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  1 Mitos e temas revisitados na Literatura Infanto-Juvenil contemporânea: uma literacia de (re)criação Gisela Silva, Américo Lindeza Diogo, Fernando Fraga de Azevedo LIBEC/CIFPEC IEC e ILCH, Universidade do Minho, Portugal Palavras-chave: Literacia; imaginário; símbolos; mitos;  (re)criação. O objectivo desta comunicação é d esenvolver uma reflexão sucinta sobre o contínuo aparecimento de obras da literatura contemporânea de potencial recepção Infanto-Juvenil que reabilitam o Imaginário, onde imagens arquetípicas, mitos, símbolos e temas levam à promoção do crescimento intelectual da criança ou do jovem através de uma literacia de permuta e (re)criação. Tendo por base textos da literatura Infanto-Juvenil portuguesa e estrangeira, no contributo de uma literacia evolutiva do Imaginário em contexto de sala de aula e de Biblioteca Escolar, pretende-se, a partir da experiência de trabalhos desenvolvidos em turmas dos 7º, 8º e 9º anos de escolaridade, reforçar a importância de um correcto arranjo literário construído não só pela realidade efectiva das figuras propostas no texto, mas também pela legitimidade do simbolismo, marca incontestável de uma herança dos tempos primeiros da humanidade e que tanto cativa os jovens leitores.  Apresentaremos como suporte deste trabalho três aspectos discursivo-textuais: a) A compreensão da problemática de uma nova consciência do Imaginário e o seu papel na literatura para crianças e jovens; b) A relação dialógica entre o leitor infanto-juvenil e o texto na apreensão de temas, imagens e símbolos enquanto veículos de sentidos e valores; c) A divulgação de um diálogo aberto ao exercício da prática literácita dos símbolos e das imagens em contexto escolar, tendo-se como principal objectivo a prática da leitura e da (re)criação como exercícios de fruição e de enriquecimento enciclopédico para os jovens curiosos e menos curiosos, que são parte integrante das nossas escolas e das nossas famílias. Serão temáticas de suporte, quer a percepção epistemológica de Mircea Eliade na concretização da linguagem mítica do «centro», quer a reflexão de Simone Vierne na compreensão do percurso iniciático do herói e a sua demanda. Introdução Em trabalhos anteriores, falando de literatura infanto-juvenil contemporânea, referíamo-nos ao «saber recriar pela experiência da reaproximação» (Silva, 2006), onde temas, imagens e símbolos confirmavam «o conhecimento da ancestralidade mítica e o domínio dos clássicos da literatura» (2006) daqueles que sabem dar lugar ao sonho e ao imaginário. Hoje, porém, afirmamos, convictos, tratar-se não já de uma recatada reaproximação dos autores que fizeram renascer um universo cultural esquecido por muitos anos em obras de qualidade literária, mas de uma inegável reabilitação do imaginário mítico e simbólico. Numa mão sonhos e na outra um convite para a aventura da leitura pluri-isotópica, muitos têm sido os autores que, numa nítida intenção de cutucar fantasia e realidade, criam uma realidade possível e de identificação com o leitor. Ora, se falar de literatura para a infância sempre significou valorizar contos e mitos, pois o conto maravilhoso para crianças é, na sua génese, um relato mítico Vladimir Propp (1992, 144-207), parece- nos que assistimos hoje a um renascimento evidente da matéria mítica e simbólica numa literatura para crianças e jovens, essencialmente, pré-adolescentes, cuja essência se dá a ler, mais do que nunca, pela participação activa e curiosa de um sujeito-leitor investidor que procura a simplicidade do belo e do mágico em narrativas que sugerem mais do que dizem e que estimulam mais do que impõem. São, assim, estas narrativas de reminiscências, portadoras de uma riqueza linguística e

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    Mitos e temas revisitados na Literatura Infanto-Juvenil contempornea: uma literacia de (re)criao

    Gisela Silva, Amrico Lindeza Diogo, Fernando Fraga de Azevedo LIBEC/CIFPEC IEC e ILCH, Universidade do Minho, Portugal

    Palavras-chave: Literacia; imaginrio; smbolos; mitos; (re)criao. O objectivo desta comunicao desenvolver uma reflexo sucinta sobre o contnuo aparecimento de obras

    da literatura contempornea de potencial recepo Infanto-Juvenil que reabilitam o Imaginrio, onde imagens arquetpicas, mitos, smbolos e temas levam promoo do crescimento intelectual da criana ou do jovem atravs de uma literacia de permuta e (re)criao.

    Tendo por base textos da literatura Infanto-Juvenil portuguesa e estrangeira, no contributo de uma literacia evolutiva do Imaginrio em contexto de sala de aula e de Biblioteca Escolar, pretende-se, a partir da experincia de trabalhos desenvolvidos em turmas dos 7, 8 e 9 anos de escolaridade, reforar a importncia de um correcto arranjo literrio construdo no s pela realidade efectiva das figuras propostas no texto, mas tambm pela legitimidade do simbolismo, marca incontestvel de uma herana dos tempos primeiros da humanidade e que tanto cativa os jovens leitores.

    Apresentaremos como suporte deste trabalho trs aspectos discursivo-textuais: a) A compreenso da problemtica de uma nova conscincia do Imaginrio e o seu papel na literatura para

    crianas e jovens; b) A relao dialgica entre o leitor infanto-juvenil e o texto na apreenso de temas, imagens e smbolos

    enquanto veculos de sentidos e valores; c) A divulgao de um dilogo aberto ao exerccio da prtica litercita dos smbolos e das imagens em

    contexto escolar, tendo-se como principal objectivo a prtica da leitura e da (re)criao como exerccios de fruio e de enriquecimento enciclopdico para os jovens curiosos e menos curiosos, que so parte integrante das nossas escolas e das nossas famlias.

    Sero temticas de suporte, quer a percepo epistemolgica de Mircea Eliade na concretizao da linguagem mtica do centro, quer a reflexo de Simone Vierne na compreenso do percurso inicitico do heri e a sua demanda.

    Introduo

    Em trabalhos anteriores, falando de literatura infanto-juvenil contempornea, referamo-nos ao

    saber recriar pela experincia da reaproximao (Silva, 2006), onde temas, imagens e smbolos

    confirmavam o conhecimento da ancestralidade mtica e o domnio dos clssicos da literatura

    (2006) daqueles que sabem dar lugar ao sonho e ao imaginrio. Hoje, porm, afirmamos, convictos,

    tratar-se no j de uma recatada reaproximao dos autores que fizeram renascer um universo

    cultural esquecido por muitos anos em obras de qualidade literria, mas de uma inegvel reabilitao

    do imaginrio mtico e simblico. Numa mo sonhos e na outra um convite para a aventura da leitura

    pluri-isotpica, muitos tm sido os autores que, numa ntida inteno de cutucar fantasia e realidade,

    criam uma realidade possvel e de identificao com o leitor.

    Ora, se falar de literatura para a infncia sempre significou valorizar contos e mitos, pois o conto

    maravilhoso para crianas , na sua gnese, um relato mtico Vladimir Propp (1992, 144-207), parece-

    nos que assistimos hoje a um renascimento evidente da matria mtica e simblica numa literatura

    para crianas e jovens, essencialmente, pr-adolescentes, cuja essncia se d a ler, mais do que

    nunca, pela participao activa e curiosa de um sujeito-leitor investidor que procura a simplicidade do

    belo e do mgico em narrativas que sugerem mais do que dizem e que estimulam mais do que

    impem. So, assim, estas narrativas de reminiscncias, portadoras de uma riqueza lingustica e

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    semntica nica e de um simbolismo marcante, que conquistam aqueles que reconhecem neste

    gnero de narrativas os alicerces de uma cultura a desenvolver, pois ao homem sempre importaram

    questes ligadas s suas origens, das quais surgiram os mais belos relatos mticos ou as mais

    histrias de encantar.

    Tendo em ateno o valor heurstico do texto, na procura da descodificao do sentido e da sua

    plurissignificao, pelo contacto voluntrio com estas novas narrativas, o pr-adolescente vai

    alargando o seu background cultural e enriquecendo as suas competncia enciclopdica e esttica.

    Retomando as palavras de Fernando Fraga de Azevedo, diramos que este sujeito-leitor, claramente

    consciente acerca da () riqueza semitica da lngua, procura exercit[-la] na sua

    omnifuncionalidade, tomando-a como instrumento de criao e de recriao do mundo (2002: 295).

    Assim, na busca sistemtica de outras referncias, este sujeito sensvel e crtico, acede, com

    confiana, descodificao e expanso dos seus horizontes culturais a partir de uma outra forma de

    ler. Estas novas leituras surgem, ento, no complemento de sentidos e significados outrificados

    presentificados na intencionalidade interpretativa do leitor e do prprio texto, o que nos reporta

    conscincia de uma competncia lingustica, intertextual e literria, necessrias compreenso plural

    do texto, tal como tambm o refora Jacqueline Held (1987: 147), pois: la obra de arte es ambigua

    por esencia, susceptible como tal de ser descifrada de muchas maneras. De suerte que una obra

    literaria rica es, en muchos casos, la que podemos reencontrar en diversas etapas de la vida y releer

    de otro modo.

    dessa pluralidade que pretendemos falar no mbito desta comunicao, bem como na

    divulgao de uma leitura das imagens, temas e smbolos nestas obras de anexao e que obrigam

    ao uso de um discurso polissmico atravs de reflexes, dilogos verticais e buscas de sentidos

    intertextuais por parte de todos os que realizam, na aventura do Imaginrio, uma viagem

    enriquecedora e cosmognica.

    A Literatura Infanto-juvenil Contempornea: da seleco anexao de um Imaginrio de sentidos e valores pois, com uma idade compreendida entre os 10-14 anos, que o leitor, vido de outros

    conhecimentos e em harmonia com a leitura a realizar, procura a sabedoria de um imaginrio mtico e

    simblico que ele sabe continuar a encontrar nas obras que fazem apelo a esse outro lado. Criando

    uma distncia, at ento nunca imaginada, das temticas circunscritas numa cyber-cultura repetitiva e

    quantas vezes opressora, o jovem-leitor de hoje tem vindo a marcar encontros mais regulares, quer

    com as fadas, os unicrnios, os centauros, os drages, os elfos, a Fnix, os anes, os animais

    falantes e outras demais personagens mgicas, quer com os mitos e determinados elementos

    caractersticos do tema do heri: a partida, a iniciao, a demanda e o regresso vitorioso que so

    momentos essenciais da aventura do Eu inicitico.

    Ao referirmo-nos a esse jovem-leitor de hoje, no mbito deste trabalho, queremos reportar-nos

    aos vrios leitores contemporneos que se maravilharam e continuam a faz-lo com as aventuras e

    desventuras do pequeno feiticeiro de Hogwarts e que acabaram de acrescentar prateleira das

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    suas preferncias a ltima obra da saga1, bem como outras de igual valor. Pensamos que depois do

    enorme sucesso que tem vindo a ser, Harry Potter se transformou no objecto esttico apetecido e que

    a obra em si (no nos reportamos exclusivamente ao sucesso das vendas e muito menos

    infindvel lista de produtos comercializveis, mas inegvel anexao da saga por crianas e

    jovens). Parece-nos, inclusive, que ficou claro que milhes de crianas e jovens de todo o mundo

    adoptaram os sete livros publicados porque foi com eles que o portal mgico se abriu, facultando-

    lhes o acesso a todas as referncias do para-alm e do contrafactual que fizeram, outrora, parte da

    sua cultura infantil recheada de bruxos maus, fadas madrinhas e fadas de luz, anes, e outros

    tantos seres quando escutavam maravilhados histrias de encantar, no colo do av ou no momento

    do beijo de boa noite (Cf., Silva, 2002: 21-23).

    Muitas so as narrativas de qualidade esttico-literria que apelam participao activa

    interactiva do leitor mais jovem mesmo se estas no fazem parte da apelidada literatura cannica

    infanto-juvenil, e que se situam numa espcie de linha divisria, nas denominadas literaturas de

    margens (de massas ou best-sellers2) mas que os nossos jovens leitores requerem e adoptam como

    suas desde finais dos anos 90, caracterizando-as, em conversas plurais, de espectaculares.

    Enquanto o impulsionador de um gnero j esquecido, Harry Potter chegou at aos mais jovens

    e revalorizou aquilo que se encontrava j a dez palmos, corrompido por uma cultura Action-Man.

    Desde ento, muitas tm sido as obras publicadas sobre este gnero revisitado e adicionadas s

    bibliotecas, revalorizando-se o fantstico na forma de trilogias, sagas ou narrativas singulares3, ou

    obras que, se para os adultos eram j consideradas como narrativas do passado, para os mais jovens

    foram de descoberta e de consequente anexao, como: O Hobbit, de (Tolkien, 1997) ou As Crnicas

    de Nrnia, de Lewis (2003-2004), cujas primeiras edies datam de 1937 e de 1955 respectivamente,

    ou ainda a Trilogia O Senhor dos Anis (Tolkien, 1954-1955), por exemplo.

    Cabe-nos agora reflectir sobre a importncia destas narrativas que ainda no fazem parte da

    apelidada literatura cannica infanto-juvenil e que se situam numa espcie de linha divisria, nas

    denominadas literaturas de margens (de massas ou best-sellers), mas que os nossos jovens leitores

    requerem e anexam s suas leituras voluntariamente obrigatrias. Estas e ainda muitas outras, que

    emergem pelo mundo fora, revalorizam uma hermenutica do Imaginrio, onde so recuperados

    imagens arquetpicas e arqutipos essenciais, o que as torna, a nosso ver, em verdadeiros

    transmissores de mensagens. Pela sua cosmoviso, elas apelam sobretudo participao do sujeito-

    leitor ao qual facultado poder relatar, de uma outra forma, histrias que j foram esquecidas,

    vestindo os textos com roupagens de significaes mtico-simblicas que lhe conferem um estatuto

    verdadeiramente literrio.

    No nosso propsito analisar aqui a problemtica da existncia ou inexistncia de uma literatura

    infanto-juvenil enquanto literatura tout court, nem to pouco tentar resolver questes antigas relativas

    noo cannica de livros infantis e juvenis. Julgamos, contudo, ser necessrio tentar compreender o

    fenmeno da anexao relativamente a estas obras to procuradas e lidas4, baseando as nossas

    concluses em valiosos contributos da teoria e crtica literrias.

    No que diz respeito literatura infantil, Amrico Lindeza Diogo refere a necessidade de nos

    reportarmos a uma literatura adquirida ou anexada5 (Diogo, 1994: 8-9) ou ainda a um fenmeno

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    de anexao tal como a denomina Maria Laura Bettencourt Pires, em Histria da Literatura Infantil

    Portuguesa (1981: 63) pois s assim poderemos falar de literatura infantil. A propsito do nosso

    objecto de estudo que essencialmente a literatura fantstica pensada para os mais jovens,

    retomaremos as palavras de Lindeza Diogo para justificar a noo do literrio para a literatura

    mtico-simblica de grande tiragem ou bestseleriana.

    Ora, segundo Lindeza Diogo (com quem partilhamos da mesma opinio), no importa falarmos

    de literatura infantil ou juvenil se no considerarmos a seleco e posterior adopo (anexao) do livro pela criana ou pelo jovem. Se no tivermos em conta o facto deste leitor poder decid[ir]

    escolher (Diogo, 1994: 10), ou seja, poder ultrapassar o seu estado de impotncia relativamente

    legitimao crtica e produo de tais literaturas (criadas e seleccionadas para ele). Sabemos que

    muitas vezes, quando persuadida ilegitimamente ou quase coagida, a criana e mais ainda o pr-

    adolescente ou adolescente opta pela postura mais conveniente, o que nos obrigar a falar de uma

    literatura feita para crianas e jovens de carcter obrigatrio, onde a sua vontade em expressar-se

    apenas ganha voz pela recusa, pelo fingimento ou pelo indiferentismo

    Parece-nos que para se falar deste gnero da literatura infanto-juvenil contempornea, cujos

    temas so ricos em matria mtica, no deveremos apenas atentar no facto de este ou aquele ser

    considerado um livro de qualidade literria para o jovem leitor, mas, sobretudo, compreendermos a

    capacidade de anexao prpria deste leitor, que procura no livro a fruio6 e a identificao,

    mesmo se inconsciente, de valores essenciais.

    Ora, se esta literatura pode, para alm do seu estatuto de objecto esttico, logo de fruio,

    afigurar-se como objecto de partilha e de transmisso de valores ou sentidos a seres em crescimento

    (e por isso mesmo mais abertos recepo desses mesmos valores), devemos ter em conta o seu

    estatuto enquanto veculo de transmisso de mensagens e formao na personalidade do seu leitor.

    Wolfang Iser considera igualmente essa interelao entre o objecto esttico e o seu leitor,

    apontando como primordial a prise de conscience [qui] a lieu par la suite de linteraction entre le texte

    et le lecteur (1997: 94) e a partir da qual deve realizar-se la participation la solution, et non pas la

    simple contemplation de celle-ci (1997: 91). Texto e leitor devem, assim, implicar-se numa dialctica

    interpretativa, tendo por objectivo um contnuo reajustamento para que a soluo dos desafios

    interpretativos seja alcanada pelo leitor e, simultaneamente, questionada e/ou reajustada mediante a

    sua compreenso7.

    Ao considerar-se essa intra-actividade percebemos a relevncia da solidariedade semitica

    realizada entre o leitor e o texto, o que permite falar-se da criao de novas histrias e aventuras para

    o leitor (descodificador), pois este no se constrange em reiterar ou acrescentar significados ao que

    aparentemente o texto diz, a partir do exerccio da adio ou da subtraco Assim, parece-nos justo

    considerar como vlida a denominao de literatura literria (Diogo, 1994: 7) para obras que,

    como Harry Potter, para alm de proporcionar inegveis momentos de fruio para os seus milhes

    de leitores, possibilitam a construo de outras realidades preparando-os para serem melhores leitores,

    isto , leitores mais reflexivos e mais exigentes.

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    Os temas e as imagens da Literatura Infanto-juvenil Contempornea: a cooperao interpretativa do leitor Se reconhecermos que a literatura procura desde sempre, enquanto parte estruturante e

    fundadora da noo de humanizao, um discurso epistmico intertextual com outras reas cientficas

    para poder responder s vrias solicitaes do homem, a intertextualidade constitui, cada vez mais,

    um espao singular onde se interconectam diferentes objectos de estudo com metodologias prprias

    e se mesclam vrias culturas e saberes.

    Assim, tendo em a inteno a mundividncia cultural do escritor e as influncias literrias (ou

    outras) que antecederam o momento da sua criao; as competncias lingustica e enciclopdica do

    sujeitor-leitor, que reconhece no texto outras leituras; bem como a efectivao do imaginrio como um

    conhecimento plural, capaz de facultar a compreenso de uma polifonia entre as leituras in absentia

    (relativamente a outros textos) revalorizadas in presentia (em contacto com o prprio texto), devemos

    compreender o texto infanto-juvenil contemporneo mtico-simblico como o veculo da abertura ao

    Outro e a outras realidades. Tal permite-nos asserir que o imaginrio, entendido como um domnio do

    cientfico literrio e sem limitaes temporais ou espaciais8 deve ser sobretudo compreendido na

    forma criadora, contnua e gnosiolgica do mito.

    Atravs da reabilitao de mitos e seus mitemas estruturantes9, simbolos e temas da literatura,

    bem como pela subjectividade de um leitor reflexivo, d-se o advento de um Imaginrio, sinnimo de

    um tempo revalorizado e de uma imaginao criadora. Northrop Frye (1994: 6) diz: ce quun mythe

    veut dire est ce quon lui fait dire au cours des sicles, o que nos permite compreender estas

    narrativas contemporneas, de qualidade literria, como receptculos vivos de contnuas permutas de

    sentidos e valores.10 Referindo uma sbia expresso de Eliade (1999a: 12) On est en train de

    comprendre aujourdhui une chose que le XIX sicle ne pouvait mme pas pressentir: que le symbole,

    le mythe, limage appartiennent la substance de la vie spirituelle, quon peut les camoufler, les

    mutiler, les dgrader, mais quon ne les extirpera jamais. Confirma-se, mais uma vez, que grande

    parte da literatura contempornea de massas de mbito mais juvenil, adoptando uma postura de

    revalidao dos modelos mticos presentificados pela interveno de um imaginrio permevel ao

    emprico real, tem vindo a ganhar terreno no se tratando (a nosso ver) de uma mera moda, mas de

    uma acepo do mundo na sua universalidade emprica e simblica.

    Para Eliade (1999: 13-14): les images, les symboles, les mythes () rpondent une ncessit et

    remplissent une fonction: mettre nu les plus secrtes modalits de lhomme o que prova que o sujeito-

    leitor, que anexa sua biblioteca particular estas literaturas contemporneas de reabitao dos temas

    imagtico-ancestrais, na revalorizao dos modelos mtico-simblicos, sabe que [a]voir de

    limagination, cest jouir dune richesse intrieure, dun flux ininterrompu et spontan dimages. () Avoir

    de limagination cest voir le monde dans sa totalit (1999: 23-24).

    Devemos compreender que so obras como estas que, sem se submeterem a presses culturais

    e educacionais, vo de encontro s necessidades do pr-adolescentes e adolescente (leitor assumido

    da descoberta). Compreendemos ainda que , de facto, esta tomada de conscincia que importa

    veicular. Estas literaturas, onde emerge a riqueza semntica de inmeros mitos que confirmam os

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    temas da aventura e da viagem (real ou simblica) pela imagem da empresa pessoal ou colectiva do

    heri, remetem para a pedagogia do xito, da reposio da ordem. A demanda de um happy-end no

    compromisso de uma misso a cumprir so as noes que advm da aventura dos heris.

    Ao dar voz ao seu Imaginrio, motivado pelo jogo da participao, o leitor, num envolvimento

    cada vez mais pessoal com o texto literrio, vai enriquecendo o seu universo intelectual, alcanando o

    resultado da satisfao sempre que obtm respostas correctas e/ou concretiza identificaes

    (prprias do seu nvel etrio) com o heri da histria.

    Cumprindo com um papel sociocultural importante, estas narrativas permitem ao pr-adolescente

    desenvolver a sua sensibilidade e explorar temticas contemporneas vigentes, como por exemplo a

    da: pluralidade racial; da dimenso humanitria e social; do meio ambiente, cuja dimenso

    essencialmente social e ecolgica, abarca a imagem arquetpica da Terra-Mater enquanto espao de

    organizao e de harmonia para a Humanidade; do maniquesmo, que aborda vrias dimenses. Tais

    temticas remetem para as noes da responsabilidade, da solidariedade e do humanitarismo, da

    consciencializao, da partilha e do dever, e, por conseguinte, reflexo e cooperao. Levando ao

    dilogo, este ideal pedaggico pretende uma tomada de conscincia colectiva que ajude o pr-

    adolescente a ultrapassar as suas dificuldades, a vencer os seus medos e a lutar contra os seus

    fantasmas, encaminhando-o para uma vida adulta.

    Concluso Certo que esta literatura infanto-juvenil do sculo XXI e finais do sculo XX tem vindo a

    manifestar-se de forma significativa, numa readopo do mistrio e da linguagem mgica da

    ancestralidade mtica e parece estar cada vez mais a ganhar expresso sobre o nosso mundo. Se

    queremos, pues, colaborar en las lecturas de nuestros jvenes sin caer en actos beligerantes contra

    lo Imaginario, que tambin es literario, entonces debemos trnalo universal.

    Se queremos, pois, participar das leitura e das vidas dos nossos jovens, sem cairmos em actos

    beligerantes contra o Imaginrio que sobretudo literrio, ento devemos aceit-lo nas nossas

    escolas, fazendo da sua hermenutica um instrumento de consolidao das demais aprendizagens da

    criana e do jovem. No nos deixemos cair no erro de acreditar que estas narrativas impedem o raciocnio

    lgico e que o leitor infanto-juvenil no sabe distinguir a fico que lhe narrada e a sua prpria realidade

    emprica. O leitor obreiro de imagens teve, como j o constatamos anteriormente, um contacto com

    outras leituras que lhe permite aceder noo do pacto ficcional com o autor e, por isso mesmo, est

    preparado para interagir de forma disciplinada e enriquecedora com a literatura de revalorizao

    mtico-simblica, construindo, a seu modo, mundos outros de significados. Caso ser para dizer: No

    fossemos ns seres simblicos!

    Notas finais

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    1 Quando nos referimos s literaturas infanto-juvenis de massas queremos destacar aquelas que retratam uma realidade manifestamente ligada aos valores da ancestralidade mtico-simblicos e importncia da iniciao enquanto processo de crescimento psicossocial na reiterao de valores ancestrais. 2 Parece-nos correcta a definio de saga na medida em que, em Harry Potter existe um processo de crescimento psicossociolgico, proveniente de todo um investimento pessoal e colectivo das personagens para a reposio da ordem, percebendo-se, em vrios momentos, a noo do factum, do perigo, quer por intuies, quer por pressgios e at sonhos. 3 Enunciamos algumas das de maior tiragem ou os considerados best-sellers, como: as trilogias: As memrias da guia e do Jaguar A Cidade dos Deuses Selvagens, livro I, O Reino do Drago de Ouro, livro II, O Bosque dos Pigmeus, livro III, de Isabel Allende (2002-2004); Memorias de Idhn, de Laura Gallego (2004-2005); as sagas: Hijos del Dragon, de Luca G. Lavado (2005-2006); A demanda dEwilan, de Pierre Bottero; Arthur et les Minimoys, de Luc Besson (2003-2005); La espada de fuego I, La espada de fuego II El espritu del mago, de Javier Negrete (2005); O Ceptro de Aerzis, de Ins Botelho (2003-2005); Corao de Tinta e Sangue de Tinta, de Cornlia Funke (2005-2006); Luz e Escurido Crepsculo, livro I; Lua Nova; livro II; Eclipse, livro III, de Stephenie Meyer (2006 -2007);Fronteiras do Universo A Bssola Dourada, livro I, de Philip Pulman (2007); Terras de Corza O Dcimo Terceiro Poder , livro I, de MadalenaSantos (2006); ou as obras: A Profecia das Pedras, de Flvia Bujor (2005); Grimpow, de Rafael Abalos (2005); a Trilogia da Herana, Eragon, livro I; Eldest, livro II, de Christopher Paolini (2004-2005);O Voo Drago, de Anne MacCaffrey (2006); O Porto do Corvo, de Anthony Horowitz (2006), e o ltimo Grimm, de lvaro Magalhes. 4 Apenas consideramos as de qualidade literria, distinguindo-as das consideradas um produto comercial ou ainda um romancear de puros actos de consumo (Diogo: 1994:112; 2004: 115). 5 Tanto com Juan Cervera (1991), como Bravo-Villassante (1989) reportam-se literatura gaada. Pelas razes apontadas por Lindeza Diogo (1994: 8), preferimos a noo anexada.

    6 Entenda-se que a responsabilizao do adulto, na orientao para a seleco do texto literrio, no est posta de parte, muito pelo contrrio, pois este, enquanto mediador entre o objecto esttico e o leitor, deve oferecer outras hipteses de leitura, caso seja necessrio, pois, e como o afirma Cervera (1991: 12) no toda la publicacin para nios es literatura. Pensemos, por exemplo, nos livros que no originam momentos de cooperao e de reflexo crtica por parte do leitor enquanto sujeito em aprendizagem (Cf. Mendoza Fillola, 1999:15) ou que no proporcionam leituras frutuosas e profcuas em significados, anulando-se o valor esttico do texto. 7 Tratando-se de uma comunidade leitora cuja idade permite o contacto com cdigos lingusticos e mecanismos tcnico-formais de uma densidade semitica cada vez mais elaborada, os leitores pr-adolescentes no se cobem em exigir respostas e/ou procurarem, de forma consciente, identificaes com as personagens das histrias narradas. Os sentimentos que nutrem pelas personagens so, geralmente, muito fortes, o que os leva a sofrer ou reagir entusiasticamente com as suas vitrias, tomando como suas as demandas dos heris. 8 No esqueamos que o imaginrio participa, desde sempre, das caractersticas essenciais da humanidade enquanto que dimenso simblica pela qual ela se exprime. 9 Para Gilbert Durand os mitemas so os traos distintivos que caracterizam os mitos. Eles so La plus petite unit du discours mythiquement significative (Durand, 1979). 10 A partir desta breve aluso ao mito, enquanto enunciado de sentidos, compreendemos que, para alm das perspectivas estilstico-formal e narratolgica dos textos literrios, cumpre confirmar o valor do mtico. Caso estes textos da literatura juvenil contempornea fossem lidos, tendo-se apenas em conta os aspectos lingusticos do texto, a sua efectiva poeticidade seria banida e a sua verdadeira compreenso e estado de fruio seriamente comprometidos, portanto, a literatura infanto-juvenil contempornea de reabilitao mtico-simblica enquanto prenunciadora de um imaginrio latente obriga leitura (compreenso) das imagens da decorrente.

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