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GOMES, Ângela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização.pdf

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    HISTRIA GERAL DA CIVILIZAO BRASILEIRA

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    HISTRIA GERAL DA CMLIZAO BRASil.EIRA Sob a direo de BORIS FAUSTO

    com relaa ao perodo republicano

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    N: oe l umil" ~ 9." TOMO III

    O BRASIL REPUBLICANO 5~ Edio

    3 Volume SOCIEDADE E POLTICA

    (1930-1964) por

    NGEU MARIA DE CA.mID GOMES, fJ.t INIZ, A5PSIA DE ALCNTARA CA-MARGO, AfrrNIO MENDES DE AlMEIDAjR. , RICARDO MARANHO, liaGIO TRINDADE, TALO TRONCA, LENCIO MARTINS RODRIGUES, CIO SAE.5 E SERGIO M1ca1 .

    UNIV~RSIDA E Fl.DERAL DA B/,HIA FACULDADE DE FILO OflA

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    Todos os direitos reservados : EDITORA BERTRAND BRASIL S.A. Av. Rio Branco, 99 - 202 andar - Centro 20.040 - Rio de Janeiro - RJ Tels.: (021) 263.2082 Telex: (21) 33798 Fax: (021) 263.6112 Caixa Postal 2356 CEP 20.010 - Rio de Janeiro

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    SOCIEDADE E POLTICA (1930-1964)

    LIVRO PRIMEIRO

    PROCESSO POLTICO

  • CAPTULO I CONFRONTO E COMPROMISSO

    NO PROCESSO DE CONSTITUCJONALIZAO (1930-1935)

    por NGE!A MARIA DE CASTRO GOMES da Fundao Getlio Vargas

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    I. A CONSTITUINTE

    Na histria poltica do Brasil. por diversas vezes, foram instaladas assemblias nacionais constituintes de forma a que se estabelecesse a reorganizao constitucional do pas.

    Este acontecimento mximo do direito constitucional , entretanto, como lembrou recentemente Afonso Arinos de Mello Franco ('), apenas um dos processos polticos cujo termo o estabelecimento de uma nova ordem legal. Nos sistemas de constituies escritas, como o nosso, o poder constituinte pode apresentar duas formas . O poder constituinte originrio que aparece "invariavelmente, pela destruio do regime anterior", correspondendo, por conseguinte, a um momento de ruptura do processo politico nacional. e o poder constituinte derivado, fruto de reformas legislativas nascidas do entendimento "pacfico" das diversas tendncias politicas do pas, sem a ocorrncia de um corte mais profundo e radical na vida poltica nacional. Na primeira destas vias, ainda segundo Afonso Arinos, o momento da ruptura poltica pode ocorrer "por meio de revolues que, vindas de fora do poder existente, o suprimem; ou por meio de golpes de Estado que, nascidos dentro desse poder, o transformam( .. . )" (2).

    A observao da experincia histrica de nosso pais no campo da elaborao de constituies informa-nos sobre um passado dos mais "ricos", ao menos quantitativamente, se comparado a de outros pases da Europa ou da Amrica. At hoje, tivemos nada mais nada menos que seis constituies, das quais trs - as de 1824, 1937 e 1967 - resultaram de um processo poltico-jurdico de outorga do Poder Executivo, enquanto que as outras trs - as de 1891. 1934 e 1946 - foram fruto de promulgaes advindas dos trabalhos de assemblias constituintes, que efetivamente elaboraram e votaram uma nova constituio. Portanto, todos os nossos exemplos de trabalhos constitucionais desenvolvidos pelo Poder Legislativo especialmente convocado para tal fim corresponderam a momentos cruciais de grande mobilizao nacional. em que o regime anterior era questionado globalmente, partindo-se para a elaborao de um novo pacto num clima de abertura poltica.

    O significado jurdico-poltico maior da convocao de uma assemblia nacional constituinte , ento, a restaurao da legalidade e da legitimidade do poder, fazendo-o passar de um poder de fato, de um regime de fora, a um poder de direito, a um regime legal.

    A constituinte um momento especfico de transio da ordem poltica que deixa claro - pois este o seu objetivo explcito - que o aparelho de Estado no se confunde com o politico como um todo (3) . O Estado no se institui a si mesmo diretamente; seu estatuto debatido e construdo por um

    (1) Afonso Arinos de MeUo Franco, "Exclusivo: o recado de Arinos a Geisel'', Revista Isto , So Paulo, 03/05/78, pp. 16 e 17.

    (2) Idem, p. 16. (3) Marllena Chau(, "Nem justa, nem oponuna. Apenas um meio de debate"; Depoimento dado

    ao Caderno ConstiluinJe de agosto de 19n , publicao da Ed. S/A, p. 32.

  • 111 10 mSTHIA GEHAL DA CIVILIZAO BHASIZEIRA IH

    ' 1 poder legitimado pela sociedade civil. especialmente constitudo para tal fim. li Suas bases so o corpo poltico da nao; ele o poder constituinte. V

    A constituinte , por conseguinte, uma alternativa de reforma poltica na linha da liberal-democracia de estilo representativo. Desta forma, ela praticamente concr-etiza a frmula clssica de que a "vontade geral". ou seja, a vontade do corpo poltico da nao. a raiz e a fonte de todo e qualquer poder do Estado. no s no que se refere escolha dos governantes. como principalmente no que se refere escolha do modelo de Estado que ser implantado no pas. Enfim. uma constituinte uma assemblia eleita para organizar, com poderes soberanos, toda a vida poltica de uma nao. Reflete, neste sentido, um dos momentos privilegiados do exerccio da liberal-democracia.

    A constituinte a frmula por excelncia de se organizar um novo regime democrtico de estilo representativo e. justamente por isso, est intrinseca-mente ligada realizao de eleies e organizao de canais legais .de. participao e expresso politicas da sociedade civil. A participao poltica numa assemblia nacional constituinte depende fundam~ntalmente do nvel de mobilizao e organizao em que se encontram os diversos setores sociais que compem o, corpo poltico. Em outras palavras. uma constituinte pode expressar vbrias formas de representao poltica. que variam num continuo em que os extremos so marcados por um forte contedo elitista e por um forte contedo popular. Tal variao est vinculada participao das camadas populares em maior ou menor grau nas fases de eleio e trabalhos da assemblia.

    dentro deste conjunto de reflexes que Marilena Chau. informada, sem dvida. pela experincia poltica de nosso pas. refora os limites estruturais de uma constituinte em que vigora uma composio predominantemente elitista. No se deve esperar dela, por conseguinte. transformaes estruturais, nem em termos de infra-estrutura econmica, nem de superestrutura poltica. pois "( ... ) uma Assemblia Constituinte no visa dar nascimento sociedade, instituicla como nova, mas apenas institucionaliz-la segundo padres mais aceitveis"(').

    Este tipo de observao ressalta uma dimenso essencial do domnio do direito ou da natureza do jurdico. tomado aqui no sentido especfico do problema da elaborao de um texto constitucional. De fato, o direito constitucional escrito, como parte do universo mais extenso da vida poltica, no cria realidades polticas novas, dando nascimento a um distinto modelo de sociedade. Entretanto, tal limite estrutural no deve obscurecer a face altamente renovadora da aventura poltica da constituinte. A "oportunidade"

    ( 4) Marilena Chau, op. ciJ., p. 32. 1. OSWALDO ARANHA DISCURSA NA CMARA DE DEPUTADOS, NO RIO DE JANEIRO. OUUiO DE 1934, ARQ. OSWALDO .ANHA)

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    SOCIEDADE E POLTICA 11 ' ' .:.,

    histrica de reorganizao do Estado possibilita, se no a criao, ao menos, a incorporao de conquistas polticas j realizadas ou desejadas pelo conjunto da sociedade civil. Os textos constitucionais em si de fato no transformam a vida politica da nao; quase sempre no exprimem o equilbrio de foras ai existente e, mais ainda, no traduzem muitas das questes cruciais vividas pelas camadas sociais politica e economicamente menos favorecidas (').

    No entanto, a grandeza do fato poltico que a convocao de uma assemblia nacional constituinte deve ser reconhecida com e apesar destes

    li~ites. Assim, em primeiro lugar, preciso distinguir e separar, na medida do possvel e para fins de anlise, o acontecimento poltico e dinmico, que a constituinte, do seu "produto" jurdico, que o texto constitucional. Em !>egundo lugar, necessrio apontar que o debate e o reconhecimento constitucional de questes como, por exemplo, a da incorporao de novos contingentes populacionais ao exercido do direito de voto, embora no provoque imediata e automaticamente transformaes polticas, interfere definitvamente no curso da correlao de foras polticas num futuro prximo. Alm disso, mesmo sendo sempre possvel um recuo na marcha e no ritmo da instituio de uma srie de prticas constitucionais, uma vez que uma conquista social chega a ser consagrada na carta mxima de um pais. tambm sempre muito mais trabalhoso ignor-la ou, simplesmente, suprimi-la.

    neste sentido e com estas fronteiras que consideramos extremamente relevante a experincia poltica de uma constituinte, percebendo-a como uma possibilidade de aprender - atravs dos debates parlamentares ento travados - o tipo de reflexo realizada sobre a vivncia politica anterior e os distintos projetos veiculados e defendidos, tendo em vista a renovao do Estado.

    Ar tdrias Constu1~11es

    No caso brasileiro, as trs expenencias de constituintes (1891 , 1934 e 1946) demonstraram que as assemblias evitaram inovaes muito radicais, ficando provavelmente

    aqum dos projetos de alguns dos setores que participaram dos movimentos revolucionrios que lhes deram origem. Enquanto num segundo momento destes movimentos, elas representaram muito mais uma tentativa de formalizar um compromisso entre as principais foras politicas em jogo, chegando muitas vezes a resultados insatisfatrios para grande parte de seus integrantes.

    Examinando esta questo, Paulo Srgio Pinheiro aponta dois elementos que poderiam explicar, ao menos em parte, essa limitao da obra das constituintes brasileiras: as dificuldades relacionadas ao enfrentamento da questo partidria em nosso pais e o problema das relaes entre estas

    (5) Uma valiosa reflexo histrica a respeito deste problema e5! em B. Mirkine - Guetzvitch. les co1istituJions de l'Europe 11ouvelle, Paris, Libraire Delagrave, 1930.

  • 12 HISTRIA GERAL DA CNJJJZAO BRASILEIRA

    assemblias e o "prncipe", ou seja, o chefe do governo na ocasio do desenvolvimento de seus trabalhos (6).

    No entanto, mesmo levando-se em conta estes problemas, o contexto poltico de um momento de constitucionalizao implica, de um lado, um esforo de mobilizao da sociedade e de organizao poltico-partidria muito significativos; de outro, possibilita a abertura de amplo debate pblico sobre as mais importantes questes polticas, econmicas e sociais da vida de uma nao. A constituinte cria, assim, um momento de abertura e participao polticas, permitindo o aparecimento de um espao de politizao difcil de se bloquear ou controlar completamente, em funo da intensidade e publicidade dos debates que suscita e alimenta.

    A riqueza destes momentos pode ser verificada, inclusive, na medida que, por fora da reviso do regime anterior, a constituinte recupera para o registro no presente uma srie de acontecimentos e reflexes passados, desvendando-os e atualizando-os para o pblico. Alm disso, propicia o surgimento de um verdadeiro leque de propostas polticas, que d bem a dimenso das principais alternativas formuladas numa certa oportunidade histrica.

    Este trabalho tem como objetivo o estudo de uma dessas experincias, j que procura examinar o processo de consti tucionalizao desencadeado aps a revoluo de outubro de 1930 e que tem como clmax a convocao e instalao de uma assemblia nacional constituinte a 15 de novembro de 1933.

    A Constituinte de 1934 - mesmo sendo enquadrada, juntamente com a de 1891 e 1946, como fruto de "transformaes revolucionrias" -apresenta certas especificidades. Embora suas origens estejam no movimento revolucionrio de 1930, no foi dele uma conseqncia imediata, como ocorre nos dois outros casos, em que a convocao da constituinte exigncia cumprida no momento ps-revolucionrio pelas foras que esto no poder.

    Para a convocao da Constituinte de 1934 influram decisivamente as presses de setores que, mesmo tendo realizado a Revoluo de 1930, encontravam-se marginalizados do aparelho de Estado. Transcorridos dois anos de governo de "arbtrio", diversas faces polticas radicalizaram suas demandas pela constitucionalizao, levando o pas a uma guerra civil. Desta forma, poderamos caracterizar a Constituinte de 1934 no como um fruto da revoluo e sim como uma exigncia da contra-revoluo. Num primeiro momento, portanto, a luta pela constituinte vai funcionar como plo aglutinador, reunindo desde elementos explicitament contrrios Revoluo de 1930, at elementos nitidamente revolucionrios, dentre os quais figuravam at mesmo partidrios do governo Vargas. Somente num segundo momento que o Governo Provisrio encampa esta proposta, esvaziando-a de seu contedo oposicionista e colocando-a como inteno legitima de toda a

    (6) Paulo Srgio Pinheiro, "Assemblias, panidos e o prncipe", Revista /Slo , So Paulo, w09119n, p. 31.

    CONFRONTO E COMPROMISSO NO PROCESSO 13

    nao, defendida e encaminhada por aqueles que esto no poder, particular-mente o prprio Vargas.

    este fato que permitir uma certa ambigidade no contexto de abertura poltica do perodo da constitucionalizao. Se de um lado amplia-se o espao de participao poltica, conquistado efetivamente no curso de uma luta radicalizada, este espao sofre os limites da apropriao que feita pelo Governo Provisrio. Tal circunstncia demonstra-nos claramente que as especificidades do processo de constitu:ionalizao dos anos 1933/34 explicam-sEl; antes de tudo, pelas prprias caractersticas do processo poltico, marcado pela redefinio das alianas internas das classes dominantes e destas com as classes dominadas.

    Os primeiros anos da dcada de 1930 so apontados, unanimemente, pela historiografia como de acentuada instabilidade poltica face incapacidade de qualquer dos grupos dominantes em assumir, "como expresso do conjunto da classe dominante, o controle das funes polticas" do Estado (7). Por conseguinte, esta situao seria responsvel pela.configurao mais ntida de algumas das caractersticas da poltica brasileira, entre elas: "a personaliza-o do poder, a imagem (meio real e meio mtica) da soberania do Estado sobre o conjunto da sociedade e a necessidade da participo das massas populares urbanas'~).

    Devido natureza de nosso trabalho, que est centrado no campo poltico de ao das elites, apenas os dois primeiros pontos podero ser melhor qualificados, atravs do estudo de exemplos histricos concretos do perodo. 5 Da o nosso interesse particular em examinar a questo das relaes do chefe de Estado com a Constituinte, uma vez que, naquele momento, Vargas j assumia uma posio nica no conjunto dos elementos que compunham o Governo Provisrio. De um lado, descolava-se deste todo no-homogneo; de outro, identificava-se pessoalmente com o prprio Estado. O momento analisado , inclusive, fundamental para entender as mltiplas c;ilteraes que a estrutura de poder sofre ao longo dos anos ps-trinta.

    Importa lembrar que a ditadura ofereceu condies para o exerccio de um "poder arbitrrio" que facilitava a consolidao de um "poder pessoal", compartilhado por um crculo restrito de influentes - basicamente o grupo tenentista que lidera o desenvolvimento militar da revoluo. Desta forma, o esgotamento da ditadura implicava, necessariamente, uma ampliao deste circulo de participantes, colocando na ordem do dia a questo das bases sociais de poder do Estado no momento da constitucionalizao.

    Neste contexto, estamos nos dedicando ao exame das relaes no interior da coalizo de elites que participam do jogo poltico. O essencial de nossa

    ---c:?)Francisco Weffon, "O populismo na poltica brasileira" em Brasil: Tempos Modernos, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 19n, p. 61.

    (8) Idem, p. 61

  • 14 HISTRIA GERAL DA CN/JJZAO BRASILEIRA

    colocao destacar a idia de que, apesar destas relaes desembocarem numa possibilidade de composio, e at certo ponto de "compromisso", no se deve subestimar o processo de luta, de confronto, que permeia o campo da poltica neste momento histrico. Nestes termos. o processo poltico que se desenvolve no primeiro quadrinio dos anos trinta s se define em 1937 - na emergncia de um "Estado de compromisso que ao mesmo tempo um Estado de Massas" (9). aps um perodo de intensa disputa que se explicita tanto pelas formas de expresso independente das camadas populares quanto pelos choques entre setores dos grupos dominantes.

    O que queremos ressaltar que o Estado ps-37 construdo ao longo da experincia histrica da dcada de trinta, sendo o resultado, no obrigatrio, de enfrentamentos de amplitude e intensidade diversas. Portanto, na prtica da luta poltica que se avoluma e se define uma frmula de regime, informada por concepes ideolgicas que j se estruturavam no passado, e que do apoio e conformao final a esse mesmo regime.

    II. A ORDEM PoncA E A ORDEM LEGAL O movimento revolucionrio que deps o presidente Washington Luiz a 24

    de outubro de 1930 instalou no poder uma junta governativa provisria, que dias depois transmitiu o governo ao candidato derrotado nas eleies presidenciais. Em 3 de novembro, Getlio Vargas tomava posse da chefia do Governo Provisrio, e a 11 de novembro era promulgado o Decreto n 19.398 que institucionalizava os poderes discricionrios deste cargo. Pelo decreto, o chefe do Governo Provisrio reunia em suas mos as funes e atribuies no 11 do Poder Executivo como tambm do Poder Legislativo, o que se expressava por sua prerrogativa de elaborar decretos-leis. Ficavam dissolvidos, portanto, o Congresso Nacional. as Cmaras estaduais e municipais e quaisquer rgos legislativos ou deliberativos existentes no pas. Esta situao excepcional deveria perdurar at que fosse eleita uma assemblia constituinte, que estabeleceria uma nova organizao constitucio-nal. revendo e corrigindo os males da Constituio de 1891.

    Desta forma, ao mesmo tempo que a revoluo institua seus poderes discricionrios, assumia um compromisso com a reviso da legislao vigorante e com a reintegrao da nao num regime legal. atravs do processo poltico de convocao de uma constituinte. O Governo Provisrio se definia a priori como um perodo passageiro, um expediente revolucionrio que deveria subsistir at que os legtimos representantes da nao - os deputados constituintes eleitos - assumissem a tarefa da construo de uma nova ordem leaal.

    A juno destes dois pontos no texto do decreto sugere a legitimidade que se procurava assegurar ao Governo Provisrio atravs do compromisso com a constitucionalizao. A chefia do Estado nas mos do ex-candidato presidencial e a promessa da constituinte faziam parte de um mesmo todo: o esforo de manuteno de linhas legais de procedimento dentro de um contexto

    (9) Francisco Weffon, op. cit , p. 63.

    soaEDADE E POLTICA 15

    revolucionrio, que se caracteriza exatamente pela ruptura destas linhas. A questo da constituinte, portanto, est colocada no centro do quadro poltico desde os primeiros instantes do Governo Provisrio, cabendo a ele a conduo de todo o processo para sua convocao e instalao. Ret'SO da Assim que, em 10 de fevereiro de 1931. um decreto lei eleiloral governamental estabelece que deveria ser formada uma

    comisso para o estudo e reviso de toda a legislao eleitoral existente no Brasil. com vistas a apresentar um verdadeiro projeto de cdigo eleitoral. Sem dvida, essa era a primeira iniciativa formal do Governo Provisrio no encaminhamento da questo. A inaugurao oficial dos trabalhos desta comisso legislativa ocorre no dia 4 de maio, quando o chefe do Governo Provisrio pronuncia importante discurso fixando a oportunidade histrica da vasta reforma jurdica que se iria empreender, particularmente ressaltando a necessidade de uma ampla transformao e ampliao das margens de poder do Estado. Concluindo sua preleo, Vargas lembra a natureza e o objetivo primeiro de toda a obra a ser realizada: "Se o Governo provisrio, a Revoluo definitiva"(').

    Todavia, os trabalhos da comisso legislativa - composta por J. F. de Assis Brasil. Joo Crisstomo da Rocha Cabral e Mrio Pinto Serva - no se iniciam imediatamente aps sua instalao. Apesar de concludos vrios estudos, uma acelerao mais franca e decisiva nestes trabalhos s vem a ocorrer quando. em janeiro de 1932, passa a ocupar o Ministrio da Justia e Negcios Interiores, em lugar de Oswaldo Aranha, o jurista gacho Maurcio Cardoso, legtimo representante das foras engajadas na campanha pr-constitucionalizao. O novo ministro passa a dirigir pessoalmente a reviso final do projeto a ser apresentado ao governo, impulsionando-o de forma conclusiva (11 ). O anteprojeto elaborado ao termo de muitas reunies foi discutido por uma comisso revisora composta por jurisconsultos, que o aprovou antes de seu envio a Vargas (12).

    Os avanos realizados pela subcomisso na elaborao da reforma eleitoral desembocam no decreto n 20.076 de 24 de fevereiro de 1932, instituindo um novo cdigo eleitoral para o pas. A "precipitao" destes acontecimentos desagrada, sem dvida, os setores revolucionrios do tenentismo que, integrantes do poder, no apoiavam o retomo da ordem legal, considerando-a ameaadora aos rumos politicos renovadores que ento imprimiam direo dos negcios pblicos. significativo, portanto, que apenas um dia depois de sancionado o cdigo, um incidente de impacto simbolizasse a reao dos tenentes ao curso que vinha sendo dado ao processo

    ( 10) Getlio Vargas,A 1101-apoltica do Brasil, Rio dejaneiro.josOlympio Ed., 1938, vol . 1, pp. 109 a 128.

    ( 11 )jo.'io C. da Rocha Cabral, Cdigo Eleitoral da Repblica dos Eslados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, Llv. Ed. Freitas Bastos, 1934, 3' ed., pp. 12 e seguintes. K~te membro da subcomisso explica que Mrio Pinto Serva, por motivos de sade e por seus "naturais escrpulos", limita sua panicipa-.o troca de idias com os outros elemeruos, por correspondncia, no 1endo panicipado pessoalmente da.~ reunies ( p. 13).

    (12) /dem, pp. 16 e 17. Compunham este grupo nomes representativos da cultura jurdica de

  • 16 HISTRIA GERAL DA CTVIllZAO BRASILEIRA

    de constitucionalizao: o empastelamento do prestigioso jornal pr-Constitunte de Jos Eduardo Macedo Soares - o Dirio Carioca (13) . A impunidade desse atentado desencadeia uma grave crse poltca, conhecida como "crise dos demissionrios gachos", aberta com a demisso conjunta dos representantes do Rio Grande do Sul do Ministrio de Vargas. Entre eles estaria o prprio Maurcio Cardoso que, no entanto, deixa a pasta aps a aprovao do novo cdigo eleitoral.

    fno,,aes na refon11a eleitora/

    Este dec~eto, que regulamentava em todo o pas o alistamento e as eleies federais, estduas e municipais, trazia uma srie de inovaes. A maior delas, sem dvida,

    era o estabelecimento do sufrgio universal direto e secreto. O voto secreto -uma das medidas consd~radas bsicas para a moralizao da prtica eleitoral no Brasil - constitura um dos pontos-chave de toda a campanha da Aliana Liberal. Em tomo deste expediente poltico reuniam-se, em criticas s eleies a bico de pena da Repblica Velha, tanto setores das oligarquias dissidentes que participaram da Revoluo de 1930 quanto setores revolucionrios da corrente tenentsta. A conquista do voto secreto representava uma aspirao antiga de todos aqueles que, vendo-se excludos do poder, lutavam para alcan-lo ainda na dcada de 1920. Neste sentido, a consagrao do voto secreto significava no s o cumprimento de uma primeira grande promessa da revoluo - o saneamento dos costumes polticos do pas-, como tambm um passo essencial para a reintegrao do Brasil ao futuro regime constitucional.

    Alm disso, o novo cdigo ampliava o corpo poltico da nao, concedendo o direito de voto a todos os brasileiros maiores de 21 anos, alfabetizados, sem distino de sexo. Pela primeira vez, as mulheres conquistavam o exercicio da cidadania, o que, alm de ter um significado poltico muito importante, implicava um acrscimo numrico substancial ao corpo de votantes. Permaneciam, entretanto, excludos do direito de voto, alm dos mendigos e analfabetos, os praas-de-pr (cidados que estivessem servindo como praa em trabalhos militares e policiais) e os clngos regulares (religiosos de ordens monsticas). Em relao s mulheres, cabe assinalar que o princpio que orientou sua admisso cidadania poltica foi o evolutivo, ou seja, concedia-se o direito de voto mulher sui juris (solteira, viva, separada ou abandonada) e que tivesse economia prpria (casada). Em relao obrigatoriedade do alistamento e do voto, a subcomisso preferiu no adot-la pura e simplesmente, preferindo optar por meios que estimulassem e forassem a prtica do exerccio do voto (").

    alguns dos grandes Estados da federao como: Sampaio Doria, de So Paulo; juscelino Barbosa, de Minas Gerais; Mrio de Castro, de Pernambuco; Bruno de Mendona Lima e Srgio Ulrich de Oliveira, do Rio Grande do ui ; Adhemar de Faria e Octavio Kelly , do Rio de Janeiro.

    (13) Sobre este epi dio ver 1 llio ilva, 1931, Os tenentes nopot/er(O Ciclo de Vargas vol. IV), Rlo de Janeiro, Ed. Civilizao Brasileira, 1972, 2~ ed., pp. 277 e seguintes, onde o autor reproduz valiosa entrevista de Batista Luzardo, o ex-chefe de Policia do Distrito Federal, ao Dirio Carioca tle 05104/1932.

    (14)Joo C. da Rocha Cabral, op. dt., pp. 21 , 26, 27, 32 e 33.

    CONFRONTO E COMPROMISSO NO PROCESSO 17

    O Cdigo Eleitoral estabelecia tambm a representao proporcional para todos os rgos coletivos de natureza poltica do pas - questo que vinha sendo anteriormente debatida no mbito do direito constitucional brasileiro-, e criava, como grande inovao, a representao poltica das classes. O estabelecimento da representao classista, alis, seria defendido, durante todo o perodo posterior de regulamentao e implementao da medida, pelos elementos tenentistas ligados ao Clube 3 de Outubro. A introduo deste expediente no Cdigo Eleitoral considerada uma vitria e um fruto das presses desta corrente poltica. Segundo depoimento de Augusto do Amaral Peixoto, a incluso da representao de classes no Cdigo Eleitoral de 1932 fora uma clara demonstrao de fora e prestgio do Clube 3 de Outubro, pois o texto original do decreto no a previa. Entretanto, j em mos de Getlio Vargas, a medida fora anexada por insistncia de alguns tenentes, o que, inclusive, chegara a contribuir para o afastamento do ministro Maurcio Cardoso da pasta da Justia (15).

    Por fim, o novo cdigo institua a Justia Eleitoral. composta por um Tribunal Superior no Distrito Federal. por Tribunais Regionais em todas as capitais de Estado e por juzes eleitorais nas comarcas e distritos. Tal iniciativa eliminava um dos maiores problemas eleitorais do pas, uma vez que retirava do Poder Legislativo a faculdade de fiscalizar as eleies e reconhecer os candidatos eleitos. Esta havia sido a base formal sobre a qual se assentara o mecanismo da chamada poltica dos governadores da Repblica Velha, que perpetuava no poder os situacionismos locais, bloqueando pelas "degolas", a ascenso de quaisquer elementos da oposio.

    O estabelecimento da Justia Eleitoral, ao lado do voto secreto, ganhava a dimenso de um ato de moralizao da vida poltica no Brasil. possibilitando a livre expresso da vontade popular e a abertura do jogo poltico democrtico com a participao efetiva das oposies. Atravs destas duas inovaes, o cdigo estava, ao menos institucionalmente, realizando uma verdadeira reforma no que se referia s bases de legitimidade do Estado, respondendo, sem dvida, s presses polticas do movimento das camadas mdias e do proletariado urbano, ocorrido na dcada passada. Ao atingir o mecanismo de reconhecimento de poderes institudo por Campos Salles, alterava-se toda uma frmula poltica que vinha garantindo estabilidade e legitimidade ao governo atravs da participao de um corpo restrito de cidados. Os novos procedimentos politicos criados pelo Cdigo Eleitoral feriam certos fundamen-tos bs_icos do Estado oligrquico da Repblica Velha e abriam, teoricamente, a possibilidade de a "nova" legitimidade do Estado depender de um conjunto mais abrangente de cidados. Assim, a ampliao da participao poltica -o exerccio do direito de voto - estava sendo realizada tanto pelo puro e simples aumento quantitativo do corpo de votantes (como o caso do eleitorado feminino) quanto pelos mecanismos politicos que possibilitavam a incorporao real de parcelas da populao at ento marginalizadas pelo "desvirtuamento" dos costumes eleitorais da nao.

    ( 15) Depoimento de Augusto do Amaral Peixoto. Histria Oral , CPDOC, FGV

  • 18 HISTRJA GERAL DA CIVILIZAO BRASILEIRA

    O prprio Getlio Vargas define o significado do novo Cdigo Eleitoral e seu objetivo preparatrio na marcha para a reconstitucionalizao do pas:

    "O governo revolucionrio, responsvel pelo saneamento dos costumes pollticos contra os quais a Nao se rebelou, no poderia cogitar de reorganiz-la constitucionalmente, antes de aparelh-la para manifestar, de modo seguro e inequlvoco, a sua vontade soberana. A reforma eleitoral que era, para mim, compromisso de candidato ( ... ) tomou-se imposio inadivel ao assumir a chefia do governo revolucionrio" (16).

    Pouco tempo depois de decretado o Cdigo Eleitoral - embora j h um ano da instituio do Governo Provisrio - , a 14 de maio de 1932, expedido o Decreto n 21.402 que fixava para 3 de maio de 1933 a realizao de eleies para a Assemblia Nacional Constituinte e previa a formao de uma comisso encarregada de elaborar um anteprojeto constitucional que deveria ser apresentado pelo governo quando da instalao dos trabalhos da Constituinte.

    Estas duas iniciativas governamentais, sem dvida relevantes para a conduo do processo de constitucionalizao, foram tomadas num momento de grande tenso na poltica nacional. Na verdade, desde fins de 1931. a idia da constitucionalizao mobilizava intensamente expressivos setores das oligarquias dissidentes e vitoriosas em 1930, como a paulista (o Partido Democrtico rompe com Vargas, abertamente, em janeiro de 1932), a mineira (o Partido Replublicano Mineiro, representado basicamente pela faco de Artur Bernardes) e a gacha (tanto elementos do Partido Republicano Rio-grandense quanto do Partido Libertador). As medidas concretas tomadas pelo governo visando constitucionalizao no conseguiram arrefecer o mpeto ofensivo destes setores, uma vez que a credibilidade na real aplicao das mesmas era pequena. De fato, havia razes suficientes para tal descrdito.

    O Governo Provisrio adiara, durante mais de um ano, qualquer expediente visando Constituinte, e agora agia no sentido de reduzir as presses que ento se acumulavam. A promulgao do Cdigo Eleitoral e a fixao da data das eleies para 3 de maio de 1933 representavam uma tentativa de acalmar o clima poltico. No entanto, no deram o resultado esperado. Fortes setores polticos, cuja expresso mxima ainda era o Clube 3 de Outubro, se articulavam e se pronunciavam claramente pela continuao da ditadura. J>ara eles, o adiamento das eleies para um futuro bastante indefriido vinha da necessidade de consolidar a obra revolucionria apenas iniciada. Precipitar a realizao de eleies, segundo certos setores tenentistas, poria em risco todas as conquistas at ento realizadas. A n~o/11o co1l

  • -20 HISTRIA GERAL DA CIVIUZAO BRASILEIRA

    instalado no Poder Executivo, entre a Assemblia Constituinte e o Prnci-pe" (11).

    No caso da Constituinte de 1933/34, a vitria militar sobre a Revoluo de 1932 garantiu a Vargas uma ampla margem de poder e influncia sobre a Assemblia que se instalava. O perodo que se inicia com o fim da guerra civil se caracteriza por um intenso moviment de mobilizao e organizao poltico-partidria, assegurado pela abertura do regime. E o prprio chefe do Governo deseja e precisa participar deste movimento. Assim, de novembro de 1932 a abril de 1933, quando se encerram os prazos para o alistamento eleitoral e para a inscrio de candidatos, so criados ou reorganizados uma srie de partidos no .Pas.

    . Rear1iculc1o da ol(~arquia

    Em primeiro lugar, assiste-se rearticulao das foras oligrquicas, quer em suas j tradicionais organizaes partidrias - como o PRP, o PD e o PRM - , quer em

    novos partidos regionais, como o Partido Progressista mineiro (PP) e o Partido Republicano Liberal gacho (PRL). Neste ltimo caso, os partidos, apesar de sua dimenso regionalista, apresentavam um princpio de formulao dis-tinto, uma vez que disputavam exatamente com os antigos PRs, repi:esentando a fora e o prestgio dos interventores federais , diretamente ligados e orienta-dos pelo chefe do Governo Provisrio. Portanto, embora estas agremiaes mantivessem com as antigas frmulas partidrias da Repblica Velha uma li-nha de continuidade, atestada por seu carter regional. de fato significavam um enorme esforo de renovao poltica de cunho nitidamente pragmtico. Isto porque, atravs destes partidos regionais de novo tipo, o prncipe conse-guia fortalecer-se, reforando a dimenso centralizadora do Governo Pr~visrio, atravs de inmeros e valiosos aliados, sem atingir de pronto e inutil-mente as reservas eleitorais sempre sensveis defesa da autonomia estadual.

    Este mecanismo duplo, que conseguia combinar um forte poder central com executivos estaduais igualmente poderosos, encontra-se neste momento da histri poltica do Brasil. nftidamente ilustrado. O acompanhamento do processo poltico-partidrio em alguns dos Estados mais importantes do pas - como Minas Gerais, Rio Grande do Sul. Bahia e Pernambuco - mostra como a montqgem da mquina partidria regional capaz de refletir tanto o fortalecimento do interventor e de parcelas das foras polticas locais como a penetrao da influncia do governo central no Estado e o seu crescente poder de interferncia.

    Em segundo lugar, ainda no que se refere questo partidria, verifica-se um significativo movimento, encabeado por setores do tenentismo, no sentido da criao de um Partido Nacional que, rompendo com os regionalismos, atingisse o poder de algumas das mais fortes oligarquias do Centro-Sul. A tentativa de unio das diversas correntes revolucionrias em tomo de um programa mnimo que constitusse uma nica bandeira partidria no pas fracassa quase que completamente. Apenas a formao da

    (17) Paulo Srgio Pinheiro, op. cit., p. 32

    ~~~~~~--_N._~_~_o_iNTi~O-E~O-O_'M._P._~_o_IMJ._:iS'~O-N_O~P.-~-O~C-E_~_o~~~~~~2-1 '~~ Unio Cvica Nacional (UCN), que tem um relativo sucesso nos Estados do Norte e Nordeste, deixa entrever que algumas propostas chegam a passar da teoria prtica (18).

    Fora destas duas grandes linhas polticas, forma-se uma multiplicidade de partidos, mais ou menos significativos, para concorrer ao pleito, o que atesta a intensa mobilizao ocorrida e o grau de independncia de muitas dessas iniciativas (19). Porm, ao mesmo tempo que tinha curso esse tipo de movimentao, o Governo Provisrio continuava a patrocinar o encaminha-mento de algumas medidas essenciais instalao dos trabalhos da Constituinte. .

    Desta forma, em 1 de novembro de 1932, assinado o Decreto n 22.040, tendo em vista a necessidade de apressar e regular os trabalhos da Comisso Constitucional. especialmente encarregada da elaborao do anteprojeto de Constituio a ser apresentado pelo Governo Provisrio Assemblia. Esta comisso, criada em 14 de maio de 1932, portanto antes da Revoluo Constitucionalista, seria composta de "tantos membros quantos fossem necessrios elaborao do referido projeto e por forma a serem nelas representadas as correntes organizadas de opinio e de classe, a juzo do Chefe do Governo"('"'). O artigo 2 , neste sentido, um bom exemplo do clima de abertura poltica da poca, na medida que se preocupa em assegurar uma pluralidade de pontos de vista nos debates que seriam travados, naturalmente a juzo de Vargas.

    Dando seqncia ao encaminhamento do processo de constitucionaliza-o, alguns dias depois de aprovado o decreto, quando Antunes Maciel (ex-membro do secretariado do interventor gacho Flores da Cunha) assume o Ministrio da Justia, criada uma subcomisso para dar incio aos tra-balhos de elaborao do anteprojeto. Esta seria conhecida como a "sub-comisso do ltamarati" e possua a seguinte composio: Afrnio de Mello Franco, presidente (a convite de Antunes Maciel); Temstocles Caval-canti, secretrio-geral; Assis Brasil. gacho, ex-membro da comisso que elaborara o Cdigo Eleitoral e ministro da Agricultura; Oswaldo Aranha, ministro da Fazenda; Jos Amrico de Almeida, ministro da Viao e Obras Pblicas; Carlos Maximiliano, gacho e relator-geral da subco-misso; Antnio Carlos de Andrada, ex-presidente do Estado de Minas Ge-rais; Arthur Ribeiro, de Minas Gerais; Prudente de Moraes Filho, de So Paulo;

    (18) Sobre a questo da formao de um Partido Nacional, nesta ocasio, ver os dqcumemos sobre uo Acordo Revolucionrio" no Arquivo Getlio Vargas (GV. 1933. 02.15) CPDOC, FGV. Sobre a Unio Cvica Nacional ver Dulce Chaves Pandolfi , "A Trajetria do Norte: Uma Tema1iva de Ascenso Poltico", mimeo, CPDOC, FGV, pp. 28-36.

    (19) Vale ressaltar, no conjunto destas inicla!ivas, a organizao da Liga Eleitoral Catlica (LEC) que, definindo-se como uma fora extrapanidria, atuou fortemente nas eleies de 1933 , mobilizando o eleftorado catlico e a, particularmente, o feminino , que votava pela primeira vez. Devido narureza deste texto, no nos dedicaremos a acompanhar os trabalhos da LEC, mas registramos a contribuio de M Todaro, Pastors, propbets and politicians: a study of Brazilian Catbolic Cburd.J, 1916-1945, Columbia University, Ph.D., 1971, especialmente o Cap. lll. .

    (20) Jos Affonso Mendona de Azevedo, Elaborando a Constituio Nacional, 1934, p. 257, transcreve os Decretos ns 21 .402 e 22.040 criando e regulando, respectivamente, os trabalhos da Comisso Constitucional.

  • 22 HISTRIA GERAL DA CWIUZAO BRASILEIRA

    Agenor Roure; Joo Mangabeira; Oliveira Vianna e o general Ges Monteiro. Os trabalhos da subcomisso do Itamarati desenvolvem-se com

    numerosos debates e divergncias, desde novembro de 1932 at maio de 1933, quando se encerram as reunies, restando apenas a redao final para assinatura do anteprojeto constitucional. o que s ocorre em novembro de 1933. Durante todo este perodo, sucessivas questes so colocadas em pauta, desencadeando debates que a imprensa do pas divulga e que j fazem antever alguns dos pontos de conflito da futura Assemblia. Como por exemplo, podem ser citadas as divergncias em torno da instituio da representao de classes (que no aprovada no anteprojeto); da unidade ou dualidade da organizao judiciria; da responsabilidade do presidente da Repblica e seus ministros; das iniciativas no campo da legislao social. etc. (21).

    Mas o que realmente marca e recobre todos estes pontos o grande debate em tomo da centralizao poltca, ou seja, do reforamento das atribuies da Unio face aos Estados. Esse debate coloca, de um lado, fervorosos defensores da autonomia estadual - como Arthur Ribeiro, Antnio Carlos e Prudente de Moraes -, e, de outro, advogados da centralizao, como Oliveira Vianna, Joo Mangabeira e Temistocles Cavalcanti. Esse ltimo, resumindo e definindo o carter essencial do anteprojeto de Constituio, situa a seguinte problemtica:

    "A federao, como existia entre ns, e o individualismo foram os dois processos de desassociao que nos trouxe a Constituio ~e 189~. A pr.imeira ia nos. desagreg.ando politicamente; o segundo criou este esplrito de d1ssoluao social que nos pnva, at ho1e. de qualquer sentimento coletivo, to necessrio prpria existncia da nao. .

    Impe-se, p.or isso mesmo, uma tendncia para a unidade, mas .de maneira que a subsistncia da forma federativa no se torne incompatlvel com a .organizao de um Esta-do. integral em sua acepo mais genrica, que seja a expresso da unidade nacional" (22).

    Expressando e representando dentro da subcomisso "a mentalidade dos revolucionrios independentes", segundo palavras de Juarez Tvora, Temstocles Cavalcanti localiza estas duas questes bsicas em torno das quais muitas outros se agregariam (23).

    De uma forma muito esquemtica, as P!incipais concluses do anteprojeto, composto de 129 artigos, foram as seguintes: supresso do Senado e criao do Conselho Supremo; instituio do Legislativo formado de uma cmara nica: a Assemblia Nacional; eleies diretas para o Legislativo; participao dos ministros no Legislativo; rejeio da representao de classes, consagrao da legislao trabalhista e da concernente nacionaliza-

    -cm Antes da concluso do anteprojeto retiram-se da subcomisso Arrhur Ribeiro e Oliveira Vianna. sendo substituldos por Casrro Nunes e Sola110 da Cunha . .

    (22) Teml

  • 24 HISTRIA GERAL DA CIVIllZAO BRASILEIRA

    plenria do Superior Tribunal Eleitoral. Concorrera_m ao pleito nada m~nos que 802 candidatos, disputando ao todo 214 cadeiras, conforme se ve no quadro a seguir.

    Nmero de Cadeiras e Candidatos Assemblia Nacional Constituinte

    (por Estados da Federao)

    ESTADOS CADEIRAS CANDIDATOS Acre ... .. .... ....... ... .. ..... .... .. .. ... .... ... 2...... .... .... .......... ... .. ......... ... ..... 3 Amazonas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 .... ... .... .. .. . ........ .. 5 Par. .. .. ... ..... ........ ..... ..... ... ......... . 7..... ... ..... .... ....... ... ... ........ .... .... 22 Maranho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 .... ... ....... ... ......... ...... .... ...... . 22 Piau .............. .... ... .. ... .. .. ... ... ...... . 4.. ... ......... ....... ... ... .. ......... ... ..... 11 Cear ..... ...... .. ..... .... ...... .. ..... ...... . 10.. ... ... ..... ........ ... .... ..... ..... .... .... 31 Rio Grande do Norte ........... .. ... .. .. . 4... .. ... .. .... .. ....... .... ... ...... ...... .... 7 Paraba ..... ... ....... ..... .......... ...... ... 5 .. .... ......... .... ....... .... .......... .. .. :. 8 Pernambuco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17.... .... ... .... ...... .. ..... ... ...... ..... ... . 26 Alagoas . . . ... .... ..... ...... ..... . ... . ... . .. . . 6 . ... . .. . ........ . .... ....... ........ . ..... 6 Sergipe ...... ....... ... .... .......... ........ . 4..... .. ...... ..... .......... ... .. .. ... .... ... . 14 Bahia .. .. .... .. .. ..... .... .. .... .. ... ... ....... 22 ...... ,. .... .. .. ............ ... ... .. ........ .. 31 Esprito Santo .... .... .. .. .. .. .... .. ... .. .. . 4.. .... ... ...... ...... ... .. .. ...... ... ... .. .. .. 4 Estado do Rio .. .... .. ...... .... .... ......... 17 .... ... .. ..... .. ... . .. ...................... .. 180 Distrito Federal . . . .. . ... .. .. . . ......... .... 10...... .. .. . ... .. . . .. . . .. . . .. . .. .. ... .... ... .. . 150 So Paulo ... ..... ..... ...... . ... ....... ..... . 22 ...... ... ..... .. ... . .... ........... .. .. .. :.. .. 95 Paran ....... ... .. ..... ... ...... ........... ... 4.... .. ..... .... ... ... ..................... .. .. 7 Santa Catarina .. .. .. .. .. .... .. .. .. .. .. ... . 4.. .. .. .... .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. . .. . . .. 9 Rio Grande do Sul .. .. .. .. .. . . .. . .. .. . .. .. 17....... ... .. .. ... .. ... ....... .. ........ .. ..... 28 Minas Gerais ......... ... ............... .... 37 .. .' ... ............ .... .. ..... ....... ....... ... 135 Gois. .. ... .. ... ....... ... .. ... ... ......... .. .. 4.. .. .... ... .... ..... ... ...... .. .... .. .... ..... 4 Mato Grosso ............ .......... .......... 4... ..... .. ..... ... .. .. ... ......... ... ... ... ... 4 Total ... .. .... ... ... ... .... ....... ...... .. ...... 214 .. ... .... ... ... ....... ..... .... ... ....... .. ... 802

    Fonte: A Gazeta, So Paulo, 2 de maio de 1933. Lux do Arq. Waldomiro Lima, CPDOC, FGV.

    De uma forma geral, apesar das acusaes de fraudes e at mesmo da anulao das eleies em alguns Estados, como Esprito Santo, Mato Grosso e Santa Catarina, o processo eleitoral teve um encaminhamento seguro por parte do Governo Provisrio. Os resultados eleitorais assegurar.~m ampl~ vitria aos situacionismos estaduais, configurando uma Assemble10 Consti-tuinte caracterizada pela dominncia de tendncias governistas.

    Ultrapassada essa etapa, as atenes se voltaram para os pr~parativos visando instalao dos trabalhos constitucionais, que ocorrena a 15 de novembro de 1933.

    CONFRONTO E COMPROMISSO NO PROCESSO 25

    III. o CONFRONTO POLTICO

    O perodo do Governo Provisrio caracterizado, basicamente, pela explicitao e agudizao do confronto poltico entre as duas principais foras que realizaram a Revoluo de 1930. Aproximando-se pela crtica s prticas polticas da Repblica Velha e objetivando a tomada do poder, tenentes e foras oligtquicas dissidentes unem-se taticamente, de incio, sob a bandeira da Aliana Liberal e , posteriormente, na fase de conspiraes militares, cabendo aos primeiros a incontestvel liderana do movimento armado que levou ao poder Getlio V argas.

    Instalado o Governo Provisrio, iniciam-se as divergncias e todo um processo de disputa pela direo poltica da nao, quer a nvel federal. quer estadual. Num primeiro momento, verifica-se uma verdadeira ofensiva dos tenentes que, articulando-se politicamente e constituindo o Clube 3 de Outubro, conseguem abalar o poder dos quadros polticos oligrquicos vitoriosos em trinta.

    A contra-ofensiva, porm, no tarda. J no ano de 1931. algumas das mais importantes oligarquias reorganizam-se politicamente, passando a desenvolver contatos solidrios que tm como alvo principal o controle e a influncia que os tenentes exerciam sobre o aparelho de Estado e tambm sobre o chefe do Governo Provisrio. Inmeros acontecimentos ilustram este momento inicial d uma disputa poltica.

    Cabe ressaltar, entretanto, que durante todo este perodo a questo da constitucionalizao do pas vai emergindo como o ponto de convergncia e de expresso do conflito, capaz ao mesmo tempo de unificar faces oligrquicas e de contrap-las aos setores "revolucionrios" do tenentismo. A constitucio-nalizao transforma-se paulatinamente, nos anos que vo de 1930 a 1933, no cerne do confronto de duas propostas, de duas alternativas polticas bsicas para o futuro do regime e at mesmo da revoluo.

    Este sentido amplo e simblico da campanha pr ou contra a convocao de uma Assemblia Nacional Constituinte pode set melhor esclarecido quando se percebe o significado que tal campanha adquire no contexto poltico dos primeiros anos da dcada de trinta. Para certos setores oligrquicos, afasta-dos do poder em seus Estados - como o caso do Partido Democrtico em So Paulo e de uma poderosa ala do Partido Republicano Mineiro (a de Artur Bernardes) - ou que se consideraram preteridos na composio do governo central - como aconteceu com o Partido Republicano Rio-grandense -. a constitucionalizao passa a sigrillicar a possibilidade de retomada das po-sies polticas a que julgavam ter direito. Desta forma, o objetivo mais ime-diato da constitucionaliza era o desalojamento dos elementos tenentistas dos postos que ento detinham, atravs de um movimento de contestao do re-gime de fora vigente. O instrumento para tal ao seria, sem dvida, a reor-ganizao e reativao das mqinas poltico-partidrias das oligarquias, cujo poder essencial continuava residindo no controle exercido sobre o eleitorado rural. Os currais eleitorais da Primeira Repblica permaneciam intactos, j que a revoluo no atingira o poder poltico dos chefes locais,

  • 26 HISI'RJA GERAL DA CIVJJJZAO BRASILEIRA

    fundado na grande propriedade da terra e nas condies semi-servis de trabalho no campo, que garantiam a submisso poltica desse vasto eleitorado.

    Deste fato estavam perfeitamente cientes os setores "revolucionrios" do Governo Provisrio e, por esta razo, para o tenentismo a questo se colocava de forma inversa. Tratava-se de manter as posies arduamente conquistadas s foras oligrquicas, sendo que a constitucionalizao poderia pr em risco todo este esforo, permitindo a rearticulao de elementos que estavam muito longe de ver afetadas as bases de seu poder.

    Evidentemente, este conflito no se esgotava numa simples luta do poder pelo poder. De uma forma muito esquemtica, o que estava em jogo era toda uma diretriz de organizao institucional do Estado do Brasil. Os tenentes, por exemplo, procuravam emprestar ao Estado uma orientao claramente centralizadora, de reforo dos poderes intervencionistas da Unio, inclusive na rea econmica e social. A execuo desta proposta deveria estar pautada em padres tcnicos de administrao, sendo sua eficcia garant~da ~r um regime poltico forte, isto , pela permanncia da ditadura como meio de sanear costumes e redefinir os ideais da nao. Desta forma, os setores revolucionrios do tenentismo, ao mesmo tempo que despolitizavam o campo da poltica - transformando-a em atividade administrativa, particularmente nas esferas estaduais e municipais -, defendiam um modelo de Estado nitidamente antiliberal. na medida que a critica oligarquia confundia-se com a crtica aci liberalismo utpico e desvirtuador da Repblica Velha. J os setores oligrquicos divergentes insistiam na manuteno das prerrogativas de autonomia estadual e na limitao dos poderes da Unio, enfim, na defesa do federalismo como ponto-chave da organizao poltica do pas . Luta-'{am, por conseguinte, pela defesa dos princpios polticos liberais que respal-daram e possibilitaram a hegemonia desse grupo ao tempo da Primeira Rep-blica (25).

    Para uns e para outros, o binmio centralizao versus federalismo representava a pedra de toque em tomo da qual todas as outras questes confluam, e a proposta da constitucionalizao assumia, neste contexto, a dimenso do principal movimento capaz de alterar a si~uao vigente, colocando em debate pbJico esta divergncia primordial. E por esta razo que, at 1932, e mesmo depois, so inmeras as manifestaes de importantes figuras ligadas ao tenentismo, que firmam posio contrria convocao da Constituinte, sempre frisando os riscos que tal acontecimento poderia trazer em termos do retomo ao passado. A formao das frentes nicas (FUG, FUP) e, por fim, a ecloso da Revoluo Constitucionalista de 1932 explicitam o radicalismo a que os antagonismos haviam chegado e tomam o processo de constitucionalizao um fato consumado, apesar da vitria militar do governo sobre os paulistas.

    ~ Sobre as relaes liberalismo-oligarquias na Repblica Velha ver Francisco Weffon, O populismo na polcica brasileira, Rio de janeiro, Ed. Paz e Terra, 19 8, cap. V e tambm Luiz Werneck V1anna, Liberalismo e sindicaco no Brasil, Rio de janeiro, Ed Paz e Terra, 1976, cap. 111.

    SOCIEDADE E POITICA 27

    A situa~o poltica que se delineia a partir de fins de 1932 marcada por um ~os mais ~omplexos momentos de diviso interna das principais foras politica_s do pais. Para a compreenso deste momento preciso, antes de mais nada, focar que nem as foras oligrquicas nem o tenentismo eram um bloco coeso.

    A ~itria governamental sobre a Revoluo Constitucionalista s pode ser ente~dida ~an.do !~vamo~ em conta as divises internas entre as principais facoes regionais oh~rqwcas que dela deveriam participar. Nesse quadro 0 ~~emo Pro~~srio, _utilizando todos os seus recursos do poder, estimula t~is cisoes, permitindo o isolamento dos paulistas e sua posterior derrota militar. A no-adeso do Rio Grande do Sul e a participao ativa de Minas Gerais nos ~ombates aos constitucionalistas, deixando a faco bemardista do PRM impedida de agir, ilustram bem a alterao substancial ocorrida nas relaes ~ntre o poder c~ntral ~ estadual (via interventores). O tenentismo, que m,eg~elmente ainda di~punha dos principais cargos da administrao pbh~a, apresentava-se igualmente cindido, principalmente no que dizia respeito a suas relaes com as oligarquias.

    As divergncias no interior do movimento j vinham manifestando-se e tomando-se do conhecimento pblico atravs de significativos debates travados entre os componentes do Clube 3 de Outubro. Em abril/maio de 1932 essas quest~s chegam a assumir uma clara dimenso conflitual, representa~ da pelos pedidos de demisso de personalidades como Oswaldo Arariha e 0 gener~l ~s Monteiro. Na verdade, este incidente traduzia um esforo de ~ro:c1maao de. uma al~ dest~s.elementos com as foras oligrquicas, 0 que rmpb~av~ um~ h~a mais conc1hadora, de aceitao, por exemplo, da idia da consh.tucionahzaao como um fato, se no desejvel, ao menos inevitvel e que devena ser enfrentado. Por outro lado, permaneciam dominando 0 clube seto~es mais r~dicais, que no aceitavam tal tipo de aproximao e que contm~avam hrmes na proposta de manuteno da ditadura como fator essencial para a consecuo dos objetivos revolucionrios de 1930.

    . Este problema bsico de orientao poltica face s presses oligrquicas sen~, em grande ~e. responsvel pelo incio de um processo de declnio do movimento .tenenbst~ e pelo cre~cente surgimento de uma outra fora poltica que, a pariu de entao, comearia a marcar sua presena: o Exrcito. Face a este contexto, toma-se mais compreensvel o fato de ter o Governo Provisrio "cedido" aos objetivos polticos da Revoluo de 1932, apesar de t-la derrotado com.ple~amente do .ponto de vista militar. O abalo sofrido pelo Gove~o . Prov:1s~o tinha ongem ~anto nas presses oligrquicas pela con,s!1tuc1onahzaao, quanto nas cnses que corroam visivelmente a fora pohtica do tenentismo.

    Por tudo isto, a campanha pela Constituinte acaba por transformar-se na ponta de lana de contestao ao regime, tendo o efeito de feri-lo e obrig-lo a toda_ uma reestrutu:a.o. O perodo ~a constitucionalizao, que se inaugura a ~1r dos meses finais de 1932, vai estabelecer uma srie de alteraes nas ahan~as ~o po~e~ e, principalmente, estimular esforos de mobilizao e orgaruzaao pohhca, tendo em vista a instalao dos trabalhos de uma Assemblia Nacional Constituinte.

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    //IH RIA GERAL DA CNJIJZAO BRASILEIRA

    ra o t nentismo, para as oligarquias e para Vargas, a Constituinte ta uma experincia crucial. Se de um lado ela forava uma abertura do a pol tico, caracterizando um momento ptivilegiado de experincia l-democrtica, por outro possibilitava a canalizao dos conflitos

    icos para um espao institucional delimitado e "permitido''. o que poderia ltar num efetivo grau de controle sobre os mesmos. E dentro desta igidade marcante - que o contexto politico da Constituinte capaz de

    r - que assistimos a mltiplas tentativas de articulao poltica no pas, de fundamental a observao do papel assumido por Vargas.

    Sem dvida, a Constituinte era uma imposio que o Governo Provisrio procurava absorver, tentando tirar dela os maiores benefcios, com as menores perdas. O sucesso neste empreendimento estava, portanto, direta-mente vinculado capacidade de o prncipe colocar sob seu controle os rumos do processo de organizao poltica. Havia, de fato, at uma possibilidade de fortalecimento do poder de Vargas, j que o momento de abertura poltica poderia trazer um relativo compromisso entre as principais foras em confronto, eliminando as tendncias mais radicais e passveis de comprometer o equilbrio e a ordem vigente. claro que tal possibilidade implicava uma estreita participao do prncipe em todos os arranjos polticos do perodo pr-eleitoral e tambm do perodo de funcionamento da Constituinte; em outras palavras, implicava uma verdadeira conduo do processo constitucional por parte do chefe do Governo Provisrio.

    No entanto, os momentos de liberalizao de regimes polticos fortes oferecem sempre margens de risco, uma vez que praticamente impossvel controlar todo o espao poltico que ento se abre para debate e colocao de propostas. Neste sentido, a perda de controle do processo pelo prncipe uma ameaa real e permanente, sendo sua contrapartida o enfraquecimento e at a excluso do cenrio poltico deste personagem-chave. Neste caso, pelo menos duas alternativas so possveis. A primeira delas a unio das .correntes polticas que, no campo institucional do debate, alinham-se contra a figura rio prncipe e contra aquilo que a sua permanncia no poder pode significar. Cabe ao prncipe, portanto, prevenir esse tipo de alianas, trabalhando continuada-mente com o objetivo de atrair para o poder central os setores potencialmente ou explicitamente de oposio, oferecendo-lhes, por exemplo, benesses que o controle da administrao pblica permite. A segunda alternativa surge do fato de que sempre possvel que nem todas as correntes polticas sejam canalizadas para o espao permitido, continuando a articular-se por caminhos que, por seus meios e fins, rompem o equilbrio legal. A via conspiratria de ao poltica - particularmente nos meios militares que tm amplos recursos para tanto - permanece como possibilidade vivel a certos grupos descontentes com os rumos da constitucionalizao e da abertura poltica.

    De fato, a Constituinte era uma necessidade, e o governo a reconhecia, uma vez que o regime legal tomava-se uma demanda inadivel. Era preciso enfrentar este momento poltico, que basicamente significava a passagem ao estado de direito.

    Discurso de Raul Fenumdes

    CONFRONTO E COMPROMISSO NO PROCESSO 29

    Raul Fernandes, em seu discurso de saudao a Vargas no dia da instalao solene dos trabalhos da Assemblia, lembra, de forma bastante apropriada, o teste por que

    passava o regime e a revoluo e, principalmente, o significado poltico daquele momento:

    t o batismo da legalidade vindo cobrir com o manto da sua majestade a obra de fora realizada em outubro de 1930, para reivindicar as liberdades pblicas esmagadas pela corrupo do regime.

    Os governos ditatoriais, meus senhores, alm das vicissitudes prprias sua natweza, tm, notoriamente, uma grande dificuldade na passagem para o regime legal.

    Os ditadores hesitam, alguns recuam definitivamente e organizam a autocracia. depois da qual um enigma insolvel apwar se a Nao aderiu ou no a essa organizao do Estado. Outros tergiversam, adiam. e, por fim, fraudam a manestao da opinio pblica e cobrem-se com o voto falsificado para obter a ratificao do movimento de fora de que nasceram. Mas todos, por um ou por outro modo. procwam a sano moral da legalidade, porque, a despeito das teorias. segundo as quais a fora ainda um Direito Politico, a fonte mais abundante do Direito nunca, nem mesmo na Alemanha, ptiia 'Cios teoristas do Direito Pblico Moderno, nenhum deles abriu mo da sano popular para os regimes criados revolucionariamente.

    Essa experincia. entre ns, est feita ( ... ) e como a Nao, por esmagadora maioria e livremente, levou a esta Assemblia deputados partidrios do golpe de outubro de 1930, li.cito dizer. de hoje por diante, que o poder. comeando de fato apoiado na fora. passou a ser um poder sancionado pela Justia - pois a Justia, em Politica, a adeso do Povo Soberano" (").

    O trecho transcrito deixa claro que havia duas etapas neste processo de transio para a ordem legal. A primeira delas, o momento eleitoral, compreendendo todos os preparativos organizacionais para o pleito e a realizao das eleies propriamente ditas. A segunda, o momento posterior dos trabalhos da Assemblia, desdobrado em duas outras etapas: a de sua instalao, marcada pelas articulaes visando formao do corpo de elementos que dirigiriam suas atividades, e a que correspondia prpria elaborao da nova carti constitucional.

    Para o principe, era essencial a participao e a interveno nestes dois momentos polticos. No primeiro deles, o problema central era o enfrentamen-to da questo partidria, processo em que as correntes de opinio se articulariam em termos partidrios para, mais tarde, se expressarem no interior da Assemblia. No segundo, a questo-chave era a de articular alianas para a garantia da conduo dos trabalhos da Assemblia.

    Em relao ao problema partidrio, no contexto poltico da dcada de trinta, dois caminhos bsicos poderiam ser assinalados, a partir das propostas organizacionais das oligarquias e dos setores tenentistas mais radicais.

    (26) Brasil, Anais da Assemblia Cons1ituin1e de 1934. vol. 1, pp. 43 e 44.

  • /11\llJJU\ C1IHA/ DA CIVILIZAO BRASILEIRA

    '' Ir 11111 111 , o t nentismo procurava responder aos avanos polticos 1111111 01 com a proposta de formao de um Partido Nacional. Outras

    utlvaa haviam sido feitas neste sentido, mesmo antes que a convocao da ahtumte recolocasse este objetivo em outros termos, digamos, mais

    tlcos e urgentes. As experincias das Legies Revolucionrias, e ncipalmente o esforo frustrado de transformao do Clube 3 de Outubro em rtido poltico, ainda no inicio do ano de 1932, confirmam este fato (27). tretanto, diante das cises ocorridas no interior do clube e da proximidade

    o pleito eleitoral. intensificam-se os esforos no sentido renovador da prtica ti' ltico-partidria do pais. Tais esforos ficam atestados pelas bases de

    elaborao do chamado Acordo Revolucionrio, no qual tomam parte todos os ministros civis do Governo Provisrio, e mais: Joo Alberto, o general Ges Monteiro, Antnio Carlos de Andrada, e diversos interventores estaduais (Ari Parreiras (RJ), Pedro Ernesto (DF). Carneiro Mendona (CE) e Rogrio Coimbra (AM). O sentido do acordo pode ser caracterizado por algumas de suas passagens:

    "Todos os adversrios da Revoluo acham-se unidos por um objetivo comum, que a posse do poder, de que foram afastados, pela revoluo de 1930. ou posteriorm.,nte, por uma seleo necessria, dentro do prprio Governo Revolucion6rio. ( .. . )"

    "As diversas correntes revolucion6rias necessitam oferecer uma frente coesa ao advers6rio comum. (. .. )" . "Todos os Estados devero, por seus elementos de governo e correntes revolucion6rias,

    deixar bem clara a unio contra a desordem, independentemente de qualquer divergncia de car6ter ideolgico que possa existir entre suas correntes pollticas. ( . .. )"

    "Esta coligao ser6 o primeiro elo de unio e o primeiro passo para a formao de um partido polltico nacional. ( ... )" "Os interventores podem e devem interessar-se pela arregimentao pol!tica dos

    elementos que fizeram a revoluo ( ... ) pois s assim a obra de reconstruo revolucion6ria ser6 amparada e protegida no prximo regime constitucional" (28).

    A umao das conentes "revolucionrias", sobrepondo-se s suas divergncias, seria concretizada na formao de um partido nacional, cujo objetivo deveria ser o enfrentamento do "adversrio reacionrio" comum, na luta pela manuteno, dentro do regime constitucional, da diretriz polltica que comeara a ser implementada no Governo Provisrio e que se via agora ameaada.

    Os interyentores surgem como o elemento central para a garantia da consecuo e do sucesso do projeto poltico. A esta nova figura da administrao estadual era atribuda a tarefa de arregimentao e unificao das foras pollticas estaduais, bem como a sua integrao a nvel federal. Portanto, mesmo o traado de um partido polltico nacional no conseguia

    (27) Sobre a tentativa de transformar o Clube 3 de Outubro em panido poltico e a derrota desta iniciativa, ver o excelente relato de Augusto do Amaral Peixoto em sua entrevista ao CPD

  • ..

    .,

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    1

    l. HISTRIA GERAL DA CTVIUZAO BRASILEIRA

    fortalecimento poltico e econmico da regio implicava afastar do poder os interesses do Sul. passava diretamente pelo reforamento do governo federal. o que convergia com as diretrizes intervencionistas e centralizadoras do tenentismo, embora sem excluir a defesa de nveis substantivos de autonomia estadual.

    Apenas com este exemplo, fica clara a complexidade da diviso e das alianas polticas do perodo, que de modo algum opem de forma simples e coesa tenentismo e foras oligrquicas. f':'tes dois plos conflituais cindem-se e interpenetram-se em contnuos rearranjos, que do a tnica da instabilidade poltica vigorante.

    Esta situao, entretanto, no nos impede de caracterizar como nitidamente estaduais as iniciativas de organizao poltico-partidria da maior parte das oligarquias do pas, em contraste com a orientao francamente nacional das foras polticas tenentistas. Evidentemente, trata-se, para algumas destas faces oligrquicas, de reativar um tradicional partido ainda existente. E o caso clssico de So Paulo, onde os mais importantes partidos da Repblica Velha - o Partido Democrtico (PD) e o Partido Republicano Paulista (PRP) - reorganizam-se e unem-se, ao lado de outras agremiaes polticas, formando a Chapa nica por So Paulo Unido, que assume, inicialmente, uma clara posio de combate ao governo central e de defesa do federalismo. Em Minas, o Partido Republicano Mineiro (PRM), embora duramente abalado em suas bases de poder, concorre ao pleito de 3 de maio.

    Entretanto, como mencionamos anteriormente, uma srie ==ao de novos partidos regionais surge, entre fins de 1932 e

    incio de 1933, sob a liderana dos interventores e o beneplcito do prncipe. Estes PRs da dcada de trinta mantinham tambm o carter regionalista dos PRs da Primeira Repblica, alterando, entretanto, as bases de suas relaes com o poder central. Assim, alguns indicadores bsicos atestavam um processo de reformulao da estrutura poltico-partidria do pais - e no a conservao pura e simples dessa estutura. A figura do interventor, com sua posio poltica oficial de delegado do Poder Executivo, d, em grande medida, a linha das alteraes sofridas.

    Vale ressaltar, inclusive, que estes partidos representavam uma tentativa de suplantar experincias polticas anteriores, desgastadas durante os anos do imediato ps-trinta e, especialmente, pela Revoluo de 32. O Partido Progressista (PP), de Minas, e o Partido Republicano Liberal (PRL), do Rio Grande do Sul. ocupavam, objetivamente, o espao poltico deixado pelo esgotamento das tradicionais organizaes partidrias da Repblica Velha; deviam, portanto, combat-las, eliminando-as politicamente. Bem ou mal, eram uma alternativa que oferecia como principal vantagem as estreitas ligaes com o poder central e todos os benefcios imediatos e concretos que da poderiam advir.

    Estes partidos, sem dvida, tambm foram criados sob o estmulo e

    CONFRONTO E COMPROMISSO NO PROCESSO 33

    orientao de Getlio Vargas, que sem abandonar a proposta de formao ~e um partido nacional patrocinava a emergncia de novos n~cleo~ estaduais liderados por "seus" interventores do eixo Centro-Sul. . Por~m, nc:io se deve pensar em contradio face a este estilo de atuc:io poltica, mclusive porque, at um certo momento, os dois esforos podenam ter carter complementar. Na verdade, chega-se a desenvolver uma tentativa de at!ao tanto _do PP quanto do PRL, quando da formao da Unio Cvica Nacional. tentativa de resto infrutfera.

    Neste sentido, importante assinalar que, de fato, a Assemblia N~cional Constituinte de 1934 apresentou-se organizada por hancadas.es!aduais onde muitas vezes dominava um s partido, a exemplo da Republica Velha. A persistncia desta dimenso regionalista de organ~zao ~rtidr! ~m c~mo a falncia das tentativas de formao de um Partido Nacional sao, .m~lusive'. para muitos analistas do perodo, o grande problema que a Conshtu1?te vc:i1 enfrentar como reflexo das insuficincias do processo revolucionrio inaugurado em 1930. Sobre o assunto, assim escreve um jornalista da poca:

    "( ) Apesar de sua (da Revoluo de 1930) organizao aparentemente centralizadora que tra~lormou os governadores de Estados em delegados do Govem? Cent.ral e apesar das declaraes dos patriotas de que a revoluo n~o ~~onh'_'Cena ba1msmos. os 21 interventores nos quais se fracionaram os poderes d1scnc1onrios . do Chefe do Gove~o Provisrio, fizeram suas 21 politicas locais esquecidos da causa nac1on~l ( ... ) A_ Assem~l1a Constituinte como os velhos congressos. veio dividida em 'bancadas' e a .pollhca nacional parece obed~er velha politicados governadores(. .. )"

  • ..

    34 HISTRIA GERAL DA CIVlllZAO BRASTLEIRA

    locus poltico, entretanto, exige do prncipe outros tipos de artifcio e o desenvolvimento de cuidadosas articulaes. Seu esforo, todavia, pode vir a ser amplamente recompensado, j que o objetivo ltimo de toda a sua atuao , inegavelmente, a eleio para o cargo de presidente constitucional da Repblica.

    A formao da mesa para dirigir os trabalhos da Assemblia, e particularmente a escolha do poltico que ir presidi-la no podem escapar da interferncia governamental. Esi"'" postos, fundamentais ao decurso dos trabalhos parlamentares, constituam os primeiros grandes recursos polticos no jogo de barganhas que se iria iniciar. Neste sentido, os meses que transcorrem das eleies, em maio, at a instalao da Assemblia, em novembro, so plenos de contactos e movimentaes visando a montagem de uma soluo que, garantindo a segurana futura do prncipe, no descontentasse, ao menos, a grande maioria das correntes polticas que participariam da Assemblia . Tais articulaes .mobilizam os ministros do Governo e principalmente os interventores.

    Na liderana da conduo desta questo encontrava-se o prprio interventor do Rio Grande do Sul. Flores da Cunha, que era tambm o presidente do PRL. Flores da Cunha, ao lado do ministro da Justia, o gacho e seu ex-secretrio Antunes Maciel. conduz as negociaes em nome de Vargas. Na verdade, desde o ms de agosto, sabe-se que a presidncia da Assemblia dever caber a Minas Gerais, mais precisamente a Antnio Carlos de Andrada, poltico do PP (32) . No entanto, somente s vsperas da instalao da Assemblia, na primeira quinzena de novembro, que o assunto definitiva e formalmente encerrado, aps uma grande reunio de interventores no Rio (33) .

    Dois pontos principais merecem ser retidos no desenrolar destes acontecimentos. Em primeiro lugar, o alijamento da Assemblia do processo de definio de suas normas internas de funcionamento (o regimento interno) e da escolha da mesa diretora de seus trabalhos. Tudo se realiza atravs de contactos polticos entre as principais autoridades do Poder Executivo ento estabelecido, das figuras dos ministros e dos interventores. Em segundo lugar, o papel-chcive assumido por Vargas que, mesmo sem atuar diretamente, controla todo o desenrolar das negociaes atravs de representantes pessoais. J neste momento, antes mesmo do incio dos trabalhos da Constituinte, um certo tipo de conduta poltica caracteriza as aes do prncipe e anuncia seu posicionamento futuro . Sem se envolver pessoalmente no curso das questes polticas que seriam da competncia do Poder Legislativo - mantendo, portanto, uma atitude de distanciamento formal e respeitoso Vargas

    (32)Dirio de Notcias, Distrito Federal, l " a 3 de agosto de 1933 e tambm de 22 de agostO do mesmo ano.

    (33)Jornais Correio da MarJ e Dirio de Noticias, Distri to Federa!, 1 Oll l/1933. Sobre a presena do Rio Grande nas anicu!aes polticas deste momel'ltO ver Maria Helena de ~agalhes Castro, O Rio Grande do Sul na Constituinte: de protagonista coadjul'ante (mmeo), CPOOC, FGV.

    SOCIEDADE E POLTICA 35

    constri e lana sua rede de informao, apoio e influncia no prprio seio da Assemblia (34).

    Desta forma, ficam assegurados os principais mecanismos que explicam a presena de Vargas na conduo do processo constitucional e que se traduzem tanto na vitria de alguns de seus mais importantes interesses. quanto em sua prpria eleio para a presidncia do pais. O apoio de algumas das grandes bancadas da assemblia (como as do Rio Grande, Mnas Gera~s e Bahia), e uma ttica de aproximao com aqueles setores que lhes faziam oposio (como seria o caso de So Paulo) esvaziam em grande parte os choques no interior da Constituinte e, principalmente, dificultam a articulao das correntes contrrias ao continuismo de Vargas.

    Entretanto, no se deve reter a imagem de uma Constitunte contida e sob controle, onde se teria apenas consagrado a vitria do prncipe. A Assemblia de 1934 estava muito longe desta unidade e placidez. Assim, apesar de todos os esforos e do relativo sucesso e da interferncia governam~ntal e~ seus trabalhos, em muitas questes a Constituinte consegue reunrr um numerp significativo de deputados contrrios a Vargas e a suas manobras.

    Um nico exemplo ilustra bem este fato. Depois de iniciados os trabalhos da Constituinte, e face s inmeras emendas apresentadas ao anteprojeto de Constituio preparado pela subcomisso do Itamarati, realiza-se uma tentativa de reforma do regimento interno da casa. regimento este elaborado pelo prprio Governo Provisrio, como vimos anteriormente. Tal. re!orma tinha como objetivo a nverso da ordem dos trabalhos da Assemblia, isto , propuriha que primeiro fosse eleito o presidente da Repblica. para que, em seguida, fosse elaborada a Constitu~o. A onda de protestos que dentro e fora da Assemblia 8e levantou contra tal expediente uniu setores divergentes no propsito de impedir a passagem de uma emenda que significava a descaracterizao e a falncia do esprito da Constituinte.

    A prpria eleio de V argas, realizada em julho de 1934, se Eleio de de um lado ilustra sua fora poltica, no deixa igualmente Vargas de dimensionar os seus limites, a sua fraqueza e, tambm, a insubordnao da Assemblia. Para ser eleito. Getlio Vargas teve que enfrentar alguns outros pretendentes ao cargo, que por caminh?s constitucio-nais ou por caminhos pautados em movimentos conspiratrios militares ameaavam-no de forma efetiva. No se tratava, portanto, de um processo sucessrio tranqilo, certificado da autoridade e legitimidade do ento chefe de Estado. A presena do nome do prprio ministro da Guerra. o general Ges Monteiro, como possvel candidato s eleies, bem como seu inegvel envolvimento em articulaes golpistas, do a medida das dificuldades e da arte poltica de Vargas neste momento.

    (34) Vale a pena mencionar que tal fato plenamente refletido nas fome;; consultadas. O Arquivo Getlio Vargas tem, por essa razo'. escasso. material sobre a Consutumte, enquanto a Imprensa, panicularmeme a do Rio de Janeiro, mmucio~ e rica . de informaes acerca dos freqentes contactos entre Vargas e alguns dos mais proeminentes lideres da Assemblia. Desta forma, rudo acompanhado de peno, sendo mantido um distanciamento til e at necessrio.

  • 36 HISTRIA GERAL DA CIVIUZAO BRASILEIRA

    Por fim. resta lembrar que a Constituio de 1934, apesar de toda a interferncia de Vargas durante os trabalhos da Assemblia, desagradou-o mais do que atendeu a seus interesses. Os limites impostos s atribuies polticas do Poder Executivo motivaram severas e imediatas crticas do ento presidente eleito, muito embora tenham crescido bastante as funes atribudas ao Estado ein matria de ordem econmica e social. instaurando-se, no pais, uma nova .. e mais moderna concepo de poder pblico. Um pequeno trecho de seu primeiro discurso pronunciado na Assemblia, j na qualidade de presidente constitucional. ilustra o que estamos ressaltando:

    "Ora, quem examinar alentamente a matria da nova Constituio verificar, desde logo, que ela fragmenta e dilui a autoridade, instaura a indisciplina e confunde, a cada passo. as atribuies dos Poderes da Repblica. ( .. . ) A Constituio de 1934. ao revs da que se prom~lgou em 1891. ~nfraquece os elos da Federao: anula, em grande parte, a ao do Presidente da Repbhca, cerceando-lhe os meios imprescindveis manuteno da ordem, ao desenvolvunento normal da administrao: acorooa as forcis armadas prtica do faccionismo partidrio, subordina a coletividade, as massas proletrias e desprotegidas ao bel-prazer das empresas poderosas: coloca o individuo acima da comunho" (35).

    IV. A MECNICA oo CoMPROM!sso PossVEL

    Em 15 de novembro de 1933 instala-se, em sesso solene, no palcio Tiradentes, a terceira Assemblia Nacional Constituinte brasileira.

    J haviam sido realizadas cinco sesses preparatrias, visando instalao plena dos trabalhos da Assemblia. Nas trs primeiras, dirigidas pelo presidente do Superior Tribunal Eleitoral. ministro Hermenegildo de Barros, procedeu-se apresentao e validao dos diplomas dos deputados

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    38 HISTRIA GERAL DA CIVJIJZAO BRASILEIRA

    devido abertura dos trabalhos da Constituinte, era de fundamental importncia a realizao de concesses mtuas. era bsico o exerccio da conciliao poltica.

    s grandes bancadas do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais - s quais se acoplava, de forma especial. a bancada da Bahia (a meio caminho geogrfico e poltico do pais) -, somavam-se as pequenas bancadas do Norte-Nordeste, sem dvida capitaneadas pelas fortes lideranas do interven-tor pernambucano Carlos de Lima Cavalcanti e do ministro da Agricultura, Juarez Tvora.

    Realizados os acordos que resultaram na composio desta mesa diretora, inauguram-se os trabalhos da Constituinte a 15 de novembro de 1933, com a presena e um longo discurso do chefe do Governo Provisrio, uma verdadeira prestao de contas. Tal procedimento era absolutamente correto, uma vez que cabia Assemblia, alm da elaborao da Constituio e da eleio do primeiro presidente constitucional, o julgamento e a aprovao dos atos do governo revolucionrio.

    J no dia seguinte abertura solene dos trabalhos, a Assemblia recebia, oficialmente, o anteprojeto constitucional elaborado pela subcomisso do Itamarati, a partir do qual deveriam fundar-se os debates parlamentares. Na verdade, aps aquele primeiro momento de instalao oficial. a Assemblia organizou seus trabalhos seguindo certas etapas, que podem ser relativamen-te detectadas.

    Houve um primeiro perodo marcado basicamente pela atuao da Comisso Constitucional da Assemblia e pela apresentao, em sesses plenrias, de emendas ao anteprojeto governamental. Nesta fase, os trabalhos concentraram-se no estudo e na reforma do texto apresentado pelo Governo Provisrio aos constituintes. Segundo as normas do regimento interno, cabia ao presidente da Assemblia encaminhar, de pronto, a nomeao de uma comisso especial - a Comisso Constitucional - para estudo do anteprojeto e das emendas a ele apresentadas. A comisso era formada por um representante de cada uma das bancadas estaduais e de cada um dos grupos profissionais. Ao todo somam 26 componentes, o que a toma conhecida como a "Comisso dos 26". A presidncia dos trabalhos desta comisso fica com o deputado Carlos Maximiliano, importante nome da poltica do PRL gacho e ex-membro da subcomisso do ltamarati; a vice-presidncia cabe a Levi Carneiro, jurista e deputado classista dos profissionais liberais; o relator-geral Raul Fernandes, deputado fluminense do Partido Popular Radical (PPR).

    A "Comisso dos 26" desenvolve seus trabalhos de novembro de 1933 a maro de 1934, quando entregue Assemblia um substitutivo ao anteprojeto de Constituio apresentado pelo governo. A elaborao deste substitutivo no foi, entretanto, tarefa de fcil realizao. Em primeiro lugar,

    Soares a Vargas. Arquivo Getl io Vargas (GV. 33.10.20), CPDOC, FGV. Sobre a situao de So Paulo, ver ngela Maria de Castro Gomes, Lcia Lobo e Rodrigo Belingrodt Coelho, Revolw;o e Restaurao: a experincia paulista n-0 perodo da constituciona lizao (mimeo), CPDOC,.FGV.

    SOCIEDADE E POLTICA 39

    cabe mencionar que foram mais de mil o nmero de emendas apresentadas ao anteprojeto, o que torna qualquer trabalho de composio extremamente difcil. Em segundo lugar, durante os meses de dezembro de 1933 e janeiro de 1934 a Assemblia foi convulsionada pela renncia de Oswaldo Aranha do Ministrio da Fazenda - e automaticamente da liderana da maioria -desencadeando-se uma crise ministerial de amplas repercusses polticas. Esta crise resulta do episdio de nomeao do novo interventor mineiro, e envolvi igualmente o pedido de demisso do ministro das Relaes Exteriores, Afrnio de Melo Franco.

    l demisso de dois ministros j era por si s um fato problemtico, mas Aranha era tambm o lder da maioria da Assemblia e , como se tomou pblico posteriormente, seu afastamento havia sido condicionado ao de Antnio Carlos. O presidente da A.ssemblia, um tradicional poltico mineiro, via-se assim atingido diretamente por esses fatos. No entanto, ele no renunciou a seu cargo, reafirmando, ao contrrio, sua lealdade a Vargas. A situao poltica no interior da Assemblia tomou-se assim muito tensa, pois dois dos mais importantes cargos de articulao e de garantia da estabilidade para a conduo dos trabalhos estavam imobilizados pela vacncia pura e simples (a liderana da maioria) e pela dvida sobre a permanncia (a presidncia). Neste contexto, como a renncia de Aranha encontra fortes oposies no interior da casa, h um curto momento (29 de dezembro a 12 de janeiro) em que a liderana fica em aberto, enquanto so realizados acordos e negociaes para a indicao do novo lder, ou at mesmo o retomo do antigo Hder, embora esta possibilidade fosse mais remota (').

    Este episdio, portanto, abala, temporariamente, o funcionamento da Assemblia e tambm a Comisso Constitucional. Todas as atenes politicas do pais voltam-se para a frmula de solucionar o problema. Tal frmula s vai ser encontrada em meados de janeiro, com a realizao, no Distrito Federal. de uma grande reunio de ministros e interventores. Na reunio decide-se a permanncia de Antnio Carlos de Andrada na presidncia da Assemblia e a volta de Aranha para o Ministrio da Fazenda. Quanto liderana da maioria, aprova-se deix-la plenamente desimpedida para a escolha de um futuro ocupante.

    Este processo tambm no tranqilo, uma vez que o nome escolhido por Vargas - o do deputado baiano do PSD, A.G . Medeiros Neto - provoca reaes, tanto por significar mais uma clara interferncia do chefe do Governo nos assuntos da Constituinte, quanto pelo passado poltico "pouco revolucio-nrio" de Medeiros Neto . As objees ao nome do lder baiano vinham de mltiplas direes. Havia os que concordavam com o nome, mas no acei-tavam essa clara interveno de Vargas, postulando que aos constituintes

    ( 40) Sobre estas ques1es h uma palpitante correspondncia entre Flores da Cunha e Getlio Vargas, onde se discutem os riscos e as possibilidades das diversas solues. No caso, o imerventor gacho partidrio franco da manuteno de Antnio Carlos - j comprometido com a eleio de Vargas - e da esco lha de um novo lder. Arquivo Getlio Va rgas (GV.33.12.2612; GV.33.12.2613 e GV.33.13.2614), CPDOC, FGV.

  • 40 HISTRIA GERAL DA CIVILIZAO BRASILEIRA

    cabia eleger livremente o lder da maioria; e havia os que divergiam mais do nome apontado do que dos mtodos governamentais que levaram at ele.

    Visando soluo desta crise que j se prolongava demasiadamente. realiza-se uma outra grande reunio do presidente Antnio Carlos com os lideres das diversas bancadas que compem a Assemblia, com o objetivo de eleger o novo lder da maioria. nesta agitada ocasio que, no sem oposies, Medeiros Neto proclamado lder (41).

    Vencida essa questo, os trabalhos constitucionais voltam a um clima mais normal. Comeam ento a se desenvolver os primeiros esforos para acelerar os trabalhos da "Comisso dos 26" e da prpria Constituinte. Tal preocupao, no entanto, no consegue esconder outras intenes que a animam e que, na verqade, passam a ser amplamente divulgadas pela imprensa. Esta inicia especulaes que associam as preocupaes em acelerar os trabalhos de elaborao do substitutivo com um indisfarado e manifesto interesse em apressar as eleies presidenciais.

    A crise ministerial recm-superada deixara como saldo negativo a evidncia de questes que comprometiam a estabilidade do Governo Provisrio. Por esta razo, uma srie de expedientes que visavam alterar o andamento dos trabalhos constitucionais comea a ser discutida por interventores, ministros e, naturalmente, pelas lideranas partidrias da Assemblia. Alguns importantes polticos como o presidente da Assemblia, Antnio Carlos, o presidente da "Comisso dos 26", Carlos Maximiliano, o novo lder da maioria, Medeiros Neto, e tambm o interventor gacho. Flores da Cunha, colocam-se imediatamente frente das articulaes buscando a racionalizao dos estudos da Comisso Constitucional.

    Chega-se, ento, a uma reorganizao dos trabalhos da referida comisso, que fica. reduzida a cinco ou seis membros fixos . A grande "Comisso dos 26" original divide-se em grupos, cada um responsvel pelo estudo e elaborao de uma das partes do substitutivo. Para cada grupo escolhido um relator parcial (ou mais de um). O presidente, o vice-presidente e o relator-geral da "Comisso dos 26" (que passam a formar a conhecida "Comisso dos 3") devem reunir-se com os relatores parciais para exame dos seus trabalhos, pertencendo estes parte fixa da comisso apenas enquanto durar esse exame (42) .

    ( 41) A cobertura

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    42 HISTRIA GERAL DA CNILIZAO BRASILEIRA

    Fernando de Magalhes (PPR-RJ), alm de muitos outros que se ligavam a partidos de oposio estadual (").

    O episdio de tal gravidade que o jornal O Estado de So Paulo, transcrevendo em primeira pgina a indicao do lder da maioria, qualifica- de "um estado de stio antecipado" e de um verdadeiro "golpe" ("). A ela, mais uma vez, reage violentamente o ministro Oswaldo Aranha, encami-nhando ao chefe do governo um novo pedido de demisso do cargo. Em sua carta, Aranha afirma-se partidrio da candidatura Vargas, mas no nestas condies, que reputa altamente prejudiciais (47).

    Evidentemente a situao era bastante grave. Uma possvel crise, desta feita mais profunda, inclusive por ser a segunda num curto perodo de tempo, precipitaria os acontecimentos, podendo comprometer o continusmo de Vargas. O impasse criado pela ampla e forte reao estabelecida na Assemblia - e mesmo em setores do governo - conduz ao abandono da indicao, mas no da idia de acelerao dos trabalhos constitucionais. Frente dificuldade da situao, Medeiros Neto e Simes Lopes (lder da bancada gacha) so encarregados da tarefa de promover uma srie de arranjos polticos, dos quais participam ministros, interventores e lderes das grandes bancadas (como Minas, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco e tambm So Paulo), visando chegar a uma frmula conciliatria (48).

    Com estes dois acontecimentos marcantes - o encerramento das funes da Comisso Constitucional e a aprovao da reforma do regimento interno -inaugura-se uma outra etapa no funcionamento da Assemblia. A tnica deste segundo perodo ser dada pela apresentao e discusso das emendas ao substitutivo da "Comisso dos 26", cujo encerramento dos trabalhos estava previsto para 10 de abril. Como se tratava da etapa final dos debates, o perodo caracterizava-se, principalmente, pelas articulaes polticas entre as bancadas que compunham a Assemblia, num esforo de garantir a aprovao de propostas em plenrio, quando da votao da.s mesmas. Especialmente a partir deste momento, observa-se, na Constituinte, a

    _, ( 45) Ver sobre este impasse a cobertura da imprensa carioca, especialmeme o Correio da Manb durante o ms de fevereiro de 1934. . ( 46) O Estado de So Paulo, So Paulo, 23/0211934. A indicao Medeiros Neto lida em plenrio no

    dia 22/02119~, embora desde fins de janeiro j viesse sendo comemada e anunciada. (47) Arquivo Gerlio Vargas (GV. 34.02.22), CPDOC, FGV. (48) A soluo foi apresentada como substicutivo "indicao Medeiros eco" e, por ela, a

    Assemblia aceitava a discus.so j realizada pela "Comisso dos 26" como a primeira discusso do projeto consticucion~I , permitindo, imediatameme, que este fosse submetido em bloco votac;-Jo. Sendo aprovado, o projeto poderia receber emendas em segunda discusso e, no prazo mximo de 30 dias, . passaria . votao final. Desta forma, ao permitir a aprovao em bloco do projeto consmuaonal, a frmula possibilitava, e mesmo previa, a eleio presidencial no prazo de um ms, sem qu_e o fato implicasse a inverso da ordem dos trabalhos. No ca5o de os prazos serem cumpridos, a ele1ao se daria aps a votao final e promulgao da Censtituio definitiva; no caso do no-cumpnmento dos prazos, previa-se a promulgao do projeto aprovado em bloco, como constituio provisria, para efeito da sucesso presidencial. Esta frmula seria finalmeme aprovada. por 131 votos concra 59, na sesso de 10 de maro de 1934. Anais da Assemblia Nacional Constituinte, 1934, vol. 11 , pp. 58-81.

    SOCIEDADE E POLTICA 43

    formao de dois grande blocos, na poca denominados o bloco das grandes bancadas ou maioria e o das pequenas bancadas ou minoria.

    Tal distino traduzia a idia bsica de se formar e articular uma oposio orientao que at ento teria predominado nos trabalhos da "Comisso dos 26" e da Assemblia, traduzida basicamente pelo predomnio das grandes bancadas de Minas, Rio Grande, Bahia e at mesmo So Paulo. Porm, preciso ressaltar que o espao em que esta oposio se locomovia era exatamente aquele dos conflitos institucionalizados e canalizados para um certo tipo de expresso legal. A minoria obedecia s mesmas regras do jogo da maioria e, significativamente, no implicava uma oposio real a Vargas. Na verdade, tal lato apenas refora a caracterstica predominantemente "situacionista" da Assemblia Nacional Constituinte de 1934. Conforme j mencionamos anteriormente, a derrota militar da Revoluo de 1932 no s possibilitou ao Governo Provisrio a excluso direta e radical, via expulso do pas, de alguns dos mais importantes lderes que o combatiam, . como garantiu-lhe a conduo do processo politico-jur