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Giras de morte e vida:
a circulação de mestres e encantados no terecô maranhense1
Martina Ahlert – UFMA2
Resumo: No terecô, religião afro-brasileira do Maranhão, as pessoas se relacionam com
entidades chamadas de encantados. Por meio de obrigações, visitas, giras e trabalhos,
com elas são compartilhados saberes e corpos de pais e mães de santo, suas casas, suas
famílias. Esta mistura de espaços e substâncias é também uma vivência heterodoxa do
tempo, que remete simultaneamente à ancestralidade e ao futuro. Se por um lado, as
relações entre encantados e sujeitos se desdobram nas experiências de vida de ambos,
este trabalho busca discutir o desfazer destes laços. Este desligamento se materializa nos
corpos que envelhecem e perdem força, na diminuição dos clientes e nos ritos por
ocasião da morte. A morte é elemento central do texto, visto que homens, mulheres e
também entidades participam dos seus rituais. É igualmente significativa, pois,
enquanto efetiva uma despedida e uma transformação na condição do sujeito, instaura
um novo movimento de pessoas e encantados – faz girar morte e vida. A partir destes
momentos em campo, o artigo procura pensar no caráter ínfimo que nos é dado
conhecer destas experiências, diante dos nossos limites de circulação, compreensão e
movimento.
Palavras-chave: Religiões afro-brasileiras, ontologia, morte.
Este texto discorre sobre algumas questões que surgiram na pesquisa de campo
da minha tese de doutorado em antropologia social. Ele trata de um dos sentimentos
mais presentes no compartilhar do campo – a solidão – e remete a uma experiência que
gesta boa parte da vida das pessoas – a morte. Estes dois temas estão relacionados na
existência de pessoas e encantados com os quais convivi e convivo, em Codó, no
interior do Maranhão.
Codó é referenciada como a cidade onde teria surgido o terecô – ou tambor da
mata, verequete - uma religião afro-brasileira de provável origem banto, com elementos
jeje-nagô (Costa Eduardo, 1948; Ferretti, M., 2001; Barros, 2000; Araújo, 2008;
Brandim, 2011), cuja língua ritual é o português e onde são incorporados,
1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN. 2 Contato: [email protected]
2
especialmente, porém não exclusivamente, entidades conhecidas como encantados –
seres que tiveram vida terrena, entretanto desapareceram desse nosso plano de
existência. Passaram, neste momento, a fazer parte da Encantaria, um entre mundo de
onde se deslocam para nos visitar, dançar, dar conselhos, fazer trabalhos e curas. Os
encantados frequentam as casas e as tendas de pais e mães de santo da cidade (também
chamados de mestres), lugar por excelência da realização de giras, trabalhos e festejos
em homenagem aos santos e às entidades.
Nas tendas, os encantados – que podem ser organizados em famílias (Ferretti,
M., 2000) – dançam a partir dos pontos que cantam junto com tamborzeiros, mestres e
filhos de santo. Entende-se que existam, no Maranhão, três grupos de encantados – os
encantados de água doce (encontrados especialmente na região da Baixada), os de água
salgada (do tambor de mina, da capital do estado) e os encantados da mata – que
formariam a principal família da região de Codó, chefiada por Légua Boji Buá da
Trindade (Ferretti, M., 2001; Barros, 2000; Cunha, 2013). Seu Légua ou Velho Légua é
a entidade mais conhecida do local e possui numerosa família (se afirma somarem mais
de quinhentos membros). Sua personalidade, assim como a de alguns de seus parentes, é
marcada pelo apego à bebida alcoólica, pela propensão a causar confusão e por uma
postura irreverente e provocadora. Seus relacionados, assim como ele próprio, são
associados ao período da escravidão, à mata e à lida com os animais.
Nos salões codoenses, os encantados da mata dividem espaço com outras
entidades, como orixás, caboclos e caboclos de pena, voduns do tambor de mina
maranhense, pretos velhos, pombagiras etc. Igualmente, o terecô está combinado, de
diversas maneiras, com a umbanda e com o candomblé, que tiveram suas primeiras
tendas construídas em Codó no século passado, respectivamente nas décadas de 1930 e
1980. Acredita-se que, atualmente, existam cerca de duzentas e cinquenta tendas
chefiadas por pais e mães de santo no local, além de quartos e altares que se proliferam
nas casas da cidade.
Um pai, mãe ou filho de santo (um “brincante” do tambor) recebe, durante sua
vida, ou mesmo durante uma gira3, diversos encantados. Não é incomum que um
brincante não saiba dizer o número exato de encantados que recebe, pois, alguns deles,
se manifestam raramente ou de passagem – já que, na incorporação, um corpo que se
abre se torna vulnerável à presença das entidades. Em outros momentos, é difícil
3 Forma como são chamados os rituais com pontos cantados nas tendas (com ou sem acompanhamento
do tambor). Uma gira pode ser também chamada de “toque”, “tambor” ou mesmo “terecô”.
3
reconhecer um encantado, haja vista a possibilidade dele se “apresentar” de maneiras
muito dessemelhantes. Existem alguns encantados, entretanto, que se manifestam
durante grande parte da vida de um sujeito, acompanhando o passar dos anos e
participando de momentos fundamentais da trajetória de famílias – fazendo, por
exemplo, partos, aproximando casais, participando de funerais de entes queridos e
demarcando espaços nos ambientes domésticos. Desta feita, durante a vida dos pais e
mães de santo, determinados encantados podem ser companhia frequente nos rituais e
no cotidiano. No texto, vou sugerir, inspirada em outros autores (Goldman, 1984;
Espírito Santo, 2010; Cunha, 2013; Pina Cabral e Silva, 2013), que ao pensar nos
brincantes estamos diante de uma determinada ontologia ou noção de pessoa.
Entretanto, além disso, pretendo mostrar como se colocam processos que poderíamos
chamar de desconstituição e transformação destes sujeitos. Com este objetivo,
incialmente conto sobre o momento pelo qual passava uma das mães de santo que
conheci durante a pesquisa de campo, pois suas experiências expressavam aspectos que
pretendo destacar nesta minha escrita.
PARTE 1 - Os cadernos de Ernesto
Dona Luizinha é uma mãe de santo de pouco mais de setenta anos. Em 2010,
época em que iniciei a pesquisa de campo em Codó, ela vivia no perímetro urbano há
mais de três décadas. Nascida na roça, havia durante a vida “feito de um tudo”: quebrou
coco babaçu, limpou terrenos, plantou, vendeu laranja em festa de santo, costurou, criou
três filhos. Dois deles migraram e viviam em Caldas Novas no estado de Goiás, a filha
mais velha morava perto de sua casa. Em torno da casa ainda se reuniram seus irmãos e
irmãs, cunhados, filhos e netos.
A modesta casa de Luiza possui, no espaço imediatamente contínuo à cozinha,
uma tenda de terecô. A Tenda Espírita de Umbanda4 Santa Helena – seu nome oficial -
é cuidadosamente decorada com bandeiras, altares, fitas e desenhos. Ela foi/está se
constituindo e se transformando com a passagem do tempo. Como ocorreu com os
barracões de outros pais e mães de santo da cidade, também o de Luiza começou
“humildezinho” e cresceu com a colaboração de encantados e pessoas (filhos de santo,
clientes, visitantes e parentes). A constituição das tendas é, em alguma medida,
4 A denominação “Tenda Espírita de Umbanda” foi assumida pela maior parte dos pais de santo,
independente de terem como “chefes de croa” (donos da cabeça), orixás, caboclos ou encantados.
4
homóloga à trajetória de pais e mães de santo – tanto porque começaram desconhecidos,
quanto porque se tornaram quem são a partir da colaboração de diversas agências.
Neste sentido, de forma geral, os mestres de Codó sentiram os primeiros sinais
de “mediunidade”5
ainda em sua infância. Não é incomum ouvir o contar de delicadas
histórias onde, ainda crianças, foram tomados por entidades no meio da plantação ou
quando faziam serviços domésticos, desaparecendo e sendo encontrados em toques e
giras de tambor. Dificuldades de visão, sonhos estranhos, confusão mental, loucura,
doenças diversas não descobertas por médicos, foram e são sinais de mediunidade. Nas
histórias que conheci, surgiam em torno dos sete, oito anos de idade. Caminhos diversos
– que em grande parte dependiam do fato de já haver, ou não, mediunidade na família
de cada sujeito – levavam ao diagnóstico de “problema com encantado”. Passava-se,
então, a procurar um especialista – outro mestre, já experiente – para “suspender as
correntes”, ou seja, aliviar os sinais e as intervenções das entidades por alguns anos.
Alguns pais e mães de santo moraram na casa destes mestres por certo período, outros
apenas os visitaram algumas vezes, não mantendo contato contínuo com os seus salões.
Como a mediunidade é vista como “de nascimento” se entende que é
praticamente impossível se livrar dela, desta forma, passado algum tempo, os
encantados voltam a se manifestar no cotidiano das pessoas. É preciso então reconhecer
sua presença, perguntar o que desejam, aprender a controlar o corpo quando eles
descem ou sobem - em suma “assumir a responsabilidade”, o que inclui, muitas vezes,
o início do trabalho “com mesinha” (fazendo rezas e curas) e, posteriormente, a
construção de um salão. A partir deste momento, o engajamento na relação com os
encantados torna pais e mães de santo pessoas “sabidas” e procuradas para diversos
trabalhos e alívio de angústias. Entende-se, entretanto, que a força de um mestre – seu
poder, sua eficácia – é fornecida pelos encantados, de forma que, quanto mais um pai de
santo trabalha, mais expedito ele se torna. A força, portanto, é proporcional à dedicação
à religião, às promessas e tabus que cumprem, às oferendas que destinam às entidades.
Não é, efetivamente, um pai de santo que trabalha, mas seus encantados, contudo,
resquícios dos trabalhos (energias, forças ruins) permanecem no corpo do mestre, o que
torna a atividade de chefia de uma tenda algo cansativo, ou como afirmam na cidade,
algo “pesado”.
5 Termo utilizado em sentido diverso da denominação do espiritismo kardecista, para definir a
possibilidade de alguém receber uma entidade (em transe ou possessão).
5
Luiza lembra que quando era criança, via espíritos que a convidavam para
brincar. Ela subia em árvore e rolava no chão, imitando estes seres e fazendo disso suas
brincadeiras. A mãe Chiquinha – sua avó, que a criou desde que nasceu – não entendia o
que se passava com a menina, “porque não tinha essas coisas de espiritismo lá” e a
recriminava violentamente. Aos quatorze anos, Luiza se casou com um primo e passou
a residir em um povoado no interior de Codó (ela era da região do Parnaíba, fronteira
com o Piauí). Depois do casamento as aflições relacionadas à sua mediunidade
apareceram com maior intensidade e os encantados que antes vinham para brincar,
agora a faziam sumir durante dias, “correndo louca” dentro das matas na zona rural. A
intervenção das entidades era algo de foro coletivo e social: se mostrava publicamente e
afetava seu casamento, na medida em que atrapalhava o cumprimento do que eram
consideradas suas obrigações como esposa. A mãe de santo recorda com carinho do
marido falecido, quando lembra que nunca a recriminou por seus “problemas” e sempre
a procurava, com seus empregados, quando desaparecia.
As aflições diminuíram quando Luiza passou a frequentar a casa de um mestre,
em um povoado próximo àquele em que residia. Ainda que tenha participado de
algumas giras e festas nesta casa, considerava que o início de sua experiência enquanto
médium foi muito solitário. Seus companheiros eram os encantados e um grupo de
árvores que, com o passar do tempo, foram lhe ensinando o que sabia sobre a
Encantaria6. Depois colocou uma “mesinha” e, quando já vivia na cidade, no início dos
anos oitenta, construiu sua tenda.
Tal como os outros brincantes, Dona Luizinha recebia/recebe diversos
encantados. Com alguns deles convivi durante o campo, outros não cheguei a conhecer.
Há anos atrás, ela trabalhava com um encantado chamado Ernesto. Ernesto era um
senhor velhinho e muito sabido, que era consultado nos trabalhos (especialmente de
cura), onde era inquirido sobre o atendimento aos clientes. Recebido em situações de
consulta, seu diagnóstico era escrito, por ele mesmo, em um caderno. Quando, depois
de uma sessão, a mãe de santo retomava a consciência, era seu marido – que sabia ler
melhor do que ela (ela não conhecia a escrita na época) – quem lhe dizia o que Ernesto
6 Segundo Luiza, três árvores – um pé de pitomba, um de violeta e um de jatobá – a ensinaram a fazer
curas e atendimentos. Elas ficavam próximas a sua casa e sempre que chegava alguém em busca de ajuda, ela os consultava, acendendo uma vela em frente a cada uma delas. A relação entre as árvores e as entidades é um aspecto recorrente nas pesquisas sobre religiões afro-brasileiras, sendo mencionada desde os primeiros trabalhos sobre a presença negra no Brasil. No tambor de Mina cada entidade tem uma árvore que a representa (Ferretti, M., 2000).
6
anotara no caderno. Depois que o marido morreu, a própria Luiza conseguia,
inexplicavelmente, entender “os garranchos” de seu encantado.
Luiza nunca soube onde os cadernos de Ernesto ficavam guardados, pois eram
depositados em um lugar conhecido apenas pelas entidades – a lembrar que o transe a
deixava inconsciente. Há cerca de sete anos, sem querer, ela os encontrou. Mexendo nas
páginas e lendo o que compreendia, se recordou de uma grande quantidade de pessoas
que ela, com seus encantados, havia acompanhado. Percebeu que muitas delas, ainda
que passassem em frente a sua casa, não conversavam nem agradeciam seu trabalho. A
mágoa diante do esquecimento e da falta de gratidão das pessoas a levou a uma
sensação que expressou na frase: “era como se eu tivesse ido embora da terra. Como se
eu tivesse saído do meu corpo, numa agonia muito grande” (Diário de campo,
17/05/2011).
Os cadernos de Ernesto voltaram a desaparecer - provavelmente pela ação de
algum encantado recebido pela mãe de santo – porém, desencadearam uma importante
tomada de decisão: a partir daquele momento, Luiza desenvolveu a intenção de parar de
trabalhar como mãe de santo. Essa decisão, entretanto, não dependia apenas dela, mas
estava sujeita à negociação com os encantados. A partir disso, não aceitou novos filhos
ou filhas de santo em casa e foi diminuindo o número de brincantes da tenda.
Igualmente, restringiu a quantidade de giras e recusou diversos trabalhos e consultas,
passando a falar sobre fechar seu salão. Ao deixar de fazer estas atividades, Luiza
também reduzia a presença dos encantados, logo, sua eficácia como mestre e seu poder.
Ao diminuir sua inserção neste sistema de prestações e contraprestações, negociava com
os encantados a redução gradual de sua “força” ou da energia deles proveniente.
Na negociação com os encantados, o pai ou mãe de santo não tem como
controlar de forma total os encaminhamentos e suas consequências. No caso de Luiza,
desde que iniciara os pedidos para parar de trabalhar, sentia que um dos seus braços não
tinha mais a funcionalidade de antes. Compreendia que seus problemas físicos com o
braço eram resultado da ação das entidades que com isso lhe diziam que, já que não
trabalharia mais, não precisava daquele braço em sua forma perfeita. Em suas falas –
nas mais diversas conversas – fazia menção ao descaso de clientes e amigos, ao
sofrimento que a ingratidão lhe causava, à tamanha tristeza que produziu em si o desejo
de diminuir suas atividades como mãe de santo. Essa pequena história, de grandes
proporções na trajetória de Luiza, lança luz sobre três ideias relacionadas entre si: o
7
desfazer dos laços entre pessoas e encantados, a solidão (resultado da ingratidão), e por
fim, as situações de morte.
1.1 – Desfazendo relações
A ingratidão e o sofrimento narrados por Luiza falam sobre pessoas que passam
grande parte de suas vidas engajadas com a constituição de relações com os encantados
– ou seja, que vivem em um mundo que não faz sentido sem a participação de diversos
seres (Cardoso, 2007)7. Seu reclame – e de outros pais de santo que, de forma
semelhante, faziam relatos sobre o esquecimento - só pode de ser compreendido em sua
dramaticidade e complexidade quando se considera que ele opera sobre determinada
noção de pessoa. Se Dona Luizinha se ressente da ausência do agradecimento das
pessoas no que concerne aos trabalhos que desempenhou e, ao mesmo tempo, reconhece
que quem trabalha são seus encantados (e deles provém sua força) é porque, em alguma
medida, os seres que ocupam seu corpo são também ela mesma.
Antes de fazer estas afirmações, é importante deixar claro que, os mestres do
terecô passam grande parte de suas vidas construindo relações com as entidades. A
aproximação e a afinidade não são dadas de partida, mas produzidas em momentos onde
a “interaction is crucial for a reciprocal learning process” (Cunha, 2013). Os mestres,
portanto, precisam cumprir tabus e realizar diversas atividades – como rezas, oferendas,
trabalhos, rituais e consultas – que vão formando quem são e também o que sabem.
Quando Luiza aciona a mágoa e o lamento, afirmando que busca negociar o fim
de suas atividades como mãe de santo, ela também fala sobre esses diversos
engajamentos que são tidos, como afirmei no início do texto, como pesados,
desgastantes, poluidores. Ela dizia se “sentir velha”, algo que não remetia apenas ao
adiantado de sua idade biológica, mas ao compartilhar de substâncias que acontece entre
os mestres, os encantados, os filhos de santo e os clientes. Se por um lado, com os
encantados, os mestres compartilham força e também seus corpos, ao acompanharem
seus filhos de santo eles estão pessoalmente implicados na forma como eles se
comportam (de forma que tudo o que um filho de santo faz também reflete em seu
mestre). Igualmente, como mencionei anteriormente, quando procurados para resolver
7 Sigo aqui a sugestão de Vânia Cardoso que entende que a macumba carioca, antes do que uma
identidade religiosa específica, “marca uma socialidade – um imaginário e um “ver o mundo” – inextricavelmente marcada pela presença de espíritos” (2007, p. 317).
8
casos e angústias dos clientes, os pais e mães de santo trabalham com forças e
elementos considerados ruins – que, mesmo com os rituais de proteção e limpeza –
deixam alguns resíduos no seu corpo. Esses resíduos se acumulam e pesam com o
passar dos anos. A relação com os encantados, portanto, ao mesmo tempo em que
produz força e poder, envelhece corpos e os marca com a presença das entidades – os
debilita - como o braço disfuncional de Luiza ou as cicatrizes e marcas resultantes de
sua ação.
Quando um pai ou mãe de santo decide por ‘aposentar-se’ das funções na chefia
de uma tenda, ele toma uma decisão que em nada é leviana ou simples. A diminuição
das atividades relacionadas aos encantados também significa uma redução da presença
deles em sua vida e na vida daqueles que participam de um salão, o que resulta no
arrefecimento do poder e da eficácia de um mestre. Alguns antropólogos têm chamado
atenção para o caráter compósito das pessoas, questionando não apenas a compreensão
ocidental de indivíduo moderno, mas também chamando atenção para a importância das
relações que compõe um sujeito (Strathern, 2006; Gordon, 2009), para os processos de
mutualidade que estão para além das relações (Pina Cabral e Silva, 2013) ou mesmo à
participação das entidades na constituição da pessoa (ver, para o candomblé, por
exemplo, Goldman, 1984). No caso do terecô de Codó, me parece possível afirmar, com
Diana Espírito Santo, que há uma noção de pessoa “múltipla, plural, expansiva,
conectada” (2010, p. 498), de forma que:
o que existe entre o médium e eles [espíritos] melhor se compreenderá
como um projeto contínuo de pessoa em construção – os seres de
ambos jamais se encontram em estado fixo ou imutável, mas se
nutrem congruentemente um do outro, especificando-se na prática e
numa aprendizagem de si, ao longo do tempo (Espírito Santo, 2010, p.
517).
Neste sentido, quando os pais ou mães de santo negociam o distanciamento com
os encantados, em última medida, a intensidade do sofrimento fala também de uma
despedida que é a de si próprio. É preciso, pois, reinscrever-se de outra forma no mundo
(Vianna, 2014), com um poder de ação diminuído e, portanto, de uma forma mais
vulnerável. O desfazer dos laços fala dessa incompletude da pessoa e da sua contínua
transformação enquanto tal.
9
1.2 A solidão
Mas, se por um lado estamos discorrendo sobre os engajamentos entre pessoas e
encantados, por outro, ao remetermos ao evento do encontro com os cadernos de
Ernesto, temos que atentar que a fala de Luiza também coloca sobre a relação com
outras pessoas – vizinhos, parentes, clientes – de onde emergem sentimentos de
ingratidão e esquecimento. Surge aqui, como pretendo sugerir, outro aspecto importante
de como os mestres experienciam sua própria ação no mundo, a possibilidade da
solidão. Ela, diziam as pessoas em Codó, era a pior coisa que poderia acontecer com a
vida de alguém, era “se sentir abandonado” – era encontrar-se na situação na qual
Luiza se percebia, sendo paulatinamente esquecida por aqueles com os quais
estabelecera relações de cuidado e companhia.
A solidão era vista como ameaçadora: Seu João Tavares, também pai de santo da
cidade, me contou sobre as previsões de futuro feitas por sua avó, a terecozeira Dona
Maria Pretinha, que “disse que eu era o último da família, que eu era o herdeiro de
tudo, o último da família. E eu ia terminar meus dias de vida só, numa casa. E o
pessoal ia chegar e dizer: “E aí tio João como é que vai o senhor?”. E eu não quero
que isso aconteça porque a solidão mata... E eu sempre peço a Deus que isso não
aconteça” (João Tavares, 03/09/2011).
Temida por seu João e considerada por Luiza a pior coisa da vida, a solidão não
é um receio individual ou pessoal. Ela é sempre referendada como algo assustador,
temido e universal, que pode acontecer com qualquer pessoa. É constituída pela
ausência de família, pela falta de amparo e pelo abandono, sendo um medo presente
(quando alguém se distancia) e um receio sobre o futuro e o envelhecimento. Diante do
esquecimento, da falta de gratidão, da ausência dos cumprimentos e das visitas, se está
ainda mais exposto à solidão.
Em Codó existem pessoas que ‘encarnam’ esta situação temida, como, por
exemplo, os trabalhadores sem família e sem parentes que vêm para a cidade ocupar
algum emprego; homens que chegam para atividades transitórias no campo ou os
funcionários de alguma obra temporária. Essas pessoas são vistas com estranheza
porque “andam sozinhas”. Evidentemente, eu, que morava só (distante da minha
família) e assim andava pela cidade, descortinava um sentimento de estranheza muito
parecido ao desses outros trabalhadores temporários. Além das constantes perguntas
sobre minha família, sobre possíveis namorados ou maridos, eu era continuamente alvo
10
de sugestões de cuidado e atenção na circulação pela cidade. Andar sozinha, ou estar
sozinha, era algo perigoso, digno de atenção e mesmo de pena.
Apesar de minhas escolhas remeterem à temida solidão, Luiza, algumas vezes,
fazia aproximações entre a minha vida e a dela. Dizia que queria ter podido ter a minha
vida - que entendia como andar por diversas cidades, conhecer pessoas e lugares
diferentes. Expunha que seu desejo, quando moça, era ser “mulher livre” e viajar pelo
mundo, trabalhando um pouco em cada destino, guardando dinheiro para continuar se
movimentando: “Eu chegava aqui, eu trabalhava um mês, dois meses. Pegava meu
dinheiro, ia pra Fortaleza. Lá eu trabalhava tempos e tempos. De lá eu iria pra outro
lugar. E ia andar o mundo inteiro, não sabe... Era isso que era a minha vontade, era
isso que era o meu desejo” (Luiza, 03/10/2011).
Alguns acontecimentos ocorreram na vida da mãe de santo que a
impossibilitaram de exercer esse seu anseio de liberdade. Quando contava, explicitava
dois deles: o casamento – que a tinha comprometido com toda uma vida esperada como
mulher no contexto do interior do Maranhão; e a mediunidade (que se refere, abaixo,
como “arrumação”):
Mas aí, por causa da ruindade que eu supria, de um desejo, eu me
casei com esse homem, aí piorou. Aí eu me casei e emprenhei. Meu
marido não foi uma pessoa muito exemplar, mas foi bom. Aí foi só eu
me casar e apareceu essa outra arrumação que eu não tinha. Aí
pronto, a coisa piorou, tudo, acabou. Aí hoje eu sou essa pessoa, mas
nunca foi assim que eu me sentia... (Luiza, 03/10/2011).
A liberdade que Luiza almejava no movimento entre diferentes cidades foi
cerceada pelo casamento e pela relação com os encantados. Mesmo depois de mais
velha entendia que os filhos que criou sem o marido (que faleceu cedo) e as atividades
da manutenção da sua tenda lhe “prendiam” à cidade – e por isso, tanto para ela quanto
para outros pais de santo, diminuir as atividades na chefia de um salão significava
também sentir maior liberdade no uso do seu tempo.
Quando eu ouvia essas afirmações, ser mulher livre e temer a solidão pareciam
posições aparentemente contraditórias – intensificadas nas afirmações de Luiza de que
não conseguiria imaginar sua vida sem dançar seu terecô e sem sua família. Essa
duplicidade de desejos aparecia também nos conselhos que me dava, visto que, embora
eu fosse, para ela, mulher livre – repetidamente sugeria que eu tivesse filhos, que eu me
casasse, que eu procurasse não ficar sozinha. Além de chamar atenção para o limite da
11
ideia de contradição em relação ao temor da solidão, Luiza demonstrava “um mundo
onde a liberdade da pessoa singular é um dos valores centrais, mas onde a centralidade
desse valor assenta sobre a possibilidade iminente da violência, da desumanização, do
cativeiro” (Pina Cabral e Silva, 2013, p. 09). Neste sentido, uma pessoa sozinha é, em
alguma medida, uma não pessoa – haja vista não ser ninguém sem os outros.
Demonstrar gratidão, considerar, mas também rezar, fazer oferendas, trabalhar,
emprestar ou compartilhar o corpo (na relação entre pessoas, pessoas e encantados) é,
sugiro aqui, constituir-se a si próprio e tornar pessoas possíveis. Se o cansaço e a
velhice são parte das trajetórias de mães de santo, o que se teme é, ao fim, apesar de
todo o investimento e engajamento com entidades, clientes e parentes, encontrar-se
sozinho. A solidão e o esquecimento são, portanto, ameaças – sempre iminentes - àquilo
que as pessoas (ainda que continuamente em transformação) são. Como então pensar o
desfazer dos laços com os encantados – que resulta também na diminuição da relação
com as pessoas – se esta escolha parece exatamente contribuir para a solidão?
Deixo a pergunta em suspenso para trazer um terceiro elemento para pensar a
relação entre pessoas e encantados: os mortos ou mesmo a existência da morte. A partir
de alguns casos específicos, acompanhados em campo, busco aspectos importantes para
pensar tanto às questões de ontologia as quais venho me remetendo, quanto às
possibilidades de movimento das pessoas e das entidades. Como pretendo sugerir ao
final do texto, solidão, esquecimento e morte não são apenas parte da vida (que é
“cheia” de coisas, como dizem na cidade), mas sentimentos e retóricas motores da
existência.
PARTE 2 – Morte e vida
Os mortos não são percebidos como encantados e não fazem parte do panteão do
terecô. Eles são vistos como familiares que, ainda que não mais presentes fisicamente –
embora materializados em imagens e fotografias – fazem parte das redes de cuidado,
companhia e lembrança. Eles auxiliam, portanto, nas formas de evitar a solidão e, ao
mesmo tempo, recebem investimentos nas relações sociais, especialmente pelo cultivo
de sua memória entre os vivos. Segundo um amigo de Codó, por exemplo, ter filhos era
uma importante medida para evitar a solidão e também para ser lembrado depois da
morte, como me disse: “Martina, mas quando você morrer, quem é que vai lembrar de
você? Se você não tiver filhos, quem vai lembrar?”.
12
Por ocasião de uma morte, o enterro é um momento que possibilita a união ou o
encontro dos familiares que estão próximos ou distantes (Mapril, 2009). Neste contexto,
é importante trazer o corpo daqueles que morrem longe de Codó para ser enterrado na
cidade. Embora diferentemente de outros lugares onde existe uma relação direta entre o
enterro e a terra ancestral (Borges, 2011; Bloch, 1971), também aqui trazer o corpo
permite com que se inicie uma serie de rituais conhecidos como “visitas”, que buscam
manter viva as recordações do falecido (escrevo mais sobre as visitas na sequência do
texto)8. Parece-me que a solidão é considerada de uma tristeza tão demasiada que
mortos fazem companhia aos vivos, enquanto esses cultivam, continuamente, a
lembrança de seus mortos. Com o intuito de desenvolver o argumento central desse
texto, opto por discorrer sobre três momentos que por um lado, sintetizam um conjunto
de atividades relacionadas à morte – como as visitas e as giras de tambor; e, por outro,
destacam as agências de pessoas e de encantados, chamando atenção para momentos em
que também as entidades sofrem com a despedida (ao mesmo tempo em que são
colocadas em movimento).
2.1 Seu Sebastião
Inicio com uma narrativa de Seu Sebastião - um senhor já idoso, pai de santo de
um povoado do interior de Codó - sobre a morte de sua esposa. A conversa aconteceu
em uma tenda antiga da cidade, pertencente ao pai de santo Raimundinho Pombo Roxo.
Nela, Seu Sebastião figurava como padrinho e por isso estava presente, naquele
setembro de 2011, na festa em homenagem aos santos gêmeos, Cosme e Damião.
Naquela tarde me disse que, no dia da morte da esposa, ele estava fora de casa, na sede
do município, distante cerca de trinta quilômetros do povoado onde vivia, para onde foi
utilizar serviços públicos, visitar seus filhos e o amigo Raimundinho Pombo Roxo. Os
dois pais de santo eram amigos há mais de uma década, desde que se conheceram em
um festejo. Seu Sebastião conta que o amigo sempre o ajudou, mesmo quando ninguém
o conhecia na cidade e, por isso, nunca deixaria de frequentar sua tenda. Também não
trocaria sua amizade pela de qualquer outro pai de santo.
8 O lembrar-se dos mortos tem como elemento central as visitas, contudo ainda é composto de outras
demonstrações de carinho, como fotos em camisetas, adesivos de carro e também em pequenas lembranças (fotos ou cartões). Luiza guardava as lembranças de morte em um álbum de fotografia que permanecia na sua estante, junto com outros álbuns de seus festejos e das viagens às romarias.
13
Naquele triste dia, a esposa de Seu Sebastião faleceu em torno das três horas da
tarde. Para retornar ao povoado, já que estava na cidade, ele contou com a ajuda dos
filhos e de Seu Raimundinho. Eles conseguiram somar algum dinheiro e pagaram o
carro que levou o pai de santo para sua casa no povoado (em Codó não há transporte
público nem no perímetro urbano e nem no interior). Também foi o amigo quem
organizou os dois caminhões que transportaram os conhecidos para o velório, que
aconteceu na tenda de Seu Sebastião. Sete dias depois, Raimundinho também organizou
a ida para a primeira visita.
A morte aconteceu em maio e naquele setembro, Seu Sebastião ainda não tinha
conseguido pagar as dívidas que contraiu para fazer o enterro e a visita. Apesar disso,
estava muito feliz porque na ocasião “teve muita comida” e se dançou terecô durante
toda a noite. A esposa merecia todo o investimento porque, segundo me disse, enquanto
viva, sempre o ajudou. Apesar da tristeza diante da despedida e de considerar que sua
vida estava muito mais difícil9, Seu Sebastião me contou de sua satisfação diante de
“um bom enterro e uma boa visita” – o que quer dizer que houve fartura de alimentos,
que os visitantes foram bem recebidos e que um número expressivo de pessoas esteve
presente.
O pai de santo, na ocasião, não mencionou, mas a visita de sete dias é só a
primeira de uma sequência de visitas feitas pelos terecozeiros (e por diversos católicos)
aos seus mortos. Sendo a primeira, é considerada a mais importante e os parentes que
vieram de outras cidades costumam permanecer em Codó para participar do momento.
Ou seja, a partir dos rituais que acontecem na ocasião do enterro e que variam entre as
casas e entre os casos, um falecimento inaugura o circuito de visitas em homenagem ao
morto – havendo a visita de sete dias (com missa ou não), a de quinze dias, a de mês, a
de seis meses, a de ano – e, todos os anos, a visita que marca o aniversário de morte. As
visitas compartilham das mesmas características mencionadas por seu Sebastião para
serem consideradas boas – receber visitantes, alimentá-los abundantemente,
proporcionar meios de deslocamento para a ida ao cemitério ou a casa.
Nas visitas são feitas diversas rezas católicas que compreendem pedir a Deus e
aos Santos que intercedam pelo perdão dos pecados e pela aceitação do morto nessa
passagem – visto o mesmo ser concebido como incapaz de agir em benefício próprio.
9 Desde a morte da esposa, os filhos e netos de Seu Sebastião que viviam na cidade insistiam que ele
deixasse o povoado. O local em que vivia sofria com expulsões dos trabalhadores do campo, causadas pela família de um deputado estadual, aparentemente proprietária das terras.
14
Além das rezas católicas - como o Terço, Salve Rainha e o Bendito do Rosário de
Maria, por exemplo -, as visitas realizadas aos mortos que brincavam em tendas de
religião afro-brasileiras podem ser acompanhadas de noites de tambor, tocadas para
homenagear os encantados que recebia e as principais entidades da tenda.
2.2 Seu João
Se no caso da esposa de Seu Sebastião o tambor foi tocado depois do enterro,
seguindo durante a madrugada, a dança pode acontece em diferentes momentos na
sequência da morte de um filho, pai ou mãe de santo. Em 2012, quando eu visitava
alguns amigos e interlocutores em Codó, no dia imediatamente posterior ao término do
festejo da tenda de Pai Aluísio, seu irmão João, faleceu. Apesar de morar em São Luís,
ele estava na casa do pai de santo por ocasião da festa e foi neste local que começaram a
ser feitos os rituais de seu enterro – que seria realizado na capital.
Naquele dia, logo que cheguei à tenda, fui requisitada para tirar as fotos do
velório – tarefa que desempenhei algumas vezes durante a pesquisa e que era
considerada importante, pois o registro com o morto é valorizado (especialmente para
não se esquecer dele). Ininterruptamente havia pessoas velando o caixão e perto do
horário em que o corpo seria conduzido para São Luís chegaram pais e filhos de santo
de outras tendas da cidade para participar de um ritual que aconteceria antes da
despedida. Depois de alguns hinos e rezas católicas, vivas foram dadas a São
Raimundo, que há poucas horas tinha sido festejado naquele mesmo espaço. Uma roda
formada pelos filhos de santo da casa, vestidos de branco e com as cabeças protegidas
(embora outras pessoas sem estes mesmos cuidados também participassem) começou a
girar ao redor do caixão. Alguns pontos foram cantados e acompanhados pelo tambor.
Abre a porta da capela, bota o povo lá pra dentro.
A tenda São Raimundo, ela está de sentimento.
Passando as mãos umas nas outras de forma constante, as pessoas que
participavam do ritual ainda cantaram para Seu João Soeira10
e para Xangô, que devem
ter tido presença importante no percurso religioso de Seu João. Outros pontos foram
cantados e tocados, e alguns encantados se fizeram presentes, para se despedir. Cerca de
10
Seu João Soeira é uma entidade percebida tanto como a entidade Rei de Mina (em São Luís, na tenda de Pai Jorge Itaci [Ferretti, M., 2000, p. 310]) e também como vodunsi velho, em Codó (ibid, p.315).
15
vinte pessoas incorporaram dentro e fora do salão e foram trazidas para próximo ao
caixão. Podíamos ouvir os gritos, o choro e a lamentação dos encantados. Também eles
sofriam com a morte e compartilhavam dela.
Mamãe chorou, mamãe chorou,
Quando eu mudei pra viagem, mamãe chorou.
Os encantados deixaram o corpo dos médiuns somente quando foi cantado o
último ponto do ritual. A entidade que estava em Seu Aluísio pediu ao Divino Espírito
Santo que tomasse conta da alma do padrinho da tenda (seu irmão) e levasse seu
espírito. Neste momento, a tenda cantou:
Ô João, já vai, São Raimundo vai te levar.
Adeus meu amigo, São Raimundo vai te levar.
Encerrada a sequência de pontos cantados na tenda e a visita de despedida dos
encantados, o corpo de Seu João seguiu para a cidade de São Luís. Os encantados
recebidos em um ritual de morte, segundo me disseram, comumente são os chefes de
croa dos visitantes, que tendo conhecido o morto, aparecem para trazer seus pêsames e
se despedir. Contaram-me ainda que os encantados que eram recebidos pela pessoa que
faleceu, durante sua vida, também pode “dar passagem” em algum terecozeiro
presente, para se despedir do seu “cavalo” e demonstrar sua tristeza.
Além da presença dos visitantes, dos pais e filhos de santo, o ritual também fez
constantes menções à ação de São Raimundo, santo da casa, como operador da
passagem – ou condutor da pessoa falecida. As referências ao Santo são também
referências ao próprio salão (enquanto espaço físico e como alusão às pessoas que o
compõem) - visto que a própria tenda “está de sentimento” diante da morte de seu
padrinho. Essa ênfase no espaço como compartilhado e sentido coletivamente também
aparece na terceira situação que apresento nesta parte do texto, na morte de uma filha de
santo da casa de Mestre Bita do Barão.
2.3 Dona Eurides
Dona Eurides faleceu na noite do festejo em homenagem à Santa Bárbara,
comemorado na tenda onde brincava desde nova, a Tenda Espírita de Umbanda Rainha
16
de Iemanjá (onde Luiza também brincava). Quando soubemos da morte, algumas filhas
de santo foram imediatamente para a casa de Eurides, que era ao lado da tenda, para
iniciar o velório. A casa era pequena e as pessoas estavam na sala próximas ao caixão
ou sentadas, em cadeiras de plástico na rua. Velamos o corpo dentro da pequena casa
até o dia seguinte, na chegada da irmã da falecida, que vivia em São Luís. Depois de
uma reza católica, seguida do hino da Umbanda, Mestre Bita (seu pai de santo), se
aproximou do caixão, cantando o ponto de abertura de alguns dos seus trabalhos:
No céu uma estrela brilhou, no mar sereia cantou.
Esse é o caminho mais certo que Deus nos guiou.
Enquanto cantava, acompanhado de suas filhas de santo e da diretoria de sua
casa, o pai de santo cortava, com uma tesoura, os cordões de conta (guias) que
pertenceram a Eurides. As miçangas se espalhavam sobre o corpo, ficando dentro do
caixão. Duas filhas de santo da casa cortavam saias e blusas brancas, que também
pertenceram à brincante falecida, depositando os pedaços sobre o corpo – segundo me
disseram, marcando a passagem entre o status de pessoa morta e viva. Em cortejo,
seguimos até o cemitério, enquanto outras pessoas varriam o chão da casa e se
destituíam dos objetos que tinham participado do ritual. Eles também precisam ser
“despachados”, pois eram considerados impuros.
Apesar da observação dos cuidados e dos procedimentos que marcavam a
separação entre vida e morte, também no enterro de Eurides (como aconteceu no velório
de Seu João) os encantados – que em outros contextos etnográficos não se fazem
presentes nos rituais por ocasião de morte (como no tambor de mina, por exemplo)11
–
participaram. Logo na entrada do cemitério, algumas pessoas os receberam. Alguns
deles fizeram, conosco, o trânsito entre o campo santo e a tenda onde Eurides brincava,
para onde fomos para o Tambor de Choro (de corpo ausente)12
.
11
Enquanto no terecô os encantados se faziam presentes no Tambor de Choro, na Casa das Minas em São Luís os voduns não participavam dos ritos relacionados ao enterro, retornavam apenas depois que a casa estava “limpa” das impurezas atribuídas ao morto (Ferretti, S. 1996, p. 31). 12
Barretto (1977) faz uma breve descrição do Tambor de Choro (ou Zelin) na Casa das Minas em São Luís, que “tem o objetivo de despachar a pessoa recém-falecida do convívio com os vivos” (ibid., p. 86). Sérgio Ferretti (1996) também descreve os rituais envolvidos no Tambor de Choro na Casa das Minas (realizado “para despachar o espírito do morto, para que ele tome consciência de que já morreu” (ibid., p. 193)). Para uma discussão da etimologia do Tambor de Choro e outras denominações como Zelin (nome dado nas casas jeje) e Axexe (nas casas ketu), ver Sogbossi, (2011).
17
Quando chegamos, lavamos as mãos, braços e pés com um banho de ervas – para
retirar as impurezas do cemitério - e fomos para a tenda, onde os tambores estavam
deitados no chão e cobertos por toalhas de renda branca. Próximo a eles, também sobre
o chão, havia três sacos de ráfia que comportavam as roupas de santo que pertenciam à
Eurides. Durante o ritual, conduzido por um dos encantados de Mestre Bita, diversos
pontos foram cantados sem o acompanhamento da percussão. O ápice da cerimônia
aconteceu quando ele retirou as cinzas de dentro do defumador e as depositou em um
alguidar maior, logo depois as transferindo para dentro de uma sacola de plástico. Em
seguida, o pote de cerâmica foi solto no ar e quebrou-se em diversos pedaços ao chocar-
se com o chão13
. Algumas filhas de santo imediatamente receberam encantados e
permaneceram com eles deitadas no chão da tenda, movimentando braços e pernas,
chorando e se lamentando. Outras continuavam cantando pontos sobre a despedida.
O meu coração dói, o meu coração, dói, dói.
Na guma14
está faltando um, o meu coração dói.
Enquanto se cantava pontos sobre tristeza, ausência e dor, o encantado de Mestre
Bita saiu de costas da tenda, com um punhado de velas em suas mãos e acompanhado
de alguns homens que carregavam as três sacolas com as roupas e pertences religiosos
de Eurides, que deveriam ser despachados em água corrente ou dentro da mata – em
local não conhecido pela maioria dos presentes. Os encantados das filhas de santo e
também os de Eurides, que passaram em outras mulheres para se despedir, somente
“subiram” quando o pai de santo, já sem seu encantado, retornou do local onde foi
fazer o despacho. Neste retorno, disse algumas palavras, lembrando que faria isso por
qualquer filha de santo, desde que ela estivesse frequentando sua casa (e assim,
contribuindo e compartilhando sua força).
2.4 Sentimento e heranças
13
Tendo observado a quebra de potes e cuias em rituais funerários em duas casas de candomblé em Salvador (BA), Sogbossi (2011) conclui que ela está relacionada com a separação entre os vivos e os mortos, simbolizando que o morto não faz mais parte da casa. Prandi afirma que no candomblé baiano, o axexê é “celebrado para desligar o morto da vida presente, para que ele possa partir e depois voltar como outra pessoa, rito que representa a quebra de todos os vínculos do morto” (Prandi, 2001, p. 51). 14
Guma ou guna é o poste central que existe em algumas tendas. Antigamente eram mais comuns.
18
As três situações que relato brevemente e que envolvem ocasiões de morte de
brincantes do tambor, trazem algumas questões que eu gostaria de destacar.
Inicialmente falam sobre as tendas como espaço de celebração e despedida – elas ficam
de sentimento com a morte de um de seus membros e sentem sua ausência, pois falta
alguém em torno de sua guma. A morte, portanto, é experienciada coletivamente por
mestres, filhos de santo, entidades e santos. A transição entre vivente e morto, nesse
sentido, não é desprovida de sofrimento, ainda que não signifique a ausência de
comunicação e companhia entre vivos e mortos.
Embora momento de despedida – e de rompimento ou transformação na
condição do sujeito, explicitados nos procedimentos de limpeza e separação de objetos
pessoais, roupas e corpos (Cunha, 2011; Sogbossi, 2011), a morte também é um
momento de presença, ou seja, uma situação que lembra a necessidade de cuidar,
acompanhar e lembrar-se dos sujeitos - onde operam as mais variadas agências, de
pessoas (vivas e mortas), de encantados, dos santos. É também um ato, uma ação, um
evento, que combate à solidão.
Retomo a história de Eurides para falar da presença dos mortos na vida dos
vivos, a partir de seu aparecimento no sonho de uma amiga e das heranças que deixou
para suas “irmãs de santo” – já que, entre elas, distribuiu os santos do seu altar e
também alguns colares do terecô. Explico melhor: sete meses depois da morte de
Eurides, eu estava na loja de produtos de Umbanda de Mestre Bita, com Sebastiana e
Maria Bastos, duas de suas filhas de santo. Nós três conversávamos quando Sebastiana
nos contou que Eurides vinha aparecendo em seus sonhos e mantendo conversas com
ela. Neles, lembrava que tinha deixado um dos santos de seu altar para ela e cobrava que
ainda não o havia buscado.
Maria Bastos comentou então que o principal encantado de Eurides, o Caboclo
da Mata Verde, ainda não tinha “passado” em ninguém que elas conheciam, mas
afirmou ter certeza de que viria em Sebastiana – que imediatamente retrucou dizendo
“Deus me livre”. Eu, observando a brincadeira séria entre as duas e compreendendo
muito pouco, perguntei se o encantado de alguém que faleceu poderia passar em uma
pessoa próxima. Elas responderam haver grande possibilidade de que o encantado
continuasse entre os conhecidos (e, por isso, Maria tinha certeza de que o desejo de Seu
Mata Verde era se tornar encantado de Sebastiana).
A negativa de Sebastiana tem relação com uma opinião recorrente entre os
terecozeiros: ter encantado “dá muito trabalho”, exige muita dedicação e privações.
19
Certamente, havia também um lado de lisonja aí colocado: receber um encantado era
também uma forma de ressaltar a relação que ela mantinha com a falecida. Em alguma
medida, se Mata Verde fez parte de Eurides, Eurides, a partir dele, também se mantem
presente na vida de Sebastiana – pois os encantados, tal como as pessoas, não são seres
terminados. Compreende-se que um encantado, ainda que possua ancestralidade e viva
uma experiência heterodoxa do tempo, continua acumulando histórias de vida (Ferretti,
M., 2000), atualizando opiniões e formas de participação no cotidiano dos sujeitos.
Dessa forma, apesar de sua ancestralidade, eles continuam se transformando – tal como
as pessoas - com a passagem do tempo.
Considerações finais
Durante este texto, escrevi sobre dois aspectos das experiências dos mestres e
dos encantados do terecô de Codó: em primeiro lugar, destaquei determinada noção de
pessoa, possível pela construção de relações com as entidades durante o passar dos
anos. Essas relações carecem de constante dedicação por meio de um conjunto de
obrigações que constituem o que são e o que sabem os pais e mães de santo.
Igualmente, essas relações marcam seus corpos, os envelhecem e pesam – como foi
possível ver na narrativa de Luiza sobre o fim de sua trajetória na chefia da tenda,
quando diminuía suas atividades, seus filhos de santo e sua força. Neste momento,
marcado pelo receio da solidão e pela ingratidão das pessoas atendidas e cuidadas, os
mestres diminuem a presença dos encantados, se relacionando com menos frequência e
se despedindo de alguns deles. Na medida em que as entidades também constituem
quem são os mestres, este momento é também alteração na forma com que os sujeitos se
percebem no mundo.
Em um segundo momento, apresentei três situações envolvendo a morte de
brincantes do tambor para falar dos sentimentos compartilhados pelos sujeitos e pelas
entidades, do sofrimento e da participação dos encantados nos rituais. A morte, nestes
eventos, funciona também como uma forma de evitar a solidão. Nesses episódios de
rupturas e continuidades, os encantados figuram como possíveis extensões de um morto
entre os vivos, permitindo cultivar suas heranças e lembranças (como no caso de Seu
Mata Verde e de Sebastiana). Tanto as transformações advindas do distanciamento das
atividades de chefia da tenda, como o sofrimento por ocasião da morte, falam sobre o
movimento e a transformação de pessoas e encantados. Em determinados momentos, as
20
pessoas se transformam porque se desligam das entidades (porque antes, durante anos,
se fundiram com elas) e em outro, se transformam porque os adicionam a si (já que
anteriormente eles se despediram de outras pessoas).
Cabe aqui, portanto, responder a uma pergunta que esbocei acima – que seja,
pensar porque se despedir se isto implica na temida solidão. Como possível resposta,
sugiro que as falas sobre ingratidão, solidão, sofrimento, enquanto experiências vividas
pelos brincantes, ao mesmo tempo em que lembram a importância da companhia e do
cuidado, também induzem o movimento entre fazer e desfazer, que torna possível a
existência dos sujeitos e das giras.
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