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GÊNERO E RAÇA EM A MAÇÃ NO ESCURO, DE CLARICE LISPECTOR Michelle Cerqueira César Tambosi (UEM) [email protected] Resumo Esse artigo focaliza representações de gênero e raça no romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector. O objetivo dessa pesquisa era compreender de que modo construções de gênero e raça foram trabalhadas no texto literário, e quais relações entre essas construções foram estabelecidas na narrativa. Para isso, comparou-se a caracterização das personagens femininas da obra, bem como das personagens negras, abordando-as por meio de teoria da narrativa e dos estudos feministas e pós-coloniais. A partir da análise verificou-se que a obra debate questões de gênero e rompe com alguns estereótipos atribuídos a essa categoria, ao mesmo tempo em que perpetua estereótipos de raça. Palavras-chave: Gênero; Raça; Clarice Lispector; Feminismo; Pós-colonialismo. Introdução A maçã no escuro (1999) narra a história de Martim, um homem que está em fuga após ter cometido um crime. Depois de se esconder por duas semanas em um antigo hotel, afastado por 50 km da estrada principal, Martim foge mata adentro, “no coração do Brasil” (LISPECTOR, 2013, p. 20). Após passar dois dias caminhando no campo, Martim encontra a fazenda da personagem Vitória, a qual decide por abriga- lo, em troca de trabalho. Quando Martim chega ao sítio onde se passa quase a totalidade da narrativa, ele é um desconhecido da região e possui uma aparência animalizada, destoando das outras pessoas. Mesmo assim, ainda que seu comportamento estranho despertasse suspeita na personagem Vitória, ao fim do

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GÊNERO E RAÇA EM A MAÇÃ NO ESCURO, DE CLARICE LISPECTOR

Michelle Cerqueira César Tambosi (UEM)

[email protected]

Resumo

Esse artigo focaliza representações de gênero e raça no romance A maçã no escuro, de Clarice Lispector. O objetivo dessa pesquisa era compreender de que modo construções de gênero e raça foram trabalhadas no texto literário, e quais relações entre essas construções foram estabelecidas na narrativa. Para isso, comparou-se a caracterização das personagens femininas da obra, bem como das personagens negras, abordando-as por meio de teoria da narrativa e dos estudos feministas e pós-coloniais. A partir da análise verificou-se que a obra debate questões de gênero e rompe com alguns estereótipos atribuídos a essa categoria, ao mesmo tempo em que perpetua estereótipos de raça. Palavras-chave: Gênero; Raça; Clarice Lispector; Feminismo; Pós-colonialismo.

Introdução

A maçã no escuro (1999) narra a história de Martim, um homem que está em

fuga após ter cometido um crime. Depois de se esconder por duas semanas em um

antigo hotel, afastado por 50 km da estrada principal, Martim foge mata adentro, “no

coração do Brasil” (LISPECTOR, 2013, p. 20). Após passar dois dias caminhando no

campo, Martim encontra a fazenda da personagem Vitória, a qual decide por abriga-

lo, em troca de trabalho. Quando Martim chega ao sítio onde se passa quase a

totalidade da narrativa, ele é um desconhecido da região e possui uma aparência

animalizada, destoando das outras pessoas. Mesmo assim, ainda que seu

comportamento estranho despertasse suspeita na personagem Vitória, ao fim do

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primeiro diálogo entre eles, narrado em tom de embate, ela acaba por concordar com

a sua presença temporária no sítio, para a realização de algumas tarefas

necessárias. Vitória será representada como uma antagonista de Martim, e também

a principal figura feminina da obra, caracterizada como uma personagem forte,

audaciosa e corajosa.

Há ainda outras duas personagens femininas adultas que vivem no sítio:

Ermelinda, prima de Vitória, e a jovem cozinheira negra, não nomeada. A cozinheira

e sua filha criança são as únicas personagens do sítio as quais não é atribuído um

nome, sendo designadas, durante a narrativa, como ‘a mulata’ e ‘sua filha’, ou ‘a

criança’, ‘a criança negra’.

Essa análise partirá do terceiro estágio proposto no esquema dos três

estágios de desenvolvimento da crítica literária feminista, formulado por Elaine

Showalter, uma das criadoras da crítica literária feminista nos Estados Unidos.

Conforme introdução de Cherryl Glotfelty (1996), esse estágio parte de uma ampla

variedade de teorias, com a finalidade de levantar questões relacionadas à

construção simbólica de gênero e sexualidade no discurso literário, expandindo aqui

o olhar sobre essas questões também para a categoria de raça.

Desenvolvimento

Partindo da caracterização de gênero das personagens femininas de A maçã

no escuro (1999), a análise se volta para a personagem principal Vitória. Sendo ela

uma mulher de mais de cinquenta anos, a idade da personagem gera motivo para

diferentes reflexões de gênero, como se pode verificar no trecho seguinte:

Pois então também não julgue, ao ver uma mulher envelhecida cuidando de uma fazenda, que essa mulher é apenas uma mulher envelhecida cuidando de uma fazenda, disse com grande autoridade como se tivesse dito alguma coisa inteligível (LISPECTOR, 1999, p. 256).

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Aqui é possível depreender o esforço que era para aquela mulher dirigir a

fazenda, envelhecida e exigindo ser vista, além disso, questionando a ideia de que

uma mulher velha não tivesse uma história e uma personalidade relevante. Não

apenas relevante, mas significativa, a narradora descreve a personagem como “uma

mulher que um dia encontrou uma chave” (LISPECTOR, 1999, p. 25), como se ela

soubesse de algum segredo não compartilhado pelas outras pessoas. É da mesma

personagem a denúncia do silenciamento feminino, por meio da frase

reivindicatória: “é que uma mulher uma vez tem que falar” (LISPECTOR, 1999, p.

275).

Mas é, sobretudo, a partir da narração de uma discussão entre Vitória e

Martim, que se pode notar a caracterização de Vitória enquanto uma mulher forte,

destemida e ambiciosa, diferente do padrão designado para a feminilidade pela

sociedade patriarcal: “Medo? ela? Seu impulso foi o de rir, como se o riso pudesse retrucar ao absurdo. Medo! Abanou a cabeça, incrédula. Ela que dirigia a fazenda com pulso de homem? Ela que mandava naquele homem ali em pé, sem medo de si nem dele? Ela que surdamente lutara contra a seca e a vencera! ela que soubera esperar que chovesse. Medo! Ela que andava com suas botas sujas e com o rosto exposto sem ter medo de jamais ser amada. Ela que dilapidava corajosamente a herança do pai para manter aquela fazenda funcionando, sem sequer saber para quê, corajosamente à espera do dia incerto em que aquele sítio seria o maior da zona, e então ela pudesse enfim abrir as cercas. Medo?” (LISPECTOR, 1999, p. 264-265).

Ainda que, o estereótipo masculino do pulso como metonímia de firmeza seja

reproduzido, esse é associado à personagem feminina, o que configura se não uma

total ruptura, pelo menos um deslocamento desse estereótipo de gênero. Verificam-

se rupturas com o estereótipo de gênero também quando Vitória reconhece em si a

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capacidade de mandar em um homem, de não temê-lo, de não temer tampouco

expor seu rosto envelhecido ou de não temer nunca ser amada – sendo o amor

considerado o destino mais promissor para as mulheres. Os seguintes trechos

exemplificam porque para Vitória era um ato de coragem expor seu rosto: “Eu era

moça, eu não tinha um pingo de pintura no rosto, eu era linda, idealista”

(LISPECTOR, 1999, p. 280); “Até bonita ela fora! até jovem ela fora – coisas que

jamais seria no futuro” (LISPECTOR, 1999, p. 280). Outras rupturas também podem

ser verificadas quando a mesma personagem reconhece sua capacidade de

administrar a fazenda a partir dos recursos financeiros herdados pelo pai, e na sua

ambição de que o sítio fosse o maior da zona. Acentuado pela palavra medo em

anáfora: esse sentimento é confrontado pela mulher que se conscientiza de suas

próprias coragens, ainda que depois confesse sentir medo também: “Lembrou-se

de como uma vez aceitara humilde o medo como quem se ajoelha e de cabeça

baixa recebe o batismo. E de como sua coragem, daí em diante, fora a de viver com

o medo” (LISPECTOR, 1999, p. 265).

Mas se o corpus debate a opressão de gênero, ao ter como temática o

suposto feminicio da esposa de Martim, e chega mesmo a desconstruir alguns

estereótipos de gênero, com a opressão e, principalemnte, com os estereótipos de

raça não acontece o mesmo. As personagens negras do corpus: a jovem

cozinheira do sítio e sua filha criança são as únicas personagens do sítio, o local

central da narrativa, que não recebem um nome próprio. De acordo com o

Dicionário de teoria da narrativa, de Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1988), o

nome próprio, junto à caracterização e o discurso das personagens, configuram-se

como os principais processos de identificação dessas. Ao chamar as personagens

negras pela sua cor – mesmo que com beleza na descrição dessa cor: “A vida se

arranjara nela de modo escuro e doce” (LISPECTOR, 1999, p. 106) – a narradora

estabelece uma desumanização dessas personagens, negando-as uma

personificação identitária individual.

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A cozinheira e sua filha também recebem pouca representação psicológica

– a criança menos ainda – e junto do empregado Francisco, são as únicas

personagens planas da narrativa, dentre os moradores do sítio. Ao longo do

corpus, a moça negra é retratada pela repetição do estereótipo do negro alegre e

servil, como se pode verificar a partir da percepção de Martim e da narradora, no

trecho seguinte:

Não olhara uma vez diretamente para a mulata. Mas ela ria, E uma força pacífica acordara nele. Era um poder – ele bem se lembrava ainda. Alerta, sem nenhum plano, ele esperou dia após dia pelo momento em que faria a mulata deixar de rir. Tanto a mulata como a criança o observavam dissimuladas de longe sem se aproximar. Quanto à criança, Martim evitava-a, confuso, evasivo. Mas a mulher ria muito. Na verdade pode-se dizer que ria demais. Sem um pensamento, ele sabia o que significava o riso. E às vezes era como se o riso fosse um mugido: ele então erguia a cabeça, atordoado, chamado, poderoso. Mas aguardava. Como se a paciência fizesse parte do desejo, ele aguardava sem se apressar. A mulata era uma larga natureza, tão larga quanto o seu riso – ela ria antes de saber de quê (LISPECTOR, 105-106, grifo nosso).

Primeiramente, cabe ressaltar que o termo ‘mulato’, segundo o livro de

termos Key concepts in post-colonial studies (2001) é utilizado pelo discurso

racista e escravocrata como forma de se referir a uma pessoa miscigenada. Além

disso, a narradora descreve a atração de Martim pela moça negra como instintiva,

o que se poderia justificar pelo fato dele estar experimentando um estado animal.

Contudo, não se explica o porquê da personagem animalizada não sentir também

atração pela outra fêmea jovem da casa, Ermelinda, que, inclusive, está

constantemente assediano-o. A retratação da moça negra como uma fêmea

reitera a associação da negritude com animalidade, como se as pessoas negras

pertencessem somente à esfera da natureza, destituídas de cultura, elaboração

cognitiva, complexidade mental... Junto a isso, a caricaturização do riso reforça o

estereótipo da pessoa negra sempre feliz, dona de uma felicidade infundada,

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como num estado de alienação de si mesma. A felicidade, junto ao lúdico e o

corpo fazem parte das únicas qualidades possíveis, sempre atribuídas aos negros

na tradição colonial, repetida no discurso narrativo. A perspectiva pela qual a

personagem negra é vista pela narradora perpetua o olhar branco que atravessa o

negro, ou seja, que não o olha em sua realidade e que ignora a complexidade que

é um ser humano em sua integridade.

Considerações finais É possível perceber com a presente análise que, apesar da escritora Clarice

Lispector ser uma referência enquanto uma das únicas mulheres escritoras que

chegou ao posto de cânone da literatura Brasileira, e, apesar do pioneirismo com o

que a autora instaurou temáticas existencialistas, sociais e ecológicas na literatura

escrita por mulheres, sua literatura não pode ser considerada emancipatória para

todas as mulheres oprimidas. Isso porque a categoria mulher não é universal.

O feminismo interseccional, bem como o ecofeminismo são teorias filosóficas

e feministas que apontam, embora se utilizando de diferentes termos para fazê-lo, a

necessidade de que se compreenda o lugar de fala do sujeito da enunciação

discursiva, para que se possa compreender, assim, o alcance e a limitação do

entendimento daquilo sobre o que fala. O lugar de fala de onde parte a autora é o de

mulher da primeira metade do século XX, branca e de classe econômica média-alta.

Disso depreende-se o tratamento racista e burguês que a autora confere às

personagens negras do romance, repetindo estereótipos colonialistas e negando

uma individuação dessas personagens, como se elas pudessem ser identificadas

apenas com o papel social a que pertencem, sendo esse, ainda, um lugar de

subalternidade.

Referências

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ASHCROFT, B. GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H. Post-colonial Studies: the key concepts. Second Edition ed. New York: Routledge, 2007. GLOTFELTY, C; FROMM, H. The ecocristicism reader: Landmarks in literary ecology. Athens / London: The Univ. of Georgia Press, 1996. LISPECTOR, C. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. REIS, C; LOPES, A C M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: editora Ática, 1988.