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113 Sacramentos Globalização e desafios à Comunhão Anglicana na América Latina e no Caribe Visão, expressão teológica e ação do Anglicanismo na América Afrolatíndia frente aos desafios da atual fase do imperialismo: solidariedade e compreensividade Sebastião A. Gameleira Soares* * Bispo da Diocese Anglicana do Recife. Essa conferência foi pronunciada no Congresso do Panamá, reunido de 05 a 10 de Outubro de 2005, sob o tema “A Globalização e suas Implicações em América Latina: Um Desafio para a Igreja Episcopal Anglicana”. Irmãos e irmãs, na fé em Cristo e em nossa comunhão fraterna Explicação Prévia Tomei a liberdade de formular alternativa ao título proposto para esta conferência. É que, por tudo o que tenho sentido, pensado e lido a respeito do tema, estou convencido de que a chamada “globalização” não passa de um mito, promovido mediante mecanis- mos e meios de comunicação marcadamente ideológicos, para con- vencer os povos de sua verdade. Gostaria de começar pondo em dis- cussão dois termos que seguimos usando e, na verdade, me parecem muito problemáticos: “globalização” e “América Latina”. Globalização seria o pretenso processo de unificação da socie- dade mundial, mediante a autonomia e a abertura do mercado em todas as direções, com a conseqüência de intensa intercomunicação cultural, de nações, associações e pessoas. Uma das condições precípuas

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Globalização e desafios àComunhão Anglicana na América

Latina e no CaribeVisão, expressão teológica e ação do Anglicanismo naAmérica Afrolatíndia frente aos desafios da atual fasedo imperialismo: solidariedade e compreensividade

Sebastião A. Gameleira Soares*

* Bispo da Diocese Anglicana do Recife.Essa conferência foi pronunciada no Congresso do Panamá, reunido de 05 a 10 de Outubro

de 2005, sob o tema “A Globalização e suas Implicações em América Latina: Um Desafiopara a Igreja Episcopal Anglicana”.

Irmãos e irmãs, na fé em Cristo e em nossa comunhão fraterna

Explicação Prévia

Tomei a liberdade de formular alternativa ao título propostopara esta conferência. É que, por tudo o que tenho sentido, pensadoe lido a respeito do tema, estou convencido de que a chamada“globalização” não passa de um mito, promovido mediante mecanis-mos e meios de comunicação marcadamente ideológicos, para con-vencer os povos de sua verdade. Gostaria de começar pondo em dis-cussão dois termos que seguimos usando e, na verdade, me parecemmuito problemáticos: “globalização” e “América Latina”.

Globalização seria o pretenso processo de unificação da socie-dade mundial, mediante a autonomia e a abertura do mercado emtodas as direções, com a conseqüência de intensa intercomunicaçãocultural, de nações, associações e pessoas. Uma das condições precípuas

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e desse processo seria o aperfeiçoamento dos meios de comunicação, oque possibilita uma “revolução” no setor da informação, a qual passaa ter lugar central no campo da economia. Estaríamos, assim, numafase qualitativamente nova, até definitiva, da história humana, daíalguns chegarem a falar de “fim da história”.

Ora, essa imagem, construída nos centros financeiros do po-der mundial e divulgada por discursos políticos oficiais e pelas agên-cias de propaganda, particularmente através dos canais de televisão eda Internet, não corresponde à verdade da realidade. É somente ummito e, como tal, uma ideologia, no sentido que Marx dava a essetermo. Ou seja, um discurso ou imagem forjada para ocultar e mas-carar o que acontece de fato e, por conseguinte, legitimar aos olhosdos povos os sistemas de poder vigentes. Continuar a usar o vocabu-lário da “globalização” é, na verdade, sem nos apercebermos, aceitara proposta simbólica dos poderosos do mundo, de estender um véupor sobre os mecanismos de opressão, tão antigos como os váriosimpérios, agentes diabólicos de desumanização, como se pode vernas sugestivas descrições dos textos apocalípticos da Bíblia.

A tarefa da Igreja cristã é anunciar “a Palavra da Cruz”, comonos diz o Apóstolo São Paulo, para, desse modo, “revelar”, arrancaros véus sob os quais se deseja ocultar os mecanismos de crucificaçãoque se impõem sobre os povos. Na verdade, o que temos não é“globalização”, pois essa supõe transversalidade, reciprocidade, rela-ção “ecumênica” (a terra como casa comum, onde todos os povostêm lugar para permanecer) no uso e conservação dos recursos doplaneta em benefício da vida. Para que se pudesse falar de “globalizar”o mundo, deveria tratar-se de um processo pelo qual a ampla diver-sidade dos povos estivesse convergindo no sentido, não da uniformi-dade imposta, mas de progressiva “comunicação” recíproca, constru-tiva da unidade de um sistema mundial - econômico, político-mili-tar e cultural - o que para muitos era a utopia das Nações Unidas. Oque temos, na verdade, é o que já temos tido - os franceses diriam“déjà vu” - desde o aparecimento dos sistemas imperiais. Vivemos,de fato, apenas em nova e sofisticada fase do Imperialismo. O quemuda são só os meios de opressão e o nível de desenvolvimento des-ses, como instrumentos de imposição de hegemonia. E quando ahegemonia ideológica já não é o bastante, apela-se, como sempre setem feito, para a linguagem das armas, aparentemente eficiente,

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tosporém nem sempre “eficaz”. Vietnã, Palestina, Colômbia e Iraque

são demonstrações típicas dessa distinção.

Ao olharmos o panorama internacional, não podemos deixarde pensar na desoladora sucessão dos impérios: Hititas, Egito, Assíria,Babilônia, Pérsia, Helenismo, Pax Romana, Sacro Império RomanoGermânico, Reinos Ibéricos que abrem a era colonial moderna, Im-pério Britânico, Pax Americana... Onde estaria a novidade? No atualestágio do imperialismo, a novidade é só “quantitativa”, ou seja, oalto nível tecnológico da produção e da distribuição, que possibilitaintensificar e acelerar os processos e os instrumentos pelos quais ope-ram os sistemas de poder, agora em âmbito realmente planetário.Aceleram-se os processos de comunicação e de informação, que sem-pre foram essenciais para os impérios, como se viu no avançado siste-ma viário patrocinado por Roma em seu tempo de glória; expande-se o capitalismo em âmbito mundial, enquanto sistema de produçãomaterial e de valores culturais; impõe-se, pela ideologia, por meca-nismos políticos ou pelas armas, a vontade dos centros de poder.Onde estaria a novidade “qualitativa”?

William Rivers Pitt, intelectual estadunidense, caracteriza bema questão: “A nação americana tem conhecido, desde suas origens,três estágios de evolução imperial. Cada fase tem alimentado a fasesucessiva e todas três nasceram e cresceram com a guerra”. E prosse-gue indicando cada uma dessas fases. A primeira já começa no fimda guerra civil, com a guerra contra o México, tendo início então o“complexo militar-industrial”. A segunda se dá a partir da entradana Primeira Guerra Mundial (02 de abril de 1917) e chega ao apo-geu com a vitória na Segunda Guerra e a chamada “Guerra Fria”,“uma luta mortal entre dois impérios, combatida em toda a área doplaneta” e que se estendia desde Berlin até Coréia, Vietnam, Laos,Camboja, Angola, o Sinai e além. “Os comerciantes de armas, russose americanos, invadiram o mundo com milhões de armas convenci-onais fornecidas aos aliados que combatiam por eles”. Eles mesmosbuscavam reservar-se o direito de construir armas nucleares. A tran-sição da segunda para a terceira fase se deu lentamente. Passos signi-ficativos foram a derrota no Vietnam, as crises em redor do petróleoe, simbolicamente, a vitória esportiva contra a Rússia em 02 de feve-reiro de 1980. Tem sido importantíssimo o novo “movimento con-servador” no qual se combinam estreitamente o nacionalismo e o

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e cristianismo evangélico fundamentalista. Houve a queda do blocosocialista e o governo Reagan com o enriquecimento das corporaçõese a destruição da rede de assistência social construída por Roosevelt.Uma das conseqüências foi o fortalecimento da combinação “indus-trial-mililtar-petrolífera” que “se apoderou de 99% dos meios decomunicação social, os quais asseguram a publicidade contínua doimpério”. Veio finalmente o 11 de Setembro “para consolidar suasupremacia” e, praticamente, neutralizar qualquer crítica. Agora “éamplamente difundida a idéia de que a América se acha comprome-tida numa guerra santa”1. Há anos atrás foram divulgados os resul-tados de estudos encomendados pelo então Presidente LyndonJohnson, os quais diziam que a paz seria um verdadeiro desastre paraa economia norte-americana. São conhecidos os trabalhos de MichaelMoore, tanto seus escritos (Estúpidos Homens Brancos, p. ex.) comotrabalhos cinematográficos (muita gente se lembra de Fahrenheit),de denúncia do imperialismo americano, assim como de outros res-peitáveis intelectuais estadunidenses, como, por exemplo, Chomsky,presença cativa nas assembléias do Fórum Social Mundial.

E por que “América Afrolatíndia” em vez de “América Latina eCaribe”?

É que “América Latina” é o nome simbólico de nossa perenealienação. “América” só lembra e homenageia Américo Vespúcio, per-sonagem obscuro que nosso povo nem conhece. “Latina” só ressalta ainvasão, a subjugação e a dominação colonial a que foram submeti-dos os povos aborígenes pelas potências coloniais ibéricas. Que tra-gédia, nosso nome é a síntese simbólica de nossa identidade de po-vos oprimidos, até hoje! Nosso nome é o resumo de uma ideologiaque se nos tem imposto ao longo de cinco séculos, nosso continentesempre escancarado para fora e não voltado para si mesmo, como otem denunciado magistralmente o uruguaio Eduardo Galeano, quecunhou a sugestiva imagem de um continente de “veias abertas” asangrar. Dificilmente se poderia voltar a “Aby Ayala” dos povos abo-rígenes, e “Ameríndia” só ressaltaria nossa identidade originária. Nãoparece, por ora, realista pensar em apagar do mapa o nome “Améri-ca”. Se não podemos ainda cancelar o “substantivo”, que, ao menos,

1. cf. “A Terceira Fase do Imperialismo Americano”, em NOTIZIARIO DELLA RETE RADIÉ RESCH, 69, ano XXIII,setembro 2005, pg 33-36.

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toslhe agreguemos adjetivo que diga algo de nós. Do Caribe até a Amé-

rica do Sul nossos povos estão indelevelmente marcados pela África;os grupos aborígenes foram chamados de “índios” e esse termo jánão parece facilmente substituível; de qualquer modo, o elementolatino faz parte definitivamente de nossa formação racial e cultural.Como quer que seja, é preciso inventar um nome que fale de nós, dacomplexidade de nossa formação histórica e que não seja apenas osímbolo de nossa alienação, nós, estranhos a nós mesmos. Palavrasnão são neutras nem inocentes, são elas também personagens naarena dos combates históricos. O “verbo” é fruto de processo de ge-ração: “conceptum”, expressão especular e imagem de quem o gera (cf.Jo 1,1). “América Afrolatíndia” é uma proposta. Acentuam-se aí oselementos “afro” e “índio”, o elemento “latino”, naturalmente per-manece, mas não recebe acento. Além disso, um nome único, capazde designar, em conjunto, o Caribe, a América Central e a do Sul,tem a vantagem de lembrar a unidade fundamental da “Pátria Gran-de”.

Graves Problemas

Um gravíssimo problema, que é como o pano de fundo detudo o mais, é a mundialização do domínio “imperial” dos EstadosUnidos da América do Norte, acarretando com isso a tentativa deuniversalizar seus interesses econômico-financeiros, seu modelo devida (cultura) e seu sistema político, e isso respaldado pelo podereconômico, o alto nível tecnológico e o potente dispositivo militar.Não se pode esquecer que boa parte das empresas multinacionaistêm aí sua origem e sede, confundindo-se, assim, seus interesses comos do Estado norte-americano. Dessa “vocação” (“destino manifes-to”) dos Estados Unidos da América decorre uma espécie de dogmanem sempre proclamado: o direito a quebrar unilateralmente fron-teiras -- econômicas, políticas e culturais -- mediante mecanismosde imposição, se necessário militar, como se tem visto nas Américas,no Afeganistão, no Iraque. Fala-se de “globalização” como aberturade fronteiras, o conhecido projeto da ALCA tem sido uma tentativanessa direção. Mas, além da capacidade do mais forte de impor seusinteresses, advoga-se apenas a livre circulação do capital, enquantose levantam cada vez mais sólidas barreiras à livre circulação das pes-soas, com rígidos controles e até perseguição à migração, o que tem

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e incentivado intensamente a migração clandestina, fazendo crescer orisco pessoal de quem se dispõe a enfrentar tais ameaças (inseguran-ça permanente, clandestinidade, prisão, repatriação, humilhação eaté morte).

O progresso tecnológico é assumido como algo sem limites ecomo valor e princípio auto-evidentes, perdendo, por isso mesmo,seu caráter de meio e funcionando, na prática, como fim em si mes-mo. Não se pergunta pelos fins e pelas necessidades humanas a se-rem satisfeitas, nem pelos recursos disponíveis para isso e seus limi-tes. Faz-se o processo inverso, criam-se necessidades para que as pes-soas se sintam impelidas a consumir o que se produz. Em grandeparte, é essa justamente a função da informação, da comunicação edo marketing, criar e incutir necessidades, com a ajuda de procedi-mentos cientificamente testados, secundados por especialistas nasvárias áreas de Ciências Humanas, a começar da Psicologia. Alémdisso, o desenvolvimento, assim compreendido, é tão devastador daNatureza e tem conseqüências tão graves sobre o meio-ambiente,que põe em risco a própria sustentabilidade e preservação da vida noplaneta. É emblemática a recusa do governo dos Estados Unidos aassinar o “Protocolo de Kyoto” para reduzir a emissão de gasespoluentes.

A automação na agricultura e em todo o setor primário, naindústria, no comércio e nos serviços, reduz quantitativamente e elitizaqualitativamente a necessidade de mão-de-obra, transformando, as-sim, o desemprego numa condição permanente e estrutural do mo-delo de desenvolvimento e de riqueza. Disso resulta um imenso exér-cito de mão-de-obra de reserva, o que possibilita a chamada produ-ção parcializada e dispersa, os componentes de uma mesma máqui-na sendo então produzidos em diferentes países, dependendo ape-nas de onde se produz mais barato cada peça. Além disso, o desem-prego faz crescer sempre mais o mercado informal, com suas conse-qüências no que diz respeito a insegurança pessoal e familiar, contra-bando, sonegação fiscal, fuga do sistema de seguridade social, negó-cios clandestinos e marginalidade.

O desemprego estrutural é um dos sintomas mais evidentesda exclusão social. Já não se trata de ser “subdesenvolvido” com aexpectativa de desenvolver-se. Antes se falava de “marginalização”,

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tostendo como referência a imagem de alguém que ainda se achasse “à

margem da estrada”, mas sempre a nutrir expectativa de embarcarem algum veículo de passagem. Não, agora já não se trata de estar àmargem do progresso, com a expectativa de ser integrado ao proces-so em momento posterior. Já não se trata de estar em atraso emrelação ao ritmo dos países “desenvolvidos” (talvez fosse melhor falarde países “sub-desenvolventes”). Antes, trata-se de ser desnecessário,indesejável, excluído, “massa sobrante” em meio aos povos. Não édifícil entender o absurdo que são as metrópoles modernas, o nívelcrescente de violência sobretudo urbana, a superlotação das cadeias,a migração que aumenta sempre mais, o narcotráfico e, no extremo,o terrorismo.

Está mais que evidente que a dívida externa é o moderno me-canismo de exploração colonial. Em primeiro lugar, tendo em contatudo o que se deu durante o domínio colonial sobre a América, aÁfrica e a Ásia, os países pobres já têm pagado de sobra a dívida.Baste pensar na tragédia humana e econômica da África; na humi-lhação a que foram submetidas as antigas civilizações da Ásia; noouro e na prata das Américas, com a destruição de culturas inteiras...Em segundo lugar, os recursos desviados para o pagamento apenasdos interesses da dívida – nem falemos do principal - são os quedeveriam estar sendo investidos em infra-estrutura básica, em saúdepública, em educação, em moradia, em segurança alimentar, em trans-porte, em seguridade social, em segurança pública. Finalmente, ofato de ser impagável torna a dívida um perverso mecanismo perma-nente de carrear recursos para financiar a economia dos países credo-res, tanto por meio de seus próprios Estados, como por meio deempresas “transnacionais”.

Tudo isso e a autonomia do mercado, como base do sistemaeconômico-financeiro, enfraquecem os Estados nacionais, que se tor-nam reféns dos países economicamente mais fortes e, sobretudo, daeconomia norte-americana. Ora, o Estado moderno tem sido umfator moderador e de certo equilíbrio para limitar os interesses dosmais ricos e proteger quem é mais fraco. Em países desenvolvidos foipapel decisivo do Estado garantir o “bem-estar social” através dadistribuição e universalização de benefícios. Nos países pobres é ain-da a garantia de que não prevaleça unicamente o interesse do capital,possibilitando-se emprego, renda, moradia, saúde, educação, lazer,

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e segurança aos setores da sociedade que não têm poder. Em sua alian-ça com o Império, as empresas multinacionais se transformam nosórgãos mais poderosos de governo do mundo. Baste pensar que osmovimentos de uma bolsa de valores podem num dia levar um paísa quebrar e que mudanças no câmbio ou a elevação de taxa de jurosn’alguma praça financeira podem ser profundamente nefastas para aeconomia de muitos países. Em conflito com Estados que queiramdefender os interesses de seus povos, qualquer grande empresa pode,de repente, apelar para a chamada “operação-saída” como instru-mento de pressão, e resistir pode ser catastrófico. Isso mostra bematé que ponto os Estados estão reféns do capital internacional. O“dogma de fé” de que os interesses egoístas de cada qual necessaria-mente confluirão no sentido do bem (salvação) coletivo, por obra“misteriosa” da “mão invisível”, como uma espécie de imponderável“graça”, não se tem comprovado na prática, muito ao contrário. Naverdade, o mercado não tem sido tão autônomo como se proclama,basta considerar os famosos subsídios, as barreiras fiscais e de fron-teiras e os controles e privilégios governamentais, a ponto de empre-sas estatais nossas terem sido “privatizadas” a preços abaixo das taxasde mercado para cair nas mãos de estatais de países ricos... E asconseqüências sociais dessa famosa autonomia do mercado são maisque evidentes sobretudo nas periferias de nossos países.

É comum dizer-se que o chamado Socialismo Real fracassou eque isso mostra o sucesso do Capitalismo. Ora, que estamos a ver? Asituação social do mundo manifesta bem o fracasso da economiacapitalista no que diz respeito ao atendimento às necessidades hu-manas básicas. Além disso, o sofisticado progresso a que assistimosestá reservado a poucos, e só se mantém a preço da exclusão social deinumeráveis multidões e só consegue preservar-se mediante o “sa-que” dos recursos naturais e a guerra. Ao mesmo tempo em que oImpério se expande, radicalizam-se, aprofundam-se os problemas eadquirem dimensão planetária. É o que já denunciava, p. ex., o sau-doso papa Paulo VI em seus importantes documentos sociais.

Um exemplo concreto e emblemático é o automóvel, um dos“ícones” mais típicos da chamada civilização do “progresso”. Toda apropaganda propõe como ideal ter um automóvel particular, se pos-sível cada pessoa. Ora, isso mostra bem o impasse em que nos acha-mos. Primeiro, porque esse ideal é inatingível para grandíssima par-

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toste da população. Depois, porque se o fosse seria ainda pior. Imagine-

mos o nível de demanda de petróleo e de poluição do ar, os proble-mas de tráfego, incluindo os engarrafamentos e os acidentesmutiladores e fatais... O automóvel é bem “imagem” do beco-sem-saída em que está encerrado o sistema industrial contemporâneo.Em termos teológicos, um dos característicos ídolos de nosso tem-po, e os ídolos sempre estão a exigir sacrifícios sangrentos... (cf. ameditação sobre a idolatria no Livro da Sabedoria, a partir do capí-tulo 13).

O que o mundo inteiro pôde ver recentemente, do que acon-teceu em Nova Orleans, pode ser tomado como retrato típico do“sucesso” do sistema capitalista. O país mais rico, a maior potênciaeconômica e militar da história incapaz de responder a um fenôme-no devastador da Natureza, tão vulnerável como qualquer país po-bre! O tão celebrado “desenvolvimento” a mostrar suas entranhasocultas! Elevado saldo de morte, pessoas caminhando vagarosamen-te, atoladas em águas contaminadas por esgotos e cadáveresinsepultos... Nas telas de televisão a desfilarem pessoas idosas, gentebranca pobre e particularmente famílias negras a carregarem suascrianças, no rosto estampadas a desolação e a incerteza do futuro.Bem o retrato do “sucesso”!

A contradição fundamental de nossa civilização se revela clara-mente quando observamos com atenção o radical contraste entre oalto nível de sofisticação dos meios e dos resultados do sistema deprodução e a acentuada e progressiva desumanização das relaçõesentre as pessoas e as nações – uma civilização onde se dá sempremenos lugar aos pobres, excluem-se as crianças e as pessoas idosas,enfermas e portadoras de deficiência, já não se tem tempo de dis-pensar-lhes cuidado.

Perspectivas?

Os analistas da situação nos têm indicado algumas pistas atra-vés das quais se pode entrever possibilidades de crítica e de supera-ção futura do sistema.

O eixo parece deslocar-se do produtor para o consumidor e,daí, de agora por diante, a decisiva importância de uma tomada deconsciência coletiva dos direitos do consumidor, com o fortaleci-

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e mento de movimentos organizados de pressão sobre as empresas pro-dutoras e distribuidoras. Praticamente a sociedade parece impoten-te para impor sua vontade ao processo de produção. Mas seu poderpode impor-se quando se trata do consumo, pois pode-se comprarou não comprar. Para chegarmos a esse ponto, requer-se elevado ní-vel de crescimento de consciência, de organização e de capacidadede mobilização coletiva.

O agravamento da problemática ambiental poderá levar as po-pulações a assumir com mais determinação a defesa da sobrevivênciahumana e a defesa da vida como direito fundamental. Se isso se der,será, sem dúvida, um passo a mais no processo de crescimento daconsciência ética dos povos, que deverá traduzir-se em organização emobilização política.

Embora, do ponto de vista econômico e financeiro, os indica-dores apontem para uma situação realmente precária da maioria dapopulação mundial, na verdade, se vê melhoria nos indicadores debem-estar social. Cresce, por exemplo, o nível de escolarização e desaúde, e até de alimentação. Analistas se perguntam o seguinte: commais instrução e mais acesso à informação, com mais saúde e maisbem alimentada, não poderá chegar o momento de a população de-cidir exigir mais? Não estamos caminhando para um promissor mo-mento de crise?

Percebe-se cada vez mais que o enfraquecimento do Estado sófavorece os interesses das poderosas empresas transnacionais e de seuspaíses de origem ou sedes de suas matrizes. Como também fica sem-pre mais clara a falácia da “autonomia do mercado”, base “dogmática”do liberalismo. Ora, a conseqüência óbvia é que o fortalecimento doEstado nacional é condição imprescindível para a defesa dos interes-ses da população, sobretudo daquela que se sente sempre mais ex-cluída dos benefícios do chamado desenvolvimento. Mas para o Es-tado não resta saída a não ser sua íntima associação com as organiza-ções da sociedade civil, o que significaria, na verdade, o fortaleci-mento da base social do Estado, passo importantíssimo no sentidoda democratização das estruturas políticas e do próprio aparelho es-tatal. A própria situação atual do Brasil está a indicá-lo claramente.O fortalecimento do Estado não se pode dar por simples alianças nonível de governo e do parlamento, exigindo, como se tem visto, o

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tosalto preço de acordos espúrios e mecanismos de corrupção. O cami-

nho tem de ser apoiar-se o Estado em suas bases populares, o quequer dizer na sociedade civil organizada.

Além disso, é decisiva a articulação dos Estados nacionais comoutros na formação de blocos regionais, como o que se tem visto noprocesso, parcialmente bem sucedido, da União Européia. Em nossaAmérica estamos ainda engatinhando, desde os sonhos de Bolívar,em luta com particularismos caudilhescos, interesses de elites ou degrupos restritos, às vezes até quase só familiares, associados ao capitalinternacional, nacionalismos estreitos, rivalidades regionais que sónos enfraquecem enquanto povos com um mesmo destino. Sem essaarticulação transnacional, cada nação isoladamente terá muito pou-cas chances de opor resistência ao poder do capital, esse, sim, bemmais “inteligente” e, por isso, muito bem articulado transnacio-nalmente. CEPAL, ALALC, Pacto Andino, Mercosul, ALBA... quandoiremos realmente “decolar”, com a clara consciência de que nossospovos exigem e esperam estruturas de articulação continental etranscontinental, as únicas que nos podem eficazmente defender?

É verdade que assistimos a um enfraquecimento do Estado-nação, não só nos países pobres, mas até mesmo nos países ricos,com o desmonte do chamado “Estado do bem-estar social”,construído por longos anos na Europa pela Social Democracia. Tam-bém aí o aparelho estatal é posto a serviço dos interesses das empre-sas transnacionais, mais ou menos, dizem, em torno de trezentas.Mas, ao mesmo tempo, quando o propósito do império é nivelar ospovos, impor ao mundo todo uma única cultura massificada e alie-nada, a “única língua” de Babel (cf. Gn 11, 1-9), percebe-se o fenô-meno crescente de diversidades regionais e de afirmação de culturasparticulares. Esse, por exemplo, é um fato evidente na União Euro-péia, onde diversos povos têm reivindicado autonomia regional, mo-vidos justamente por suas peculiaridades culturais, sugerindo, as-sim, uma nova “geografia”, menos baseada em “países” e mais em“povos”. Algo disso tem-se visto nos múltiplos e sangrentos conflitosafricanos, cuja raiz é a artificial constituição dos países, herança docolonialismo, pela qual, em muitos casos, o mesmo povo se achadividido por linhas arbitrárias de fronteira.

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e O formidável progresso das técnicas de informação, de umlado, são um poderoso instrumento a serviço do sistema dominantee, como tal, perigosa ameaça. Baste pensar na transferência diária detrilhões de dólares só com o apertar de teclas de computador... Mas,ao mesmo tempo, poderá ser um meio importantíssimo de articula-ção, organização e mobilização internacional, formando redes de in-formação, de denúncia e de resistência, tendo assim, o poder deinfluir decisivamente na formação de uma nova consciência de cida-dania transnacional e mesmo planetária.

Desse panorama de incipientes possibilidades que se oferecemàs populações mundiais, percebe-se a novidade qualitativa de nossaépoca. Nunca como hoje o destino da humanidade e da própria vidano planeta esteve de maneira tão decisiva nas mãos da chamada soci-edade civil. É mais que evidente que os poderosos do capital nãoquerem mudanças profundas que levem à transformação do sistemaatual. Para convencer-se disso, baste prestar atenção às sucessivas reu-niões do Fórum Econômico de Davos, sobretudo um palco paragrandes negócios. Como também o que se tem visto nos encontrosdo G8. Os governos também, em parte, não desejam transformaçõesradicais, pois estão intimamente comprometidos com os interessesdo capital ou têm a cultura do capitalismo. Ou já se sentem impo-tentes para escapar da camisa de força, muito bem tecida pelos paí-ses ricos e pelas empresas transnacionais. Resta aos povos amadure-cerem coletivamente na consciência de sua responsabilidade ética epolítica e tomar nas mãos as rédeas de seu destino, organizando-se,cada vez mais, como sociedade civil, formulando projetos alternati-vos em dimensão transnacional e buscando impor aos governos a suavontade, através de mecanismos democráticos de manifestação po-pular. Como compreender que saiam às ruas só em Madrid doismilhões de pessoas para protestar contra a guerra no Iraque, e oanterior governo espanhol se tenha sentido à vontade para enviartropas? O mesmo se deu em Roma e em outros lugares. Não é pre-ciso encontrar uma maneira de superar essa impotência dos povosfrente aos que os governam, os quais, paradoxalmente, são eleitospor esses mesmos povos? Como suportar que governantes e parla-mentares descaradamente corruptos sejam reiteradamente reeleitospelo sufrágio popular e não só em países como o Brasil, mas até em

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tosnações ricas como a Itália e os Estados Unidos da América? Não é

expressão elementar da impotência e da incapacidade dos povos?

Estamos, sem dúvida, num momento qualitativamente novoda civilização: a humanidade tem nas mãos a responsabilidade pelamanutenção da vida na terra. Basta apertar um botão e acionar oarsenal que nos pode destruir vinte vezes, como se não bastasse umasó... A cada dia mais espécies vivas são extintas. Os procedimentosindustriais poluem e envenenam os alimentos e as fontes básicas davida, a água, o ar, a terra. Certos recursos se fazem sempre maisescassos, como as florestas e a água, o que já nos está a provocarterríveis catástrofes. Já estamos às voltas com significativas mudançasatmosféricas e climáticas, e com surpreendentes calamidades “natu-rais”, sem falar do famoso efeito estufa e suas previsíveis conseqüên-cias para breve. A humanidade agora já não é só responsável pordeterminados setores da vida, mas por sua global renovação e con-servação. Cresce, assim, qualitativamente nossa responsabilidade es-tética, ética e política, já desde nossos comportamentos domésticos(gasto de água, de eletricidade e de combustível; uso racional eparcimonioso do automóvel; escolha de alimentos; decidir o que com-prar ou não; trato do lixo...) até nossa atuação pública e política,através da participação em organizações da sociedade e de nossa rela-ção com os organismos públicos, em vista de que se estabeleça ocontrole social sobre as instituições, quer estatais, quer privadas.

A atitude de resistência à opressão deve provocar nossa respon-sabilidade estética, isto é, nossa imaginação para elaborar projetos al-ternativos em vista do futuro humano, tendo como ponto de partidaa constatação de que, se a vida no universo é tão bela, pode ser aindamais bela. A estética é a projeção do possível para além do já estabe-lecido no presente, a dimensão utópica que nos mobiliza a transcen-der o aparentemente “real”, pois o possível é também ele um dadoda realidade: “Somos realistas, queremos realizar o impossível”. Épróprio da responsabilidade ética transformar esses sonhos em obriga-ção, impô-los pela consciência do dever, fazendo com que a “imagi-nação” se faça solidariedade e compaixão. Se a estética anuncia o que“pode ser”, a ética o impõe como o que “deve ser”. Finalmente, aresponsabilidade política nos impele a buscar os caminhos possíveis--“a política é a arte do possível” -- mediante os quais os sonhos se

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2. (Ver Idem, ibidem, pg 36) (cf. Gilberto DUPAS, Atores e Poderes na Ordem Global, São Paulo: Unesp, 2005, 319 pg;José COMBLIN, O Neoliberalismo – Ideologia Dominante na virada do Século, coleção Teologia e Libertação, Petrópolis:Vozes, 2000, 187 pg; Wagner LOPES SANCHEZ (Coordenador), Cristianismo na América Latina e no Caribe – traje-tórias, diagnósticos, prospectivas, São Paulo: Paulinas, 2003, 383 pg).

encarnem em organização e mobilização. Pela ação política estamosa decidir e concretizar o que “tem de ser”.

No antigo mundo camponês, era o ser humano que se sentiaradicalmente dependente do determinismo da Natureza e de suasestações. Agora é a Natureza que, em grande medida, depende denossas decisões. Inverte-se, assim, a relação entre Natureza e culturae esta passa progressivamente a “determinar” aquela. Para confirmarque estamos, de fato, em novo momento da responsabilidade huma-na face à vida, baste pensar no significado do agravamento da violên-cia civil, do terrorismo e da tal “guerra preventiva”. Já não há mais“culpados” e “inocentes”, a violência nos pode apanhar a qualquerum ou qualquer uma, indiscriminadamente. Isso quer dizer que, ouassumimos coletivamente nossa responsabilidade pela transforma-ção da sociedade, ou, de repente, qualquer de nós pode ser apanha-do como “culpado” e pagar pela “culpa coletiva”. Ou todos nos salva-mos coletivamente, ou todos pagaremos, aliás já estamos pagando, opreço de nossa irresponsabilidade coletiva.

Além de tudo isso, há também sinais de que o império, apesarda aparência de hegemonia mundial, já começa a dar sinais de estarameaçado. Rivers Pitt chama a atenção para alguns desses sinais.Armas convencionais entregues a “amigos” durante a Guerra Friaestão sendo usadas como fogo inimigo. Assim como países úteis na-quele contexto são agora fatores de preocupação, como Iraque e ArábiaSaudita. O dólar vai lentamente em descida. Novas alianças entrenações como China, Rússia e Iran são ameaças. O petróleo, “a verda-deira moeda do reino”, torna-se escasso e mais caro. O extremismo“está fora de controle e se tornou de fato bem organizado e financia-do”. O aparato militar não será capaz de apagar todos os focos que sevão acendendo pelo mundo afora. “A economia americana, alimen-tada durante sessenta anos pelo petróleo e pelas guerras, corre o gra-ve risco de ser derrotada por todos dois2”.

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tosDesafios à Igreja

Sabemos que o primeiro e grande desafio à Igreja - o queresume e abrange todos os outros - é sentir-se e saber-se enviada aviver e proclamar a Boa-Notícia da presença do Reino de Deus entrenós. Pois não se trata de inventar qualquer boa-nova, mas de assumircomo própria a tarefa que as Escrituras atribuem ao profeta anunciadorda Libertação do povo, tarefa que o próprio Jesus assumiu para simesmo: o livro do profeta que anuncia a libertação do cativeiro, nãopor acaso, é o texto que está na base dos evangelhos (cf. Is 40 a 55).E proclamar libertação é, necessariamente, intervir no jogo de forçasda sociedade. A Bíblia nos diz que “a Palavra de Deus veio pela mãode Ageu” (Ag 1.2), isto é, por sua intervenção. O kerygma cristão é,por si mesmo, martryria, testemunho de vida. Isso significa que aproclamação do Evangelho se faz por gestos e palavras (cf. At, 1.1),pela práxis histórica que nos faz entrar em conflito mortal com ospoderes de opressão e de morte que se levantam contra os propósitosde Deus e pretendem dominar pessoas, grupos e povos. Segundo asEscrituras, trata-se da batalha do Senhor contra as monstruosas for-ças do Abismo que ameaçam a criação (cf. Ex 3; Is 66. 7-24):

Sobe a um alto monte, tu, que anuncias boas-novas aSião; tu, que anuncias boas-novas a Jerusalém, levanta tuavoz com vigor; levanta-a, não temas, dize às cidades de Judá:Eis vosso Deus! Eis o Senhor YHWH; Ele vem com poder, o seubraço lhe assegura o domínio; eis com Ele o seu galardão e asua recompensa diante de sua face.

Como pastor apascenta o seu rebanho, entre seus braçosrecolhe os cordeirinhos e os carrega em seu regaço; conduz cari-nhosamente as ovelhas que amamentam (Is 40, 9-11).

Como são belos sobre os montes os pés de quem anunciaas boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia o bem, quefaz ouvir a salvação, que diz a Sião: o teu Deus reina! (Is 52,7; ler até o v. 12).

Essas foram palavras pronunciadas durante o exílio do povode Deus em Babilônia, seis séculos antes de Cristo. Mas Babilônianão significa apenas referência ao passado. Na Bíblia é paradigma,como Egito, de todas as forças de morte, e por isso inimigas de Deus.

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e Disso não cabe dúvida quando se lê a meditação que as comunida-des perseguidas pelo império nos deixaram, tão viva, no livro deApocalipse. A Igreja é corrente militante em combate contra os po-deres das trevas (cf. Ef 6. 10-17; Cl 2. 15), é “conspiração de teste-munhas”, como gostava de definir o eminente teólogo Karl Barth.

Jesus se identifica claramente com essa tarefa, a ponto de aIgreja do Novo Testamento ter assumido do mesmo Livro de Isaías otermo para designá-la: “evangelizar”, “evangelho” (cf. Mc 1.1,14-15). E Ele próprio se define com aquelas palavras que em Isaías de-signavam o profeta da Libertação. É o que vemos no famoso texto deLucas 4, 16ss, tirado de Isaías 61.1-3.

E quais os sinais que Jesus oferece como indicadores da pre-sença do Reino de Deus entre nós? Justamente aqueles gestos, jáanunciados pelas antigas profecias. Gestos de levantar do abatimen-to pessoas e grupos humilhados, ruptura inaceitável aos olhos dospoderosos do mundo (cf. Mc 2. 1-12):

Os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosossão purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aospobres é anunciada a Boa-Notícia. E feliz quem não ficarescandalizado por causa de mim” (Lc 7.22-23; cf. o Cânticode Maria, Lc 1.46ss; Is 35).

Para Jesus era evidente que, através desse caminho, era possí-vel mudar a situação de necessitados e oprimidos. Ao proclamá-los“bem-aventurados”, “felizes”, não os estava elogiando em sua situa-ção atual, ou proclamando seu “privilégio espiritual” aos olhos “invi-síveis” de Deus. Não se tratava de ilusória inversão da realidade nonível da imaginação, o que não teria passado de perverso mecanismoideológico alienante e desmobilizador. O termo hebraico para dizer“bem-aventurado” pode muito bem ser traduzido por “avante”, “co-ragem, adiante”. É convite a marchar para conquistar o que se anun-cia como prometido, o Reinado de Deus, pois não há na Bíblia ne-nhuma oposição entre “dom” e “conquista”. Aliás, ao comentar oLivro de Josué, o famoso exegeta francês André Gelin lhe dava osugestivo título de “O dom de uma conquista”:

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tos Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino

de Deus Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque

sereis saciados Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis

de rir.

(Lucas 6.20-21)

Ao dizer aos sofredores do mundo: “Avante!”, tradução bemprovável do original, tinha clara consciência de que assim se instau-rava radical conflito no seio da sociedade, ou melhor, revelava-se,sem subterfúgios ou máscaras, sem “véus”, o conflito permanente-mente presente nas estruturas de opressão, próprias do imperialis-mo:

Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazerpaz, mas espada (Lucas diz “divisão”). Com efeito, vim con-trapor o homem a seu pai, a filha a sua mãe e a nora a suasogra. Em suma, os inimigos do homem serão os seus própriosfamiliares (Mt 10. 34-36; Lc 12. 51-53).

Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem,quando vos rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nomecomo infame, por causa do Filho do Homem (Lc 6. 22).

Ai de vós que agora estais saciados, porque tereis fomeAi de vós que agora rides, porque conhecereis o luto e as

lágrimas.Ai de vós quando todos vos bendisserem, pois do mesmo

modo seus pais tratavam os falsos profetas(Lc 6. 25-26).

A Igreja tem de perceber-se no meio do fogo cruzado desseconflito que é a realidade histórica vivida no quotidiano do povo deDeus, sinal de sua autenticidade (cf. At 17. 6-7). Por isso, a missãopara proclamar o Evangelho é dirigida pelo Espírito Santo sob aimagem de labaredas de fogo, de “espada de fogo” (At 2), é partici-pação no misterioso e terrível combate de Deus contra os “poderesdas trevas”, como se vê claramente o sentido dessa imagem em Êxodo3.1-10, Josué 5.13-15, Isaías 66.14-16, Gênesis 3.24. De fato, logoem seguida ao Pentecostes, que é a inversão dos mecanismos do Im-pério denunciados em Babel (cf. Gn 11.1-9), os Apóstolos estão

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e imersos em pleno conflito com os poderosos de seu tempo, confor-me nos narra o livro dos Atos a partir do capítulo 4. Não se podeesquecer que no Apocalipse o cavaleiro “Fiel e Verdadeiro” tem “osolhos como chamas de fogo”, seu nome é “Palavra de Deus” e “de suaboca sai uma espada afiada para ferir as nações” (Ap 19.11-16).

Sobre o pano de fundo desse desafio global é que devemosprojetar todos os outros, pois nada mais são que suas explicitaçõesparticulares em nosso contexto concreto.

1. O desafio de ser uma comunhão mundial

Como foi dito acima, a fase atual do imperialismo está a exigirque tomemos consciência de nossa cidadania transnacional e deci-damos agir em conseqüência.

Ora, se a agenda da sociedade nos impõe pensar e agir cadavez mais em redes transnacionais, temos uma grande vantagem. So-mos uma Comunhão mundial com testada experiência de articula-ção e de solidariedade, através de nossos “instrumentos de comu-nhão”, de diversas comissões internacionais inter-anglicanas eecumênicas, através de relações bilaterais entre províncias, deCompanheirismo em Missão entre dioceses e até entre congregaçõeslocais, sem falar das diversas redes como a da família, a de pastoralurbana, a de saúde, etc.

Neste campo, é urgente pensarmos em nossa articulação comoIgreja da América Afrolatíndia. Os passos neste sentido são aindamenos que incipientes. Não nos conhecemos e nem nos encontra-mos. Como pensar que possamos, como Igreja, dar testemunho einfluir significativamente no processo de integração do continente edo Caribe? Uma das poucas ocasiões em que alguns de nós se encon-tram e conversam é na reunião pré-Lambeth. Depois as oportunida-des são raríssimas. Uma das poucas instituições que nos reúne é aCETALC, mas, mesmo assim, num foco de interesses bastante res-trito, que é a Educação Teológica. Desejo publicamente reconhecer-lhe o mérito de nos convocar para este Congresso, ocasião privilegi-ada de encontro, de partilha e de projetos para o futuro.

Os bispos presentes ao Congresso nos reunimos para refletirsobre a situação atual e suas perspectivas. Víamos que, na crise atual

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tosda Comunhão Anglicana, entre os dois extremos que sustentam a

radicalização dos conflitos, o Norte e o chamado Sul Global, faz-senecessário promover a proposta de um “Centro Global”. “Centro”em dois sentidos: como ponto de passagem donde seja possível es-tender pontes de diálogo, e no sentido de chamar a atenção para oponto focal do Anglicanismo, quer dizer, o “centro” como ponto deconvergência, o que nada mais é que a antiga “via média” anglicana.Na realidade, trata-se de articular-nos e convidar o conjunto da Igrejaa voltar aos princípios clássicos que nos caracterizam, os únicos quenos podem manter em “unidade na diversidade”. Isto significa que épreciso e urgente afirmar que a unidade da Igreja não se constrói,como pretenderiam algumas de suas lideranças, em torno de afini-dades teológicas, culturais ou, menos ainda, ideológicas. O que nosreúne é uma comunhão sacramental, pois a Igreja como tal é o “sacra-mento fundamental da união com Deus e da unidade do gênerohumano”. Essa realidade sacramental é a dimensão constitutiva daidentidade da Igreja como Corpo de Cristo, embora ainda peregrinae pecadora na obscuridade da história. É daí que brotam nossas marcas:inclusividade, compreensividade, tolerância, “via media”, autonomiae interdependência, autoridade dispersa e compartilhada.

É verdade que somos Igrejas pobres e pequenas, com muitopoucos recursos em região tão vasta. Mas não podemos ficar parali-sados por isso. Se houver em cada qual de nós a convicção dessanecessidade, chegaremos a achar a maneira de fazê-lo. Para muitascoisas não será necessário organizar viagens, reuniões ou congressos.Bastará, quem sabe, disposição e criatividade e será possível estabele-cer maior comunicação, e redes poderão surgir entre nós, ao utilizar-mos os modernos meios de comunicação e informação. É precisocrer no companheirismo entre pobres, como, aliás, é a mentalidadede Jesus quando nos propõe no Evangelho a partilha dos “cinco pãese dois peixes” (cf. Mc 6.30-44) carregados por um “pequenino”, pãonegro, de cevada, da casa de pobres (cf. Jo 6.9). Nossa solidariedadetraduzida em articulação será um testemunho eloqüente de uma dasdimensões fundamentais do Anglicanismo, que é a interdependênciacomo característica da “catolicidade” irrenunciável de nossaEclesiologia.

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e Com a energia da fé e compromisso, teremos de enfrentar umadificuldade que afeta nossa própria mentalidade: o tantas vezes esté-ril sentimento nacionalista e as distâncias sócio-psicológicas entrenossos países, que só servem aos interesses divisionistas e conserva-dores. Merece particular atenção a relação entre a Província do Brasile as demais províncias, pois aí temos um agravante para essas dificul-dades, ou seja, a barreira da língua e a separação geográfica geradapelo fato de a civilização brasileira ter-se desenvolvido preponderan-temente na costa atlântica. Temos entre nós a floresta amazônica.

O processo de articulação e integração será fundamental parafortalecer nossa presença na Comunhão Anglicana como um todo. Aprópria origem e matriz do Anglicanismo dá ainda hoje a certas pes-soas a sensação de que somos um “acidente” na Comunhão. Na ver-dade, o veículo inicial de difusão da “Igreja da Inglaterra” foi a ex-pansão colonial do Império Britânico. Foi natural, em decorrênciadisso, que o Anglicanismo se difundisse na África, em partes da Ásiae no Caribe. Na chamada América Latina foi necessário fazer missãoe, não por acaso, essa foi promovida pela Igreja Episcopal dos Esta-dos Unidos da América do Norte e não pela Igreja da Inglaterra.Hoje somos, em quase totalidade, províncias autônomas, mas a viveruma condição de relativa marginalização. A não ser em partes doCaribe, nossos povos não falam inglês e não tiveram a experiência defazer parte de uma unidade como foi o Império e, depois, o“Commonwelth”. Até hoje ainda não se resolveu o problema de osdocumentos oficiais anglicanos serem publicados só em inglês. Umexemplo concreto é não termos ainda no “Anglican Episcopal World”nenhuma secção em espanhol. Não se trata de responsabilizar nin-guém por esta situação, é fruto da história. Trata-se, isto, sim, deassumirmos nossa responsabilidade de afirmar-nos como membrosplenos da Comunhão Anglicana, trazendo-lhe nossa marca e identi-dade, e nossa própria contribuição. Para isto, articulação interconti-nental e integração são pressupostos fundamentais, pois o isolamen-to e a divisão só nos enfraquecem e desmerecem. Eis o desafio! Alémdisso, na atual crise por que passa a Comunhão, novas dificuldadesse acrescentam, sobretudo tendo em conta atitudes divisionistas ca-pitaneadas pelos Primazes das Províncias das Índias Ocidentais e doCone Sul.

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tosAdemais, devemos pensar com muita seriedade no seguinte:

nossa articulação e interdependência eclesial será precioso serviçoevangélico à integração intercontinental e uma “resposta de amor”aos problemas que se levantam no momento, sobretudo quandoestamos a sentir claramente que a capacidade de resistência ao Impé-rio depende em muito da solidariedade de nossos povos e de nossosgovernos. A unidade da Igreja e o Ecumenismo não são apenas pro-cessos internos de natureza exclusivamente eclesial, são processospolíticos de primeira ordem. É de interesse dos poderosos manter-nos divididos e separados, pois assim nos tornamos ainda mais inca-pazes de mobilizar nossos povos em torno de objetivos comuns. Di-zia um de nossos antigos bispos brasileiros: “Continuamos divididospor razões de mortos, enquanto o povo vivo de hoje nos oferece todasas razões para nos unirmos” (Dom Clovis Erly Rodrigues, Bispoemérito da Diocese Anglicana do Recife). Eu costumo dizer quenosso povo não nos pergunta primeiramente por confissões de fé,mas por soluções de fé.

2. O desafio do Reino de Deus

O grande perigo para a Igreja é colocar-se no centro de suaprópria pregação. Sabemos que Jesus não o fez. Não se colocou nocentro. Para Ele, a centralidade era do Reinado de Deus: “O tempoestá completo e é chegado o Reino; mudai de vida desde o maisprofundo de vossos sentimentos e pensamentos, e ponde no Evange-lho – anúncio da vitória de Deus que manifesta o Seu Reino medi-ante a libertação do povo – o firme alicerce de vossa vida!” (Mc 1.14-15). O papel de Jesus como Profeta, sem dúvida, é central, masenquanto sinal e instrumento da presença e da manifestação do Rei-nado de Deus. Sua ação foi a de realizar gestos concretos pelos quaiso carinho de Deus, sua proximidade misericordiosa e redentora, serevelava na restauração das pessoas, restauração da saúde física e psí-quica, da dignidade, da alegria, na certeza de ser aceito por Deus...restauração sobretudo da condição dos pobres, comparada pelos evan-gelhos a algo tão inédito que é como se o mundo estivesse sendorecriado, “nova criação” (cf. Mc 1.9-13; Lc 3.23-38; Jo 1.1):

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele meungiu para anunciar a boa-notícia aos pobres; enviou-me aproclamar a liberdade aos cativos e a visão aos cegos; para pôr

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e em liberdade os oprimidos, para proclamar o Ano da Graçado Senhor” (Lc 4.18-19; Is 61.1-2).

A religião, por abarcar a totalidade e ser a legitimação supre-ma da vida, tende a colocar-se no centro. Somos seres religiosos, e aIgreja cristã assume também esse aspecto da realidade humana ebusca redimi-lo. Mas temos de ter sempre muita atenção, pois aIgreja não deve identificar-se com sua dimensão religiosa. Religião éprodução cultural de cada povo, aquela instância suprema, de apeloao sagrado, na busca de legitimação de nosso modo de viver. Reli-gião é nossa “obra”, projeção humana, no Absoluto, de sonhos efrustrações. A Igreja, ao contrário, apesar de toda a sua imperfeição,o que levava os Pais da Igreja a chamar-lhe “casta meretriz”, é porta-dora da Palavra de Deus. Por isso, Barth insistia em distinguir “reli-gião” e “fé” e nosso grande teólogo Frederico Maurice chamava aatenção para a diferença entre “Evangelho” e “religião”. O primeironos fala de libertação na história, enquanto a segunda tem seu prin-cípio no ser humano e termina em sistemas que ordinariamente têmo poder de escravizar3. O mesmo se poderia dizer ao sublinhar adiferença entre “experiência religiosa”, enquanto experiência do sa-grado em oposição ao profano, e “experiência de Deus”, que é, emverdade, experiência do sentido profundo da totalidade da vida. Hojesomos capazes de reconhecer o quanto havia de razão na crítica deMarx, quando denunciava a religião como tentativa ideológica delegitimar a alienação social e política.

O Evangelho nos diz claramente qual a questão central quequalifica nossa vida humana e diante de Deus. A pergunta divinadecisiva não é a respeito de sistemas religiosos, de doutrinas ortodo-xas, de rituais ou de instituições. Antes, é a respeito de nossa tomadade posição diante de Cristo no quotidiano da história: “Eu tive fomee me destes de comer... o que fizestes a estes meus irmãos menores, amim o fizestes... e o que não fizestes a um destes mais pequenos, nãoo fizestes a mim” (cf. Mt 25, 31-46). Antes de “confissões de fé”, oque importa são “soluções de fé”. É por isso que para Maurice aidentidade mais profunda da Igreja é ser “anamnesis”, ou seja, me-

3. cf. Jaci MARASCHIN, Igreja a Gente Vive – uma introdução ao pensamento de Frederick Denison Maurice, PortoAlegre, 1991): “Todas as religiões que criamos, não importando o nome que tenham, são tentativas miseráveis emutiladas de moldar Deus à nossa imagem, não obstante os fragmentos de verdade que possam ter. Aliás tais fragmentosatestam que nós fomos formados à imagem dele” (Ibidem, pg. 103-4).

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tosmória, revelação daquilo que o ser humano e o mundo, como tais,

estão chamados a ser segundo o propósito criador de Deus. A tradi-ção católica fala disso com a categoria de “sacramento”: “A Igreja éem Cristo como um sacramento, ou seja, sinal e instrumento daunião íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano”(Constituição Dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium, ConcílioVaticano II, n. 1). Nunca devemos esquecer que o ato sobrenaturalpor excelência é o ato de amar, amar simplesmente com nosso “cora-ção de carne”. Não existe “amor cristão”, muito menos “amoranglicano”, o que há é simplesmente amor humano, e esse é divino ea máxima revelação de que “somos da raça de Deus” (cf. 1Jo).

A Comunhão Anglicana compreendeu isso muito bem ao for-mular as cinco Marcas da Missão. Ao anunciar as boas-novas, nós ofazemos mediante “gestos e palavras”, testemunho e anúncio. Nascea Igreja como comunidade de fé, nutrida pela Palavra e pelos sinaisque manifestam a presença de Cristo através dos dons do Espírito.Forma-se, assim, segundo Barth, “a conspiração de testemunhas”. Éque, conforme ainda o pensamento de Maurice, “a Igreja existe paradar testemunho a todas as criaturas humanas de que o reino de Deusé a realidade última e que Deus governa a história e constantementea preside. Por isso, a Igreja, em primeiro lugar, existe para incentivarcada ser humano a viver plenamente no mundo porque apenas naplenitude da vida humana é que aprendemos a crer”4. Nesse mesmosentido é que se desenvolve toda a reflexão de Dietrich Bonhoeffer, ofamoso pastor luterano, mestre de espiritualidade, mártir do nazis-mo. É essa a base profundamente bíblica que leva a formular as trêsmarcas seguintes: Responder às necessidades humanas com serviçode amor, lutar pela transformação das estruturas injustas da socieda-de e conservar e renovar a terra e os recursos da criação. A comunida-de cristã nasce da escuta da Palavra de Deus, se forma e se fortalecepor Seu Espírito em vista do serviço ao mundo.

Sim, a comunidade cristã nasce do encontro com o testemu-nho da Palavra de Deus. A Igreja de Cristo tem como seu maiortesouro a intrepidez de homens e mulheres que não hesitaram emarriscar e até entregar a própria vida “para que outras pessoas tenhamvida” (Jo 10, 10). “Mártir” quer dizer testemunha, a expressão mais

4. Jaci MARASCHIN, ibidem, pg 113.

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e alta da proclamação da fé, do anúncio “kerigmático”, o qual, antes depalavras, são gestos (cf. Hb 11). O povo confia na Igreja. Daí, atremenda responsabilidade de sermos semeadores de esperança e man-termos coerência entre o discurso da pregação e nossa vida pessoal eprática coletiva e institucional. O testemunho está a exigir de nósque adotemos um estilo de vida de parcimônia e austeridade, quebusquemos trabalhar sobretudo com recursos e pessoal locais, quenos deixemos guiar por critérios que não nos afastem, ao contrário,nos aproximem cada vez mais das populações pobres, nossos compa-nheiros mais próximos de caminho, como nos ensina o Evangelho.Diz-nos o Apóstolo que temos de “trazer em nossos corpos as marcasde Jesus” (Gl 6.17).

A Província do Brasil, há alguns anos atrás, buscou resumir ascinco Marcas em três grandes objetivos: CELEBRAR, TRANSFOR-MAR, SERVIR. Celebrar a glória de Deus é o objetivo da vida hu-mana e de toda a criação, como o vemos claramente na Bíblia. Masnão se trata simplesmente de “cantar” louvores ou de promover sole-nes liturgias ou de elevar suntuosos monumentos religiosos. NasEscrituras, a revelação da glória de Deus é Sua própria obra mantidaíntegra, como lemos nos Salmo 8 e 19. Santo Irineu, no século II,dizia: “Gloria Dei, vivens homo”. A glória de Deus é o ser humano naplenitude de sua vida. O Arcebispo mártir de El Salvador, OscarRomero, o traduziu para nosso contexto e sentenciou: “A glória deDeus são os pobres” restaurados em sua dignidade de seres huma-nos. Por isso, a maneira mais sublime de celebrar a glória de Deus éestar em aliança com Ele para dedicar-se a transformar a sociedade, ocompromisso político da Igreja é sua mais solene liturgia, como noslembra o Apóstolo na Carta aos Romanos 12.1-2. E nossas liturgiassó têm sentido cristão se são a expressão de um povo consagrado àobra de Deus, à imitação de Jesus, conforme vemos nos gestos derestauração da vida narrados pelos evangelhos (cf. Mt 12.28; Jo 5 e9). Como sabemos, a Liturgia só tem sentido como “sacramento”,símbolo, quer dizer, representação (tornar presente) a realidade vital– do Cristo e nossa. Dizia Santo Tomás de Aquino que o momentolitúrgico se enche de memória (os gestos da vida de Jesus e seusseguidores e seguidoras) e de profecia enquanto anuncia nossa novahistória em Cristo. Servir é o método segundo o qual tudo tem deacontecer na Igreja: o culto, o ensino, a comunhão, a ação em favor

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tosdo mundo. “Diaconia” é nossa própria identidade, marca obrigató-

ria de tudo o que somos e fazemos, pois somos o Corpo do ProfetaServo de Deus (cf. Mc 10.42-45): diaconia da liturgia, diaconia doensino, diaconia da comunhão fraterna, diaconia sócio-política5.

Um dos maiores desafios à mentalidade cristã corrente, parti-cularmente em uma Igreja, feita freqüentemente de pobres, mas mol-dada por um “estilo classe média”, é viver a unidade profunda de fée ação social e política. Pois a tentação, herança do dualismo antro-pológico da cultura ocidental, de raízes helênicas, é o paralelismo,que leva, no máximo, a adotar uma ética individualista de ser “bomcidadão” cumpridor de seus “deveres” legais. Quando, na verdade,não há dois amores, amor a Deus e amor ao mundo. Há um só amor“sobre todas as coisas e com todo o coração”, a Deus, que se exerce noamor ao mundo (cf. Mc 12.28-34; 1Jo 4.7-8,11-16,18-21). “Hámuitas maneiras de amar o próximo, mas uma única maneira deamar a Deus, amando o próximo”. Ação social e evangelização nãosão coisas dissociadas. Ação social e política são gestos pelos quais sesinaliza a eficácia do Evangelho como anúncio alvissareiro da vitóriade Deus que afirma Sua realeza mediante acontecimentos de liberta-ção do povo (cf. Is 40.9-11; 52.7-12; 61.1ss). Toda a ação de Jesusse orientou por essa profunda unidade. Sua obra terrena de restaura-ção da vida (cf. Jo 10.10) equivalia para Ele a anúncio da Boa-Novado Reino dos céus (cf. Mt 12.28; Lc 7.22-23). Diaconia sócio-polí-tica não é exercer atividades assistenciais em favor dos pobres e, as-sim, suprir deficiências do Estado ou de entidades outras; é, antes,operar, mediante gestos significativos em cada contexto históricodeterminado, para revelar a presença de Deus entre nós, Deus quenos salva integralmente.

Se é assim, se a Igreja se destina a ser sinal e instrumento dapresença do Reino de Deus, o desafio para nós é mais que evidente.Nossa tarefa precípua será ocupar-nos cada vez mais das multidõesexcluídas, as quais, como vimos, são, mais que nunca, decorrênciaestrutural do sistema vigente. Não basta “ação social”, não é sufici-ente “responder a necessidades humanas com serviço de amor” e“cuidar de quem ninguém cuida”. É imprescindível que a Igreja re-

5. cf. Sebastião Armando GAMELEIRA SOARES, “Diaconia e Profecia’, em Estudos Teológicos, ano 39, n. 3, 1999, pg 207a 230.

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e conheça a política, não só como dimensão essencial, mas central dafé bíblica. É preciso compreender os mecanismos da opressão e suascausas; é preciso ajudar as pessoas a renascerem pelo sentimento decidadania, maneira concreta de sentir-se filho ou filha de Deus, her-deiros da criação e agentes da história; é preciso assumir corajosa-mente a “luta pela transformação das estruturas injustas da socieda-de”. Não basta apanhar e socorrer as pessoas feridas de guerra, quecaem a nosso lado; é preciso e urgente compreender e eliminar ascausas da guerra da injustiça, da miséria, da opressão e da fome,dizia o grande Arcebispo-profeta Helder Câmara. Existimos e somosdados ao mundo para ser agentes da política do Reinado de Deus.Será por acaso que Deus revele Seu misterioso nome no momentomesmo em que convoca Moisés para a batalha divina de libertar opovo da servidão? (cf. Ex 3). Nisso temos de trabalhar muito, pois,infelizmente, nossa Igreja é muito pouco politizada e ainda carentede assimilar a mentalidade bíblica. Educação bíblica e educaçãopolítica são para nós dois desafios conjugados. De fato, a Bíblia tem-se mostrado poderoso instrumento para transformar mentalidades econvencer-nos de que realmente a política está no centro da atençãode Deus ao mundo. Na sociedade democrática de hoje, a Igreja, emnome de Deus, deve comprometer-se com as lutas sociais, na vestedaquilo que os sociólogos chamam de “grupo de pressão”, em parce-ria com todas as forças solidárias com pessoas, grupos, classes e povosoprimidos, visando a “novo tecido” social (cf. Mc 2.21), Lembro-mede Che Guevara e Fidel Castro a dizerem há mais de trinta anosatrás: Se os cristãos aderissem à Revolução, essa seria irresistível. E oúltimo, em longa entrevista, declarava que a tarefa própria da Igreja,na luta de transformação, seria a de reeducar as pessoas, pois parafazê-lo necessitamos de uma instância treinada em lidar com o ínti-mo das consciências humanas, uma vez que se trata de travar umaguerra mortal contra hábitos seculares e até mesmo contra nossospróprios instintos. Em outras palavras, falava de conversão radical.

Temos entendido nossa tarefa em termos demasiadamente re-ligiosos, como se fôssemos antes de tudo “sacerdotes” de uma reli-gião, à maneira do que se dá no paganismo. Não, o ministério, se-gundo o Novo Testamento, a exemplo de Jesus, é antes de tudoprofecia. É a profecia que salva a Igreja de cair nos desvios da idola-tria. E profecia é eminentemente serviço à política do Reino do Deus

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tosvivente. O modelo para nós, como o foi para o próprio Jesus, são os

profetas bíblicos. Jesus é, antes de tudo, profeta, e é a oferta existen-cial, plena, de sua vida, como verdadeiro Cordeiro de Deus, que ofaz também sacerdote e pastor. É essa a reflexão que encontramos noEvangelho segundo São João e na Epístola aos Hebreus. Deus não éo nosso “assunto”, o objeto de nosso discurso. Seria profaná-lo. Deusé nosso ponto de partida, a razão que ilumina nosso olhar. O assuntoé o mundo, dele é que nos temos de ocupar. Dizia Simone Weil: “Eureconheço quem é de Deus, não quando me fala de Deus. Eu oreconheço na maneira de me falar deste mundo”.

3. O desafio da Inculturação e do Ecumenismo

Não podemos conceber nossa tarefa de diaconia sócio-políticacomo se a Igreja fosse uma espécie de vanguarda em aliança comoutros grupos de liderança do processo de transformação social. Muitomenos uma espécie de “partido” que vise à tomada do poder. Nossatarefa, como a de Jesus, é profética e, por isso, é ação eminentementepedagógica e popular. No seio de nosso povo, o que temos de pro-mover é a “pedagogia da liberdade” para que as pessoas assumamverdadeiramente sua vocação de filhos e filhas de Deus, que se tra-duz efetivamente na condição social e política de cidadania (cf. Ef2), quer dizer, de poder real sobre a própria vida e sobre o mundo6.

A “pedagogia da liberdade” é a mais radical exigência teologal,pois a experiência de Deus se dá, coincide mesmo com a experiênciahumana de liberdade. Quando o Povo de Deus vem pedir a Aarãoque lhe faça um bezerro de ouro, o linguajar da Bíblia chama parti-cularmente a atenção: “Faze para nós um deus que caminhe a nossafrente, pois não sabemos o que terá acontecido com esse Moisés quenos tirou do Egito” (Ex 32.1). Na segunda parte da frase, esperaría-mos outra coisa, algo como “pois o Deus que nos tirou do Egito...”.Esse contraste – deus X Deus – seria mais coerente com a lógica dafrase. Em vez disso, a frase surpreende e foge a essa lógica. Não seestabelece o contraste entre um deus e outro Deus, mas entre “umdeus que nos guie” e “esse Moisés que nos tirou do Egito”. Não ocontraste entre um deus e outro, também imaginário. Mas o con-

6. cf. Sebastião Armando GAMELEIRA SOARES, em DIETRICH, Luiz José (org.) “Somos Poder”, em Ser é Poder,Paulus-CEBI, 2002, pg 10-25.

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e traste entre um deus imaginário e a experiência histórica da liberda-de encarnada pela liderança de Moisés. É profundamente significa-tivo. A liberdade é, na verdade, a experiência de transcendência, deir além de tudo e até de si mesmo, de ultrapassar-se na relação co-munitária, ou seja, no amor que se concretiza no serviço. Liberdade,amor, serviço ou recíproca obediência são designações de uma mes-ma e mais profunda experiência, a experiência de Deus, que é a quenos constitui radicalmente como seres plenamente humanos, ou seja,a experiência que nos humaniza. Mesmo que não se a refira a ne-nhum paradigma religioso. De fato, a liberdade não acontece comoalgo natural. O que naturalmente queremos não é ser livres, mas serbem tratados, mesmo a preço de escravidão (cf. Ex 14.9-12). Porisso, a exigência de compreendermos a liberdade associada à místicae à santidade. Quando liberdade se associa ao “tudo se pode”, degra-da-se o Cristianismo e difama-se o jeito anglicano de ser cristão.Permanece sempre válido o princípio paulino: “Tudo é permitido,mas nem tudo convém” (1Cor 10.23) e o critério de conveniênciavem logo em seguida: “Nem tudo edifica. Ninguém procure satisfa-zer seus próprios interesses, mas os do próximo” (v. 24).

Uma exigência fundamental é estar em diálogo com os dife-rentes povos e culturas, excluir qualquer sentimento de superiorida-de ou de imperialismo cultural e aceitar radicalmente o pluralismo.Do contrário, não seremos coerentes com o dinamismo do mistérioda Encarnação que está no centro de nossa fé. Encarnação implicaem limite, e Deus o quis assim. A experiência de Jesus de Nazaré,mesmo enquanto experiência do Filho de Deus, é necessariamentelimitada por ser humana e histórica. Quanto mais a experiência cris-tã! Temos de completar nossa experiência espiritual, nossa imagemde Deus, pelo diálogo e pela escuta de outras palavras que nos ve-nham de outros povos e de outras culturas. Afinal, como diziam osPais da Igreja, o “sêmen do Verbo” está disseminado em toda a cria-ção. E não é verdade que a criação inteira está envolvida em trabalhode parto para dar à luz o Corpo de Cristo? O Corpo Místico deCristo se constitui a partir da humanidade inteira, é o que se chamaa “Igreja invisível”. Mais ainda, segundo o Apóstolo São Paulo, é oCristo Cósmico, como diria Teilhard de Chardin (cf. Rm 8.8, 18-25; Cl 1.15-20; Jo 1.1-4).

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tosNa obra de evangelização não podemos transplantar e muito

menos impor modelos já pré-estabelecidos. E nem se trata apenas defazer assimilar (“aculturação”) nossos valores e normas, por parte depessoas, grupos e povos dos quais nos aproximamos. Antes, trata-sede fazer nascer de novo a Igreja, por obra do Espírito, em semprenovos contextos culturais. O teólogo católico romano brasileiro Leo-nardo Boff falava de “eclesiogênese”. Pois não somos nós quem levaDeus a “povos não alcançados”. Nossa tarefa é ajudar a “abrir olhos”para que se perceba o Deus que está sempre presente como fonte davida e energia salvífica: YHWH, o-que-está-aí (cf. Ex 3. 13-14),Emanuel, Deus-conosco (cf. Is 7.10-16). A nossa é só a tarefa deajudar a arrancar os véus, “revelar” ou desvelar, é a “anamnesis” deque falava Maurice.

No caso de nossa América Afrolatíndia, trata-se de perguntarse estamos dispostos a entrar em diálogo profundo com o mundocamponês e as periferias das cidades, com o mundo aborígene e como mundo negro. E se vemos com alegria a possibilidade de oAnglicanismo adquirir novos rostos, e inéditos, a partir dessa alian-ça. Sim, pois é de aliança de que se trata, aliança solidária com essespovos vítimas até hoje da colonização. Nossa opção por empobreci-dos e oprimidos – que para nós é mandato do Evangelho – tem denos aproximar sempre mais da “religião dos oprimidos”. Não se tratade simples “preferência” (“opção preferencial” é conceito contraditó-rio!), mas de “opção” mesmo. Que vergonha para o Cristianismoque, passados quinhentos anos, ainda não tenhamos uma Igreja au-tenticamente aborígene, nem uma Igreja negra em nossa terra!

Esse diálogo com as culturas oprimidas abre à ComunhãoAnglicana novo desafio. Nosso povo tem sido marcado em sua for-mação histórica pelo Catolicismo Romano. Um Catolicismoprevalentemente devocional e santoral, com sérios problemas no quediz respeito a uma genuína evangelização e, em larga medida, coni-vente com os mecanismos de opressão que aqui se instalaram. Paraconfirmação, o que temos, finalmente, é um continente nominal-mente cristão e, ao mesmo tempo, com um dos mais altos índices decrueldade e de injustiça em todo o mundo. Hoje, no acelerado pro-cesso de urbanização, vê-se que as massas populares se deslocam nocampo religioso e se mostram particularmente sensíveis ao apelo domovimento pentecostal.

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7. cf. Sebastião Armando GAMELEIRA SOARES, “Um Só Senhor” – Meditação sobre Ecumenismo, Série “Palavra naVida”, CEBI, 104, 1996, 44 pg.

Não será vocação do Anglicanismo entre nós assumir-se real-mente como Igreja-ponte? Ser agente propulsor do diálogo ecumênicoentre a tradição católica da formação do povo e as novas propostas docampo evangélico? Contribuir para clarear os terríveis eqüívocos deuma já longa história de animosidade e inimizade? E ainda ajudar aIgreja cristã a abrir-se sem preconceitos à cultura religiosa do povonegro e da gente aborígene e, assim, fomentar o debate missiológicotipicamente afrolatíndio? Nossa missiologia é chamada a estar inti-mamente conectada com o diálogo inter-religioso no contexto con-creto de nossos povos.

Apesar de nossa pequenez, penso que Deus nos está chaman-do a responder a esta vocação: não deixar perder-se a preciosa heran-ça católica da experiência cristã, mas, ao mesmo tempo, acolher osfermentos proféticos que se acham espalhados desde a Reforma,encarnando-nos no contexto urbano de hoje e levando em contanossas raízes culturais. Possibilitar a existência de uma Igreja cristãevangélica, até, quem sabe, fortemente marcada por elementospentecostais, mas, simultaneamente, ecumênica, aberta à tradiçãocatólica e enraizada nas matrizes aborígenes e negras de nossa gente.Nossa Igreja está chamada a testemunhar um jeito cristão de sersegundo o qual se mantenha a tradição, mas se avance em direção aformas sempre mais “carismáticas”, comunitárias e democráticas; umaIgreja firmemente devotada ao testemunho da Verdade do Evange-lho, mas radicalmente marcada por seu caráter pedagógico, não re-pressivo no trato com as pessoas e culturas diferentes; uma Igrejaciosa de sua identidade em Cristo, mas cujo “ethos” se constitui pre-cisamente pelo “senso da realidade” e pela capacidade de diálogo, deinclusividade, de confluência ou compreensividade, de “alargar as ten-das” para acolher inclusive elementos culturais aparentemente estra-nhos ao Cristianismo histórico. Nossa vocação para a “catolicidade”,neste continente, não nos impele a uma nova relação com o catoli-cismo popular, o pentecostalismo e as expressões religiosas das mas-sas oprimidas, concretamente os povos aborígenes e afrodescendentes?Não devemos esquecer que o Ecumenismo, incluindo o chamadodiálogo inter-religioso7 é um fator de dimensão política decisivo.Manter-nos divididos é de interesse do Império. Imaginemos a força

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tosque seria as várias denominações cristãs na América chegarem a um

projeto comum de ação em favor da vida de nossos povos! Como jámencionado acima, “continuamos divididos por razões dos mortos,enquanto nosso povo vivo de hoje nos dá todas as razões para nosunirmos em seu favor”, o que importa em primeiro lugar são “solu-ções de fé”. A relação ecumênica seria poderoso fator de restauraçãodo tecido social, particularmente entre os pobres, pois as divisõesreligiosas, porque profundas, só contribuem para enfraquecer a coe-são popular.

Recordo-me da Conferência de Lambeth 1998. Na Secção IIdo documento final, sobre Evangelização, “Chamados a viver e aproclamar a Boa-Nova”, consegui incluir com aprovação dos Bisposa seguinte pergunta: Não é possível imaginar no futuro novas formasde Cristianismo? Por que não se poderia pensar, por exemplo, emCristianismo Budista, Muçulmano, aborígene, afro? Afinal, a pre-texto de “exaltar” o Cristianismo, opô-lo às “demais” culturas seria,na verdade, degradá-lo à condição de uma cultura determinada. Elenão pode ser identificado com nenhuma cultura ou religião, nemmesmo com a cristã. Seria esvaziá-lo de sua mais preciosa originali-dade: ser veículo da Palavra de Deus que julga todas as dimensões,aspectos e setores da vida humana, inclusive as religiões e o ateísmo,forma negativa de ser religioso.

Isso, naturalmente, vai exigir de nós renovado élan missioná-rio. Dizia-me, certa vez, nosso Bispo Primaz já falecido, Dom OlavoVentura Luiz: “A nossa é uma Igreja acanhada”. Vamos ter de rom-per esse acanhamento e elaborar estratégias missionárias mais “agres-sivas”, sobretudo no ambiente dos grupos oprimidos: camponeses,periferias de cidades, aborígenes e gente negra. Não se trata deproselitismo para arrebanhar fiéis de outras denominações religio-sas. Também não se trata de impor-se a ninguém. O mandato evan-gélico que carregamos é o de propor, com humildade e simplicida-de, uma forma alternativa de vida cristã. É bom que as pessoas per-cebam que é possível ser “católico” integrando elementos importan-tes da experiência protestante, valorizando o exercício da própriarazão e a experiência comunitária da Igreja local, e tendo à disposi-ção mecanismos mais democráticos de exercício da liderança; e que épossível ser “crente” integrando a tradição católica, tantas vezes jápresente na própria experiência pessoal e familiar, sem rupturas ar-

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e bitrárias com a cultura popular, exercendo o “livre exame” de formanão individualista, mas comunitária, eclesial e ecumênica, semdualismo entre adoração e engajamento social, entre fé e política.

4. O desafio da Liturgia

No processo de inculturação, tem lugar particular a Liturgia.Essa deverá ser expressão e instrumento de nossa comunhão real e daestratégia missionária. Não poderá ser simplesmente um “ato religi-oso”, mais ou menos mítico. Será celebração e confirmação do dina-mismo evangelizador, o qual se concretizará mediante nossosengajamentos concretos em favor da vida; terá de inculturar-se naconcreta realidade dos vários grupos e povos; terá de ser expressão denossa comunhão includente e compreensiva. Temos de traduzir“comprehensiveness” com dois vocábulos: “inclusividade”, que é aco-lhida das diferenças, e “compreensividade”, abraçar as diferenças, nãoisolar-se em paralelismos estéreis, deixar-se contagiar pelo que nosvem de outrem, confluir para a unidade da Igreja. A Liturgia serácomo tudo na Igreja, “anamnesis”, momento “simbólico” de reunir-se com a realidade, tomada de consciência do sentido divino da exis-tência humana no mundo, conforme a reflexão de Maurice.

Particularmente hoje, quando o eixo de preocupações da soci-edade se desloca para a dimensão cultural, a Liturgia aparece comoum dos maiores desafios na vida da Igreja. Liturgia é “ação”, nãoapenas recitação de um texto. Como expressar na ação litúrgica oque buscamos viver como proposta de Igreja e de Sociedade? Comotestemunhar e fortalecer na Liturgia um novo jeito de conviver cole-tivamente no mundo, como celebrar um culto realmente “diaconal”e missionário?

Na Liturgia, a Igreja tem de revelar-se como um povo deter-minado e particular que crê e louva a Deus com seu próprio modode ser, com sua própria “língua”, com liberdade e criatividade. OAnglicanismo das origens é testemunho vivo disso. A Igreja da In-glaterra teve, desde sempre, marcas muito peculiares: Igreja celta,comunidades em torno de mosteiros, acentuada autonomia pela pró-pria condição insular... Ao declarar autonomia no século XVI, nãopretendeu romper com a tradição católica, mas quis afirmar a legiti-midade de ser Igreja particular, local, nacional, como tinha sido de

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tospraxe na época patrística. Sabemos bem que a Reforma inglesa não

foi doutrinal, mas política e litúrgica. Só seremos fiéis à intuiçãoanglicana originária, se possibilitarmos aos vários grupos e povos essamesma experiência de ser diante de Deus como um povo particular,que o adora e proclama Suas maravilhas na própria “língua” (cf. At2), com liberdade. Isso é profecia viva a denunciar toda pretensãoimperialista ou colonialista, seja religiosa, seja política ou cultural.Uma Liturgia plenamente inculturada á algo politicamente revolu-cionário, pois é contestação viva de qualquer sistema de dominaçãocultural. É afirmação política, tão necessária nestes tempos de “pen-samento único”, da dignidade de cada povo, particularmente quan-do se trata de povos pobres. Uma liturgia realmente inculturada temcomo base um povo que se torna sujeito de poder e por isso tem acapacidade de se manifestar da maneira como de fato é em seu modode ser, tradições e costumes, a começar da Igreja. Liturgia inculturadaé denúncia viva do projeto imperialista simbolizado na Torre de Babel(cf. Gn 11.1-9).

Durante a Conferência de Lambeth 1998, era o dia de umade nossas províncias dirigir o solene ofício eucarístico. Após o culto,comentei com um de seus bispos: “Esperava ao menos algum toquetípico de seu país, se não no ritual, pelo menos na música”. A respos-ta foi ainda mais surpreendente do que a forma do ofício litúrgico:“Não temos liturgia do país, temos apenas liturgia cristã”. Esqueciaele que tudo o que tinha sido recitado, inclusive os hinos, aquilo quechamava de “liturgia cristã” era só tradução do inglês...

Na Liturgia a Igreja tem de revelar-se como um povo alegre ejubiloso. E a fonte dessa alegria é o entusiasmo (“vibração em Deus”)de celebrar as maravilhas operadas por Deus na vida de cada pessoae nos acontecimentos maiores da história coletiva dos povos, como ovemos claramente nos salmos da Bíblia. Ora, é a ação salvífica deDeus na história que confere ao povo o sentimento de ser “eleito” (cf.Dt 7.7ss), o que não é privilégio arbitrário, mas escolha para assumira responsabilidade da aliança em benefício de todos os povos (cf. Gn12.3; Is 49.6; 2.1-5), confere-lhe o sentimento de dignidade e decidadania universal (cf. Ef 2). A vivência litúrgica e eucarística éautêntica na medida em que fortalece nas pessoas a alegre e desafia-dora experiência da liberdade, que transforma a consciência para ex-

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e perimentar o mundo como herança dada por Deus, seu único Se-nhor (cf. Gl 4 e 5). Liturgia não pode ser ato ritual de legitimação daconsciência religiosa alienada e politicamente descomprometida. Temde ser estímulo e alimento para resistir corajosamente aos poderesdas trevas, radical confissão de fé no único senhorio de Cristo Senhor(cf. Fl 2.5-11), cântico de vitória, à imitação da adoração celestialcomo se vê na solene Liturgia do Apocalipse, com a relativização detodos os poderes mundanos. A dignidade e altivez da Igreja dosmártires nascia precisamente disto: “Para nós, porém (com esse ter-mo se expressa o conflito com os poderes do Império), reinandoNosso Senhor Jesus Cristo”. Liturgia tem de ser expressão e instru-mento privilegiado de construção da “politía”, termo tão caro aRichard Hooker.

Na Liturgia, a Igreja tem de revelar-se como povo fraterno,comunitário, povo em comunhão que denuncia e desafia o sistemado mundo. Eucaristia é profecia de “outro mundo possível”, funda-do na economia da partilha de bens e governado pela partilha dopoder, apontando sempre para o horizonte escatológico da consu-mação gloriosa de um mundo ressurrecto (cf. Rm 8). Se somos Igre-ja clerical, centralizadora, autoritária, nosso culto o refletirá. Se so-mos Igreja descomprometida, alienada, ou pior, classista e de pre-conceitos, nossa liturgia manifestará facilmente nosso elitismo emáscara ideológica. Se somos Igreja com vínculos comunitários dé-beis, assim será nossa adoração, na qual uma massa mais ou menosinforme prestará seu culto, mas não será “opus Dei” e “opus populi”(“leitourgia”), participação na experiência do Filho encarnado. Se so-mos Igreja que não está votada ao serviço à vida do mundo, facil-mente se poderá perceber na Liturgia por onde andam nossas preo-cupações e qual o nível de nossa alienação.

Tudo na Liturgia fala do Deus que adoramos e de nós, o povoque o adora. Ação litúrgica é drama, imagem, símbolo, reflexo, acomeçar pela maneira como organizamos o espaço, como localiza-mos as pessoas (e Tiago o adverte enfaticamente: Tg 2.1-13), comodistribuímos tarefas e ministérios; pelos símbolos que privilegiamose os hinos que cantamos, pelo formalismo ou pela espontaneidade,pela forma e o conteúdo do sermão... Como é grave pensar que pre-gamos constantemente sobre a vida comunitária (pedagogia da pala-vra) e desde a infância até a morte fazemos as pessoas se porem umas

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tosde costas para as outras, voltadas apenas para quem preside o culto,

a única figura que realmente tem importância (pedagogia da reali-dade), reproduzindo, assim, no espaço litúrgico o autoritarismo dasrelações que o mundo nos impõe (cf. Lc 22.24-27). Ora, a pedago-gia da realidade é sempre bem mais eficaz que a das palavras.

Quem sabe, aqui está um dos desafios maiores que temos deenfrentar: sob o padrão do Livro de Oração Comum, passar criativa-mente de uma liturgia de mera recitação de um texto a um ato vital,no qual se manifeste a mística que nos anima, nossa real comunhão,nosso élan missionário e nossa atitude de serviço em favor da vida domundo. Uma liturgia mística, comunitária, diaconal, missionária eradicalmente política, isto é, capaz de proclamar o julgamento deDeus sobre a sociedade de opressão e anunciar aos pobres a Boa-Nova da Esperança.

5. O desafio de ser minoria

A história tem mostrado o quanto é perigoso o Cristianismotornar-se religião de massas. Temos de ter bem clara a distinção en-tre ser um fenômeno cultural de massa e ser socialmente relevante,ser simplesmente maioria e ser minoria significativa. No caso doAnglicanismo, creio que sua vocação não é ser uma Igreja de maioria.Na verdade, a proposta espiritual e institucional da ComunhãoAnglicana e de seu “ethos” é algo bastante exigente. Não é nada fácilser anglicano: confiar mais no Espírito que na lei, confiar mais naliberdade das pessoas que nos condicionamentos da instituição, con-fiar mais no poder de auto-revelação da Verdade que em controles ao“livre exame”, confiar mais no processo pedagógico em vista do ama-durecimento que na imposição de padrões e modelos, arriscar astensões e a “desordem” em vez de deixar-se atrair pela desonestidadede uma aparente ordem; combinar liderança episcopal comsinodalidade, mediante a qual se associa o povo ao governo da Igreja,autonomia com interdependência, unidade com diversidade; arti-cular em unidade complementar Catolicismo e Protestantismo, doisprincípios freqüentemente tidos como contraditórios... Eis um grandee grave desafio: como não desejamos ser Igreja da lei, Anglicanismosem santidade é forma degradada e desmoralizada de Igreja, espetá-culo de indisciplina, de divisão e até de dissimulação e crueldade.Não podemos ser Igreja “barata” onde “tudo é permitido”, como às

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e vezes é a impressão que damos. A proposta anglicana é extremamen-te exigente, pois seu fundamento é radicalmente místico e pneumá-tico, a pretensão de deixar-se guiar pelo Espírito. Além disso, narealidade, somos uma Igreja pequena e pobre, uma ínfima minoriano Continente. Ao percebermos o quanto é grande nossa vocação ecomo são imensos os desafios que se nos apresentam, como, então,achar a maneira de ser presença relevante no seio da ComunhãoAnglicana e entre nossos próprios povos?

Em vários contextos de nossa América Afrolatíndia, é necessá-rio superar na Igreja o complexo psico-social de “minoria elitista”, oque se simboliza muito bem quando nos sentimos e nos mostramoscomo “Igreja do Livro” numa cultura onde as pessoas não sabem ler,um culto quase exclusivamente baseado em palavras e raciocínios,quando nossos povos são culturas eminentemente gestuais e corpo-rais. Precisamos superar também o complexo de “minoria defensi-va”, fechada em si mesma, vivendo apenas para se manter, quandonão marcadamente carregada da herança estrangeira. Entre o mode-lo de “Igreja de Estado” ou “Igreja da Nação”, como tem sido o casona Inglaterra, e o modelo de Igreja comunidade minoritária fechadaem si mesma e à margem da vida do povo e do país, se nos oferece apossibilidade de ser Igreja minoritária, é verdade, aberta, porém, aarticular-se com o conjunto da sociedade civil, adquirindo desse modorelevância social, política e cultural em favor da vida do povo e doprocesso de transformação.

Se somos pequenos e poucos, se nos debatemos em meio atantas precariedades, só se nos abre um caminho. Temos de ser gentealtamente qualificada. Sejamos minoria, mas minoria significativa.Pouca gente a falar e a propor, mas palavra que soará merecedora deescuta e de crédito. Pouca gente a agir, mas ação que poderá ser vistacomo pequenos sinais de grandes coisas. Nossa membresia tem deamadurecer cada vez mais espiritualmente, povo místico e santo,para sermos fermento entre as denominações cristãs e na sociedadepor nossa qualidade espiritual que se traduza, na prática, em elevadopadrão ético, tanto de ética pessoal, como sócio-política. Também aformação teológica tem de ser prioridade número um, aliás, o que éclaramente indicado pelo atual Arcebispo de Cantuária como pers-pectiva para toda a Comunhão. Nossos quadros têm de ser de genteintelectualmente bem preparada para serem profissionais compe-

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tostentes e pessoas que disponham de adequadas categorias para anali-

sar e compreender a realidade social nacional e internacional, e pron-tas a se comprometerem na formulação e na implantação de novosmodelos para a sociedade. Ou seja, a formação de quadros, nas maisdiversas áreas do saber e da prática, desde a espiritualidade até asvárias profissões e engajamentos sócio-políticos, tem de ser uma dasmais importantes prioridades para nós.

Não é suficiente formar pessoas para a ação imediata, é precisotambém, com esmero, educar lideranças espiritualmente sólidas eintelectualmente capazes de ajudar a Igreja a refletir suas opções esuas práticas, e representá-la na sociedade. Isso em todos as esferas,desde a congregação local até o nível provincial. O processo deaprofundamento espiritual e teológico não pode ser apenas preocu-pação na formação do ministério chamado “ordenado”, mas deveperpassar todo o tecido da Igreja. Que triste espetáculo temos dadoao mundo, com escandalosos casos de corrupção financeira atingin-do até o episcopado em algumas províncias, assim como a intolerân-cia de posições na atual crise que afeta o Anglicanismo mundial! E araiz de tudo isso se acha, sem dúvida, em nossa fragilidade espirituale teológica.

Só uma Igreja que se preocupe com sua própria educação terámembros conscientes de sua pertença e convencidos do que estão apraticar, gente que “saberá dar as razões de sua esperança” (1Pd 3,15). Não é só o clero que tem de ser bem formado teologicamente.Todo o povo deve poder dispor de instrumentos de profunda forma-ção, evidentemente na proporção e segundo a condição de cada pes-soa. Já não podemos mais confiar simplesmente na tradição, poisfilho ou filha de anglicano não será necessariamente anglicano. Enem pretendemos aproveitar-nos das fragilidades do povo para ex-plorar de maneira desonesta suas emoções e, assim, “prendê-lo” anós, como tem acontecido, infelizmente, entre grupos que se dizemcristãos. Nossa Igreja tem de dedicar-se, antes de tudo, ao estudoprofundo das Escrituras. Devemos voltar a ser uma Igreja de menta-lidade radicalmente bíblica, instruída nas Escrituras e examinando-a com liberdade, mas um “livre exame” que não seja mera opiniãoinidvidual, mas processo de discernimento comunitário, eclesial. Paraisso, tendo bem claro o triângulo hermenêutico que nos é peculiar: aBíblia lida e interpretada em conexão com a Tradição (identidade

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8. cf. Sebastião Armando GAMELEIRA SOARES, “Reinventar a Vida: Missão de Deus, em Missão na Perspectiva deLambeth 98”, Partilha Teológica 8, Centro de Estudos Anglicanos-CEA, 1999, pg 3 a 16.

eclesial e histórica), a Razão (a pesquisa científica e os desafios dasociedade) e a Experiência de vida, ontem e hoje, lugar de formaçãodo “sensus fidelium” e da experiência de santidade. A deficiênciahermenêutica parece ser uma das causas da crise que atravessamosatualmente8.

No campo dos estudos bíblicos, é urgente promover em nos-sas comunidades a chamada “leitura popular e comunitária da Bí-blia”. Em outras palavras “o livre exame das Escrituras”, mas com asuperação do individualismo que, infelizmente, tem marcado mui-tos setores da Reforma desde suas origens. O que não é de admirar,pois o contexto sócio-cultural que fez surgir a Reforma foi justamen-te o aparecimento da burguesia, cujo princípio fundamental e, na-quele período, revolucionário, era a “liberdade do indivíduo”. Luteroo traduziu em termos eclesiais com o lema “libertas christiani”. Hojetemos de reinterpretar “o livre exame”, promovendo-o como exercí-cio da leitura existencial, sim, mas, ao mesmo tempo, comunitária,eclesial, ecumênica e política, ou, como preferem alguns, profética.A Bíblia, lida no horizonte da vida e como luz que a ilumina (cf. 2Pd 1.19-21), nos oferece, a partir da experiência do Povo de Deus,os critérios para que possamos capacitar-nos à escuta da Palavra deDeus e à visão de suas obras no hoje de nossas vidas. No Brasil, oCentro de Estudos Bíblicos – CEBI, ecumênico e popular, há maisde vinte e cinco anos, vem promovendo esse jeito de ler a Bíblia,pondo as conquistas da exegese científica a serviço do povo das co-munidades cristãs. Inspirado pela “pedagogia da liberdade”, tem cum-prido a missão de uma verdadeira “universidade popular”, espalha-do em todo o país e funcionando em diversos níveis horizontalmen-te articulados, com exegetas, obreiros ou agentes pastorais, pessoasde grupos de base lendo a Bíblia em conjunto. Enquanto se lê aBíblia em comunidade, a Palavra vai produzindo o efeito de edificaro povo em comunidades fraternas e comprometidas com os desafiosdo Reino de Deus (cf. 1Ts 1).

Além do retorno aos evangelhos e da redescoberta do PrimeiroTestamento, particularmente da corrente profética, é urgente a ta-refa de reler os textos paulinos para reavaliar nossa Eclesiologia e a

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tosTeologia e Espiritualidade da Cruz9. Ademais, é importantíssima a

releitura da apocalíptica como mensagem de resistência e esperança,e novo ponto de partida para retomar hoje a Teologia da Criação,algo extremamente importante num tempo em que a própria vidano planeta está ameaçada pelos poderes e a ideologia do Império.Esse retorno à Bíblia faz-se ainda mais necessário quando se tem emconta que a crise vivida atualmente na Comunhão Anglicana se deveem grande parte a graves deficiências hermenêuticas e eclesiológicas.

Além do aprofundamento espiritual e teológico accessível atodo o povo, desde a escola dominical até os cursos de Teologia,temos de nos preocupar com descobrir vocações leigas para o minis-tério teológico. Essa é uma das vias mais eficazes para superarmos oclericalismo e dar efetividade ao princípio do sacerdócio comum dopovo cristão. Com efeito, a Igreja é eminentemente uma instânciade “produção simbólica”. Ora, aí, saber corresponde necessariamen-te a poder, quando leigos e leigas “entendem” tanto de Igreja quantopastores e pastoras. Ademais do engajamento na ação apostólica, me-diante diversos serviços ministeriais, e nas tarefas de liderança e go-verno, é decisivo que pessoas leigas se especializem e tenham efetivaautoridade em campos da pesquisa e da reflexão teológicas. Comcerteza, teremos, com isso, uma Igreja menos clerical e a “agenda dasociedade” terá ainda mais força de impor-se e ser assumida comoprópria da Igreja: as questões da família, das diversas profissões, osdesafios da realidade social, política e cultural. E temos de encontrarnovos modelos de ministério, menos individualistas e personalistas,mais coletivos e de trabalho em equipe, mais autóctones e menoscustosos, enfim, mais de acordo com nossas condições concretas ecom o testemunho que temos de dar junto aos pobres. Novos mode-los de ministérios e novos processos de formação para o ministério.

Se pretendemos dar uma contribuição original e significativaao conjunto da Comunhão Anglicana, a partir de nosso contextopeculiar de vida, é preciso que nossas experiências, uma vez registradase analisadas, possam ser comunicadas. Ora, registrar, analisar e co-municar são justamente os passos do que se chama de ciência. Ne-cessitamos, com urgência de ter em nossa Igreja pessoas do clero e

9. cf. Sebastião Armando GAMELEIRA SOARES, Reler Paulo, Desafio à Igreja, série “Palavra na Vida”, CEBI, 79/80,1994, 39 pg e Palavra da Cruz X Ideologia, idem 99, 1996, 19 pg.

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e do laicato, gente que se dê de corpo e alma ao exercício científico daTeologia Pastoral, para podermos aprofundar nossas práticas e co-municar nossas conclusões como dom original a irmãs e irmãos deComunhão. Se não investirmos na reflexão e na elaboração teológi-cas, permaneceremos sempre a reboque, nunca superaremos a con-dição de Igreja colonial. Vamos continuar traduzindo do inglês echamando a isso de “liturgia cristã”... Teremos fugido covardementeao desafio e à responsabilidade que nos cabe de refazer, em nossarealidade vital, o processo de inculturação que está na própria raizdo que se entende por Anglicanismo e do próprio Livro de OraçãoComum. E nunca seremos respeitados pela Sociedade que espera denós uma práxis – prática e teoria – da Palavra de Deus que sejarelevante para seus problemas peculiares. Eis o desafio: profundidadeespiritual, capacitação intelectual, particularmente teológica, originali-dade pastoral!

Conclusão

Como se vê, os desafios da realidade são múltiplos e variados.Agravam-se ainda mais à medida que se agrava sobre os ombros denossos povos o peso do imperialismo. Estes são só alguns deles.Lembrá-los, pode servir, quem sabe, a provocar a lembrança de tan-tos outros mais, talvez até ainda mais urgentes. Em tudo, o queimporta é nunca esquecermos que, se são desafios da Realidade, sãodesafios do próprio Deus, pois é na verdade do real que Ele se revela.

Desafios de Deus constituem chamado obrigatório para nós,são nossa vocação (cf. Ex 3; Is 6; Jr 1). E vocação está a exigir respos-ta. São nossa responsabilidade histórica. Se falharmos, algo na obrade Deus estará incompleto. “Missão terrível”, tremenda responsabi-lidade, mas, ao mesmo tempo, indizível privilégio e inefável alegria,poder participar da edificação do Corpo de Deus em Cristo nestepedaço do universo que se chama pelo nome querido de AméricaAfrolatíndia.