Giovanni Arrighi, Adam Smith em Pequim - origens e fundamentos do século XXI

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Giovanni Arrighi: Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do sculo xxi1Marco Aurlio Rodrigues da Cunha e Cruz UniCEUB (Centro de Ensino Unificado de Braslia, Brasil)Em 19 Janeiro de 2011 o encontro histrico do lder chins, em solo estadunidense, com Barack Obama indicou o sinal dos novos tempos. No dia 14 de Fevereiro foi propalada a notcia de que a China ultrapassou o Japo e se tornou a 2 maior economia do mundo, ao alcanar seis trilhes de dlares no seu produto interno bruto. incontroverso, pois, que a China desponta como potncia mundial e lidera o renascimento econmico oriental. Este desempenho adquirido pelos chineses interfere, de maneira decisiva, nas relaes com os demais pases, e ressoa, nomeadamente, no modo de entender a economia mundial. Neste contexto, para raciocinar sobre este tema, no se pode avanar em anlises geoeconmicas negligenciando sobre os seus reflexos na rbita do principal ator econmico global: os Estados Unidos. A ascenso chinesa e as repercusses internacionais que dela emanam, primordialmente em terras estadunidenses, so os condutores do livro do socilogo italiano Giovanni Arrighi Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do sculo xxi. Numa continuao de suas duas ltimas publicaes (O longo Sculo xx e Caos e governabilidade no moderno sistema mundial) Arrighi estabelece como dois os objetivos do texto: interpretar a luz da teoria de desenvolvimento econmico de Adam Smith a atual transferncia do epicentro da economia poltica global da Amrica do Norte para a sia oriental e incluir as lies de A riqueza das naes nas reflexes sobre a citada transferncia. Alicerado, portanto, na releitura das teorias smithianas e marxistas, o Autor analisa a evoluo socioeconmica chinesa ao largo dos ltimos sculos e a compara com o modelo adotado na Europa e nos Estados Unidos. Propugna, neste sentido, um reestudo de A riqueza das naes para instigar o leitor a meditar sobre as previses feitas no livro ao concluir que pode ser hodiernamente factvel uma sociedade mundial de mercado com base em uma maior igualdade entre as

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So Paulo: Boitempo, trad. Beatriz Medina, 2008 . N de pginas: 448.

Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofa, Poltica y Humanidades. ao 13, n 25. Primer semestre de 2011. Pp. 197206.

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civilizaes e uma equalizao de poder entre o Ocidente conquistador e os demais conquistados. Para sustentar a tese de que o fracasso do Projeto para o Novo Sculo Norte Americano (como reao aos acontecimentos de 11 de setembro de 2001) e o sucesso do desenvolvimento econmico chins potencializam a probabilidade da concretizao da idia de igualdade mercadolgica de Smith, Arrighi divide o livro em quatro partes, as quais, cada uma, contm trs captulos. A primeira, Adam Smith e a nova poca asitica, introdutria e mais teortica. Avaliase a teoria de desenvolvimento econmico de Smith para a compreenso do prprio ttulo de seu livro. O Autor reestrutura a teoria smithiana e a coteja com as teorias de Marx e Schumpeter, para opinar que Smith no era defensor, tampouco terico, do modelo de desenvolvimento econmico capitalista e que sua teoria de mercados, como instrumentos de domnio, especialmente transcendente para que se entendam as economias de mercado no capitalistas. Defende que o sucesso chins se deve, entre outros fatores, por no ter abandonado o gradualismo econmico (curso natural das coisas) em favor das terapias de choque estadunidenses, e alerta que a adoo da reforma econmica da China encampou um discurso socialista, mas com corpo capitalista, haja vista que, atualmente, as empresas privadas se tornam a base de sua economia. Ao criar a expresso marxismo neosmithiano Arrighi se refere ao filsofo marxista Mario Tronti que no seu artigo Marx em Detroit advoga que a formao de partidos socialdemocratas, de inspirao marxista, no transformou a Europa no epicentro da luta de classes. Entretanto, adverte que foi em terras ianques, onde a influncia de Marx foi mnima, o local onde os trabalhadores conseguiram forar o capital a se reestruturar para acomodar as exigncias de salrios mais altos. Observa, pois, que na Europa, Marx vivia ideologicamente, mas nos Estados Unidos suas ideias influram objetivamente nas relaes entre capital e trabalho. Neste contexto, comenta que aps serem ou no absorvidas pelos pases do centro, a difuso ideolgica marxista se deslocou para os chamados perifricos, como China, Vietn, Cuba e as colnias africanas de Portugal. Todavia, nestes, indica que a realidade social pouco ou nada tinha em comum com a teorizada em O Capital. Por isso, frisa que o marxismo de Fidel Castro, Amlcar Cabral, Ho Chi Minh e Mao Tse Tung se apartava diametralmente da teoria do capital de Karl Marx. Arrighi cita Robert Brenner, quem escreveu um artigo no qual se extrai que dois principais motivos arrefeceram a previso de desenvolvimento capitalista generalizado: (i) no houve ativao e manuteno da competio que foraria os organizadores da produo a cortar os custos e maximizar o lucro por meio da especializao e das inovaes; (ii) tampouco os produtores diretos perderam o controle dos meios de produo, o que ativaria e manteria a competio que os obrigaria a vender sua fora de trabalho aos organizadores

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da produo. De fato, somente em alguns pases a histria da luta de classes criou as duas mencionadas condies necessrias. Brenner, neste sentido, busca a teoria smithiana de A riqueza das naes, onde se colhe que a riqueza de um pas se descobre com a especializao das tarefas produtivas decorrente da diviso de trabalho entre as unidades produtivas, cujo grau determinado, decisivamente, pelo tamanho do mercado. Tendo isto em considerao, concluise que o processo de desenvolvimento econmico tem seu impulso com a expanso do mercado. Despiciendo, portanto, o fato de quem organiza a produo perde ou no a capacidade de reproduzir e se os produtores diretos perderam ou no o controle dos meios de produo. Arrighi refuta, de certo modo, a aludida caracterizao, mas a confere relevncia pela importncia da distino entre o desenvolvimento da economia de mercado e o desenvolvimento capitalista propriamente dito. Justifica, ento, que apesar da disseminao das foras de mercado na busca do lucro, a natureza do desenvolvimento da China no necessariamente capitalista. Nesta linha de pensamento, se argumenta que h, inegavelmente, uma diferena histrica mundial entre os processos de formao de mercado e os processos de desenvolvimento capitalista. O processo de aprimoramento econmico anterior Revoluo Industrial tinha como motor os ganhos de produtividade que acompanhavam a diviso do trabalho, cada vez maior e mais profunda, limitada pela extenso espacial e pelo ambiente institucional do mercado. Quando se atinge este limite, a economia desgua na denominada armadilha de equilbrio de alto nvel. A Europa se desvencilhou desta por meio da Revoluo Industrial (com as conseqentes inovaes tecnolgicas). A fuga europia da aludida armadilha foi precedida por fugas anteriores, realizadas com grandes reorganizaes dos centros e das redes do capitalismo europeu. Esta sada foi observada tanto por Smith como por Marx, que destacaram a principal diferena do caminho europeu: sua extroverso, seu investimento no comrcio exterior. A riqueza e o poder da burguesia europia no tiveram sua gnese na agricultura, mas no comrcio exterior de longa distncia. Somente depois a indstria tomou corpo e se tornou a base da economia europia, como no exemplo ingls. Citando a Fernand Braudel, Arrighi concorda que o capitalismo europeu, pautado na extroverso, apenas triunfa quando identificado com o Estado, que, via de conseqncia, buscava viabilizar as condies econmicas para este desenvolvimento, ademais de assegurlo pelo poderio beligerante militar. J desde a sua primeira fase, em Veneza, Gnova e Florena, os capitalistas tm maior poder de impor seu interesse de classe custa do interesse nacional, e transformam os governos em comits de gerenciamento dos negcios da burguesia. Na Holanda do sculo xvii, a aristocracia dos Regentes governava a favor dos negociantes, mercadores e emprestadores de dinheiro. Na Inglaterra, a Revoluo Gloriosa corroborou a ascenso dos negcios

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realeza. A acumulao de capital e de poder no contexto do comrcio exgeno, guarnecidos pelo Estado, define o caminho europeu de desenvolvimento capitalista. Na China no. O caminho de desenvolvimento oriental era baseado no mercado, mas no portava a dinmica capitalista. A expanso econmica chinesa criou o excedente de mo de obra e a escassez de capital. Somase, ainda, a nominada Grande Divergncia, conceituada como as diferenas no suprimento de recursos e nas relaes centroperiferia, dizer, a Europa era municiada pelas Amricas de forma substancialmente mais volumosa de produtos primrios e de demanda de manufaturados do que as regies da sia oriental poderiam obter de suas periferias. No Oriente, o Autor correlaciona o conceito de Revoluo Industriosa, que tem como pano de fundo o fim da servido do campesinato no sculo xvii, o fortalecimento da agricultura familiar, o aumento populacional e a escassez crescente de terra arvel, fatores que conjugados contriburam para o surgimento de um modo de produo que contava intensamente com o investimento em mo de obra. Em que pese os camponeses trabalharem mais, sua renda tambm aumentou, o que potencializou a valorizao e o desenvolvimento de uma tica em torno do trabalho. Este contexto criou um caminho tecnolgico e institucional que teve papel cardinal na resposta do Oriente aos desafios e s oportunidades gerados pela Revoluo Industrial ocidental. A diferena, pois, entre este tipo de desenvolvimento econmico e o desenvolvimento adotado no ocidente era que o asitico mobilizava recursos humanos em vez de no humanos. Por esta razo, Arrighi esclarece que Sugihara outorgou o nome de caminho desenvolvimentista hbrido de industrializao intensiva em mo de obra, porque absorvia e utilizava mo de obra de modo mais completo e dependia menos da substituio da mo de obra por maquinaria e capital do que o ocidente. Deste modo, o ressurgimento econmico oriental se relaciona com a convergncia entre a opo ocidental de uso intensivo de capital e de elevado consumo de energia, e o modelo asitico, que faz uso intensivo de mo de obra e poupa energia. A Revoluo Industrial implantou no ocidente o milagre da produo e expandiu a capacidade produtiva de um restrito grupo de pases. A Revoluo Industriosa introduziu no oriente o milagre da distribuio e criou a difuso dos benefcios deste milagre para a vasta maioria da populao mundial. Nesta linha de pensamento, o Autor, ao se referir s trs grandes ordens originais e constituintes de toda sociedade civilizada os que vivem de renda, os que vivem de salrio e os que vivem de lucro desmistifica mitos relacionados teoria de Smith. Em seu juzo, os escritos smithianos pregavam a existncia de um Estado forte para criar e reproduzir as condies de existncia do mercado e no defender a sua autorregulao; usar o mercado como

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instrumento eficaz de governo; regulamentar seu funcionamento; e intervir, de modo incisivo, para retificar ou aplainar resultados (social ou politicamente) indesejveis. Segundo este raciocnio, Smith exortava o legislador a regular o mercado para dar proteo contra ameaas internas e externas segurana dos indivduos e do Estado, ofertar justia, fomentar a infraestrutura fsica adequada para desenvolver o comrcio e as comunicaes, regulamentar a moeda e o crdito, e educar seus administrados para equilibrar o efeito negativo da diviso do trabalho sobre sua qualidade intelectual. Por isso, Arrighi avalia que Smith no propugnou a tpica teoria liberal do sculo xix de um governo minimalista e do mercado autorregulado ou do poder profiltico das terapias de choque propaladas pelo Consenso de Washington no fim do sculo xx. Smith, portanto, no sentir de Arrighi, defende a interveno do Estado para que o legislador contraponha o interesse dos que vivem de lucro, que pode, com certeza, chocar com o interesse social geral. Smith aconselha, pois, que o legislador compense o poder de mercadores e fabricantes fazendoos competir entre si e baixar preos e lucros para o fito de expandir a economia. Neste cenrio, Smith, na interpretao do Autor, concebe o desenvolvimento econmico como o preenchimento com pessoas e capital fsico (patrimonio) de um recipiente espacial (pas), que engloba um volume de recursos naturais e configurado internamente e restringido externamente por leis e instituies. Quando o pas tem capital de menos e tem dficit populacional, h grande potencial progressista de crescimento econmico. Quando o pas tem capital total e est totalmente povoado, o potencial de crescimento tende a ser estacionrio. Mais um motivo para que, nas palavras de Arrighi, a teoria smithiana impulsione a atividade do Estado para desenvolver o tino progressista ou alterar a posio estacionria da economia de mercado. O Autor relembra que Smith, portanto, se refere China no fim do perodo imperial como exemplo de desenvolvimento com base no mercado e aponta seu limite. A tese smithiana destaca que o maior desenvolvimento chins no comrcio exterior poderia aumentar ainda mais a riqueza da China. Em que pese esta desvantagem, Smith estimava que a China, mais que a Europa, possua o modelo de desenvolvimento econmico (curso natural das coisas) com base no mercado mais aconselhvel a ser promovido. Por isso, o Autor comenta o escrito por Wong, Frank e Pomeranz que perceberam a incoerncia entre a ideologia ocidental do livre mercado e a maior relevncia factual da China no fim do perodo imperial para o teorizado em A riqueza das naes, da se retira o instigante ttulo: Adam Smith em Pequim. Na segunda parte, Rastreamento da turbulncia global, o Autor utiliza a teoria smithiana para acompanhar a instabilidade global. Faz um paralelo da retrao de 18731896, perodo que teve como protagonista a Gr Bretanha e que David Landes identificou como a deflao mais drstica da memria

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humana, e a chamada estagnao persistente (Brenner) de 19731993, poca em que a principal atriz foi a economia estadunidense. Na retrao do sculo xix a justificativa se circundou na competio entre os agentes da acumulao de capital europeus, o que se denominou de luta econmica pela guerra de preos, cumulados com a rpida expanso da produo, ocasionando a diminuio do lucro e a conseqente deflao mais drstica. Os governos se tornaram defensores ativos da indstria nacional, com polticas voltadas para o protecionismo e mercantilismo, potencializando a construo de imprios coloniais ultramarinhos. Esta propenso proporcionou a corrida armamentista entre as potncias capitalistas em ascenso, tendo como maior beneficirio da recuperao da economia (18961914) a Gr Bretanha. Enquanto sua supremacia industrial arrefecia, o sistema financeiro despontava, junto com os servios de transporte, representao comercial, corretagem de seguros e intermediao no sistema mundial de pagamentos, perodo apelidado de belle poque. Esta poca termina com a supervenincia das duas Grandes Guerras e com o colapso econmico global da dcada de 1930. Ao iniciar a comparao deste (18731914) com o outro perodo (19731995), Arrighi aponta como motivo da estagnao persistente de 1973 o chamado desenvolvimento desigual, que teve como origem o boom das dcadas de 1950 e 1960 (Brenner), momento em que houve um crculo virtuoso de lucro elevado, altos investimentos e aumento da produtividade, e como estao terminal o alcance dos retardatrios s economias dominantes na dcada de 1970, resultando no excesso da capacidade produtiva mundial e a conseqente presso de baixa sobre a margem de lucro (19651973). Neste contexto, Arrighi responsabiliza as empresas e os governos capitalistas pelo fracasso em restaurar o nvel anterior de lucratividade, com a eliminao da capacidade excedente. O Autor, ento, diferencia os dois perodos de retrao (18731896/19731993) com o argumento de que na dcada de 1970 os governos dos principais pases capitalistas, mormente os Estados Unidos, utilizaramse da desvalorizao e revalorizao da moeda como modo de luta competitiva, citando como exemplos a revoluo monetarista de Reagan e Thatcher em 1979/1980 (que inverteu a desvalorizao do dlar americano na dcada de 1970), o Acordo de Plaza de 1985 (que retomou a desvalorizao do dlar) e o Acordo de Plaza invertido de 1995 (que mais uma vez reverteu a desvalorizao). interessante notar que este livro antecedeu a crise econmica mundial de 2008, fato que talvez parecesse estar previsto por Arrighi. Esta intuio est presente no texto, pois ao fazer referncia crise de 1930, o Autor aduz que esse colapso a nica ocorrncia, nos ltimos 150 anos, que corresponde imagem que Brenner faz do abalo do sistema com um todo ou . Se esse realmente o significado da imagem de Brenner, devemos

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concluir que tal crise parece ter sido uma ocorrncia excepcional, e no o mtodo capitalista ou para recuperar a lucratividade e, na seqncia, indaga Cabe perguntar, ento, se no estar em formao um colapso comparvel, e se essa ocorrncia condio to fundamental para a revitalizao da economia global quanto Brenner parece pensar2. O Autor, ainda na linha comparativa, observa que a retrao mais antiga (18731896) ocorreu no meio da ltima e maior onda de conquistas territoriais (colonizao do Sul pelo Norte), e que a retrao mais recente (19761993) se desenvolveu na oportunidade de maior descolonizao da histria mundial (tambm no contexto do desenvolvimento desigual). A gnese desta turbulncia, ao seu juzo, foi a acumulao excessiva de capital em um contexto mundial de mercado revoltado com as prticas comerciais do Ocidente. Esta insurreio gerou a primeira crise hegemnica dos Estados Unidos no fim da dcada de 1960 e incio da de 1970. A ao estadunidense foi competir, de modo combativo, pelo capital no mercado financeiro global e intensificar a corrida armamentista contra sua opositora, Unio Sovitica, na dcada de 1980. Apesar do xito poltico e econmico, esta postura norteamericana criou laos de dependncia, cada vez maiores, da riqueza nacional e do poder dos Estados Unidos com relao poupana, ao capital e ao crdito de investidores estrangeiros. Neste tom, a hegemonia dos Estados Unidos, afetada em 19701980, mas impulsionada com o New Deal, fomentou uma das maiores expanses da histria capitalista, pautada, de certa forma, em lies smithianas. A sada para a retomada norteamericana (belle poque) se deveu, segundo Arrighi, ao keynesianismo militar e social em escala mundial. Para explicar esta postura, o Autor recorda o fenmeno da financeirizao da economia no financeira, trajetria anloga do capital britnico um sculo antes, que tambm se valeu da financeirizao para reagir intensificao da concorrncia industrial. Este fenmeno oportunizou aos Estados Unidos a possibilidade de derrotar a Unio Sovitica na Guerra Fria e domar o Sul. As polticas de Washington durante a Guerra Fria intensificaram a concorrncia entre os capitalistas, ao facilitarem a atualizao e a expanso da produo japonesa e da Europa ocidental, e fortaleceram o papel social da mo de obra, pelo incentivo busca do pleno emprego e ao consumo em massa. Entretanto, talvez j admitindo outro colapso, relembra Arrighi a intrigante frase do peridico De Borger (final da belle poque do capitalismo holands 1778): ser a ltima vez e depois de mim o dilvio para encontrar uma linha de convergncia entre as expanses financeiras e belles poques do capitalismo histrico e indicar que a principal diferena entre elas , potencialmente, a maior repercusso devastadora que o declnio de um Estado hegemnico gera.2

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Na terceira parte, A hegemonia desvendada, o Autor se dedica a examinar a atuao dos Estados Unidos no palco global, no perodo em que desempenha seu papel de Estado mais poderoso do mundo sem as restries de outras grandes potncias. Arrighi examina, prefacialmente, o duplo fracasso da guerra no Iraque, que tem conexo com a denominada sndrome do Vietn. O insucesso na Guerra do Vietn foi, por certo, o principal propulsor para as guerras por procurao que travaram os estadunidenses (Nicargua, Camboja, Angola, Afeganisto, apoio ao Iraque na guerra contra o Ira, Granada, Panam e Lbia). Opina o Autor que a derrota final da Unio Sovitica no eliminou a sndrome do Vietn, pois foi esta baseada na capacidade financeira superior norteamericana e no se deveu sua fora militar. Do mesmo modo, a primeira Guerra do Golfo tampouco remediou a aludida sndrome, porque Saddam Hussein no foi deposto do poder. O Autor assinala a sensata justificativa econmica para a poltica belicosa estadunidense ao frisar que a hegemony britnica (que tambm foi chamada de hegemoney) se diferiu da dominao norteamericana, pois o capital estadunidense enfrentou a deteriorao da posio competitiva das empresas ianques especializandose na intermediao financeira global. Neste sentido, os Estados Unidos no tinham um imprio territorial (como a ndia foi para a Gr Bretanha) do qual podia extrair recursos financeiros e militares. O poderio militar norteamericano, portanto, seria essencial para a estabilidade poltica mundial, o que motivou a busca pelo poder e pela centralidade da economia poltica global. A belle poque norteamericana da dcada de 1990 teve como base a ideia de que os Estados Unidos tinham a capacidade de serem responsveis pelas funes globais de mercado de ltimo recurso e de serem a potncia poltico militar indispensvel, alm da capacidade e disposio do resto do mundo de fornecer aos Estados Unidos o capital de que necessitavam para suas intenes. As vitrias contra o bloco sovitico, na primeira Guerra do Golfo, na Guerra da Iugoslvia e a emerso da bolha da nova economia estimularam a relao sinrgica entre poder e riqueza norteamericanos, de um lado, e o fluxo de capital estrangeiro, de outro. Neste contexto, Arrighi aponta que os privilgios de senhoriagem estadunidenses se tornaram a principal fonte de financiamento das guerras que eles eram partcipes, ou autores. O capital estrangeiro, portanto, forneciam bens, servios e recursos aos Estados Unidos em troca de ttulos ianques. Diante desta conjuntura, ao mencionar a desvalorizao de 35% do dlar em relao ao euro e 24% diante do iene no fim de 2004, o Autor prev, mais uma vez, o colapso financeiro mundial de 2008 ao grafar que Ao que parece, o ainda est por acontecer3. Arrighi ressalta que somente em 2001 houve o rompimento com a dcada de 1990, pela reao ao 11 de setembro e a adoo do Projeto para o Novo3

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Sculo NorteAmericano. O Autor traa uma semelhana entre este e o primeiro sculo norteamericano, que foi reflexo da pax americana que teve a inteno de reagir Grande Depresso (1930) e ao surgimento do fascismo na Europa, unidos ao Pearl Harbor. Roosevelt ao exortar os sentimentos ideolgicos de nacionalismo, elaborou uma ideia de imperialismo, prometendo ordem, segurana e justia ao seu povo. Alega que a aventura militar iraquiana ratifica o erro da desastrosa Guerra do Vietn, dizer, que o timo da fora ocidental atingiu o seu limite e tendeu a imploso. Neste contexto, a China aparece como nova potncia e parecer ser a vencedora da guerra dos Estados Unidos contra o terror. A ocupao do Iraque comprometeu a credibilidade do poderio militar dos Estados Unidos, reduziu incisivamente sua centralidade e sua moeda na economia poltica global e promoveu a China como alternativa liderana ianque na sia oriental e em outras regies. Na ltima parte, Linhagens da nova era asitica, o Autor se empenha em traduzir a ascenso pacfica econmica chinesa, centrando sua anlise nas condies histricas, sociolgica e polticas. A China tinha uma economia de mercado estabelecida, de maneira robusta, nas cadeias de mercados locais, uma populao numerosa de pequenos artesos e mercadores itinerantes, movimentadas ruas comerciais e centros urbanos. Desenvolveramse grandes organizaes comerciais que controlavam redes extensas de intermedirios e fornecedores. As melhores oportunidades de desenvolvimento na sia oriental se radicavam na orla externa dos Estados do sistema. Este foi o motivo da dispora ultramarina chinesa, que obteve um lucro exponencial e aprovisionou um fluxo constante de receita para os governos locais e de remessas de valores para as regies litorneas da China. A queda do imprio Zheng e a adoo de uma poltica introvertida de Qing resultou na desmilitarizao dos mercadores chineses e na forte contrao do comrcio entre os pases asiticos a partir do final do sculo xviii. A partir de ento, houve abertura para a incorporao da sia oriental estrutura do sistema globalizante voltado para o Reino Unido. O sistema de relaes interestatais da sia oriental se caracterizou, portanto, por uma dinmica econmica de longo prazo, que tem razes no sculo xviii e incio do sculo xix, (que por sua vez teve como alicerce a formao do mercado nacional dos perodos Ming e Qing), e que primou pela introverso da luta pelo poder e gerou uma combinao de foras polticas e econmicas sem tendncia expanso territorial interminvel. O atrativo para o capital estrangeiro, pois, devese a imensa reserva de mo de obra barata e a qualidade desta, em termos de sade, educao e capacidade de autogerenciamento, combinada expanso rpida das condies de oferta e demanda para a mobilizao produtiva. Discute, neste sentido, a tese de Sugihara de que a densa competio entre os principais atores da Guerra Fria e o resgate do sentimento nacionalista geraram na sia oriental uma atmosfera geopoltica propcia para

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a conjugao dos caminhos da Revoluo Industrial e da Revoluo Industriosa para reforar a irrelevncia da analogia que se pode fazer entre a expanso econmica global do sistema ocidental para a compreenso das transformaes ocorridas no oriente. Arrighi opina que a sia oriental, portanto, assumiu o papel de tertius gaudens4 do fim do sculo xx e incio do sculo xxi, pois na dcada de 1980 o Japo e os quatro tigres menores foram os que triunfaram com a Guerra Fria; e, na Guerra ao Terror, a China est se sobressaindo. A economia chinesa exps as empresas estatais concorrncia de umas com as outras, com as grandes empresas estrangeiras e com empresas privadas, semiprivadas e comunitrias. O governo chins, tambm, investiu na criao das Zonas de Processamento para Exportao, na expanso e modernizao da educao superior e em grandes projetos de infraestrutura. Ademais, urge sinalizar que a poltica chinesa intervm diretamente para promover a colaborao entre universidades, empresas e bancos estatais no desenvolvimento da informtica. O tamanho continental e o excedente populacional permitiram a China aceitar a industrializao voltada para a exportao, induzida em parte pelo investimento estrangeiro, com a vantagem de ter uma economia nacional centrada em si mesma e resguardada pelo idioma, pelos costumes, pelas instituies e pelas redes, aos quais os estrangeiros s tinham acesso por intermedirios locais. Arrighi conclui que o relativo gradualismo com que as reformas econmicas foram realizadas e a ao compensatria com a qual o governo chins promoveu a expanso do mercado nacional e as novas divises sociais do trabalho contemplam uma reforma com caractersticas smithianas (caminho natural) se opem s terapias de choque, os governos minimalistas e os mercados autorregulados. Pugna, pois, pela hibridez fundamental dos dois sistemas natural e antinatural para sustentar a ideia de Smith de que uma sociedade mundial de mercado baseada em uma maior igualdade entre as civilizaes est mais prxima do que nunca. Concordando ou no com as teses acima descritas, inegvel admitir que, com estas lies, o livro , definitivamente, imprescindvel para entender as relaes pretritas, presentes e futuras da economia global. As ilaes do Autor so verdadeiramente atraentes e fazem o leitor refletir sobre suas ponderaes, e a repensar a postura interpretativa de encarar as relaes entre o ocidente e o oriente.

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Inter duos litigantes, tertius gaudens.