íngreme, que devia escalar pelas colinas, até a fortaleza.

✦ Frequentemente quando percorria as colinas podia lembrar mi- nha mãe Fraulisa, com seus longos cabelos em trança, recolhidos

Embora, as primeiras censuras tivessem começado a surgir por alguma incauta manifestação, graças às qualidades de gênio, Bruno atinge rapidamente, os vários degraus na carreira eclesiástica: subdiácono em 1570, diácono no ano sucessivo. Em 1572 foi ordenado sacerdote, celebrando a sua primeira missa na igreja do convento de S. Bartolomeo, na cidade Campagna, pequeno lugarejo a 40 quilômetros de Napoli.

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“NASCIDO SOB O MAIS BENEVOLENTE CÉU”

Frei Giordano

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na nuca e caminhava ligeiro ao meu lado, pegando minha mão. Como se a tivesse vendo subir entre as altas castanhei-ras, pisoteando os ouriços, afundando os tornozelos bran-cos em uma cama barulhenta de folhas mortas. Sem fôlego, pelo cansaço e emoção chegava ao topo, naquele que deve-ria ser um pátio circundado de muralhas e torres decora-das. Parecia mesmo, que estava em cima do Monte Cicala, entre as ruínas do castelo. Aqui, porém, a planície lumino-sa era mais longe, sobre o desfiladeiro estreito, como se Ge-rione fugisse carregando-me na garupa, para adentrar na escuridão do vale. Um presságio de distanciamento como um isolamento num exílio sem retorno.

✦ Em direção ao norte, além dos negros relevos dos montes Romanella e Ripalta, esperava o desconhecido. Foi a últi-ma ocasião, que contemplou o mundo do alto e com distan-ciamento. Em seguida, foi lançado por eventos de um lugar a outro e não conseguiria mais fazê-lo, a não ser em fanta-sia. Até o dia em que viu teu corpo longe queimar, enquan-to tua alma ascendia com a fumaça ao paraíso.

✦ Avistava embaixo de mim a igrejinha com o pequeno sino, onde recém tinha celebrado a eucaristia e como sempre estava fascinado pelo jogo de proporções e a sensação da relatividade em tudo. Senti ainda, o gosto na boca do vi-nho e do pão sacrificial, mas não estava satisfeito o meu de-sejo de contato com o divino. Uma profunda insatisfação me assalta em relação aos correspondentes universais que percebi lá em cima, na presença da imensidão.

✦ Aquele inverno frio de solidão e reflexão foram, desta for-ma, decisivas para as tuas decisões futuras?

✦ Um dia, enquanto sentava na pequena guarita de pedra, perto da porta da ponte levadiça e imerso nas leituras do amado Tomaso, senti ouvir uma voz: “Fica entre nós, irmão Giordano, fica na tua igreja. Não deve dar ouvidos ao demônio do conhecimento, mas resistir às tentações da heresia. Humilha o teu orgulho. Faz penitência por estes teus pecados de presunções e renuncias ao insano projeto de propagandear as tuas loucas teorias. Os teus grandes do-tes de inteligência, prometem a você um grande futuro e a possibilidade de alcançar os mais altos cargos eclesiásticos. A igreja protegerá você e recompensará os seus méritos com uma vida de conforto e de glória”. Aquelas palavras, ouvidas de joelho com o rosto entre as mãos, em sinal de reverência com “o divino Aquinate”, não fizeram senão re-forçar os meus propósitos. Não era aquele gênero de honras que me interessavam. Senti dentro de mim, forte, a certeza de estar no caminho justo e de não poder renunciar em seguir a estrada da verdade, mesmo que, essa conduzis-se à ruína. Mais uma vez, estava envolvido e inebriado pelo infinito. Em pé, abri os braços embaixo do amplo manto branco e abracei com o olhar, pela última vez, aquele espetáculo. Adeus Cicala! Adeus Gerione! Adeus àquela paz, as tranquilas jornadas de estudo e de contemplação. A minha missão de Mercúrio aguarda-me: estou pronto para enfrentar o meu destino de humilhação e de morte.

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Em 1575, recebe o título de doutor em teologia, mas contempo-raneamente ao profundo estudo pela admiração à obra de S. Tommaso, não renunciava as leituras de Erasmo de Rotterdam. Algumas incautas afirmações a favor das doutrinas heréticas de Ario, determinaram a abertura de uma sentença local a seu car-go, no caso ao qual emergem também acusações de dúvidas acerca dos dogmas trinitária. Retornou à Roma para defender-se das acusações de Sisto Lucca, procurador da ordem e foi avi-sado que em sua cela encontraram livros proibidos de Erasmo. Vendo agravar a sua posição, foge de Roma abandonando o hábito eclesiástico. Teve início assim, uma inacreditável peregri-nação: quase dez mil quilômetros, que o levaram a visitar as principais cortes e academias universitárias europeias. No inter-valo de dois anos 1577-1578 ficou em Noli, Savona, Torino, Ve-nezia e Padova, onde se manteve proporcionando lições em várias disciplinas, geometria, astronomia, mnemotécnica e filoso-fia. Depois de breve parada a Bergamo e em Brescia, ao final de 1578 viaja em direção a Lione, depois Chambery e de lá a Gene-vra, a capital do Calvinismo. Nesta, foi acolhido por Gian Ga-leazzo Caracciolo, marques de Vico, exilado da Itália e funda-dor da local comunidade evangélica. Após experiência de “corre-tor de primeiras impressões” em uma tipografia, Bruno adere

É o amanhecer. Uma carroça com as insígnias papais está esperando no sagrado da igreja de S. Domenico Maggiore, em Napoli. Um padre, pequeno, mas elegante na batina branca da ordem domenicana sai do portão do convento, sobe na diligência e ainda, sonolento acomoda-se no assento de veludo. Aquele frade era Giordano Bruno de Nola. O Papa Pio V ouviu falar sobre a habilidade extraordinária de um jovem representante da grande tradição dominicana, em memória artificial e quer vê-lo nesta função. Em Roma, Bruno recitará à memória, em hebraico, o salmo “Fundamenta”, da primeira palavra à última e ao inverso. Será a primeira das numerosas exibições, que no curso de sua vida concederá ao Papa, imperadores e autoridades acadêmicas e eclesiásticas com a arrogante zombaria de um gênio incomprendido. Mas, a igreja não tardará em descobrir, que a prodigiosa memória daquele homem é somente a manifestação exterior de uma extraordinária capacidade de intuição, uma irrestringível luxúria do saber e do comunicar, desse modo, deverá contar também com o seu pensamento corrosivo e rebelde.

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“NASCIDO SOB O MAIS BENEVOLENTE CÉU”

A fuga

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formalmente ao Calvinismo e foi matriculado como docente na Universidade local, em maio de 1579. Em agosto, porém, publicou um pequeno livro, onde evidencia bem claro, vinte erros cometidos durante o decorrer de uma lição, pelo titular da cátedra de filosofia, Antoine de la Faye, e foi denunciado pelo mesmo, por difamação. Preso, processado e imposto a ele “deffence de la cène”, a proibição de participar da Eu- caristia, que de fato equivalia a uma excomunhão. Para obter o perdão, Bruno devia admitir a sua culpa e deixar Ginevra. A sua inquietação e intolerância aos dogmas o fez atingir um inigualável recorde de excomunhão: da católica à calvinista e somarão a anglicana em Londres e a luterana em Helmstedt. Próxima etapa: Tolosa, baluarte da ortodoxia católica na França meridional, onde obteve o doutorado e foi admitido a ensinar por cerca de dois anos na Universidade local, comen-tando o De Anima de Aristóteles. Quase insuperável nas dispu-tas acadêmicas obteve muito rápido a estima e admiração dos colegas, que evidentemente não retribuía. Quando o ilus- ter professor Francisco Sanchez dedicou a Bruno com pala-vras cheias de estima o próprio Quod nihil scitur, o comentário escrito por Bruno sobre a capa do livro foi implacável: “Mara-vilhoso que esse burro possa ser chamado doutor”! Em 1581

o recrudescimento das lutas religiosas entre católicos e hugue-notes o obrigou a trocar de ares, mas também influencia pro-vavelmente na decisão e convicção de estar pronto para ou-tros palcos mais prestigiosos.

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João Calvino

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Capitulo 2

À CORTE DO REI DA FRANÇA

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✦ A sua habilidade na arte da memória é famosa em toda a Eu-ropa. Poderia dar uma demonstração, Giordano?

✦ Está pensando você também que sou bobo ou está me confun-dindo com um saltimbanco? É desde o tempo de noviço, em S. Domenico Maggiore que, Papas, reis e simples estudantes querem assistir às minhas exibições e pedem para revelar a eles meus segredos. Pensam que a mnemotécnica é somente um instrumento capaz de aumentar o seu poder e para comquistar vínculos com outros seres humanos. Não enten-dem que os moldes, as estátuas são somente imagens-espelho da realidade. Estas são capazes de dirigir, através das nossas faculdades os influxos astrais, que agem no universo, estabele-cendo uma conexão direta entre esta sombra profunda e a luz da divindade. Mnemosyne é a minha Deusa! É para ela a quem devoto minha intenção de remover o véu da aparência e fundir minha alma no mundo. Memória não é somente re-cordar, mas adquirir conhecimentos sempre novos. Porque se a minha mente é divina, ainda, com a ajuda da memória eu posso chegar a compreender a organização do universo!

Em Paris, iniciou para Bruno um periodo de brilhante sorte. Ficou internado para fazer um curso de trinta lições sobre os atributos divinos de Tomaso d’Aquino, na qualidade de “leitor extraordinário”. Diferente de Tolosa, na verdade, em Paris aqueles leitores “ordinaries”, deveriam frequenter a missa, porém interditada para Giordano enquanto excomungado. O eco dos excepcionais dotes colocados à mostra pelo pequeno padre italiano, chegou a Enrico III, soberano dotado de profunda cultura e ótimo orador, que deseja de imediato encontrar aquele mirabolante mago da memória. Bruno dedica ao rei, ainda, um texto extraordinário: o “De Umbris idearum”. O reconhecimento e admiração do Rei foram imediatos a ponto de nominá-lo “lecteur royaux”(leitor real), na mais prestigiosa universidade daquele tempo. Um púlpito, no qual Bruno começou instantâneamente a difundir as suas ideias revolucionárias, incauto do ostracismo dos pedantes da Sorbonne, escandalizados pelas teorias, que desmantelavam, ponto por ponto, os intocáveis dogmas aristotélicos.

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À CORTE DO REI DA FRANÇA

Memória não é somente recordar

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É nas imagens evocadoras de conceitos ideais universais, as quais, Bruno confia um papel fundamental de trait d’union com o mundo ideal de inspiração neoplatônica. Estátuas, letras, ro-tas, sinais zodiacais se associam movendo um ao outro, revelan-do correspondências e coincidências, sombras e luzes, seme- lhanças e diferenças, que regulam a rota do tempo e ciclo da vi-cissitude. As suas sequências e complementaridades constituem a essência unificante do universo e da vida-matéria infinita. Aquelas imagens, que cada um de nós pode criar autonomamen-te, uma vez estimulada pela emoção, nos conectam automatica-mente à esfera das ideias, das quais somos sombras, “umbra pro-funda”, mas a qual fatalmente, como uma chama, tendemos e dependemos em ciclos alternados de “ascensão” e “descenso”. Aquele processo para cujos espíritos recebem as contemplações do divino princípio e as almas se encarnam, mudando e assumin-do o controle da matéria e da forma. Astros, números, figuras re-enviam todas as forças elementares da natureza, operantes em uma matéria que tem a mesma dignidade da forma. Bruno ad-verte tudo isto e procura expressar-se utilizando com desenvoltu-ra todos os instrumentos que o seu tempo consegue oferecer-lhe: a magia natural, a astrologia, a matemática e mesmo a arte da memória.

Bruno é um grande sensitivo: absorvido pelo universo, é convicto de poder remover as barreiras entre o humano e o divino, enquanto permanecer este conhecimento somente umbratile. A arte memorial representa para ele um meio para circular além da humanidade, à pesquisa do verda-deiro e inexprimível. Para estabelecer vínculos e chegar às percepeções universais partindo da natureza às coisas. Uma técnica para alcançar, aproveitando as correspondên-cias naturais, astrológicas e verbais, uma tomada de cons- ciência superior.

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MEMÓRIA NÃO É SOMENTE RECORDAR …

As imagens “agentes”

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Porém, Giordano não se satisfaz com os artifícios dos grandes mnemonisti do passado e elabora, experimenta e transforma. Aperfeiçoa e modifica as rotas mnemoniche de Raimundo Lullo, idealizando novas, cujas às palavras são associadas ima-gens, como aquelas por ele elaboradas em De Umbris Idearum, que explorando a esfera emocional (sexo, medo, etc.) e a sim-bologia da divindade mitológica se imprimiam na memória, ajudando a recordar. Das alegorias de Spaccio aos emblemas dos Furori, até ao conceito-estátua das impressionantes Lampas Triginta Statuarum, as associações palavra-imagens se transfor-mam de uma simples técnica de memória, num mecanismo de pensamento, que consente em elaborar e confrontar os conceitos para reunir à nova verdade. A ideia é aquela de cri-ar uma máquina mneminica, uma espécie de computador criativo, que consiga pensar por si mesmo. Se por um lado a ars memoriae (arte da memória) constitui para Bruno um instrumento protos científico, a outra face se religa às crenças das influências astrais, comumente aceitas no renascimento. Os astros são grandes animais, enquanto dotados de alma e, portanto, capazes de vincular-se a outras almas. Aos prog- nósticos astrais acreditavam reis e imperadores, papas oficiali-zavam ritos astrológicos nas suas capelas privadas, filósofos como Tomaso Campanella e astrônomos como Tycho Brahe compilavam prognósticos e previsões. Como nas mandalas in-dianas, Bruno tenta colher na natureza e reproduzir as man-

dalas que se exprimem nas flores, nas plantas, no movimento dos astros e dos planetas, nas manifestações da natureza. Atra-vés da introjeção desses esquemas, ele associa intuitivamente as semelhanças representadas pelas figuras e desenhos. Cada representação da rota mnemônica vem, assim associado a uma imagem e essa, por sua vez a um astro. É o caso das três figuras fundamentais da sua geometria, que Bruno nos apre-senta, a primeira vez, nos 160 Artigos contra os matemáticos e define depois em De Minimo, sob os títulos de “Atrio de Apol-lo, Minerva e Venere”, que representam mitologicamente a sua crença filosófica: a trinità hermética da Mente, Intelecto e Amor.

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Revelando uma surpreendente afinidade com as correntes do pen-samento oriental, Giordano Bruno identifica, ao interno das estru-turas naturais, particulares figuras e símbolos, que determinam as formas das coisas. Essas configurações manifestam, a mesma tenta-tiva das mandalas indianas de colher as geometrias e de reprodu-zi-las através dos diagramas. Quando ativados pelo impulso inte-lectual incutido neste, durante suas formulações e realizações, esta-belecem um contato com as estruturas essenciais, hipersensíveis da realidade. A palavra “mandala” em sânscrito significa círculo, mas também “centro”. Escutamos Bruno:

Como o centro se explica em um amplo círculo, assim um espírito regulador, depois de desvendado nos apensos atômicos, coordena o todo, até que, passado o tempo e quebrado o fio da vida, se recompõe no centro e novamente se expan-de no espaço infinito: tal evento é geralmente identificado com a morte; porque nos empurramos em direção à luz desconhecida, a poucos é concedido perceber o quanto nossa vida significa na realidade morte e essa morte significa ascen-der a nova vida: nem todos conseguem prescindir do estado corpóreo e precipi-tam, arrastados do próprio peso, em um profundo abismo, sem a luz divina. (De triplici minimo).

“Todos, indagando os números da natureza, voltamos a nos-sa atenção às figuras naturais, por meio das quais a ótima mãe, configurando todas as coisas, distingue as respectivas virtudes e propriedade; pinta, esculpe, tece, nas suas su-perfícies os respectivos nomes. A natureza exprime, através dos números dos membros e das fibras de todas as coisas, a sua mesma estrutura. Essa demonstra na mesma imagem a beleza, a excelência, os privilégios, de que é dotada, ou me-smo, os seus contrários. Essa mesma põe nas formas das coi-sas as leis, os modos no agir e no sofrer, evidencia as vicissi-tudes. Em imprimir tais selos, aquela ótima mãe deixa claro a autoridade de um Deus que tudo governa”. (De monade)

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MEMÓRIA NÃO É SOMENTE RECORDAR…

As Mandalas de Giordano Bruno

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Este conceito de emanação do todo, a fonte divina e re-torno da multiplici-dade no Uno, Bru-no representa isso, com os seus dese- nhos constituídos por círculos concên-tricos e complica-dos quadrados, ima-gens, que resultam cosmogramas. Isto é, projeções geomé-

tricas da fórmula do universo. Contemplando este cosmogra-ma, o indivíduo se identifica com as forças arcanas que ope-ram no universo, em cujas relações numéricas e figuras geométricas, que medem a trama interna da realidade e apre-ende as estruturas que regulam a natureza, até chegar a reali-zar em si mesmo a coincidência do macrocosmo e micro-cos mo. Este impulso, em direção à unidade, nas filosofias orien-tais é capaz de conduzir às iluminações aqueles que contem-plam as imagens. A mandala é então, um meio, um canal pa-

ra reencontrar a unidade a partir da multiplicidade. Ao mes-mo tempo, entender a propriedade das coisas, e o seu signifi-cado na ordem do mundo, quer dizer também apreender agir nele através da magia natural.

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Capitulo 3

A TEMPORADA INGLESA

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A temporada inglesa sob a proteção e na acolhedora habitação do embaixador, consentiu a Bruno compor obras importantes. Publicou um único volume Ars reminiscendi, Explicatio triginta sigillo-rum e Sigillus sigillorum. Logo depois publica a maior parte das obras italianas: La Cena de le Ceneri, o De la Causa, principio et uno, o De infinito, universo et mundi e o Spaccio de la bestia trionfante. No ano seguinte, ainda em Londres, ele publicou a Cabala del cavalo pega-seo e o Degl’ heroici furori. Esta última obra, assim como Spaccio é dedicada ao sir Philip Sidney, neto do favorito da rainha, Robert Dudley, conde de Leicester, com quem estabeleceu um relaciona-mento bastante estreito de estima e amizade, e Dudley o inseriu nas graças de Elisabetta Tudor. Na sua obra Cena de le ceneri Bruno declara, em claras letras, seu entusiasmo e estima pela so-berana: “Não tem aqui matéria para falar daquele lúmen da terra, daquela singular e raríssima dama, que desse frio céu, vi-zinho ao paralelo Ártico, a todo o globo terrestre envia uma luz tão clara: Elizabetta, digo, que pelo título e dignidade de Rai- nha não é inferior a qualquer rei, que tenha no mundo”. Embo-ra não tenha como comprovar, extremamente sugestiva é a hipótese de um encontro do filósofo com William Shakespeare. Indubitável influência são rastreadas em algumas de suas obras

Cerca depois de um ano e meio, no início da primavera de 1583, Bruno deixa Paris para alcançar a residência londrinense do embaixador Michel de Castelnau. Também este deslocamento, assim como aquele de Tolosa, são explicados por Bruno aos inquisidores vênetos, são provocados pelos tumultos que aconteciam na capital.

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A TEMPORADA INGLESA

De Sorbone à Oxford

Michel de Castelnau

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como em Trabalhos de Amores Perdidos, no personagem de Be-rowne fica visível no personagem, traços do filósofo Nolano. Na mira das insaciáveis ambições de Bruno, até naturalmen-te, Oxford: extremamente ávido pela ocasião de afirmar a infi-nitude do universo na fortaleza da “pedanteria” acadêmica! Havia apenas entrado em contato com a famosa universidade e, empurrado pela impetuosidade do seu carácter, durante uma disputa coloca em dificuldade e sem consideração, um estimado docente, John Underhill, que logo viria a ser Bispo de Oxford. Com este comportamento desperta, sem dúvida, o desdém de uma parcela de seus colegas, que manifestaram na primeira oportunidade animosidade. Contudo, Bruno ob-teve alguns meses depois, a tarefa de proferir uma série de conferências em latim sobre sua cosmologia e defendeu entre outras a teoria de Nicolau Copérnico sobre o movimento da terra. Porém, tamanha coragem custou o afastamento tam-bém de Oxford. A mnemotécnica permitia citar tão fielmente os seus mestres, a ponto de ser acusado de ter plagiado o De Vita coelitus comparanda de Marsilio Ficino, portanto obrigado a interromper as lições. Mas, além dos ressentimentos pessoais, a atmosfera cultural e religiosa inglesa entravam em conflito com as ideias mais arraigadas de Bruno. Mais precisamente,

a sua cosmologia e o seu anti-aristotelismo. O episódio da quarta feira de cinzas, em 1584, fica bem significativo: Bruno foi convidado a cear na residência do nobre inglês “Sir” Fulke Greville, onde iria expor sua ideia sobre o universo. Dois Doutores de Oxford, que estavam presentes e antes mes- mo, que Giordano Bruno pudesse argumentar ponto por pon-to, provocaram-no com uma ardente rixa, onde usaram ex-pressões das quais Bruno considerou ofensivas. Isso o induziu a demitir-se daquela situação de hospede. Deste fato, nasce o diálogo Cena de le ceneri, que contém agudas e nem sempre di-plomáticas observações sobre a realidade inglesa contem-porânea. Pelas reações de alguns, que se sentiam injustamen-te envolvidos em tais juízos, abrandou-os na obra seguinte, De la causa, principio et uno. Nos dois diálogos italianos, Bruno con-trasta a cosmologia geocêntrica nos moldes aristotélico-ptole-maico, mas supera também as concepções de Copérnico, inte-grando a tudo isto às especulações do “divino Nicolau de Cu-sa”. Na esteira desta filosofia cusaniana, de fato, o Nolano imagina um cosmos animado, infinito, imutável, ao interno do qual se agitam infinitos mundos similares ao nosso.

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Se a terra girasse, dizia Aristóteles, essa se moveria durante o tempo da queda, por isto o ponto onde a pedra cai deveria mo-ver-se na direção oposta ao movimento da terra. Bruno foi o pri-meiro a refutar este argumento no terceiro diálogo de Cena de le Ceneri: Se alguém que está dentro de um navio lança uma pedra em linha reta, aquela pela mesma linha retornará para baixo, en-quanto o navio está em movimento e não faça curvas. Em ou-tras palavras, embarcações, árvores e pedra formam aquele que em seguida seria chamado “sistema mecânico”. Da qual diversi-dade, não podemos entender outra razão, exceto que as coisas que possuem cisão ou semelhante associação com o navio, se mo-vem com ele. (Bruno- Teófilo). Com a terra se movem, então, to-das as coisas que se encontram na terra. O argumento dos que sustentavam a teoria terra fixa e imóvel é sem fundamento. De-monstra como não se pode avaliar o movimento de um corpo em absoluto, mas somente de maneira relativa. Bruno abre, des- te modo, a estrada ao trabalho de Galileu, o qual fará eco no diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo: E toda esta correspondência de efeitos é a causa de ser o movimento do na-vio comum à todas as coisas contidas nela e a atmosfera do ar ainda. (Galileu-Salviati)

No campo da física, também, Giordano Bruno deixou sua marca: é o caso do célebre experimento do navio, para explicar a relatividade do movimento. A observação que uma pedra, deixada cair do alto de uma árvore ou de uma torre, cai verticalmente, era considerada pela física aristotélica uma das provas mais evidentes da imobilidade da terra.

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A TEMPORADA INGLESA

A “Cena de le Ceneri”

Imagem da “Cena de le Ceneri”

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14 de fevereiro de 1584, dia da ceia. Um grande barco rangia deslizando sob rio Tâmisa, em uma tarde nebulosa. A bordo, além de dois velhos barqueiros e briguentos, estavam Giorda-no Bruno e seus dois amigos, o senhor Giovanni Florio e o mestre Matteo Gwynn, que vieram conduzi-lo para acompan-há-lo até a residência de sir Fulke Greville. Esse o convida pa-ra cear, com a intenção de ouvi-lo debater as suas teorias he-liocêntricas e da infinidade. O filósofo está na proa e volta seu olhar em direção ao céu lívido, onde reluz uma cândida lua.

BRUNO. A Lua minha, com meu pesar contínuo, jamais é pa-ra sempre imóvel e jamais para sempre cheia. Sempre gostei, em noites como esta, contemplá-la e imaginar estar lá em ci-ma. Quem sabe um dia poderei encontrar ali, finalmente, um pouco de paz: fugir da universidade que não gosto, o povo que odeio e a multidão que não me contenta.

GWYNN. Coragem, está de bom humor Giordano! Desta noi-te, o que lhe aguarda é uma grande disputa! Eu também mor-ro de vontade em escutá-lo defendendo, contra os pedantes de Oxonia, a teoria heliocêntrica do excelentíssimo Copérnico, na qual fundamentou tua “nova filosofia”.

BRUNO. Eu não vejo nem pelos olhos de Ptolomeu ou de Copérnico! Sou grato a estes grandes gênios, como a tantos outros sábios, que no passado entenderam o movimento da terra. Afirmavam isso os pitagóricos: Niceta Siracusano, Ec-fanto, Filolao. Platão revela isso no Timeo, e cautelosamente faziam-no entender o divino Niccolò Cusano. Mas, somente eu, como Tiresia, cego, porém inspirado por Deus, fui hábil em penetrar no significado das suas observações e reconhecer nessas o que, nem mesmo eles souberam entender.

GWYNN. Pensei que ao menos a respeito de Copernico não tivesse objeções!

BRUNO. Grandíssimo astrônomo! Tem o enorme mérito em atribuir dignidade e credibilidade às teses dos antigos. Mas, muito mais estudioso da matemática e menos da natureza, nem mesmo ele conseguiu libertar-se completamente das vãs quimeras dos vulgares filósofos, até derrubar as muralhas dos primeiros, nonos, oitavos, as décimas e outras esferas para afir-mar a infinitude do universo. Aquela infinitude que eu, desde jovem, apreendi a contemplar em minha amada terra natal.

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Capitulo 4

INFINITOS MUNDOS

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A crença em um giro celeste material, que delimitasse o mundo como uma casca de noz, desaparece na noite dos tempos, porém precisamos esperar o século IV a.c. para Aristóteles e seu trata-do, o De coelo, para uma completa exposição de uma teoria ca-paz de explicar o mais preciso possível esse movimento aparente das estrelas e a respeito dos corpos celestes. O Stagirita (como era conhecido Aristóteles, que provinha dessa região da Grécia, Stagira) achava impensável a hipótese de um mundo infinito co-mo imaginavam uma ampla parte dos antigos filósofos. A sua visão geocêntrica previa que o nosso pequeno globo terrestre fos-se imóvel ao centro do universo e os arredores do mundo, como uma imensa esfera, rodasse sem fim, em 24 horas em torno do próprio eixo, transportando-se atrás das estrelas. Era este o céu das fixas estrelas, assim chamado porque o olho as percebia de uma distância fixa uma das outras. A sua rotação explicava o aparente movimento noturno em torno ao polo celeste das estre-las, que se encontrariam todas a uma igual distância da terra. Se-gundo Aristóteles, a esfera das fixas estrelas não era composta dos quatro elementos (terra, agua, ar e fogo) como se pensava na-quele tempo, constituíriam o mundo, mas de uma quinta essên-cia que ele chama “éter”. Na sua física, de fato, distingue uma região central, o mundo sublunar (embaixo da órbita da lua) que é o mundo onde as coisas nascem, se desenvolvem e mor-

A ideia do infinito universo estava presente desde os filósofos gregos. O pitagórico Archita di Taranto, por volta de 430, perguntava-se: “Se me encontrasse no limite extremo do céu, sob a esfera das fixas estrelas, seria possível estender uma mão ou um bastão?” A hipótese da rotação da terra sobre si mesma em 24 horas avançava desde Eraclito no século VI a.C. E no quarto século a.C. Iceta di Siracusa pregava que, “ Tudo no universo é imóvel, menos a Terra”. Segundo Iceta, essa move-se em círculos em torno do próprio eixo, enquanto Vênus e Mercúrio giram em torno do sol (como sustentará mais tarde, contemporâneo de Bruno, o dinamarquês Tycho Brahe). No seu grande poema em latim, “De rerum natura”, Lucrezio considerou o universo ilimitado e ousou lançar a hipótese da pluralidade de mundos obedientes as mesmas leis físicas e habitados por outros seres pensantes.

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INFINITOS MUNDOS

Prisioneiros das fixas estrelas

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rem, melhor dizendo o mundo terrestre. E uma região que a circunda, o mundo sobre lunar, onde se situam, com suas esfe-ras etéreas, Lua, Sol e Planetas: corpos imutáveis, isto é, ja-mais dotados de nenhuma transformação. Astros não cria-dos, eternos e perfeitos, animados por um tipo de movimento considerado, também isso, perfeito: o movimento circular uni-forme. Para explicar este movimento de rotação e suas per-feições, Aristóteles avança a hipótese que é devido a inteligên-cias motrizes, cujos espíritos estariam a sua volta colocados em movimento por um Primeiro Motor, ao qual dá o nome de Deus. A cosmologia e a física de Aristóteles divaga assim na metafisica. Apesar, das críticas terem avançado por dife-rentes escolas filosóficas da antiguidade, a cosmologia de Aristóteles, enfim se impôs. Todos os astrônomos gregos po-steriores, em particular Tolomeo no século II da nossa era, retomaram os conceitos gerais propostos por Aristóteles. Os debates entre os astrônomos puristas aristotélicos e os par-tidários de Tolomeo focavam somente em pontos menores: os números das esferas, a distância que separava a terra das fixas estrelas e mais ainda, o movimento exato dos planetas no interior das esferas. Durante os primeiros séculos da Idade Média, o ocidente esqueceu quase totalmente Aristóteles. A

cosmologia do ocidente cristão é apoiada, essencialmente, no rastro dos versos bíblicos da criação do mundo, a qual fazia do giro celeste um firmamento, ou seja, um giro sólido (por “firmus”, parado) onde são fixadas as estrelas. No início do século XIII, quando começaram a circular as primeiras tra-duções latinas dos escritos perdidos de Aristóteles, a igreja, assim como antes dela os teólogos mulçumanos, deu-se conta que o tratado De coelo, também ali se reconhecia a existência de um Deus Primeiro Motor, ignorava a ideia da criação do mundo e da imortalidade da alma. Portanto, em 1210, as au-toridades religiosas interditaram a leitura de Aristóteles. A so-lução desta crise se deve àquele que Bruno reconhecia como um dos seus Mestres, o dominicano Tomaso d’ Aquino.

O “Divino Aquinate”, assim chamado pelo Nolano, realizou, na Summa Theologica, uma verdadeira e própria cristianização da arquitetura do universo descrita no De coelo. O mundo é único e bem limitado, fechado na esfera das fixas estrelas. Adere à ideia avançada do filósofo grego da existência de uma quinta essência: os corpos celestes são de natureza diver-sa dos quatro elementos e são incorruptíveis pela natureza. Ao mesmo tempo reinterpreta no sentido cristão, a metafisica do Primeiro Motor, assim, o identifica bem ou mal, no Deus

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criador da Revelação, e assimila aos anjos as inteligências que empurram os planetas sobre órbitas e esferas.

Em 1323, meio século depois da sua morte, Tommaso d’Aqui-no é canonizado e a sua filosofia, o tomismo, torna-se a dou-trina oficial da igreja. O pensamento Aristotélico torna-se a única filosofia ensinada nas universidades da Europa, enrije-cendo-se junto com a filosofia escolástica medieval. Aristóte-

les é considerado infalível e, em inumeráveis ramos do saber, a doutrina aristotélica impõe-se quase sem adversários. Nin-guém ousa mais contestar que das esferas celestes concêntri-cas giram incansavelmente em torno da terra. A esfera das fixas estrelas, este estranho objeto, que jamais nenhum huma-no pode ver, ganha o estado de uma entidade celeste, cuja realidade não pode ser colocada em dúvida! A convulsão cul-tural do renascimento não podia ignorar este aristotelismo in-tegralista. A recuperação dos pitagóricos, dos platonistas, dos estoicos, a intensificação pela busca da verdade nos campos mais discrepantes, da medicina à física, às matemáticas, con-tagia todos os campos do saber. Exceto nas universidades, na-quele ambiente, no século XVI, o controle religioso era qua-se total e passam a representar uma fortaleza inatacável. Ao longo do século XVI (e outros também) o esquema cosmológi-co medieval permanece aquele universalmente aceito e Tom-maso d’Aquino um dos autores mais publicados da época. É a publicação em 1543, do livro de Copernico, o De revolutioni-bus orbis celestes, que marca a data de ruptura. A Terra expulsa do centro do mundo, gira enfim, em torno de si mesma. Em torno do sol, agora imóvel no centro do sistema, giram as “ór-bitas celestes”, que contém e levam os planetas, entre qual o nosso, situado hora entre Vênus e Marte. A Terra é um plane-

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San Tomaso d’Aquino entre Aristóteles e Platão

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ta como os outros: essa é substancialmente a mensagem, que hoje parece banal, mas foi uma extraordinária novidade para os contemporâneos de Copernico. Todavia o mundo de Co-pernico não é exatamente o universo que nós conhecemos, hoje. De uma parte ele mantem um centro, onde Deus, para iluminar o mundo, organizou o sol como num trono real e, de outro lado, conserva um limite externo. Também Coperni-co, na realidade, para explicar o movimento aparente das estrelas, no céu noturno, recorre às esferas das fixas estrelas e, assim, é obrigado a imobilizar como uma gigantesca casca das dimensões imensas (por immensus, impossível de mensu-rar), a qual circunda a terra em rotação. Inicialmente, a teo-ria copernicanica foi relegada ao plano de simples hipótese, cômoda, talvez pelos cálculos, mas por nada semelhante à estrutura real do mundo. Nada mais que, uma tentativa de redefinir as posições e os movimentos dos planetas no interior do nosso sistema solar, na visão unificada de um universo de infinitas dimensões. É surpreendente a pouca ressonância que teve a obra de Copernico, não somente quando surgiu, mas segue no curso dos séculos precedentes. Precisou vinte e três anos para o De revolutionibus ganhar uma segunda edição. No início do ano de 1580, quase quarenta anos depois da pu-blicação da obra, no momento em que Giordano Bruno for-

mula suas revolucionárias teorias, o mundo científico em ge-ral, continuava assim a professar concepções imutáveis, na essência, por cerca vinte séculos.

Se não foi o primeiro a sustentar e difundir a teoria coperni-cana, Giordano Bruno foi certamente o primeiro a tratar com coragem e determinação as consequências também mais extremas e perigosas pelo tempo em que as vivia, afirmando que o mundo não é de modo algum finito, isto é, fechado por uma esfera, que o circunda por todas as suas partes, como os mesmos Copernico e Kepler continuavam a sustentar. Quan-do em 1584 escreve a Cena de le Ceneri, o seu primeiro diálogo na língua italiana, Bruno amadureceu a ideia que nos encon-tramos sob a superfície de um globo lançado, como os outros planetas em uma incessante rotação em torno do sol. Com isto chega, finalmente o momento de abandonar para sempre a indefensável doutrina da centralidade da Terra. A cosmolo-gia bruniana faz uso das fontes que data a filosofia da antigui-dade, como Aristarco di Samo (que já no século III a.C. ha-via sustentado a teoria heliocêntrica, segundo a qual, a Terra e os planetas giram sob órbitas circulares em torno ao sol imóvel), Pitágoras e Lucrezio. Portanto, essa teoria é intima-mente ligada à sua metafisica. No seu terceiro depoimento pe-lo processo vêneto ele declara: Eu considero um universo infi-

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nito, isto significa efeito da infinita divina potência, por que eu estimava o que indigno da divina bondade e potência que, podendo produzir, além desse mundo, um outro e outros infi-nitos, produzisse um mundo finito. Por esse motivo declarei a existência de infinitos mundos particulares e semelhantes a esse da Terra, o qual de acordo com Pitágoras, concebo ser um astro. Semelhante a isso é a lua e outros planetas e outras estrelas, as quais são infinitas, e que todos estes corpos são mundos e sem número, os quais constituem, portanto, a uni-versalidade infinita em um espaço infinito; e este se chama universo infinito, no qual são mundos enumeráveis. Por sorte que existe em dobro espécies de infinidade: aquela da gran-deza do universo e aquela da multiplicidade dos mundos, on-de indiretamente se entende ser repudiada a verdade segun-do a fé. A esfera das fixas estrelas suscita somente o seu sar- casmo: Como podemos continuar a acreditar que as estrelas são incorporadas em uma cúpula, como se estivessem gruda-das nesta tribuna e a superfície celeste com qualquer boa cola ou pregado por pregos maciços?

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Os sistemas astronômicos: a) Tolemaico b)copernicano c) Tychonico

a)

b)

c)

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Ao mesmo tempo, que era admirada pela sua audácia, a filosofia bruniana acarreta, entretanto, as frequentes acusações pela aproxi-mação das suas teorias matemáticas e uma certa aversão à trigono-metria, e referimentos ao pitagorismo, aos pré-socráticos e ao ato-mismo de Epicuro e Lucrezio. Isso tudo recheado de contamina-ção, além disso, mágica e hermética. Mesmo reconhecendo que a sua monadologia flui no sulco tecido por Niccolò Cusano, que magia e astrologia eram universalmente cultivadas por todos os grandes pensadores do renascimento, de Pico a Ficino, de Della Porta a Campanella, na tentativa de refutar ou ao menos redi-mensionar a grandesa do Nolano, é considerado “bruxaria”, seu interesse pela magia e hermetismo. Não se considera o fato, que os escritos herméticos, tiveram uma parte importante na recupera-ção da ideia do movimento da terra. Esses foram estudados com extremo cuidado, o mesmo do grande Newton, para o qual “ os movimentos que os planetas tem agora não podiam derivar so-mente de uma causa natural, mas foram imprimidos por um ser inteligente”, ao qual ele identificava como a vontade de Deus. Em um período como o renascimento, onde a Terra, e como conse-quência o homem, eram o centro do universo, pensar que existis-sem outras galáxias, abitadas pela ajuda de outros seres, não era nem mesmo ficção, mas pura loucura. Tudo que mais facina em Bruno é a coerência em desenvolver as próprias ideias sem se preocupar com as consequências. Nada de estranho que fosse con-siderado um visionário ou pior, um charlatão pelos egos inflados,

Era um domingo, precedendo a festa de San Giovanni Battista, no verão de 1178. Cinco monges da Catedral de Canterbury em Londres, terminadas as rezas ao cair da tarde, antes do recolhimento para seus aposentos, pararam em silêncio para observar a lua. De repente, viram a borda superior do astro produzir uma sutil fenda e desta dilaceração saltar uma imensa chama. Os frades correram alarmados, para contar o acontecido ao irmão Gervasio, o histórico di Canterbury, que o relatou fielmente nas suas “Chronica”. Maravilhas como aquelas eram consideradas portadoras de desgraças, por que somente o diabo podia se permitir de inquietar a imobilidade imperturbável dos astros. Os recentes voos espaciais, confirmaram fisicamente o relatório compilado, no século XII, desde o monge de Canterbury, revelando que efetivamente, a lua tem uma ligeira oscilação, como se tivesse sido atingida menos de mil anos por um asteroide. Exatamente na região descrita pelo frade Gervasio, naquela tarde de junho, esse asteroide deixou na superfície lunar uma enorme cratera que os astrônomos a queriam intitular ao profeta do universo infinito.

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INFINITOS MUNDOS

Mago ou cientista?

A cratera Giordano Bruno

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os pedantes do seu tempo. Tycho Brahe, com feroz desprezo declina sua admiração, chamando-o “Nullanus” (sem valor). Abbot, futuro arcebispo de Canterbury, condenou o fato que “aquele “homemzinho” italiano fez a tentativa de manter de pé as ideias de Copernico, para quem a terra gira e os céus estão parados. Enquanto, na verdade era bastante a sua ca-beça que girava e o seu cérebro que não estava parado”. Mes- mo assim, as ideias do Nolano influenciavam diretamente ou indiretamente a “Nova Ciência”. William Gilbert, contem-porâneo de Bruno, ao expor suas ideias sobre magnetismo, no livro De mundo, faz largo uso das teorias cosmológicas expostas pelo filósofo Nolano em De immenso. Galileo mostra bom conhe-cimento dos textos brunianos, também evita sempre de citá-lo. Keplero, apesar de expressar o seu desconforto quanto ao uni-

verso infinito preconi-zado por Bruno, re-preende assim o cien-tista pisano: “ Não terás, meu Galileo, inveja dos elogios de-vidos àqueles, que tanto tempo antes de você anteciparão tu-do que agora contem-p l a s c o m t e u s próprios olhos? A tua glória é que repara a

doutrina do nosso conhecido, Edmondo Bruce, que ele tomou emprestado de Bruno”. A estrada de Bruno e Galileo foram por caminhos bem distintos , mas ao final se entrelaçaram, quando o Nolano sentiu-se atraído pela catedra de matemáti-ca, em Padova. Vaga essa, deixada pelo Siciliano Giusepe Mo-leti e que será atribuída ao Pisano. Este fato o joga definitiva-mente à armadilha que o esperava em Veneza. É notório o quanto todo sucesso mundano agradava Galileo. A paternida-de do compasso geométrico, bem como aquela do mesmo te- lescópio, foram contestadas. De resto, as leis da ótica, as quais explicam tecnicamente o funcionamento, são méritos de Klepe-ro, que as analisou em sua Diottrica, em 1611, reconhecendo, ao seu redor, o débito em relação à De Refractione, de Giovan Battista Della Porta. Certamente, se por um lado è incorreto

aproximar Bruno ao experimentalismo ma-temático de Galileo, por outro não se deve nem mesmo cair na intolerância oposta de cancelar a contr i-b u i ç ã o à s i d e i a s científicas, ainda que apresentado ao final somente como uma profecia, ainda que, nebulosamente com-

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Tycho BraheJohannes Kepler

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preendida e indefini-da. Bruno não era astrônomo, segundo o significado moder-no do termo; a sua visão cosmológica de-riva em grande parte do seu conhecimento humanístico. Embo-ra, tenha elaborado, acima um binário pa-ralelo àquele dos seus contemporâneos “cientistas”, um con-

ceito típico do mundo da revolução científica: aquele de um universo infinito, sem centro nem prinicípios hierárquicos. Pa-ra interpretar esta sua grandeza é necessário uma mudança de perspectiva fundamental: do ponto de vista de Bruno, é a práti-ca científica que deve ser considerada em função da sua teoria do universo infinito e não vice-versa. O procedimento brunia-no é coerente com uma visão essencialmente intuitiva e proféti-ca da realidade fenomenal, que a ele consente preconizar, sem nenhuma demonstração “científica”, teorias que serão confir-madas sucessivamente pelo progresso da ciência moderna. Este cenário, fica assim por ele, conscientemente declarado e perseguido desde a primeira observação em sua terra natal e no monte Cicala, através da mitologização do seu destino “mercurial”. Não será uma simples coincidência a decisão de

expor a summa da sua filosofia em forma de poema e não de tratado científico. A “Nolana filosofia” é um efeito não-científi-co da revolução científica, mas nem por isto deve ser considera-da de segundo plano, enquanto se propõe a transformar a rela-ção do homem com o mundo. Além disso, o irracional teve e continua a ter a sua parte no desenvolvimento das ideias científicas e a ciência moderna se revelou, em muitos casos, muito mais ilusória, do que aquela do século XV e XVI. Se Bruno é contestado pelo desconhecimento daquilo que Gali-leo definiu, no famoso Saggiatore, a linguagem matemática, com a qual é escrito o grande livro do universo, ainda assim , ele conseguiu compreender ou intuir tantos mecanismos, é eviden-te que as línguas que exprimem o funcionamento do universo são muito mais que uma. Alexandre Koyré, em seu fundamen-tal Do mundo fechado ao universo infinito, exprime deste modo seu sentimento pelo filósofo: “Giordano Bruno, me perdoe dizer (...) como cientista é mediocre e não entende a matemática(...) a concepção bruniana do mundo é vitalista e mágica(...) De nenhuma maneira Bruno é um espírito moderno. Todavia, a sua concepção é tanto poderosa e profética, tanto sensata e poética, que não podemos deixar de admirá-la, juntamente com seu autor. Isto influenciou de um modo tão profundo – ao menos nas discussões formais- a ciência e a filosofia moderna, que não podemos deixar de atribuir a Bruno um lugar impor-tantíssimo na história do espírito humano”. Enfim, dele pode-mos dizer tudo, mas nunca que não era um pensador de ex-traordinária força mental. A admiração não correspondida por Tycho Brahe, assim como o embaraçante entusiasmo pelo com-

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Giovan Battista Della Porta

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passo diferencial de Fabrizio Mordente, revelam a sua preocu-pação em obter medidas exatas e a consequente necessidade em desenvolver novos instrumentos de observação. O De tripli-ci minimo et misura, centra de fato, neste conceito de dimensão, com particular referência às partículas minimas ou átomos, que se encontram na base dos corpos sensíveis. Surpreenden-temente, Bruno expõe questões muito vivas, hoje, no âmbito da matemática e da física quântica. A consciência do fato que “umbra profunda sumus” (somos sombras dos reais), o fazia sentir, cada vez que procurava entrar de modo “experimen-tal” nos problemas matemáticos e geométricos, a relatividade deste método. Evidenciando, ainda mais, a compreensão dos problemas ligados, como observa Hilary Gatti, a “teoria atômi-ca e cosmológica baseada na entidade de dimensão mínima e máxima, a tal ponto de excluir por definição as capacidades perceptivas e intelectivas da mente humana”. Suas dúvidas an-tecipam surpreendentemente os problemas que, ainda hoje, agitam a física quântica e, em particular ao pricípio de indeter-minação de Heisenberg, o qual colocou em relevo, segundo Harold J. Morowitz, que “ as leis da natureza não têm mais o que fazer com a partícula elementar, mas com o conhecimen-to que temos desta partícula, isto é, com o conteúdo da nossa mente”. Para Bruno a matemática e a geometria são métodos de valores aplicados a uma realidade fenomenal e, portanto, “sombra” e não a sua verdadeira essência. Não sendo para isto, possível contemplar tudo, que está atrás do que chamava “anima mundi”( alma do mundo), somente a mitologia, a nível intuitivo-profético, pode penetrar os motivos profundos

que regulam o comportamento do universo. Bruno compreen-deu, por inspiração “mercurial”, através de uma comunicação direta com a natureza, a existência dos princípios fundamen-tais, tais como a coincidência dos opostos, o ciclo das vicissitu-des e o conceito de “umbra divinitatis”, que constituem os pi-lares de toda sua especulação filosífica, também incluindo o inteiro aparato matemático e astronômico, ligado a essa. A re-cusa em retratar, ao contrário do pisano, aquelas teorias cos- mológicas, que defendia incansávelmente aos mais altos níveis da cultura europeia, em um período em que se evitava, ainda, pronunciar o nome de Copernico, constitui na historia da ciência um notável mérito. Bertolt Brecht conclui assim o seu Galileo: “ Não acredi-to que a prática da ciência possa camin-har separada da cora-gem (...) Se os ho-mens da ciência não reagem às intimida-ções das potências e se limitam a acumu-lar o saber, a ciência enfraquece para sem-pre(...) Eu traí minha profissão.”

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Nicolau Copérnico

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Renúncia de Galileo Galilei, lida em 22 junho de 1633

“ ... eu fui julgado veementemente suspeito de heresia, isto é, ter mantido e acreditado que o sol seja o

centro do mundo e imóvel e que a terra não seja o centro e se mova. Portanto.... com o coração sincero e

fé sincera, renuncio, almadiçoo e detesto os supracitados erros e heresias”.

Declaração de Giordano Bruno aos inquisitores em 21 de dezembro 1599

“ Não devo e nem quero me arrepender, não tenho do que me arrepender e não existe

assunto do qual possa me arrepender , não sei de que coisa deva me arrepender”.

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Capítulo 5

ADEUS PARIS!

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Certa tarde, Corbinelli o convidou para a presentação de recen-te descoberta do geômetro de Salerno, Fabrizio Mordente: o compasso proporcional com oito pontas. À convite do inventor, que não conhecia o latino, Bruno realizou a tradução na língua erudita, acompanhada com dois diálogos explicativos. Nesses, embora reconheça a paternidade da invenção e ainda mais, ele-va aos céus a capacidade como geômetra de Fabrizio, porém, colocava em cheque, também, a incapacidade desse em enten-der a pleno suas reais potencialidades. Bruno exaltava, em parti-cular, as aplicações do instrumento e utilidade do mesmo, para comprovar as suas teses filosóficas sobre o limite físico da divisi-bilidade. Sentindo-se diminuído no papel de simples “mecâni-co”, Mordente agiliza a compra de todas as cópias disponíveis dos diálogos e as destroe. Bruno reacendeu a polêmica publican-do um outro diálogo sob um título com tom sarcástico Idiota triumphans seu de Mordentio inter geometras deo, neste ridiculariza Fa-brizio igualando-o àqueles seres, quase sempre insensíveis e va-zios de valores intelectuais, escolhidos pela divindade para mani-festar-se. A conclusão deste episódio foi que o matemático volta-se ao seu protetor, o Duque de Guisa, espumando de raiva e pe-dindo vingança contra o Nolano, pelo contrário, alinhado com os“politiques”, fiel a Enrico III. Porém, Fabrizio Mordente não há de esperar por muito tempo, pois um evento obriga o Nolano dizer adeus à Paris!

Em primeiro de novembro de 1585 Giordano Bruno retornou à Paris, seguindo o chamado daquela pátria pelo embaixador. A situação era radicalmente outra. A queda e desgraça de Michel de Castelnau e as agruras politicas de Enrico III, empenhado em impedir a intromissão da Liga Católica, sustentada pela Espanha, não garantiam mais a proteção de tempos atrás. Procurou, então, sustentação dos conhecidos como“italiennes”, intelectuais filo-navarros, que reconheciam como seu líder Jacopo Corbinelli, protegido da rainha mãe Caterina de Medici.

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ADEUS PARIS !

O affaire Mordente

Compasso de Mordente

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Antes de abandonar definitivamente Paris, Bruno pensou em deixar outra inesquecível recordação sua e das próprias teses no ambiente acadêmico. Teria duas opções: a lição de demissão (que irá utilizar mais tarde em Wittenberg) e a disputa. Escolheu essa última e com o seu habitual gosto pela teatralidade, decidiu interpretar o papel de “presidente” do fórum, deixando assim, ao seu fiel aluno Jean Henneequin a tarefa de expor as teses for-temente anti-aristotélicas, contidas no opúsculo Centum et viginti articuli de natura adversos peripateticos, que tinha impresso para a ocasião. Foi um convite de casamento para os seus adversários, os quais organizaram uma emboscada com todas as regras. Ao fim do discurso do jovem Hennequin, o Nolano abriu as dis- cussões para quem quisesse intervir. Uma vez que ninguém se manifestou, ele sobe ao pulpito e fala à brava, por muito tempo contra a concepção finita de Aristóteles. Pegou desta vez, a pala-vra, um jovem advogado Rodolfo Callier, o qual provocou o No-lano com injúrias, chamando-o “Giordano Bruto” e propôs de maneira confusa algumas argumentações em defesa de Aristote-le, incitando a massa de estudantes. Sem conceder ao Nolano a faculdade de resposta, tudo aquilo termina em tumulto. O po-bre filósofo foi puxado e ameaçado pelos estudantes devendo prometer retornar no outro dia para responder às contestações. Ao invés disto, percebeu que as coisas estavam ficando ruins, então,obviamente desapareceu e apressou-se em deixar Paris.

Uma placa em latim fixada pelo Nolano no bairro da Academia, anunciava encontro na aula royal do Collége de Cambrai, aos leitores reais e a quem quisesse ouvi-lo declamar “contra demasiados erros de Aristotele e seus seguidores”. A lição estava programada, para 28 de maio de 1586 de quarta-feira da semana de Pentecoste, até o sábado, mas na realidade durou somente um dia. Dois anos depois em Wittenberg, recordando o infeliz êxito da disputa, Bruno publicará sob o título “Camoeracensis Acrotismus”, a edição revisada e ampliada da tese que ele propôs discutir naquela ocasião.

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ADEUS PARIS !

A disputa de Cambrai

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Capítulo 6

BURROS E PEDANTES

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Em prefácio de Candelaio, Bruno se define: “achademico di nulla achademia” (acadêmico de nenhuma academia). Para ele, os “perucões”, que sentenciavam do alto dos púlpitos univer-sitários, eram somente “pedantes”. O que ele não podia supor-tar neles era o “habitudo credendi” (o hábito de crer) típico dos aristotélicos, que aplainavam passivamente as posições de seu mestre. Os sofrimentos, que o Nolano deveria enfrentar ao lon-go da sua “peregrinação”, são ligadas essencialmente às perse-guições, vítima por parte das várias igrejas por um lado e por outro, o mundo acadêmico. Isto tudo, refletirá no quase obssessi-vo apelo das suas obras, aos princípios de tolerância e da“liber-tas philosophandi” (liberdade de filosofar), que constituem os pi-lares de toda e inteira especulação bruniana. Ele enxergava mui-to além das fábulas nas quais foi educado e as compreendia quando imbuídas de falsidades, mas não o incomodava. Assim, pregassem o que quisessem: como Bruno tinha aprendido na própria pele, uma religião, uma igreja é igual a outra. Pelo mesmo motivo, estava pronto a dissimular por motivos de opor-tunidade. Não estava disposto ao comprometimento, nem mes- mo diante da morte, embora estivesse sabendo que nenhum Deus haveria de considerar eventuais mentiras. O pensamento

Bruno continuamente estava à procura de um lugar para ensinar. Provavelmente, caso tivesse permanecido no ventre da igreja católica, teria escalado as mais altas hierárquias eclesiásticas. Não é todavia, um paradoxo afirmar, que suas desventuras, estreitamente ligadas a um caráter orgulhoso e rebelde, influenciaram positivamente o desenrolar do seu pensamento. Enquanto, o subtraíam aos nevitáveis condicionamentos do poder religioso e aqueles da academia, que haveriam fatalmente limitado seu espírito revolucionário. Efetivamente, os obstáculos e os preconceitos, que devia enfrentar estimularam, ainda mais, seu indomável orgulho e espírito de independência.

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BURROS E PEDANTES

“Acadêmico de nenhuma academia”

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de Bruno é profundamente anti-religioso, anti-cristão, anti-re-formado, anti-aristotelico. Bruno, enfim, é “anti”: mas não somente por seu espírito rebelde, pelo caráter orgulhoso e polêmico. Não se trocam os efeitos com as causas. Bruno é “anti” por ânsia de liberdade de pensamento, por intolerân-cia a qualquer imposição dogmática. Por que a “nova filoso-fia” pode se instituir somente libertando o campo das supers- tições e falsos princípios. Ele tem uma visão aristocrática da sabedoria, em sintonia com os cultos de iniciação egípcia e herméticos, que eram caracterizados por uma precisa separa-ção entre esotérico (para iniciados) e essoterico (para os não iniciados). A busca e a descoberta da verdade são prerrogati-vas do sábio e o consenso do “volgo” (homem comum) não depõe, absolutamente, contra veracidade de uma ideia. Que não conseguissem entendê-lo, o fazia experimentar um senti-mento de frustração e derrota, mais por obtusidade dos seus interlocutores, que por seus próprios insucessos. Por esta razão, pedirá até o último instante, para falar pessoalmente com o Papa: estava convencido que Clemente VIII compartil-hava desta ideia da “dupla verdade”. De uma verdade de fé, que mantivesse “o homem bruto e vil” em uma tranquila la-

boriosidade (e aqui tem muito de Maquiavel), e de uma verda-de esotérica que levasse em conta a magia natural, a nova co-smologia, o animismo universal.

✦ O que queria dizer aos teus inimigos, a todos que durante a tua existência hostilizaram, chamando de louco, acusan-do de plagio e de ser um pensador pouco original?

✦ Localize para mim somente um deles que fosse um pensa-dor verdadeiramente original. Estas acusações não de- monstram, nada além da inveja destes pedantes, de quem carregou na história do pensamento uma nova atitude e a conduziu com convicção e espírito de independência. Ca-da um de nós necessita comprovar as próprias ideias. A di-versidade e a comunicação são os valores fundamentais de uma verdadeira cultura.

✦ Acolheu no teu sistema filosófico, por intuição, as ideias de muitos grandes pensadores: de Anassagora a Lucrezio, de Cusano a Erasmo. Mas, somente soube unificá-las e harmo-nizá-las em um único potentíssimo pensamento, através de tentativas muitas vezes confusas. Porque essas ideias foram continuamente revisitadas, com a intenção de expressar os

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teus conceitos, além disso e frequentemente, contra a cultu-ra daquele tempo. Desenvolveu suas teorias em uma di-reção, que nem mesmo eles teriam sonhado em conceber, ou não teriam a coragem de empreender. Caminhando ain-da mais longe, onde cada um deles, deteram- se ou estagna-ram- se diante de convenções e dificuldades. Em efeito, tu-do aquilo que vem como censura, não faz nada mais que aumentar a sua grandiosidade. Ainda assim, continuamen-te e por séculos modificaram premeditadamente as fontes com os conteúdos, bem como, as sugestões com as substân-cias do seu pensamento.

✦ Sempre fui comparado, seja com meus modelos, com meus mestres, aqueles meus oponentes a começar pelo próprio Aristóteles. A minha coerência é demonstrada pelo conhecimento que tenho, ao qual me concede o direito em criticá-los. Por essa razão, meu desejo é de verificar e en-contrar provas, busquei a confirmação às minhas in-tuições, às teorias que vinha elaborando, na doutrina dos filósofos e dos homens da ciência, que conheci e estudei. Os meus grandes dotes mnemonicos consentiram que com-

pararasse e assimilasse todas as ideias que puderam aju-dar-me a sustentar e desenvolver a minha doutrina.

✦ Em Oxford, os pedantes aproveitaram para acusá-lo de co-piar as obras de Ficino, porque durante as tuas lições citava de memória passagens inteiras.

✦ Miseráveis gramáticos, que não ousavam destacar-se uma vírgula das palavras de Aristotele, tiveram a coragem de acusar-me de plágio! Matemáticos e astrônomos, servos da corte, incapazes de libertar-se das suas estrelas fixas, das fal-sas muralhas, que sozinhos as construiram e que, séculos de-pois da minha morte avistavam, ainda, a terra imóvel no centro do universo. Estes, arrogam o direito de tratar com desprezo o meu pensamento e me pegam para mago, bruxo! Diziam que era a minha cabeça que girava, não a terra, por que temiam a vertigem que o meu pensamento provocava neles.

✦ Tycho Brahe, o grande astrônomo da época e admirado por você, a tal ponto de dedicá-lo com entusiasmo a cópia do teu Acrotismus. Na ocasião, chamou-o desdenhosamen-te, “Nullanus”.

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✦ Sempre o reconheci e exaltei-o nas minhas obras, por vezes, confesso que, com entusiasmo exagerado, os méritos e valores das conquistas do pensamento. Assim, queria e de-sejo ainda hoje, que reconheçam as minhas! Este homem tinha a disposição os instrumentos mais sofisticados da épo-ca, uma ilha inteira foi equipada para suas observações. Pa-trulhava os céus, testemunhou e estudou o movimento dos cometas e elaborou muitas felizes teorias. Pensei: terá adi-vinhado, mesmo por intuição, as possibilidades abertas por estas revelações. Nada! Como todos os outros. Ele persistiu na sua estúpida, presunçosa visão de mundo, incapazes de sentir, sem coragem ou intuições para irem além, ou mais, ter humildade para escutar. Ao filósofo não compete formu-lar teoremas ou cálculos matemáticos. Sou aquele, que sem precisar dos observatórios astronômicos e experimentos, rompi a esfera das estrelas fixas para sulcar impávido o infi-nito, descobrindo as verdades, que até agora nenhum foi ca-paz de intuir.

✦ Você foi partidário do heliocentrismo, rompendo cada limi-te, em Oxford, coração da oficial cultura daquele tempo,

onde as teorias de Copernico eram consideradas, no máxi-mo, um experimento bizarro. Anunciou a necessidade de uma “renovatio mundi” (renovação do mundo) em uma época de ferozes lutas religiosas e civis. Sem teoriazá-las da distante “torre de marfim” como um sábio solitário, mas procurando pessoalmente próximo às cortes e no antro dos luteranos, calvinistas, protestantes, enfim, católicos. Com a intenção, em vão, de chegar e discutir diretamente com o Papa. Um dinamismo verdadeiramente excepcional o teu, se considerarmos os meios de comunicação da época.

✦ Não basta perder-se com as próprias ideias, como vãos so-nhadores, isolados com os próprios estudos. O filósofo tem o dever de desafiar, armado somente das próprias ideias, o ódio dos pedantes e o desprezo do “volgo”. Para isso, o filósofo é um saltimbanco, um charlatão e serve de espanta-lho no campo. Eu teria preferido parar e ter tido uma cáte-dra de Professor, fixa e tranquila, onde poderia ensinar e difundir o meu pensamento. Nunca concederam isso a mim. Em Londres, na casa do embaixador da França, de Castelnau, seguro e reverenciado, estimado pelas melhores

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mentes e pela rainha Elizabete, pude então, experimentar o quanto é doce e fecundo para o estudioso, a tranquilidade e segurança, e naquele período produzi obras importantes. Todavia, durou pouco também ali: o destino errante me in-citava. Melhor assim! Talvez estaria, também eu, transfor-mando-me num pedante! A minha sina era essa: vagar pela Europa, afirmando ideias que, naqueles tempos, lugares e costumes, soavam como uma provocação, um desafio.

✦ É o destino, Giordano, de todos “intempestivos”: homens à frente de seu tempo. Considerando as reações para algu-mas das tuas afirmações, sempre nascia em mim uma per-gunta: verdade mesmo, que este homem, afirmou estas coi-sas na segunda metade do século XVI? Se ainda, séculos depois da sua morte, os intelectuais falam de você como um demônio por ter dito verdades reconhecidas hoje, até mesmo pela ciência moderna, é admirável como não o colo-caram na fogueira antes! Não sei, por loucura ou heroismo, mas somente uma personalidade indomável, teimosa, into-lerante ao dogma como a sua, poderia dar voz e naquele tempo a tais intuições.

✦ Pegavam-me para louco, mas, como ensina o letrado Erasmo, os homens são todos um pouco loucos. O sábio é conscio disso e mantém sua âncora na realidade, aceitan-do-a com ironia. Os pedantes e o “volgo” não entendem e se tornam personagens da comédia, ridículos na sua alti-vez e cegueira. O que, se não a loucura, empurra os gramáticos carrancudos e esbravejadores do alto das suas cátedras, sentindo-se assim muito importantes? Ou os teólo-gos com as suas finíssimas sutilezas e a cabeça empanturra-da de milhares e absurdas velharias poderão, igualmente, considerarem-se os guardiões da verdade?

✦ Enquanto o fanatismo das guerras religiosas e das cismas ensanguentavam a Europa, não era ainda mais louco, pre-tender que as suas ideias fossem aceitas nos centros da pe-danteria e da intolerância religiosa?

✦ Talvez sim, mas se soubesse quanta satisfação vê-los vaci-lar diante da força e as sugestões da verdade, debatendo-se como pintinhos na estopa, para defender os próprios erros!

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Capítulo 7

NA TERRA DOS HEREGES

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Em Wittenberg o Nolano viveu um período extraordinariamente feliz, durante o qual, teria a possibilidade de conceber as suas mágicas obras e de jogar as bases dos grandes poemas de Frank-furt. Cerca de dois anos depois, para prevalecer a facção Calvini-sta sobre a Luterana, que o apoiava, Bruno se despede com a Ora-tio Valectoria (Oração de despedida), onde agradece a universidade pela acolhida, sem preconceitos religiosos. A oração, contém um caloroso elogio a Lutero por sua coragem em oposição ao poder supremo da Igreja Roma-na e tem grande valor em defesa da liberdade reli-giosa. Embora, Bruno ti-vesse em outras obras (especialmente Cabala e Spaccio), ferozmente criti-cado a doutrina dos lute-ranos, foram próprios es-ses a tratá-lo com a mais alta hospitalidade e consi-deração. Em Wittenberg, deixou para trás uma le-gião de fiéis e gratos dis-

Novamente viajante pela Europa, Bruno desembarcou em junho de 1586 na Wittenberg da Alemanha, nessa Universidade matriculou-se como “doutor italus”. Graças a ajuda do ilustre jurista Alberico Gentili, foi admitido para ensinar, primeiro publicamente e depois privadamente uma lição do “Organon” (Instrumento) de Aristotele (conjunto das obras sobre lógica do filósofo).

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NA TERRA DOS HEREGES

A casa do saber

A Academia de Wittenberg

Martinho Lutero

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cípulos por tentar a carta Praga, na corte de Rodolfo II a quem dedicou os Articuli adversos mathematicos, rece-bendo uma recom-pensa una tantum (somente uma vez) de trezentos talle-ri, em dinheiro germânico. O No-lano não estava a vontade na atmos- fera astrológico-al-

química, ainda, predominante na corte de Rodolfo II, que se transformou no paraíso dos charlatões e pretensos magos do calibre de Jonh Dee e Edward Kelley. Bruno já havia encontra-do Dee na Inglaterra, em junho de 1583, quando esteve em Oxford a reboque do conde Laski e havia desafiado a famosa disputa com os pedantes oxonienses. Dee, naquela época esta-va na sua propriedade, em Mortlake e foi o amigo em comum Philip Sidney, quem organizou o encontro. Agora, as suas estra-

das se cruzaram novamente, porém lhe bastou pouco para dar-se conta que o papel de mago da corte não era para ele. Bruno nunca teve simpatia pela alquimia e, em seus escritos, refere-se a esta somente fazendo paródias. Começando por uma de suas primeiras obras, Il Candelaio (O Castiçal), em que o alquimista Bonifacio representa o protótipo do crédulo, igno-rante e presunçoso, que regularmente é enganado e zombado pelos vilões do vulgo napoletano, muito bem efetivamente des- critos na comédia. De resto, não teria nada de estranho em Bruno lidar com a alquimia: naquele tempo a alquimia era praticada um pouco por todos: h u m a n i s t a s , astrônomos, papas. Até mesmo, San Tomaso d’ Aquino mostrou um tal inte-resse na "Grande Obra", para com-por alguns tratados alquimistas. Até

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Rodolfo II

John Dee

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mesmo, uma lenda medieval sustentava que ele tivesse recebi-do, através do seu mestre Alberto Magno, o “secretum secreto-rum”(a pedra filosofal), a qual teria sido descoberta por um ou-tro Doutor da Igreja: S. Domenico! Quando se deu conta que não era a matemática que interessava ao soberano, entretanto a busca da pedra filosofal, o Nolano prefiriu mudar de ares. Em Tubinga foi pior, ainda: desta vez concederam uma esmola de apenas quatro fiorini, desde que, saísse dali rapidamente. Até o fim de 1588 chegou a Helmstedt, onde permaneceu cer-ca de um ano e meio, confortado pela presença do seu aluno predileto de Wittemberg, Hieronimus Besler, que o ajudou na elaboração de uma série de obras num argumento mágico e esotérico que compreende: De Magia, Theses de magia e Magia matematica, incluindo o esboço do De rerum principiis et elementis et causis e de Medicina lulliana, todos reunidos no Código intitula-do à Abraham Norov, que o encontrou num antiquário, em Pa-ris. Mas, apesar da proteção do Duca Heinrich Julius de Braun-schweig, em seguida da sua enésima excomunhão, infligida desta vez pelo pastor luterano Heinrich Boethius, por motivos não muito claros e inclusive, (Bruno sustenta que eram de natu-reza privada), desse modo foi forçado a deixar Helmstedt. Fez, portanto, a rota por Frankfurt,com o objetivo de curar a publi-cação da suma de seu pensamento: os três poemas latinos ( De

triplici minimo, De monade e De immenso). Exatamente em 2 de junho de 1590, Bruno chega a Frankfurt, onde solicitou, mas não obteve permissão, para ficar na residência de Andreas We-chel, o editor de suas obras. Sem esmoirecer, resolve ficar pre-cariamente hospedado no convento das Carmelitani. A estadia foi interrompida somente por seis meses na Suíça, primeiro em Zurigo e depois hospede de patrício Heirich Hainzel, em seu castelo de Elgg, onde lecionou para um grupo de alqui- mistas paracelsianos e proto-rosacroses.

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Academia “Julia” de Helmstedt

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O que havia em comum entre Bruno e Egli, a não ser Summa ter-minorum metaphysicorum, que o Nolano ditou-lhe? Egli era um ati-vo promotor de Paracelso, cujos ensinamentos se inspirava na alquimia. Bruno no Oratio Valedictoria declamado em 1588, quan-do abandonou a universidade de Wittenberg, tinha tecido um elogio à “ casa do saber” alemã, contendo um solene louvor ao Paracelso, definido, considerado ou conhecido “médico que faz até milagre”. As simpatias paracelsianas constituem, para tanto, um dos principais pontos de contacto entre Bruno e o ambiente rosacruziano. Além disso, muitas das posições da confraternida-de de Elgg, sejam essas políticas, ligadas a um projeto irênico de paz universal, até mesmo de ascenção hermética, em termos de micro e macrocosmo, eram em larga escala compartidas pelo filósofo. O Nolano se reconhecia, até um certo ponto, nas supo-sições naturalísticas, à base das teorias de Paracelso. Inclusive, se endurecia de fronte ao uso “mágico” da alquimia, como de- monstrou em Praga, nos confrontos de Jonh Dee e da sua Monas Hyeroglifica. Bruno permanece firmemente ancorado aos clássi-cos cânones da “prisca theologia”(antiga teologia) e à sabedoria oriental dos Magos do tipo caldaico-egizio, muito longe do cristianismo “milenarista” nos molde rosacruziano.

O personagem principal dos eventos relativos aos contatos entre Bruno e os Rosacruzes é o teólogo zuriguese Raphael Egli. Personagem discutido e discutível, trabalhou com a teologia, poesia, alquimia e muito mais, ainda. No período sucessivo àquele em que acolheu Giordano Bruno em Elgg, no castelo do seu mecenas Heinrich Hainzel, próprio pela sua paixão pela alquimia, foi também protagonista de um terrível crack financeiro. Obrigado a fugir de Zurigo e remediar à corte de Langravio Maurizio di Hesse, onde concederam-lhe uma cátedra de teologia, embora, continuasse a estudar alquimia a vida toda. Mas Egli, sobretudo, foi um fervoroso rosacruz e um dos primeiros a difundir os famosos manifestos: a “Fama” e a “Confessio fraternitais” e, muito provavelmente, o autor de a “Consideratio brevis”, publicada em 1616, o ano sucessivo àquele do segundo manifesto.

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NA TERRA DOS HEREGES

O encontro com os Rosacruzes

Raphael Egli

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Capítulo 8

HERMETISMO E MAGIA

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A rítmica sucessão por onde o homem busca ascender à divindade e tal divindade recai ao mundo natural é um conceito estrutural transcedental, que na filosofia bruniana se identifica no cíclico alter-nante, a “subida” e “descida”.

A principal intuição desta teoria, que teve na Idade Média e no re-nascimento uma grande sorte, assimila no macrocosmo a imagem do universo, do mundo, o locus (local) onde reside Deus, a luz cria-dora propagada em todas direções, capaz de dissolver a escuridão e de fornecer o princípio ativo de todas as coisas. O microcosmo, ao contrário, constitui uma réplica pequena do macrocosmo, na qual a divindade se reflete na sua criação, o homem. Macrocosmo e micro-cosmo são, portanto, constituídos por uma só matéria formada por dois princípios opostos: a luz infinita e a escuridão. Os princípios opostos de luz e escuridão tinham na tradição hermética - alqui- mista, o mesmo significado de Zolfo e de Mercúrio, do dia e da noi-te, do sol e da lua, do masculino e do feminino.

A “Tábua Esmeraldina”, atribuida a Hermes Trismegisto recitava: “O que está embaixo é como o que está em cima... Sobe da terra para o Céu e desce novamente à Terra”. A antiga correspondência do macrocosmo e microcosmo, , comum à tradição oriental e à tradição filosófica pré-socrática, segundo o qual o infinitamente grande e o infinitamente pequeno irão coincidir, percorre ininterruptamente a historia do pensamento humano. Bruno refere-se a essa teoria em “De Monade”: “Um é o centro do microcosmo, único é o coração, dos quais, espíritos vitais se difundem por todos animais, onde é emoldurada e radicada a árvore universal da vida, e nisso os mesmos espíritos vitais fluem novamente para se conservarem”.

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HERMETISMO E MAGIA

Macrocosmo e microcosmo

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E no livro De Magia, Bruno distingue os vários tipos de magia e claramente, adquire uma distância do ocultismo e necromância. Fica evidente, que escolhe definidamente o terceiro tipo, o qual define magia natural. Consiste em ingressar na sintonia dos me-canismos que vivificam a realidade e que regulam em idêntico modo o funcionamento de todas as coisas. Das “minuzzarie” (mi-nudências) ao homem, aos pensamentos e ao ciclo histórico dos acontecimentos. Embasado nesse conhecimento se funda tam-bém a arte do vínculo: para que um vínculo ocorra, o vinculado deve ter os mesmos requisitos do vinculante. Obviamente, trata-se de conhecimento e operações , que não configuram certamen-te, a evidência de um esoterismo do tipo ocultismo.

O fato de Bruno ter restaurado dignidade divina à matéria, em-bora ao distinguir luz e sombra, exclua uma interpretação nos moldes ateísticos, que do desconhecimento e indefinição do divi-no, deriva a sua inexistência. Somos sombra, porém no interior dessa vivos e ativos, enquanto matéria e forma, embora som-brios, ambos são manifestações da divindade. Esta distinção con-

A palavra chave do esoterismo bruniano é “magia natural”. E esta era a única magia, na qual, ele acreditava: pesquisar os “princípios ditados em voz alta pela natureza”, como afirma no prólogo a Enrico III, em “Camoeracensis Acrotismus”. Em sintonia com Paracelso, a atividade mágica, para Bruno, baseou-se não sobre a influência de espíritos ou bruxaria, mas no controle do curso natural de todas as coisas.

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HERMETISMO E MAGIA

A magia natural

Paracelso

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sente a Giordano Bruno de discriminar nitidamente o campo do fidele teologo (fiel teólogo) e do vero filosofo (verdadeiro filósofo), e refutar a tendência cristã em anular a experiência humana por um doloroso caminho de suportações, na espera de uma “vida após a morte”, que por suas mesmas admissão, é incognoscível. O sistema filosófico bruniano constitui a mais poderosa tentativa possível, para um intelecto educado no ventre da igreja católica, e ainda submerso nessa, em afir-mar a supremacia da razão, relegando a divindade a um “além mundo” inatíngivel e portanto, irrelevante numa reali-dade que é somente sombra. Na sua “peregrinação” pelas igrejas e universidades, seja fisicamente ou através de “excur-sus” (digressões) imaginários nos territórios herméticos, orien-tais e consultações com os filósofos da antiguidade, Bruno pe-squisou as estruturas transcedentais do pensamento e da reli-gião. E em todos desenterra a comum inspiração monista, o ordenamento cíclico de uma realidade baseada na coincidên-cia dos contrários, entre os quais, predomina os pares míni-

mo-máximo, minuzzaria (minudências)-infinito, ingrediente inseparável daquela “alquimia natural”, que permeia magica-mente o senso das coisas do oriente ao ocidente. Como em Krishna, assim em Cristo, em Buda como em Pitágoras, em Roma, como no Egito. Giordano Bruno nasceu com aquele talento, uma virtude peculiar, um faro especial para a pesqui-sa e o reconhecimento desses ingredientes fundamentais, que compõem o real. A sua vida e obra são um contínuo pesqui-sar estes genes no DNA das diversas filosofias e teologias, com as quais, direta ou indiretamente, tivesse alcançado con-tato. E nisto, é um verdadeiro homo novus (homem novo), aberto, tolerante, curioso, ávido por conhecer e confrontar, sem preconceitos nem limitações de nenhum tipo. Pronto a reconhecer os próprios erros e evidenciar àqueles dos outros, assim como, reformular as próprias teorias e novamente di-fundí-las, para verificação e colocá-las à prova, generosamen-te e sem inibições ou censuras de gênero algum.

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✦ A doutrina hermética teve uma profunda influência no seu pensamento.

✦ Encontrei correspondências com a minha instintiva visão do mundo e do divino. Concedeu-me a consciência da pos-sibilidade do homem, apesar da incapacidade de contem-plar na sua vida a não ser a sombra da divindade, de che-gar ao indiarsi”(identificar-se com Deus). “Faça grande a ti mesmo, até tornar-se sem medida, libertando-se de cada corpo - recitava o Corpus Hermeticum- eleva-te acima de cada tempo, torna-te a eternidade: então compreenderás Deus”.

✦ Estas palavras parecem antecipar a tendência renascimen-tal do espírito à elevar-se, num esforço “vertical” de colo-car-se em contato com Deus. A partir da consciência sobre uma dignidade do homem, que pensadores como Pico del-la Mirandola e Marsilio Ficino tinham confirmado, nascia uma extraordinária ânsia de alcançar a divindade, canali-zando o espírito através dos astros, das estátuas e talismãs.

O homem havia, neste momento, adquirido consciência das próprias possibilidades e avistou abrir, diante de si, cam-pos exterminados por especulações e investigações, mas não conseguia ainda, remover a visão de um universo fini-to, cujo centro era a Terra, e uma necessidade tranquili-zadora de ter intermediários com o mundo extra-terreno.

✦ O único instrumento, do qual adverti uma necessidade, foi o meio para comunicar estas ideias novas e procurei conti-nuamente naquilo que tinha a disposição naquela época em que vivia. A minha admiração pela tradição egípcia na-sceu, precisamente, da pesquisa de uma língua originária “divina”, que através dos hieróglifos, pudesse ser com-prensível a todos.

✦ De resto a magia fazia parte, ainda naqueles tempos, do patrimônio de conhecimento do filósofo. As doutrinas mági-cas, herméticas, eram difundidísimas nos ambientes cultu-rais e eram apreciadas dos reis aos imperadores. Até mes-

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mo, os Papas foram atraídos, assim como Urbano VIII, en-tertia-se com Campanella em rituais mágicos e fazia afre-scos nas salas do vaticano com imagens planetárias herméti-cas, as quais, acreditava serem capazes de influenciar os hu-mores e a saúde. Na atmosfera da época, em um ambiente cultural permeado pelo hermetismo e pela magia, é com-preensível que te sentisse profeta ou mágico como Cristo e Moisés!

✦ Magia é para mim, e sempre foi, aquela natural. A bruxa-ria, as pedras filosofais deixo a Cencio e Bonifacio, os perso-nagens de o Candelaio. A verdadeira magia é aquela que nasce de nós mesmos, da natureza que está em nós e que pode ser capturada, aperfeiçoada com técnicas para vincu-lar, “orientar” o fluxo divino através das nossas próprias fa-culdades.

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Capítulo 9

O SÁBIO E O FURIOSO

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A teoria da coincidência dos opostos, a qual estava na raíz mesma das concepções orientais do mundo, já era presente na tradição pré-socrática. Foram os ensinamentos de Niccolò Cusano que farão da coincidência dos opostos um dos fundamentos da filoso-fia nolana, juntamente ao conceito de separação entre um Deus imanente e um Deus intangível (um “Deus escondido”), que cons-titui o pressuposto daquela “dotta ignorância”, que em Bruno, as-sume os contornos mais atormentados da umbra divinitatis (sombra da divindade). Como no caso de Copernico, Giordano Bruno rom-pe as cautelas, com as quais, o cardeal alemão conseguiu disfarçar seu pensamento, afirmando abertamente o imanentismo divino.

Como os brahmani e os budistas Zen, Bruno também, procura harmonizar o individual com o absoluto. A divindade não se deve procurar fora do mundo infinito ou das infinitas coisas, mas den-tro deste e naquelas.

A filosofia, na sua máxima expressão, se concretiza próprio nesta pesquisa do Uno, nesta contemplação da divindade na natureza:

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O SÁBIO E O FURIOSO

Entre Oriente e Ocidente

A exaltação da natureza como valor e da matéria nas suas variáveis formas, conecta Bruno a uma tradição sapiencial, que propõe sugestões tipicamente orientais. Essas agiram no Nolano por intermédio dos filósofos pré-socráticos, em particular, Parmenides, Pitagoras e Eraclito. As mesmas influências chegaram até ele, através do contato, com outros dois personagens bem conhecido por Bruno: Apollonio di Tiana e Ermete Trismegisto. Com estes Bruno pode atingir a sabedoria egípcia e aquela hermética.

Símbolo yin yang e Roda da Memória

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Natura est Deus in rebus (Natureza é Deus nas coisas), neste esforço em colher o invisível no visível, a unidade na multiplici-dade. As tradições orientais se referem constantemente a uma realidade última, indivisível, que se manifesta em todas as coi-sas e das quais as coisas fazem parte. Essa chamada “Brah-man” no induismo, “Dharmakaya” no Budismo, “Tao” no Taoismo: “Isto que a mente percebe como essência absoluta é a unicidade da totalidade de todas as coisas, o grande tudo que tudo compreende”. Alcançar essa compreensão, que todos os opostos são polares e portanto constituem uma unidade, é con-siderada, na tradição espiritualista do oriente, uma das mais al-tas metas alcançadas pelo homem.

Esta nunca será uma identidade estática, mas sempre uma in-teração dinâmica entre dois extremos como no simbolismo chinês dos polos arquétipos “yin e yang”. Das doutrinas pitagó-ricas, ressalta a teoria que, os contrários não somente jamais serão concebidos como irredutíveis e absolutamente separados, mas estão destinados ao invés, transformando-se um no outro

a ponto de realizar uma perfeita harmonia. As longas séries re-correntes dos contrários, que encontramos nos escritos de Bru-no, testemunham a sua concepção da realidade como “coinci-dentia oppositorum”, a necessidade de ir além do samsara magmático da aparência para recuperar na unidade dos opos-tos, a substancial unidade do Todo: Profunda magia é saber de-senhar o contrário depois de ter encontrado o ponto de união. Somente no cosmo infinito as hierarquias se esmigalham; o máximo é o mínimo, como todos os contrários convergem so-mente em um único ser, a múltiplicidade se reduz na divina unidade: então, podem elevar ao conceito, não digo do topo e ótimo Princípio, excluindo das nossas considerações, mas da alma do mundo, co-mo é ação de tudo e potência de tudo, e é toda em tudo: onde ao fim (uma vez admitindo que sejam inumeráveis indivíduos) cada coisa é uno; e o co-nhecimento desta unidade é a finalidade última de todas filosofias e natu-rais contemplações: deixando a seus termos as mais altas contemplações, que supera a natureza, a qual a quem não acredita, é impossível e nada. (De la Causa).

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Se em tudo existe um andamento cíclico, o qual é regido pela antinomia dos contrários, o mesmo vale também para as “al-mas”: por isso, através da metempsicose, aquilo que fazemos nesta vida reverbera na sucessiva. A condição da alma presidin-do diversas formas e compostos, sicut nauta in navi (como o timo-neiro em uma nave), para Bruno é o fundamento da mutação. O espírito se associa a um ou a outro corpo pela virtude de fato ou providência, ordem ou sorte e explica o engenho e capacida-de adequada à compleição e aos atributos daquele corpo. Portan-to, como as garras conferem à alma, que assumiu a forma da aranha, a sua especificidade, assim é a mão, o admirável instru-mento no qual, Giordano Bruno individua a particularidade do ser humano, que os confere aquela potência e aquela superiori-dade sob todos os outros seres. A respeito de inumeráveis espécies de seres inanimados que a terra produziu, poucos toda-via, são verdadeiros homens e com isso dignos de aspirar à natu-reza celestial dos Deuses. Para o Nolano os homens não são abso-lutamente iguais, embora, uma distorcida iconografia do “már-tir do livre pensamento” fez acreditar. O conhecimento da verda-de é aberto a todos, sem distinção de classe social, de casta ou de sangue (Bruno mesmo é a prova disso); porém, tendo em con-

Bruno foi um profundo conhecedor da fisiognomia, a ciência que consentiu destaque ao seu conterrâneo Giovan Battista Della Porta. O estudo da fisiognomia estabelece uma espécie de vínculo entre aparência e caracteres. Nos traços do rosto e na aparência dos corpos, ali está o “karma” do indíviduo, o qual afetará as próximas mutações. “Como na espécie humana vemos muitos semblantes e rostos,voz, gestos, afetos e inclinações, outros como os cavalos, outros como os porcos, burros, àguias, bois; assim, pode-se acreditar que ali esteja um princípio vital, por isto em potência de uma próxima passada ou próxima futura mutação de corpo, têm sido ou são porcos, cavalos, burros, àguias ou outro aspecto aparentam”(Spaccio de la bestia trionfante).

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O SÁBIO E O FURIOSO

Fisiognomia e metempsicose

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ta a nobreza de espírito, em relação à fase do seu ciclo de vicissitude. O va-lor individual, sem p re c o n c e i t o s d e qualquer tipo, de-pende da qualidade dessa alma, que ope-

ra nesse corpo. E em cada caso, por hábito de temperança, dos estudos, das contemplações e outras virtudes é sempre possível elevar o próprio nível de consciência, até a contemplação do divino. Efetivamente é próprio nisto tudo, que se substancia a supre-macia do homem: na capacidade de ir além da humanidade, sempre além daquilo que possui, vencendo aquele instinto animal de apego à própria espécie, por isso, o porco não deseja morrer pa-ra continuar sendo porco, o cavalo tem medo de abandonar a forma de cavalo, Júpiter teme não ser Júpiter. A correspondência que Bruno identifica entre os traços fisionômicos e o comportamento dos seres humanos explica muito bem a convicção de que a alma carrega consigo, no ciclo das mutações, a herança positi-

va ou negativa da sua precedente encarnação. Por isto, confe-re à matéria que irá “informar” as características da espécie, de acordo com as inclinações amadurecidas na sua vida pre-gressa. A escala dos afetos humanos possui, de fato, graus tão diversos e numerosos, quanto as diversas formas que a alma assume em corpos diversos, e a alma especifica cumpre os dois avanços do ascenso (progressos de elevação) e descenso (de-scida), em base ao fato, ao cuidado que dispõe de si mesma e à própria inclinação ao bem. A respeito do precedente com-portamento durante a permanência no corpo, nas sucessivas mutações, algumas al-mas encarnam em comuns seres huma-n o s , o u t r a s e m heróis e outras ain-da, assumem for-mas degradantes. As eventuais pu-nições são desconta-das pela alma ime-diatamente, porque

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a alta justiça, que governa todas as coisas, estabelece: não de-verá esperar de um governo e uma administração da mais alta estância, quando na precedente será mal gerenciada. Por ter vivido, por exemplo, aos modos um porco ou um cavalo, a estes será des-ignado “um cárcere conviniente a tal delito”: um corpo com órgãos e instrumentos próprios de tais espécies. Assim, para o fato da mutação incorrerá eternamente em outras, piores ou melhores espécies de vida e sorte, em base ao melhor ou pior comportamento obtido na precedente condição e fatalidade. Não existe quem não vislumbre a surpreendente afinidade com a doutrina budista da reencarnação que, semelhante ao induísmo, interpreta a vida do homem na terra como uma emigração de uma existência a outra. Cada ser vivente é re-duzido a uma cadeia de fenômenos passageiros em continua mutação e sucessões. O corpo, a vida, os prazeres e as dores são, de qualquer modo efeitos do “Karma”, por esta razão quando se semeou na vida anterior, na posterior ocorre a co-lheita.

✦ Com frequência maltrataste o rude e desprezível povo. Por que tanto desprezo?

✦ Estúpido povo, é aquele que, embaixo da aparência huma-na, esconde almas bestiais! Para qual motivo, se pouquíssi-mas almas dos homens foram modeladas, tantos corpos fo-ram modelados em forma de homens? A benevolente Cir-ce, ajuda-me a desmascarar a sua verdadeira natureza!

✦Portanto, nem todos temos a possibilidade de conhecer o verdadeiro?

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✦ Somente os homens autênticos, aqueles dotados das almas realmente humanas, podem chegar a contemplar a verda-de! Se estudo, contemplação e prática de virtude não os ele-va, vejam? Eles tem os traços do rosto, face, voz, gestos, afe-tos e inclinações, já escrita a sua passada ou futura muta-ção: alguns burros... outros porcos... águias... bois...”.

✦ A quem se destina, então, a tua mensagem?

✦ A qualquer pessoa, sem distinção das vestes, condição ou estado social, que consiga demonstrar a respectiva natureza humana, para afirmar a consciência ou entendimento da própria dignidade. Aos que usam as mãos para deixar suas digitais em todos os campos do agir humano e não somente para os simples impulsos materiais, para criar e não para destruir. Isso requer aplicação, esforço: os homens raros, heróicos e divinos passam pelo caminho da dificuldade. As coisas comuns e fáceis, ao invés, são para o povo e a gente comum. Para os indivíduos que não pensam, que não vivifi-cam os presentes da língua e da mão com o fôlego do inte-lecto, ficando por isso presa por quem abusa da sua creduli-dade, da sua estupidez, aterrorizando-os com suas vãs fábu-las.

✦ Refere-se à Igreja?

✦ Cego é o povo, como cego é o temor da morte alimentado pelo cristianismo. Ele aproveita da ignorância, da incapaci-dade de levantar-se da sombra à luz, mas se retrai na pre-sença da filosofia. A filosofia é a verdadeira via de acesso à divindade: o homem que pensa não necessita de interme-diários: ascende verticalmente em direção ao infinito e em direção a Deus.

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Bruno confia na tentativa de romper o limite entre “absoluto” e “comunicado”, na experiência do heróico furor. Isso representa um verdadeiro e próprio salto de nível energético, que consente romper o ciclo dos renascimentos, como na tradição oriental, com um ato extraordinário, o qual chama “disquarto di sè (esquartejamento de si mesmo)”. A parábola do “furioso” é uma parábola, essencialmente autobiografica, de um caminho em busca do conhecimento. Bruno descreve no furioso ele mesmo como aquele que busca a divindade, não confiante que essa lhe permeie como l’ asina (a burra de Balaam), porém procurando-a com estudo e empenho. Acteon - é Bruno que fala - representa o intelecto com o propósito à caça da divina sabedoria, pela apreensão da beleza divina. Raríssimos digo, são os Acteon aos quais sejam concedidos pelo destino o poder de contemplar a Diana ignuda (despida). Acteon representa, então, o filósofo em busca da Diana “ignuda (despida)”, que é não outra que a natu-reza revelada na sua verdadeira essência. Uma vez atingido, atra-vés da compreensão dessa polaridade dos contrários e do aspec-to cíclico e sombrio do real, no limite da selva, além da qual po-der contemplar a Anfitrite, ao Nolano não restava mais que en-frentar a experiência final, aquela do “esquartejamento”. Portan-to, a fogueira, a qual ele foi ao encontro, o impávido filósofo, não marcou o fim do mártir do livre pensamento, mas a sublima-ção do furioso heróico.

O mito de Diana e Acteon representa para Bruno a síntese perfeita da sua gnoseologia. Ao cume da sua pesquisa, em “De gli eroici furori”, ele exclama: “Esta é a Diana, aquele Uno que é o mesmo ente, aquele ente que é a mesma realidade, aquela realidade que é a natureza compreensível, em que se atua o sol e o explendor da natureza superior, na maneira que a unidade está distinguida em concebidor e concebido, produtore e produzido”. Assim, ele exprime a dupla presença de uma divindade inatingível e inefável, e de uma divindade que se manifesta, ao contrário, na natureza como sombra e que é a única, a qual o homem pode em virtude do estudo e empenho, chegar a contemplar. Sob o plano conceitual, a fé neste duplo aspecto, de imanência e transcendência do princípio divino está próximo ao Brahman-Atman, da sabedoria indiana.

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O SÁBIO E O FURIOSO

Heróico furor

Tiziano Vecellio, “A morte de Acteon”

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Capítulo 10

O PROCESSO E A FOGUEIRA

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O “Mercúrio na terra”, termina assim, em uma cela escura e da qual não sairá mais. Na verdade, em Veneza as coisas pareciam estar de maneira bastante favoráveis a Bruno. Sua defesa estava baseada na sustentação de ter formulado hipóteses filosóficas e não teológicas e, quanto ao que dizia respeito as coisas da fé, se remetia plenamente á doutrina da igreja. Alguns ilustres expoen-tes do patriciado vêneto sustentaram um testemunho favorável, ou pelo menos não tão hostil. E quando, Bruno pensava que se-ria bem sucedido, renegando os excessos verbais cometidos e pro-metendo frear seu engenho, chega a convocação do processo por parte do Santo Uffizio Romano, que não haviam jamais tirado os olhos dele. Veneza esboçou uma resistência, em nome da própria autonomia legislativa. Mas enfim, considerando que o investigado não era cidadão veneziano e que o processo tinha sio iniciado antes da sua chegada na cidade lagunense (se referia aos fatos de 1575), cedia aos pedidos do vaticano. Em fevereiro de 1593, a grande peregrinação do Nolano terminou numa cela do novo Palácio de S. Uffizio, construído pelo Papa Pio V em Bor-go, nas proximidades de S. Pietro.

Na primavera de 1591 Bruno voltou para Frankfurt, onde recebeu duas cartas enviadas pelo nobre veneziano Giovanni Mocenigo, que o convidava a Veneza para apreender com ele a arte da memória. Dupla utopia o atraia para Itália: disputar com Galileo a catedra de matemática, em Pádua, e obter o perdão do Papa, vinculando esse às suas ideias. O filósofo aceitou o convite-armadilha do patrício veneto, que lhe será fatal. Este triste personagem, desiludido por não ter recebido os ensinamentos mágicos, os quais esperava, o fez cativo por seus servos e entregou Giordano Bruno aos asseclas da Inquisição.

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O PROCESSO E A FOGUEIRA

A prisão

Veneza, Palácio Mocenigo

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✦ Em setembro de 1599 foram apresentadas oito proposições “seguramente heréticas” para abjurar. Em 21 de dezembro respondeu que não devia e nem queria arrepender-se: o que aconteceu? O que passou na sua cabeça naquele breve lapso de tempo?

✦ O processo romano foi uma longa tentativa de compromisso, de barganhar à renúncia das minhas críticas “teológicas” com a defesa do núcleo “filosófico” do meu pensamento. Estaria, até mesmo disposto à retratação, assim como, havia feito em Veneza. Não teria problemas em livrar-me do peso das blasfê-mias mencionadas por Morcenigo e dos meus companheiros de cela. Pois, foram ditas em momentos de exaltação ou de desconforto. Isto concedia a eles, porque procurava evitar cair na sua armadilha. Que Cristo tenha sido um triste , um profe-ta ou um mago, que o enforcaram ou crucificaram, não que-ria saber. Não era esta a substância do meu pensamento, aqui-lo que havia preconizado e anunciado nas minhas andanças pela Europa. Sabiam bem e jogavam comigo, igualmente, ga-to e rato. Procuravam enfraquecer a minha resistência, alter-nando torturas e sinais de clemência, ofertas de compreensões e pedidos de submissão e arrependimento. Mas, o que que-

Bruno enfrentou seus acusadores por sete longos anos, entre os quais, fica em evidência o inflexível General da ordem domenicana Ippolito Beccaria, com uma tática feita de parciais admissões e orgulhosas reinvindicações. Porém, foi o ingresso no colégio da justiça do Cardeal Roberto Bellarmino, em 1597, a imprimir o processo numa brusca aceleração. A defesa do Nolano, focalizada na distinção da verdade filosófica daquela teológica, oscilou. Colocado defronte a obrigação de abjurar oito preposições consideradas heréticas, disse estar disponível para aquelas de natureza teológica, mas diante às verdades filosóficas, as quais representavam a essência do seu pensamento, endureceu e gritou não haver nada que pudesse arrepender-se.

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O PROCESSO E A FOGUEIRA

Filósofo e não teólogo

Ippolito Beccaria

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r i a m e r a u m a completa e autên-tica renuncia à to-das às minhas ideias.

✦ Se iludiam em poder aprisionar, também, sua ex-traordinária imagi-nação entre as sóli-das muralhas das esferas celestes.

✦ Não pensem, que os sete anos

na prisão fiquei ocupado todo esse tempo, dedicando-me na elaboração das minhas estratégias de defesa. O meu cor-po era prisioneiro, entretanto, minha mente continuava impávida a percorrer com as asas a imensidade do espaço. Iludido de poder lidar com eles, mas quando no campo de batalha entrou seu paladino, o Cardeal Bellarmin, entendi

que o mastim não haveria de abandonar mais a presa. Ali dentro, fiquei consciente da impossibilidade que alguém pudesse me escutar: a censura impossibilitava o ato de escrever e nem mesmo a palavra tinha algum sentido sem ouvintes. Entendi que sobrava um último instrumento de comunicação, nesse momento. Que podia expressar-me so-mente de um modo: com as minhas escolhas, o testemunho das minhas últimas ações, na esperança, que ao menos es-sas, ganhariam o esquecimento do tempo e a fúria dos meus perseguidores. Amarrado com a cabeça baixa, com as articulações destroçadas, o meu corpo tornou-se um sím-bolo mágico na rota da memória e a morte para mim pare-cia uma sublimação extrema do meu pensamento. Uma ex-trema tentativa de transmitir no decorrer do tempo e espa-ço a minha mensagem, como a mais perfeita magia que um homem pudesse lograr.

✦ Sempre sentiu pender sobre você este destino fatal e res-soar nos seus ouvidos a profecia hermética: “ ...ainda será de-finida pena capital àqueles que se dedicarem a religião da mente”. É um amor e ódio pela vida, praticamente o medo de ligar-se muito a essa, pelo pressentimento da mutação: uma melan-

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Roberto Bellarmino

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colia lacerante, suportada e redimida somente pelo entendi-mento da missão de um Mercúrio enviado dos céus à terra para socorrer os mortais na sua fadiga e ignorância: isto co-mo cidadão e domiciliado no mundo, filho do pai sol e da mãe terra, porque ama demais o mundo, vemos como de-via ser odiado, criticado, perseguido e rejeitado por esse. Mas nesse, enquanto, não esteja ocioso e nem mal ocupado a esperar pela morte....pela sua reencarnação e transmuta-ção.

✦ A “nova filosofia” é entendimento da vicissitude da vida humana, é alegria em sentir-se imerso na divindade da na-tureza, é uma pitada de heróico furor por reuní-la e con-templá-la, é ausência de renúncia, porque tudo muda e à noite segue infalivelmente o dia, é ausência de exaltação porque acontece o oposto. É plenitude de vida, de ânimo e intelecto, é confiança nas capacidades físicas e intelectuais de um verdadeiro homem, “animado” e não bestial, é ausência de coerções, das barreiras ao conhecimento, é se-de de infinito. Por tudo isso, não podia abjurar. Quando me dei conta que era nisto, o qual miravam, a essência do meu pensamento, pelo qual lutei pelo mundo a fora, uma

vida inteira, entendi que o ciclo da minha vicissitude estava a ponto de uma virada. Agora basta! Não tenho nada para arrepender-me! Somente Clemente VIII em pessoa pode-ria compreender e talvez aceitar a existência desta “dupla verdade”, filosófica e teológica, mas não queriam me escu-tar, até o último instante.

✦E assim formularam a sentença deles.

✦ A minha já havia pronunciado sete anos antes, diante dos inquisidores venezianos: “Eu sustento um infinito universo, tudo efeito da infinita, divina potência, porque julgava in-digno da bondade divina e potência, que podendo produzir além deste mundo, um outro e outros infinitos, produzisse um mundo finito. É esta a sentença pela qual tinham me-do, mais do que eu poderia temê-los.

✦ Não tinha então, nenhum medo de morrer?

✦ O que é a morte senão um dissolvimento de laços, portan-to, o sábio não deve temê-la. A única morte verdadeira é não pensar mais ou ter o teu pensamento cancelado, como procuraram fazer com o meu. Em nada significa, que não me desagradasse interromper aquele vínculo de amor que

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existe entre corpo e alma, porque se enquanto esperamos outra vi-da ou modo de sermos nós, não será aquela nossa, como quem somos no presente, por isto que esta, sem esperar nenhum retorno, eternamente passa.

✦ “Agradável companheiro, epicuro pela vida”, assim te descreve o teu amigo Jacopo Corbinelli. Você gostava de be-ber um copo acompanhado e sempre considerou o pecado da carne irrisório e desculpável, por ser uma coisa natural e de grande mérito observar os mandamentos de Deus.

✦ É verdade, amei com toda força do coração, com todo ím-peto do qual é capaz um homem do sul: amores intensos como as minhas emoções. Mas, como filósofo não podia esquecer que cada coisa muda, nada se aniquila e no ciclo da vicissitude, uma é a alma imortal, eterna que vive e se congratula de comunicar-se em cada coisa. Nenhum espíri-to e nenhum corpo perece: consiste somente uma contínua mudança de combinações. Como a serpente, não seria ou-tra senão homem, caso do seu corpo brotassem braços, ca-beça e pernas, assim sentia brotar de meu corpo novas for-mas e meu intelecto unir-se ao divino em um instante de fu-

rioso disquarto final. Como o mito de Acteon, quando per-ceberam que consegui contemplar a verdade, os galgos da intolerância e da obtusidade lançaram com violência sobre mim para me rasgar em pedaços.

✦ Assassinaram você, porém, também concederam sublima-ção a sua filosofia, além dos limites impostos pelo corpo, das coerções.

✦ Trismegito disse uma vez: “Imagina de estar igualmente em cada lugar, na terra, no mar, no céu, imagina de nem ter nascido ainda, de estar no ventre da tua mãe, de estar jovem, velho, de estar morto, de ser aquilo que serás depois da sua morte. Se você compreende todas essas coisas jun-tas, poderás entender Deus”. Preso nu àquela estaca na fresca manhã de fevereiro, consegui finalmente voar com o espírito de um lugar a outro num instante. Como se não precisasse mais viajar, para estar em Paris na corte de Enri-co III ou a Londres na presença da rainha Elisabete ou a Wittenberg, a Hemstedt, a Napoles, a Nola, o sul mais lon-ge dos corpos celestes e além dos confins do mesmo univer-so, mas estivesse já alí.

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Em 20 de janeiro de 1600, Clemente VIII, considerando agora as acusações comprovadas, e refutando a solicitação de mais tor-turas conduzida pelos cardeais, ordena que o réu, “heréges impe-nitente, perseverante e obstinado”, seja conferido ao braço secu-lar. Isto tudo significa, a morte na fogueira, apesar da presença, na sentença, da usual fórmula hipócrita, para invocar a clemên-cia do governador de Roma. No 8 de fevereiro a sentença é lida na casa do cardeal Madruzzo, na Piazza Navona: “ Dizemos, pro-nunciamos, sentenciamos e declaramos você, padre Giordano Bruno supracitado ser herege impenitente, pertinaz e irredutível, e portanto estar envolvido em todas as censuras eclesiásticas e as penalidades previstas pelos sagrados cânones, lei e constituições, assim gerais e particulares, para tais heréticos confessos, impeni-tentes, perseverantes e obstinados”.

As últimas palavras do condenado, antes que colocassem a mor-daça para tolher sua língua, foram desdenhosas: “Vocês tem mais medo ao pronun-ciarem esta sentença do que eu em ouvi-la!”. Quinta-fei-ra, 17 de fevereiro 1600, amarrado nú em uma esta-ca, na praça Campo di Fio-ri, o filósofo dos infinitos mundos é queimado vivo.

Hoje, no centro da praça Campo de’ Fiori soergue o monumento, que três séculos depois da fogueira levanta-se em nome da liberdade de pensamento. O palco para execução foi construído no fundo da praça, na esquina com a rua dos Balestrari, do lado oposto à residência do embaixador da França. Ele pretendia que a execução ocorresse de manhã cedo: aquele homem, que alguns anos antes, o seu rei tinha admirado e protegido, agora desdenhava-o também, para sentir o cheiro de carne queimando.

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O PROCESSO E A FOGUEIRA

Campo de’ fiori

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1582

CANDELAIO

DE UMBRIS IDEARUM

CANTUS CIRCAEUS

DE COMPENDIOSA ARCHITECTURA ET COMPLEMENTO ARTIS LULLI

1583

ARS REMINISCENDI,TRIGINTA SIGILLI ET TRIGINTA SIGILLORUM EPLICA-TIO

1584

LA CENA DE LE CENERI

DE LA CAUSA PRINCIPIO ET UNO

DE L'INFINITO UNIVERSO E MONDI

SPACCIO DE LA BESTIA TRIONFANTE

1585

DE GL'HEROICI FURORI

CABALA DEL CAVALLO PEGASEO CON L'AGGIUNTA DELL'ASINO CILLENICO

1586

FIGURATIO ARISTOTELICI PHYSICI AUDITUS

MORDENTIUS, DE MORDENTII CIRCINO

IDIOTA TRIUMPHANS, DE SOMNII INTERPRETATIONE

CENTUM ET VIGINTI ARTICULI DE NATURA ET MUNDO ADVERSUS PERIPA-TETICOS

1587

DE LAMPADE COMBINATORIA LULLIANA

ANIMADVERSIONES CIRCA LAMPADEM LULLIANAM

DE PROGRESSU ET LAMPADE VENATORIA LOGICORUM

ARTIFICIUM PERORANDI

LAMPAS TRIGINTA STATUARUM

1588

ORATIO VALEDICTORIA

CAMORACENSIS ACROTISMUS SEU RATIONES ARTICULORUM PHYSICO-RUM ADVERSOS PERIPATETICOS

ARTICULI CENTUM ET SEXAGINTA ADVERSUS HUIUS TEMPESTATIS MATHE-MATICOS ATQUE PHILOSOPHOS

DE SPECIERUM SCRUTINIO

LIBRI PHYSICORUM ARISTOTELIS EXPLANATI

1589

DE MAGIA

THESES DE MAGIA

DE MAGIA MATHEMATICA

MEDICINA LULLIANA

DE RERUM PRINCIPIIS ET ELEMENTIS ET CAUSIS

ORATIO CONSOLATORIA

1591

DE TRIPLICI MINIMO ET MENSURA

DE MONADE, NUMERO ET FIGURA

DE INNUMERABILIBUS, IMMENSO ET INFIGURABILI

DE IMAGINUM.SIGNORUM ET IDEARUM COMPOSITIONE

DE VINCULIS IN GENERE

PRAELECTIONES GEOMETRICAE. ARS DEFORMATIONUM

1595

SUMMA TERMINORUM METAPHYSICORUM

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OBRAS DE GIORDANO BRUNO

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BERTI, Domenico. Vita di Giordano Bruno da Nola, Firenze-Torino-Mi-lano, Paravia e comp. 1868

del GIUDICE, Guido. WWW. Giordano Bruno, Napoli, Marotta e Ca-fiero 2001

del GIUDICE, Guido. La coincidenza degli opposti. Giordano Bruno tra Oriente e Occidente, Roma, Di Renzo 2005

del GIUDICE, Guido. Io dirò la verità. Intervista a Giordano Bruno, Ro-ma, Di Renzo 2012

FIRPO, Luigi. Il processo di Giordano Bruno, Roma, Salerno 1993

GATTI, Hilary. Giordano Bruno e la scienza del Rinascimento, Milano, Raffaello Cortina 2001

KOYRE', Alexandre. Dal mondo chiuso all'universo infinito, Feltrinelli 1970

SALVESTRINI, Virgilio. Bibliografia di Giordano Bruno 1582-1950, 2ª ed. postuma a cura di L. Firpo, Firenze, Sansoni 1958

SPAMPANATO, Vincenzo. Vita di Giordano Bruno con documenti editi e inediti, Messina, Principato 1921

YEATS, Frances A. Giordano Bruno e la tradizione ermetica, Bari, Laterza 1969

Opere di Giordano Bruno

Opera latine conscripta, publicis sumptibus edita, recensebat F. Fiorenti-no [V. Imbriani, C.M. Tallarigo, F. Tocco, H. Vitelli], Neapoli, Mora-no [Florentiae, Le Monnier], 1879-1891, 3 voll. in 8 parti (rist. ana-statica: Stuttgart - Bad Cannstatt, 1961-1962)

Candelaio. A cura di Gianmario Ricchezza, Milano, Excelsior 1881, 2008

Due Orazioni. Oratio Valedictoria - Oratio Consolatoria, a cura di G. del Giudice, Roma, Di Renzo, 2006

La disputa di Cambrai. Camoeracensis Acrotismus, a cura di G. del Giudice, Roma, Di Renzo, 2008

Il Dio dei Geometri. Quattro dialoghi. a cura di G. del Giudice, Roma, Di Renzo, 2009

Somma dei termini metafisici con il saggio Bruno in Svizzera tra alchimisti e Ro-sacroce, a cura di G. del Giudice, Roma, Di Renzo, 2010

Opere latine, a cura di C. Monti, Torino, UTET 1980

De Umbris idearum, a cura di Claudio D’Antonio, Di Renzo, Roma 2004

Articoli contro i matematici, a cura di Guido del Giudice, Di Renzo, Ro-ma, 2014

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BIBLIOGRAFIA

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O AUTOR

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Guido del Giudice é considerado um dos mais profundos conhecedores da vida e obra de Giordano Bruno. Dedicou ao filósofo Nolano dezenas de estudos profundos e apaixonados, percorrendo o intinerário da sua “peregrinação”, visitando todos os lugares, no quais ele ficava hospedado. Sempre na procura de traços e informações inéditos. Este método de pesquisa o consentiu, entre tantas outras descobertas, encontrar em um exemplar de Camoeracensis Acrotismus, que estava no acervo da biblioteca de Klementium, em Praga, uma inedita assinatura autografada pelo filósofo. Identificou, além disso em Oratio Valedictoria, uma citação de Gargantua et Pantagruel, que permite considerar Francois Rabelais, uma das fontes preferidas de Bruno. As suas pesquisas na Suiça, para a realização da primeira tradução italiana de Summa terminorum metaphysicorum, iluminau em detalhes um período, até agora, desconhecido na vida do filósofo, provando importantes relações, mantidas com o movimento Rosacruz. Em 2008 venceu a primeira edição do Prêmio Internacional Giordano Bruno com o livro La disputa di Cambrai. Desde 1998 é o curador do site www.giordanobruno.com, que hoje é um ponto de referência para apaixonados e estudiosos de todo mundo.

Obras do autor::

✦ WWW. Giordano Bruno, 2001

✦ La coincidenza degli opposti. Giordano Bruno tra Oriente e Occidente, 2005

✦ Due Orazioni. Oratio Valedictoria – Oratio Consolatoria, 2006.

✦ La disputa di Cambrai. Camoeracensis Acrotismus, 2008

✦ Il Dio dei Geometri. Quattro dialoghi. 2009

✦ Somma dei termini metafisici con il saggio Bruno in Svizzera tra alchimisti e Rosacroce, 2010

✦ Io dirò la verità. Intervista a Giordano Bruno, 2012.

✦ Contro i matematici, 2014.

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Tradução Flavia Wass

Para mais informações:

www.giordanobruno.comwww.giordanobruno.info

www.iodirolaverita.it

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Reprodução concedida para uso exclusivamente didático e educativo.Proibida para fins comerciais.

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