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Coleç,ão LITERATURA E TEORIA LITERÁRIA
VaI. 7Direção de:Antonio CaUadoAntonio Candid'o
FICHA CATALOGRAFICA
(Preparada pelo Centro de Catalogação-na-/onte doSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ)
Goldmann, Lucien.G572s Sociologia do romance; tradução de Alvaro Ca·
bra!. Rio de Janeiro, paz e Terra, 1976.223p. 21cm. (Literatura e Teoria Literária,
V. 7).
Do original em francês: Pour une sociologiedu romano
1. Malraux. André, 1901- • 1. CrItica e inter-pretação. 2. Romance - Aspectos sociais. 3. Ro·mance - Filosofia. I. Titulo. 11. Série.
CDD - 809.3CDU - 82·31.09
82·31:30182Malraux.06
76·0171
LUCIEN GOLDMANN
SOCIOLOGIA DO ItOMANCE
Tradução deAlvaro Cabral
2~ edição
ElJPaz e Terra
(',
Introdução aos Problemasde uma
Sociologiado Romance
QUANDO HÁ 'dois anos, em janeiro de 1961, o Institutode Sociologia da Universidade Livre de Bruxelas nos propôstomarmos a direção do grupo de pesquisas de sociologia daliteratura e consagrarmos os nossos primeiros trabalhos a umestudo dos romances de André Malraux, aceitamos essa ofer~ta com muita apreensão. Os nossos trabalhos sôbre a socio~logia da filosofia e da literatura trágicas no século XVII nãonos deixavam prejulgar, de maneira alguma, a possibilidadede um estudo sôbre uma obra romanesca e, ainda menos, umaobra romanesca escrita em época quase contemporânea. Comefeito, durante o primeiro ano, empreendemos sobretudo umapesquisa preliminar abrangendo os problemas do romanceenquanto gênero literário, pesquisa para a qual partimos do
'~ texto, hoje quase clássico ,- se bem que ainda pouco conhe~
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cido na França __ de Georg Lukács. La Théorie du Romam1e do livro que acabara de ser publicado. da autoria de RenêGirard. Mensonge Romantique et Verité Romanesque,2 noqual o autor reencontrava. sem as mencionar (e. como nosdiria depois. sem as conhecer) I as análises lukácsianas. modificando-as em vários e determinados pontos.
O estudo de La Théorie du Roman e do livro de Girardlevaram-nos a formular algumas hipóteses sociológicas quenos parecem particularmente interessantes e a partir das quaisse desenvolveram as nossas pesquisas ulteriores sôbre os ro-mances de Malraux.
Essas hipóteses dizem respeito. por uma parte. à homologia entre a estrutura romanesca clássica e a estrutura datroca na economia liberal; e, por outra parte. à existência decertos paralelismos entre suas respectivas evoluções ulteriores.
Comecemos por traçar as grandes linhas da estruturadescrita por Lukács e que caracteriza, se não a forma romanesca em geral, como êle pensa, pelo menos um de seUS aspectos de maior importância (e que. provàvelmente, do ponto de vista genético, é o seu aspecto primordial). A_fs>rmade rom_anc':...~e:._~~~~~,~,st~c!~__~.él..que caracteriza a. exist~ESLª ...".º~,J1J!!h~r.ói romanes<:()p()rçle ddin.id(), com muita .kU9SIªcl~, na expressão herói problemáticQ •.~"
O romance é a história de uma investigação degradada____ --:- . ".. .__ __ ,,.,.. f ,,-,.,', .,-
(a que Lukács chama "demoníaca], pesquisa de valôr~s all':!êntic~<?:'~!J.ll·~iri~tiªs>taÜ1hémdegradado, mas em um nível c!!,Y~!:§,all1enteadiantado e de modo diferent~ ..
1 posteriormente, essa obra foi publicada em francês, em livro debôlso, por Éditions Gonthier. [N. do T: Há uma edição em língua portuguêsa, A Teoria do Romance, trad. de Alfredo Margarido, Ed. Presen-ça, Lisboa.)2 René Girard, Mensonge Romantique et Vérité Romanesque, Paris,Grasset, 1961.3 Entretanto, devemos indicar que, em nossa opinião, o campo de va-lidade dessa hipótese deve ser restringido, porquanto, se ela se aplicaa obras tão importantes na história da literatura quanto Dom Quixote,de Cervantes, O Vermelho e o Negro, de Stendhal, Madame Bovary eEducação Sentimental, de Flaubert, só muito parcialmente é aplicável àCartuxa de Parma e, de maneira alguma, à obra de Balzac, que ocupaum lugar considerável na história do romance ocidental. Contudo, talcomo nos são apresentadas, as análises de Lukács permitem, parece-nos,a realização de um sério estudo sociológico da forma romanesca.
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Por valôres autênticos devemos compreender, bem entendido, não os valôres que a crítica ou o leitor julgam autênticos,mas aquêles que, sem estarem manifestamente presentes noromance, organizam, de modo implícito, o conjunto de seuuniverso. É óbvio que êsses valôres são específicOS de cadaromance e diferem de um romance para outro.
§.~!l,c:l.Q,º..roD1é1!l"c;~.!:1~3.~11.e:r()~J?ic:().._<:_a.!a.(;!.~riz,ado,contrªlj?m~!lj:_~__ª,~PQpçiª Q),lªº.ç()!lt(),pçJª rtlptura. ..in-gupe:rAY'-ªentre -ºJ.l,~r.ºJ_~,()..m1Jl,lciº,e,n.<::ºJlttª=.§~.."gmLllkJ!ç.LlJIQª._ªn.ill~ºª_!lª!t,t.r.~?=a,cIa§.,çltlª§.d~gra.cIações( a do herói ,e a c:l<::>D1!1PàºLqtl~_ c:l~Y~.J:J:!.. ~l1gendfar, simultâneamente, uma oposição
i::tJ{áZJ~1~}ki::{:~~iã~:~:~i~rf~~I~~:1~a~~I~~~~'~rfli~.~E,ica.
A ruptura radical, com efeito, só redundaria em tragédiaou poesia lírica; a ausência de ruptura, ou a existência deuma ruptura apenas acidental, teriam conduzido à epopéia ouao conto.
Situado entre êsses dois pólos, o rOE!ª.I.!c;epº.~~!:1it1~él._nªt.t1l'~z;aclié1Jética!la medida em.'.que, .precisamente, partici:-E~ ..PQl'ulll Jaclo,dac()mullidade fl1n.c1amel1taldo herói e c12lllunc:lQ,que tôda. a f()f!l1a épica supõe, e, por ()utra parte;:c:l~~uarllptura ..insuperável; a (;<:>munidadedo herói e do mundo,f~§,tlI!ª,p'gis •..d.o Ja.to. de .élmbQSestare;m degradad()s em. relélç,ª(ja9s valôres autêntic()1>,~~Ea oposiç-ª().ª~c:()~r.~.ªélAJ~ferença de naturezaentre.sada uma dessas degradações.
O herói demoníaco' dorôiIúince é um louco ou um crimi-, I.1-º,!3º~.:..e:ll1tgc:l()ocaso, comojãCfissemos, umpers()l1ªggmprQ
~{E!.'!!:?:fí.c(). euja . busca degradada e, por ..isso, .inªt1!~g.!.i.çª._._c;teyétlê>l'-,,~ILau!~nticosnum mundo de conformismo e convenção,constitui o conteúdo. dêsse,nô.y.º ..gêl1eroliter{gJ9gtle O§f;.§.critores criaram na sociedade individualista e a que chamaram"romance". . .-)\partir dessa análise, Lukács elabora uma tipologia do[()map<:e. Baseando-se na relação entre o herói. e o mundo,distingue ..três- tipos·'esq~-~g1.ãticos A·or()D1an(;~...()C:,~ª':~!~..!10século XIX, aos quais se junta um quarto que já constihliuma transformação d6gênero'r6manesco no sentido de novasmodalidades e que exigiria uma análise de um ti}'odiferente.Essa quarta possibilidade' pareceu a Ltikãcs. em 1920,expifmir-se sobretudo nos romances de Tolstoi, que se orientavam
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para a epopéia. Quanto aos outros três tipos constitutivos doromance, sôbre os quais sua análise indde, são os seguintes:
a)'O romance do "idealismo abstrato": caracterizadopelá.' atividade do herói e por sua consciência demasiado estreita em relação à complexidade do mundo. (Dom Quixote,O Vermelho e o Negro.)
b) O romance· psicológico, orientado para a análise davida interior, caracterizado pela passividade do herói e suaconsciência demasiado vasta para contentar~se com o que omundo da convenção lhe pode propiciar (a êste tipo pertencem Oblomov e Educação Sentimental). Finalmente,
c) O romance educativo, optando por uma autolimitação que, embora constitua uma renúncia à pesquisa problemática, não é, entretanto, uma aceitação do mundo conven~cional, nem um abandono da escala implícita de valôres ,autolimitação essa que deve caracterizar~se pela expressão"maturidade viril" (Exemplos: Wilhelm Meiste.r, de Goethe,e Heinrich, o Nooato, de Gottfried Keller).
As análises de Rent.GJté3:E2.t.há quarenta anos de distân~da, coincidem freqüentemente com as de Lukács. Também
para êle .2....!Q!!l_~S~__~.<l_hj~!~~~1~~~<:lJ:~1,1~S_<:i__~9!<lclé19.é1La.g!!~ .._~J':._.s:_h.ªrp~__}dólª!~'l.:"Lcle. vª êlres..atl.t~l1!iç().s!.p()t um h~~r<5l.EEs:>l:'.le~átic:(),l1t1!llmtlndodegradado._ A terminologia usa":.da por Girard é de origem heideggeriana, mas confere~lhe,com freqüência, um conteúdo muito diferente daquele queHeidegger lhe atribui. Sem nos estendermos na apreciaçãodêsse aspecto, diremos que Girard, em lugar da dualidadeassinalada por Heidegger entre o ontológico e o ôntico, uti~liza a dualidade sensivelmente vizinha da ontológica e da me~ta física que corresponde, para êle, ao autêntico e ao inautên~tico; mas ao passo que, para Heidegger, tôda a idéia de avan~ço e de recuo deve ser eliminada, Girard ~onfere à sua ter~minologia do ontológico e do meta físico um conteúdo muitomais próximo c:lasposições de. Lukács que das de Heidegger,ao introduzir entre os dois têrmos uma relação regida pelascategorias de progressão e regressão.4
4 No pensamentode Heidegger,como, aliás, no de Lukács, verifica-seuma ruptura radical entre o Ser (em Lukács,a Totalidade) e tudo aquilo
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·F
A tipologia do romance, de Girard, repousa na idéia deque a degradação do universo romanesco é o resultado deum mal ontológico mais ou menos avançado (êsse ..mais oumenos" é rigorosamente contrário ao pensamento de Heidegger), ao qual corresponde, dentro do mundo romanesco,um incremento do desejo. metafisico, isto é, do. desejodegradado.
Portanto, é uma tipologia baseada na idéia de degrada~ção, e é nesse ponto que Girard confere à ·análise lukácsiann uma precisão que nos parece particularmente importante.Em sua opinião, com efeito, a degradação do mundo roma ..•nesco, o progresso do mal ontológico e o incremento do desejo metafisico manifestam~se por uma mediatização mais oumenos grande, que aumenta progressivamente a distância en~tre o desejo metafisico e a pesquisa autêntica, a busca da"transcendência vertical".
de que se pode falar quer no indicativo(juízo de fato), quer no imperativo (juízo de valor).
~ essa diferença que Heideggerdesigna como a existente entre oontol6gicoe o ôntico. E, nessa perspectiva,a metafísica,que é uma dasformas mais elevadas e mais genéricas de pensamento no indicativo,sobra, em última análise, do domíniodo ôntico.
Concordantesno que respeita à distinção necessáriado ontol6gicoe do ôntico, da totalidade e do te6rico, do moral ou do metafísico,asposições de Lukács e de Heidegger são essencialmentediferentes namaneira de conceberemas relações entre êsses têrmos.
Filosofiada Hist6ria,o pensamentode Lukácsimplicaa idéia de umdevir do conhecimento,de uma esperança de progressoe de um riscode regressão.Ora, para êle, o progressoé a aproximaçãoentre o pensamento positivoe a categoria da totalidade, a regressãoé o afastamentodêsses dois elementos fundamentalmenteinseparáveis,competindo precisamenteà filosofia promover a introdução da categoria da totalidadecomo base de tôdas as pesquisasparciais e de tôdas as reflexõessôbreos dados positivos.
Heidegger,pelo contrário, estabeleceu uma separação radical (e,por isso mesmo,conceptuale abstrata) entre o Ser e o da4o,entre oontológicoe o ôntico, entre a filosofiae a ciênciapositiva,eliminando,assim,tôda a idéia de progressoe de regressão.Chegoutambém a'umafilosofiada História, mas uma filosofiaabstrata nessas duas dimensões,o autênticoe o inautêntico,a abertura para o Ser e o esquecimentodoSer.
Como se vê, se a terminologiade Girard é bem de origemheideggeriana,a introduçãodas categoriasde progressoe regressãoaproximamno das posiçõesde Lukács.
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Na obra de Girard abundam os exemplos de mediação.os romances de cavalaria que se interpõem entre o Dom Ql1i~xote e a busca dos valôres cavalheirescos, o amante que seinterpõe entre o marido e o seu desejo da mulher, em OEterno Marido, de Dostoievski. Os seus exemplos, aliás, nemsempre nos parecem escolhidos com a mesma felicidade. Tam~bém não estamos muito certos de que a mediatização sejauma categoria tão universal do mundo romanesco quanto Gi~rélrd a julga. O têrmo degradação parece~nos mais amplo emais apropriado, desde que, bem entendido, se precise a na~tu,reza dessa degradação quando se procede a cada análiseparticular.
Por outra parte, ao estabelecer a categoria de mediação,elucidando~a e exagerando mesmo a sua importância. Girarddotou a análise de uma estrutura que comporta não só a for~ma de. degradação mais importante entre as que caracterizamo mundo romanesco, mas, muito provàvelmente. também aforma que é geneticamente primordial, aquela que fêz nascero gênero literário do romance, ao ter sido êste engendradoem conseqüência de outras formas derivadas de degradação.
A 'partir daí, a tipologia de Girard baseia~se, em pri~meiro lugar. na existência de duas formas de mediação, in~terna e externa, a primeira caracterizada pelo fato de o agentemediador ser exterior ao mundo em que se desenrola a buscado herói (por exemplo, os romances de cavalaria. no DomQuixote), a segunda pelo fato de o agente mediador fazerparte dêsse mundo (o amante em O Eterno Maddo).
'Girard coloca nesses dois grandes grupos qualitativa~mente diferentes a idéia de um progresso da degradação. oqual se manifesta pela proximidade crescente entre o perso~nagem romanesco e o agente mediador, e a distanciação cres~cente entre êsse personagem e a transcendência vertical.
Tentemos agora esclarecer um ponto essencial em queLukács e Girard estão em desacõrdo fundamental. Históriade tlma pesquisa degradada de valôres autênticos em um mun~do inautêntico, o romance é, necessàriamente. biografia e crô~nica social. ao mesmo tempo; fato sobremodo importante, asituação do escritor em relação ao universo que êle criou é,no romance, difer'rnte da sua situação em relação ao universode tôdasas outras formas literárias. A essa situação parti~cular chama Girard humor; Luckâcs, ironia. Ambos estão de
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acôrdo em que o romancista deve ultrapassar a consciência deseus heróis e que essa superação (humor ou ironia) é este~ticamente constitutiva da criação romanesca. Mas os doisdivergem sôbre a natureza dessa superação e. nesse ponto. éa posição de: Lukács que nos parece aceitável, e não a deGirard.
Para GJrard. o romancista. no momento em que. escreveua sua obra, abandonou o mundo da degradação para reen~contraI' a autenticidade, a transcendência vertical. E por issoque êle pensa que a maioria dos grandes romances conclui poruma conversão do herói a essa transcendência vertical, e queo caráter abstrato de certos fins (Dom Quixote, O Vermelhoe o Negro, poderíamos citar também A Princesa de Clev'es)é uma ilusão do leitor, ou o resultado da sobrevivência dopassado na consciência do escritor.
Semelhante afirmação é rigorosamente contrária à esté~tica de Lukács. para quem tôda a forma literária (e tôda agrande forma artística, em geral) nasce da necessidade deexprimir um conteúdo essencial. Se a degradação romanescafôsse verdadeiramente ultrapassada pelo escritor. e mesmopela conversão final de certo número de heróis. a históriadessa degradação não seria mais que a de um incidente for~tuito, e sua expressão teria, no máximo, o caráter de umanarrativa ou relato mais ou menos divertido.
Contudo, a ironia do escritor, sua autonomia em relaçãoaos seus personagens, a conversão final dos heróis romanes~cos, são realidades incontestáveis.
Lukács pensa, todavia, nue precisamente na medida em.-._.--_ -- - ' ..- __._. __ __ .• :;1 .-~.~---",.".,.----".,-----., h,h -' ••• '''-, ······a- .. ".QJlLº_rºmªnç~.ça ..crIaçã() i1!lagilláriélcle Ul11!:1niyersoregi .0
~lª_~_~gEª_ci.ªçªot}nilJ~~~?.?,,~ssasuperação não poderiadei)(<;l!g,,~.§l~!'Le:lªprópria, degradada, abstrata, conceptual e não vi~vida como realidade concreta.
b_.!E2i1.!~ª()_~o;p~~~i.~tiiriJI.tli,..segundo ~ukács, não só no.hgl'QL de que êle conhece o caráter demoníaco, mas tambémsôbr~ o caráter abstrato-e, --pcir- isso mesmo, insuficiente e· de
...gradado de sua própria con,sçi~n_çJª.. Eis. 2 1110tiY9._P9t.que ahistória. da pesquisa degradada, demoníaca ou idólatra, cbn
.!il1ua sendo sempre a única possibilidade de expriIllil'<.isrea~Jic1ªclgs._.~::;§~!1çiªi.s,
A conversão final de Dom Quixote ou de Julien SoreInão é, como acredita Girard, o acesso à autenticidade, à trans~
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cendência vertical, mas, simplesmente, a tomada de consciên~cia da vaidade, do caráter degradado, não só da busca ante~rior, mas também de tôda a esperança, de tôda a buscaperdida. .
Por isso a conversão é um fim, e não um comêço. E éa existência dessa ironia (a qual é sempre, também, uma auto~ironia) que permite a Lukács duas definições afins, que nosparecem particularmente felizes, dessa forma romanesca: Ocaminho começou, a viagem terminou, e O romance é a formada maturidade viril, esta última fórmula definindo mais pre~cisamente, como já vimos, o romance educativo, do tipoWilhelm Melster, que conclui por uma autolimitação (renún~da à busca problemática. sem que por isso seja aceito o mun~do da convenção, nem abandonada a escala implícita devalôres) .
A.~J.!!1Lº1:'011lance,no s~:t:ltidoque lhe emprestam Lukács,e Girard •...~~rj.~tl11l.g~~~!:QJ!le..r_~Ei().J1ºQ!1a.1Q$valôres autên~.tJC:::º$,t~11lª.per:11lanente.de discussão. nãosei1presenta11lnaQbga...sob ....a.Jºr:m.ª--º~ ..pgrsOnagens cOllscientes ..ou. de realida~g~$ç()!1Çl:etª.s~_:t;:SSesvalôres existem apenas enl f().t'11li1alºstra~ta ...\?;. conceptualnaconsciência do romancista, onde .sereves:,i:~tn de.tl.11lc:::arãt~~ético. Ora. as idéias abstratas não têm
Jygar numa obr~ literária. onde constituiriam um elementoheterogêneo.
Port~ntº"",,Q3J1:'gl:>le11lc:L<:,Iºrº11la!1Ceé fazer do que na coA.S.:.ciência do romancista é abstrato e ético o elemento essencialde uma Qbra onde essa realidade não existiria senão à llla:neirade .. u11la.<:lusência não tematizada (mediatiZ<:lda. diriª.Girard)pu,o queé equiv<:llellte, de uma presença degradada ..•.Como escreve ~ukács, o romance é o ..úD:ic()g~ne:go literárigem .qug;éi.çtica c1o.romancista converte;'se empr.oPle1J!a..est~::ticoda obra.
Ora, o problema de uma sociologia do romance preo~cupou sempre os sociólogos da literatura sem que, até hoje,ao que nos parece, tenha sido dado um passo decisivo nocaminho da sua elucidação. NQ_Jt.t:t:ldo•.sendo o romance, du~rante tôda a primeira parte da Stla..histé>ria, uma biografia'e ulll"lcrônica social. sempre foi possível mostrar que a crô,:_nIca social refletia, mais ou menos, a sociedade da época, epara fazer .essélverjÊicação; francamente, não é precisos"ersociólogo.
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~
Por outra parte,. passou também a ser motivo de atenção. a transformação do romance depois de Kafka, .bem como asanálises marxistas da coisificação. Convém dizer que. nessestatos. os sociólogos sérios deveriam ter visw antes um pro~blema do que uma explicação. Se é evidente que o mundoabsurdo de Kafka, de O Estrangeiro, de Camus, ou o mundocomposto de óbjetos relativamente autônomos, de Rdbbe~Grillet, correspondemà análise 'da coisificação, tal como foidesenvolvida por Marx eos marxistas ulteriores. surge o pro~blema de saber por que motivo, quando essa análise foi e1a~borada na segunda metade do século XIX e dizia respeito aum fenômeno cujo aparecimento se situa muito antes, êssemesmo fenômeno só se manifestou no romance depois dofim da Primeira Guerra Mundial.
.g!ll."E9.~.(",ê.~j)é!!~Y~~ê.!..."~9.~?_~~~s.~.~...aná!is,es incidiam sôbrea relação de. certos elementos do. conte}údÔdãlIteratü"i'à-foiiià:'i1eSêã-e--d"ã-e:ids'teri'C1ã "de" uma réaHaaaesodárqüe"tâis-~i~~~~~tos refleúâm-sem-fiiiis···õsi.ção~'·ou"cõm"·õ··ãi.txínõ-de·ümãtrãns~___ . _..__ _ __J) _._~ __ __ ._ __ __ .
.Rº-~!Ǫº_.t!1-ªi.s_..Q!1_m~no~ transparente.Ora, Q_J~.rimeiro.2.!.9J?k~é!..~...E.!!!..é!...~2.ciologiado_..ro~~!!:,
~s-~ri"·~~~I~~Éitã?d~?~i~6~~~cfalt~nd!~?I~~i ..~{_s~!v~I~t!~iº-~E··~º::sºli1a:n:(i·c()In2:•..9I!i~i~Ji.t~J:ãr{º ...~.ciª .._.m-º(kr.iii~s5>~ciedade individualista.. Parêce~Ilos,hoTe.eiue a reunião das análises de Lukácse de Girard, embora tenham sido elaboradas, tanto uma comoa outra, sem preocupações especificamente sociológicas, per~mite, se não elucidar inteiramente êsse problema, pelo menosdar um passo decisivo no rumo do seu esclarecimento.
Acabamos de afirmar, com efeito, que .().r.Q11lª11c:.ec:élJ:ac~tetiza~se.comQa .históJ:ia ...de.:tgpélPe:sq uisa ..<:l.e..Y:ªJº.J:'~.s.. ªt!t~!1,tiç()SdgJJlU .modo ..degradado, ..J1U.ma.sociedad.e.._de.gr.adada..._d.e~g.r.ad.a.ção..que •..llQ.tQÇallteélQ.heIQJ,.mallifes.t.a.:.s~..p.J:'L1}.c:::ip_illme:tkte.P e:la...1!le:diélti:.::açãQ,..pela .xe:ºuçãQ_de:.xªlªJ:~!~."ª!!têntic;º§_a-ºnível im plíci to. e ao seu desªR<:!r~c:i~e.ll~9...e.llq.t.:t~Q~()...~e_!:lp.!:~.s..e_J;l.:·i~!!!....c:()~().....r~~!i.9.?4.~.s.."~~11[~3.t!:l~:......!L<:.y&<:.nt~.~~_~~._!!,~!~...~e!L~.(l.~§"~.1j.tur<:lPªrticularmente c()mplexa, e seria difícil ima~
inar' .ueela" 'tÍdesse' ter·llasddoum'díii·a.ãestrUã-Inven:.2ão·indlYk-lúcil, .~~m]i1.iiaªm~iiI9.::.ªIgi1.IP:.iiª~.YriffU;QºªI~ªQ:~gr.~pi
O que seria, entretanto, inteiramente inconcebível, é queuma forma literária de tamanha complexidade dialética rea~
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parecesse, durante séculos, nos escritores mais diferentes, nospaíses mais diversos, tornando~se a forma por excelência emque se exprime, no plano literário, o conteúdo de tôda umaépoca, sem que se verificasse uma homologia, ou uma relaçãosignificativa entre essa forma e os aspectos mais importantesda vida social.
A hipótese que apresentamos, a tal propósito, parece~nosmuito simples e, sobretudo, sugestiva e verossímil, se bem quetenham sido necessários alguns anos para a encontrar.
Com efeito, .,i;lforma romanesca parece~nos ser a transp()~sição paraq plfino literário da vida cotidiana na sociedade in~dividualista nfiscida da produção para o mercado. Existe umahomologia rigorosa entre a forma literária,,-d_Q.rmn_ance, tafcomo acabamos de definir, nas pegadas de Lukács e de Girard,eª relação cotidiana dos homens com os bens em geral; e,por extensão, dos homens com os outros homens, numa socie~dade ..pr.odutora._par ao..m.ercad.o.
A relação natural, sã, dos homens e dos bens é, com efei~to, aquela em que a produção é conscientemente regida peloconsumo futuro, pelas qualidades concretas dos objetos, porseu valor de uso.
Ora, o que caracteriza a produção para o mercado é, pelocontrário, a eliminação dessa relação da consciência dos ho~mens, a sua redução ao implícito, graças à mediação da novarealidade econômica criada por essa forma de produção: ol/a191' de troca.
Nas outras formas· de: sociedade, quando um homem ti~nha necessidade de vestuário ou de casa, devia êle própriofabricá~los ou encomendá~los a umindividuo capaz de pro~duzi~los e que devia ou podia fornecer essas coisas, quer emvirtude de certas regras tradicionais, quer por razões de auto~ridade, de amizade,' etc., quer ainda em contrapaxtida de cer~tas prestações de serviços. 5
5 Na medida em que a troca se mantiver esporádica, porque envolveapenas os excedentes, ou reveste-se do caráter de uma troca de valôresde uso que Os indivíduos ou grupos não saberiam produzir numa economia essencialmente natural, a estrutura mental da mediação não aparece, ou mantém-se em plano secundário. A transformação fundamentalno desenvolvimento da coisifícação resulta do advento da produção parao mercado.
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f
~
Atualmente. para obter vestuário ou casa, é preciso en~contrar o dinheiro necessário à sua aquisição. O produtor deroupas ou de casas é indiferente ao valor de uso dos objetosque produz. A seus olhos, tais objetos não passam de um malnecessário para obter a única coisa que lhe interessa, um va~lor de troca suficiente para assegurar a rentabilidade de suaemprêsa. Na vida econômica,que cOllstitllLªpªrte}l,lªisiD1~portante da vida social moderna, tôda a rel?çãp?),ltgl1tiçacoIDo aspecto qualitativo <los..ºbj~tº.s. eclg~ .s_~r~s~~!lcl~?:_cl.~ê.?:pare.cer, tanto das relações entre osho!l1~l1s ..e..ªê_(:o!Sa!jco1ll,Qdas rel?ções inter~humanas,_para. dar.Juga.r';Luma.l:d.ªçãom~~giatiz.ª,º,ªe._degrad?da: ..fI. relação.com ..os....yalôl'es ..de..J[ocª.,p.u~ramente quantitativos, __
Naturalmente, os valôres de uso continuam existindo eregem até, em última análise, o conjunto da vida econômica;mas a sua ação adquire um caráter implícito, exatamente comoo dos CJalôresautênticos no mundo romanesco.
!isu?lal1o consciente e manifesto, a vida ecqnômicélc,?Ol::p§~::§~de pessoas orientadas exclusivaxnente para os valôrescletr()ca, valôres. degiãdã:aüs:yos<[uais 'se'somãili--·naprõªu~ção alguns individuos ~ oscri~doresein todo§(:ís(folllÍnios.':"q~~s~ .conservam orientàdós, essenciâlmente, ....no'senHdõ 'dos.valôres .de' uso e que;P?fisso mesmo, situam'"se' à 'mar.gem--aâ'sociedade e converteni~se e111jndiCJíduos pr.oºlf.mªtifq-,~: e, 1}ª",
turalmente, mesmo êsses, a menos que aceitem a ilusão (Gi~rard diria a mentira) .ro'mãiiHcã·dariipliira-tô~tate.tifrê'·ã'--essen~çi~e a aparência,en.trea·viClci'interiorea viaª"sõaãr;'~iiªQ,lograriam furtar-se às degr~d.açõ.~s l>()fric!~s.,J1()E._.s.1:!.~_~!!yic!~4.~criadora na sociedade pr0clutorapara o mercado, a partir do.,.instante em que essa a,Sividade se manifeste extel'~~l'tll:~n.~E:L..~~.çonverta em livro, quadro, ensino, composição musical, etc:,des!.mt<;tllC1QdC?:..c:ertopr:estigio e tendo, por. isso ..:QJ&sillQ._,c.eriopreço. Ao que falta acrescentar que, enquanto consumidor fi~naI, oposto, no próprio ato de troca, aos produtores, todo individuo, na sociedade produtora para o mercado, encontra~seem certos momentos do dia na situação de aspirar a valôresde uso qualitativo que não pode atingir senão pela mediaçãodos valôres de troca,
) De fato, a criação do romance como gênero literário nada. tem' de surpreendente. A forma extremamente complexa que.representa na aparência é aquela em que os homens vivem
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11',I'1
1
I ,
II
todos os dias, uma vez que são obrigados a procurar tôda a,qualidade, todo o valor de uso, de um modo degradado, pelamediação da quantidade, do valor de troca, e isso numa so~ciedade onde todo o esfôrço para se orientar diretamente nesentido do valor de uso não teria outro resultado senão engendrar indivíduos também degradados, mas de um mododiferente ---- o do indivíduo problemático.
Assim, as duas estruturas, a de um importante gênero ro~manesco e a da troca, mostram ser rigorosamente homólogas,a um ponto tal que poderíamos falar de uma só estrutura quese manifestaria em dois planos diferentes. Além disso, comoveremos mais adiante, a evolução da forma romanesca quecorresponde ao mundo da coisificação só poderia ser compre ..endida na medida em que estivesse relacionada com uma his~tória homóloga das estruturas da última.
Contudo, antes de tecermos alguns comentários soore essahomologia das duas' evoluções, é preciso examinar o problema particularmente importante, para o sociólogo, do processograças ao qual a forma literária pôde nascer da realidade eco~nômica, e das modificações que o estudo dêsse processo obri~ga a introduzir na representação tradicional do condicionamento sociológico da criação literária.
Um primeiro fato é surpreendente; o esquema tradicio~nal da sociologia literária, marxista ou .não, é inaplicável nocaso da homologia estrutural que acabamos de mencionar ....A.
maioLP-élJ'te_..º-ª.$. __ORJ.as.ge.s.oç!ologiaJitgr.ária '..estél.bd.ece,...çQ.~ .efEátO.J1!:J:1fl..reJa.ção entr.e asobr.él.s literátiél.s.mais jmpor.tant~~eaconsdêrzda .coletiva de. tal e tal grupo social onde aquç!él;~.1lé1scerél!:J:1.Neste.ponto, apQsiçãoIlJ,él.xxistél.Jr:a,dicionél.lnão<:i.!::,ygrge essencialmente do conJuntode.obrél.ssociológicas nã9~marxista.s,em relação às. quaisapenas intr.oduziu quatro id~iasl~Qyas,a}~aber:.. '''.. ,
Jf/( A obra literáriá nãq é o simples reflexo de uma con~ciêíÍcia coletiva real e dada, mas a concretização, num nívelde coerência muito elevado, das tendências próprias de tal outal grupo, consciência que se -deve conceber como uma realidade dinâmiea, orientada para certo estado de equilíbrio. Nofundo, o que separa, neste domínio como em todos os outros,a sociologia marxista das tendências sociológicas positivistas,relativistas ou ecléticas, é o fato de ela ver o conceito funda~
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mental não na consciência coletiva real. mas no conceito cons~truído (zugetechnet) de consciência possível. o único que per~mite a compreensão do primeiro./"
~.. A relação entre o pensamento coletivo e as grandescriações individuais literárias, filosóficas, teológicas, etc., nãoreside numa identidade de conteúdo, e sim numa coerênciamais apurada e numa homologia de estruturas, a qual podeexprimir~se pelos conteúdos imaginários extremamente dife ..rentes do conteúdo real da consciência coletiva.
,ez'( A obra correspondente à estrutura mental dêste oudacfúele grupo social pode ser elaborada, em certos casos(muito raros, é verdade), por um indivíduo com escassas re~lações com êsse grupo. O caráter social da obra reside, so~bretudo, no fato de que um indivíduo Jamais seria capaz deestabelecer por si mesmo uma estrutura mental coerente, cor~respondendo ao que se denomina uma "visão do mundo". Se..melhante estrutura só poderia ser elaborada por um grilpo,podendo o indivíduo imprimir~lhe·apenas um grau de coerên~cia muito ~levado a transpô-Ia para o plano da criação ima ..
ginária,,}o pensamento conceptual, etc.,çl'Y A consciência coletiva não é uma realidade primeira,
nem" uma realidade autônoma; e1abora~se implicitamente nocomportamento global dos indivíduos que participam na vidaeconômica, social, política, etc.
Como se vê, trata-se de teses extremamente importantesque chegam para estabelecer uma enorme diferença entre opensamento marxista e as outras concepções da sociologia daliteratura. Não obstante, e apesar dessas diferenças, verifi~ca~se que, .tª!1!Q ...,gY,ª!!!Q. __ª_,s...ºçJglºgtª,Ji.!~!ªf.i.~LQ9_si!!,yi.~Jª-º:t.t
~~~~~~-0~J~~~C:~i-%f~ii~~~~~ri~~~~~~PnfJ~~'f~~f~trc5~~~__ . P.._ _ ..__ P P ".,_.._ _, ~._ _ _.- ''-Blº§9fi<;º_..§~!1AQ.. ,p.ºI: iIl!~~l:l!~d..iº_..ª<:l.,I::QIl§<:i.~E_~~__~..~~~tiy~.:.
Ora, no caso que acabamos de estudar, o que surpreendeem primeiro lugar é o fato de que, se encontramos uma ho~mologia rigorosa entre as estruturas da vida econômica ecerta manifestação literária particularmente importante, não sepode descobrir qualquer estrutura análoga no nível da cons~ciência. coletiva que parecia, até então, ser o elo intermediá ..
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rio indispensável para realizar, seja a homologia, seja umarelação inteligível e significativa entre os diferentes aspectosda existência social.
O romance analisado por Lukács e Girard já não pareceser a transposição imaginária das estruturas conscíentes de"_t~l1<:l_l!t_é:llgr.l,lp<::lparticular,mas parecee?,pr!Il:lir. pelo contrário,te. talyezsejélêsse o caso. de uma grande parte da arte !E:()~(l~!:l1-ª!_~J:tl:_g~r:al)uma busca de valôr:E:.s..9,:!e nenhum gr~po~ocl91~:kkl:!(:LeL~J~tiyaJ:tl:ente,e que a vida econômica tencl.~a
.JºmªRj~J?l!.fit()s.E:m,. tQdos .os memb.J;()ll.dª§º~~edade:A antiga tese marxista que via no proletariado o único
grupo social capaz de constituir o fundamento de uma culturanova, pelo fato de não estar integrado numa sociedade coi~sificada, tinha sua origem na representação sJciológica tra~dicional que supunha não poder a criação cultural autênticae importante nascer senão de um acôrdo fundamental entre aestrutura mental do criador e a do grupo parcial mais ou me~nos vasto, mas de alcance universal. Na realidade, pelo me~nos no que respeita à sociedade ocidental, a análise marxistarevelou-se insuficiente; o proletariado ocidental, longe demanter-se estranho à sociedade coisificada e de se lhe oporcomo fôrça revolucionária, nela se integrou em grande me~dida, e sua ação sindical e política, longe de subverter essasociedade e a substituir por um mundo socialista, permitiu~lhe assegurar para si mesmo, pelo contrário, um lugar relativamente melhor do que as análises de Marx deixavamprever.
Entrementes, -ª~!'i.ªç.§o cultural, se bem que cada vez..Jllais."ameasadapelª sociedade coisificada, nem por isso ces~sou. A literatura romanesca, tal como, talvez, a criação poética moderna e a pintura contemporânea, são formas autênti~cas de criação cultural sem que as possamos ligar à consciência- mesmoPossÍYeL-deum determinado grupo social.
Antes de abordarmos o estudo dos processos que permitiram e produziram essa transposição direta da vida econômica na vida literária, consignemos que se tal processo pa~rece contrário a. tôda a tradição dos estudos marxistas sôbrea criação cultural, êle confirma, por outra parte, de modointeiramente inesperado, uma das mais importantes análisesmarxistas do pensamento burguês, a saber, a teoria do feti~chismo da mercadoria e da coisificação. Essa análise, que
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'I:
Marx considerava uma de suas descobertas mais importantes,afirmava, com efeito, que nas sociedades que produzem parao mercado (isto. é. nos tipos de sociedade em que predominaa atividade econômica), a consciência coletiva perde progressivamente tôda a realidade ativa, tende a converter-se numsimples reflex06 da vida econômica e, finalmente, a desaparecer.
Assim, era evidente existir entre essa análise particularde Marx e a teoria geral da criação literária e filosófica dosmarxistas posteriores, que pressupunha um papel ativo daconsciência coletiva, não uma contradição mas uma incoerência, não tendo essa teoria geral previsto, em momento algum,as conseqüências para a sociologia literária da afirmação deMarx, segundo a qual, nas sociedades que produzem para omercado, sobrevém uma modificação radical do estatuto daconsciência individual e coletiva, e, implicitamente, das relações entre a infra-estrutura e a superestrutura. A análise dacoisificação, elaborada primeiramente por Marx no plano davida cotidiana, desenvolvida depois por Lukács, no tocanteao pensamento filosófico, científico e político, retomada tllte~riormente por certo número de teóricos em diferentes domí~11iosparticulares e sôbre a qual nós próprios publicamos umestudo, vê~se dêsse modo confirmada, de momento, pelo menos, pelos fatos, numa análise sociológica de certa forma romanesca.
!2Ltº_j~tº,PQe~se a questãQ deapurar coIllQse faz a ligação entre as estruturas ..econômicas e. as "Illanifestações literárias numa sociedade"nde essa llgação tem'1tigarfora da(Q1)sciênda coletiv.?:. . " ".
Formulamos, a tal respeito, a hipótese da ação convergente de quatro fatôres diferentes, a saber:
6 Falamos de uma "consciência-reflexo", quando o conteúdo dessaconsciência e o conjunto de relações entre os diferentes elementos dêsseconteúdo (aquilo a que chamamos a sua estrutura) sofrem a ação decertos outros domínios da vida social, sem agir, por sua vez, sôbre êles.Na prática, essa situação nunca foi atingida, provàvelmente, na realidade da sociedade capitalista. Esta cria, entretanto, uma tendência paraa diminuição rápida e progressiva da ação da consciência sôbre a vidaeconômica e, inversamente, para o incremento contínuo da ação do setoreconômico da vida social sôbre o conteúdo e a estrutura da consciência.
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a) O nascimento no pensamento dos membros da sociedade burguesa, a partir do comportamento econômico e daexistência do valor de troca, da categoria da mediação comoforma fundamental e cada vez mais desenvolvida do pensar,com a tendência implícita para substituir êsse pensamento poruma falsa consciência total, na qual o valor mediador torna-sevalor absoluto, e o valor mediatizado desaparecerá completa~mente; ou, numa linguagem mais clara, com a tendência parapensar no acesso a todos os valôres sob o ângulo da media~ção, com o pendor para fazer do dinheiro e do prestígio socialvalôres absolutos, e não simples mediações que assegurem oacesso a outros valôres de caráter qualitativo.
b) A subsistência, nessa sociedade, de certo número deindivíduos essencialmente problemáticos, na medida em queo seu pensamento e seu comportamento se conservam dominados pelos valôres qualitativos, sem que os possam, entretanto, subtrair inteiramente à existência da mediação degradante, .cuja ação se faz sentir em todo o conjunto da estru~tura social.
Entre êsses indivíduos, situam~se em primeiro lugar todosos criadores, escritores, artistas, filósofos, teólogos, homensde ação, etc., cujo pensamento e conduta são regidos, antesde tudo, pela qualidade de suas obras, sem que possam escapar inteiramente à ação do mercado e ao acolhimento da sociedade coisificada.
c) Não podendo obra nenhuma ser a expressão de umaexperiência puramente individual, é provável que o gêneroromanesco só pudesse nascer e desenvolver-se na medida emque um descontentamento afetivo não conceptualizado, umaaspiração afetiva visando diretamente aos valôres qualitativos,tenham-se gerado no conjunto da sociedade, ou apenas, talvez, entre as camadas médias em cujo seio se recruta a maiorparte dos romancistas.7
7 Neste ponto, surge um problema de difícil solução, por enquanto, eque talvez possa ser resolvido um dia por meio de pesquisas tlociológicasconcretas. É o problema da "caixa de ressonância" coletiva, afetiva enão-conceptualizada, que permitiu o desenvolvimento da forma romanesca.
De início, tínhamos pensado que a coisificação, dada a sua tendênciapara dissolver e integrar na sociedade global os diferentes grupos par-
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d) Existia, enfim, nas sociedades liberais produtoras parao mercado, um conjunto de valôres que, ·sem serem transindi~viduais. revestiam-se, contudo, de um sentido universal e, noseio dessas sociedades, de uma validade geral. Eram os valôres do individualismo liberal ligados à própria existência domercado concorrente (liberdade, igualdade, propriedade, naFrança, Bildungsideal na Alemanha. com suas derivadas, tolerância, direitos do homem, desenvolvimento da personalida ..de. etc.). A partir dêsses valôres desenvolveu~se a categoriada biografia individual, que se tornou o elemento constitutivodo romance no momento em que tomou, entrementes, a formado indivíduo problemático, isto com base em:
1Q A experiência pessoal dos indivíduos problemáticosjá mencionados mais acima, na alínea b;
2Q A contradição interna entre o individualismo comovalor universal gerado pela sociedade burguesa e as limita~ções. importantes e penosas, que essa mesma sociedade im~punha, na realidade. às possibilidades de desenvolvimentodo indivíduo.
gste esquema hipotético parece-nos confirmado. entreoutras coisas, pelo fato de que. quando um dêsses quatro elementos, o individualismo. foi levado ao desaparecimento pelatransformação da vida econômica e a substituição da economiade livre concorrência por uma economia de cartéis e de monopólios (transformação que começa em finais do século XIX,
ciais e, por isso mesmo, a retirar-Ihes até certo ponto suas características específicas, possuía um caráter de tal modo contrário à realidadetanto biológica quanto psicológica do indivíduo humano, que deveriagerar em todos os sêres humanos, num grau mais ou menos forte, reações de oposição (ou, se ela se degradar de modo qualitativamente maisavançado, reações de evasão) que criariam, assim, uma resistência difusa ao mundo coisificado, resistência essa que constituiria o fundoda criação romanesca.
Depois, pareceu-nos, entretanto, que existia nessa concepção umasuposição a priori não controlada: a da existência de uma natureza biológica cujas manifestações exteriores não seriam inteiramente desnaturadas pela realidade social.
Ora, também pode acontecer, perfeitamente, que as resistências,mesmo afetivas, à coisificação, estejam circunscritas a certas camadassociais, ° que deverá forçosamente delimitar a pesquisa positiva.
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mas cujo auge qualitativo a maioria dos economistas situa en~tre 1900 e 1910), assistimos a uma transformação paralelada forma romanesca que redunda na dissolução progressivae no desaparecimento do personagem individual. do herói;transformação que nos pareceu caracterizada, de maneira extremamente esquematizada, pela existência de dois períodos:
. a) O primeiro, transitório, durante o qual o desaparecimeÍ1to da importância do indivíduo acarreta as tentativas desubstituição da biografia como conteúdo da obra romanescapelos valôres nascidos de ideologias diferentes. Pois se, nassociedades ocidentais, êsses valôres revelaram-se demasiadofrágeis para gerar formas literárias prÓprias, podiam eventualmente, porém, servir de aferidores para uma forma já existente, que estava prestes a perder o seu antigo conteúdo. Nesseplano se situam, em primeiro lugar, as idéias de comunidadee de realidade coletiva (instituições, família, grupo social, revolução, etc.) que a ideologia socialista introduzira e desenvolvera no pensamento ocidental.
b) O segundo período, que começa pouco depois comKafka e prosseguirá até ao nôvo romance contemporâneo, peloque é um período ainda não encerrado, caracteriza-se peloabandono de tôda e qualquer tentativa para substituir o heróiproblemático e a biografia individual por outra realidade epelo esfôrço para escrever o romance da ausência de sujeito,da não-existência de tôda a busca que progride,s
É evidente que essa tentativa para salvaguardar a forma romanesca, dando-lhe um -conteúdo aparentado, sem dúvida, ao conteúdo do romance tradicional (êste sempre fôraa forma literária da pesquisa problemática e da ausência devalôres positivos), mas, no entanto, essencialmente distinto(trata-se agora de eliminar dois elementos essenciais do con~
8 Lukács caracterizou o tempo do romance tradicional pela proposição:"O caminho começou, a viagem terminou." Poder-se-ia caracterizar onôvo romance pela supressão da primeira metade dêsse enunciado. Oseu tempo seria caracterizado quer pelo seguinte enunciado: "A aspiraçãoexiste, mas a viagem acabou" (Kafka, Nathalie Sarraute), quer simplesmente pela constatação de que "a viagem já acabou, sem que o caminhotivesse jamais começado" (os três primeiros romances de Robbe·Gril-let).
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I
teúdo específico do romance: a psicologia do herói problemático e a história de sua busca demoníaca). teria de criar, aomesmo tempo, orientações paralelas no sentido de diferentesformas de expressão. Talvez haja aí elementos para uma sociologia do teatro da ausência (Beckett, Ionesco, Adamov,durante certo período) e também de determinados aspectosda pintura não~figurativa,
Men~ionemos, enfim, um último problema que poderiae deveria dar lugar a pesquisas ulteriores. Àlº!,}?Cl,ª-.!'Qp:1ª-:Qg13.ca
~[ori~tb~~Zim~~·f~~~~áe'\-ei~têi:da~I;~ro~f~d~~~c,bu~ ~i~eni·êUrsode ·clese1.1.volvimento.ResIs'fênclã'IridivIdÚaf Ú~nãõ_ ,._ ,'.--.., , ".,.................-. .. '... . ..., g..._, ..pôde apoiar~se, no seio de um grupo, senão em .erocessos psí-qUlcos ·'ã[êitiTos"e"izão:êo'-nceptüãtlzãdos;"'preCIsamenfe-porquea~·!.~~st~:n.~j~~'c()~s~Ie~.t.~iq~e.j)0-ªêriam.~ter-elal?9~ªª~J()~m~Jlt~E?~§~.i1UpIicandoªp()~sibilidade de unI herói P?sitivo ...(emprimeiro .lugar, a consciência. oposici0llal·.er()letárfa;. talcomõ
,'~ra'esperada e prevista por Marx). não se desenvolveram sü:ficielltementenas·-sõ-aêd·ãães~oclêfeniãrs-.-Ü-"romanc'êde··· hú6iprobTemãtfcodéfirie-se assim, conididap:1ente à opiniã() tradi'aõ'í1Eil; comq uma forma literár;a .lig,a.da,~~~ __Q4yi~ª, ~ história e ao desenvolvimento da burguesia, mas que não é ae.:xpressão da consciência real ou Jlossível cl~~~él,~~(l_~~!' ..--
Mas põe-se o problema de saber se, paralelamente a essaforma literária, não se desenvolveram outras formas que cor~responderiam aos valôres conscientes e às aspirações efetivasda burguesia; e, a êste respeito, permitimo-nos mencionar, atítulo de sugestão geral e hipotética, a eventualidade de quea obra de Balzac ,- de que seria preciso, partindo dêsse pontode vista, analisar a estrutura ,- constitua a única expressãoliterária de envergadura do universo estrutura do pelos valôres conscientes da burguesia: individualismo, sêde de poder,dinheiro, erotismo que triunfa dos antigos valôres feudais doaltruísmo, caridade e amor.
Sociologicamente, essa hipótese, se se revelasse exata,poderia associar-se ao fato de que a obra de Balzac situa-se,precisamente, numa época em que o individualismo, em si ahistórico, éstruturava a consciência de uma burguesia que estava construindo uma nova sociedade e se encontrava no maiselevado e mais intenso nível de sua real eficácia histórica.
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l·._.:~.
Subsidiàriamente, conviria indagar também por que mo~tivo, excetuando êsse caso único, tal forma de literatura ro~manesca só alcançou uma importância secundária na histó~ria da cultura ocidental: por que razão a consciência real e asa.~pitaçôes da burgu~siél]arnais conseg~ir~rncrlãr::!loss~<::t11os
_~:R()'~~@6-~~~r~d~i6uW:~áf~~nf~i:~i~~;;Ifstf:t~~~~:~~~:J;Jit~r aturaocj clental.
Neste ponto, permitimo~nos formular algumas hipótesesde ordem geral. A análise que estamos desenvolvendo esten~de a uma das formas romanescas mais importantes uma afir~mação que hoje nos parece válida para quase tôdas as formasde criação cultural autêntica e em relação à qual a única ex~ceção que vemos, de momento, é constituída precisamentepela obra de Balzac,9 que pôde criar um grande universo li~terário estruturado pelos valôres puramente individualistas,num momento histórico em que, concorrentemente, os homensanimados por êsses valõres a~históricos estavam em vésperasde consumar uma subversão histórica considerável (subver~são que, no fundo, só se concretizou na França com o fim darevolução burguesa em 1848). Com esta quase única exce~ção (talvez devêssemos juntar~lhe ainda algumas outras eraras exceções eventuais, nas quais não pensamos. de mo~mento), parece-nos só haver uma criação literária e artísticaonde existir uma inspiração que ultrapasse o indivíduo e bus~que valôres qualitativos transindividuais. "O homem superao homem". escrevemos nós, modificando ligeiramente um tex~to de Pascal. Isso significa que o homem só seria autênticona medida em que se consicere ou sinta como parte de umconjunto em devir, e se situe numa dimensão transindividualhistórica ou transcendente. Ora. o pensamento burguês. vin~
\) Há um ano, tratando dos mesmosproblemas e mencionandoa existência do romance de herói problemáticoe da subliteraturaromanescade herói positivo,escrevíamos:"Concluiremosêste artigo com um grande ponto de interrogação,o do estudo sociológicoda obra de Balzac.Com efeito, essa obra parece constituir,em nosso entender,uma formaromanescaprópria, que integra elementos importantes,pertencentesaosdois tipos de romance que acabamos de mencionar, e que representa,'provàvelmente,a manifestaçãoromanescamais importante da História."
Os comentários formulados nestas páginas procuram concretizarcom um pouco mais de precisão a hipótese entrevistanas linhas acimatranscritas.
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culado. como a própria sociedade burguesa, à existência daatividade econômica, é precisamente na História o' primeiropensamento ao mesmo tempo radicalmente profano e a~histó",rico; o primeiro pensamento cuja tendência é para a negaçãode tudo o que é sagrado, quer se trate do sagrado celestialdas religiões transcendentes, quer do sagrado imanente dodevir histórico. g essa a razão fundamental, parece~nos, pelaqual a sociedade burguesa criou a primeira forma de cons~ciência radicalmente inestética.Q caráter essencial.dop~n.:: ..samento burguês, o racionalismo, ignora em suas expressõesextremas"ã"rÓria eXistência dão arte ~""'Naou-1ià"esteHca-êar~_ _._''.__ J:> '".P_ .._ ''.__ .__ . .._
tesiana ou spinozista, e até para Baumgarten a arte não passade uma forma inferior de conhecimento.
Não é por acaso, pois, que, excetuando algumas situa·ções particulares, não encontramos grandes manifestações li.terárias da consciência burguesa propriamente dita. Na so~ciedade vinculada ao mercado, o artistá é, como já dissemos,um ser problemático, e isso significa que se opõe à sociedadee seu crítico.
Contudo, o pensamento burguês coisificado tinha seusvalôres temáticos, valôres por vêzes autênticos, como os doindividualismo, por vêzes puramente convencionais, queLukács denominava a falsa consciência e, em suas formas ex~tremas, a má~fé, e Heidegger rotulou de tagarelice. Ssses es~tereótipos, autênticos ou convencionais, tematizados na cons~ciência coletiva, deviam poder gerar, a par da forma roma",nesca autêntica, uma literatura paralela narrando também his~tórias individuais e podendo, naturalmente, pois que se tratade valôres conceptualiza,dos, comportar um her,ói positivo.
Seria interessante acompanhar os meandros dessas for",mas romanescas secundárias que poderíamos, naturalmente,basear na consciência coletiva. Chegaríamos, talvez ...- nãofizemos ainda êsse estudo ...- a uma gama muito variada, des",de as mais baixas formas do tipo Delly até às formas maiselevadas que se encontrariam, porventura, entre escritorescomo Alexandre Dumas ou Eugene Sue. g também nesse pla~no que se deve situar, talvez, paralelamente ao nôvo roman~ce, certas obras de grande sucesso, ligadas às novas formasda consciência coletiva.
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Seja como fôr, o esbôço extremamente esquemático queacabamos de traçar parece~nos poder fornecer o quadro deum estudo sociológico da forma romanesca. Estudo tanto maisimportante quanto, fora de seu objeto específicp, poderia cons~tituir uma contribuição apreciável para o estudo das estrutu~ras psíquicas de certos grupos sociais e, nomeadamente, dascamadas médias.
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Introduçãoa um Estudo Estrutural
dos Romances de Malraux
P ARA FIXAR oS limites do presente trabalho, digamos,preliminarmente, que não pretende, em caso algum, ser um es~tudo sociológico acabado dos escritos literários de Malraux.
Semelhante estudo suporia, com efeito, de uma parte. aelucidação de certo número de estruturas significativas, sus~cetíveis de dar conta (pelo menos em grande parte) do con~teúdo e do carãter formal de seus escritos: e. de outra parte.a demonstração seja da homologia, seja da possibilidade deencontrar uma relação significativa entre as estruturas dêsseuniverso literário e certo número de outras estruturas sociais.econômicas, políticas, religiosas, etc.
Ora. a nossa investigação situa~se ainda no primeiro es~tágio. o da análise interna. destinada a delinear um primeiroesbôço de estruturas significativas imanentes na obra, esbôçoque será muito provàvelmente modificado e pormenorizado
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