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    Chambouleyron, Rafael; Siqueira de Melo, VaniceGovernadores e ndios, guerras e terras entre o Maranho e o Piau (primeira metade do sculo XVIII)

    Revista de Histria, nm. 168, enero-junio, 2013, pp. 167-200

    Universidade de So Paulo

    So Paulo, Brasil

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    Revista de Histria,

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    Rafael Chambouleyron e Vanice Siqueira de MeloGovernadores e ndios, guerras e terras entre o Maranho e o Piau (primeirametade do sculo XVIII)

    GOVERNADORES E

    NDIOS, GUERRASE TERRAS ENTRE OMARANHO E OPIAU (PRIMEIRA METADEDO SCULO XVIII)1

    Rafael ChambouleyronUniversidade Federal do Par

    Vanice Siqueira de Melo

    Mestre em Histria pela Universidade Federal do Par

    Resumo

    Este artigo examina o processo de expanso portuguesa pelos sertes orientaisda capitania do Maranho e pela capitania do Piau nas primeiras dcadas dosculo XVIII, procurando explicar as conexes entre as guerras contra os ndiosdaquela regio, a expanso do gado e os interesses principalmente dos governa-dores do Estado do Maranho e Par.

    Palavras-chaveCapitania do Maranho - capitania do Piau - sculo XVIII - ndios - guerras - gado.

    1 Esta pesquisa conta com o apoio do CNPq, da Fapespa e da FCT, no mbito do projeto PTDC/HIS-HIS/113654/2009. Os autores pertencem ao grupo de pesquisa Terra, natureza e territ-rio na Amaznia luso-brasileira da Universidade Federal do Par, Os autores agradecem assugestes do parecerista annimo da revista e de Antonio Otaviano Vieira Jr.

    ContatoRafael Chambouleyron

    Tv. Quintino Bocaiuva, 1574/130166035-190 Belm Par

    E-mail: [email protected]

    Vanice Siqueira de MeloRua Gaiaps, 303

    66033-840 Belm Par

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    GOVERNORS AND

    INDIANS, WARS ANDLANDS BETWEENMARANHO ANDPIAU (FIRST HALFOF THE EIGHTEENTH

    CENTURY)

    Rafael ChambouleyronUniversidade Federal do Par

    Vanice Siqueira de MeloMasters Degree in History - Universidade Federaldo Par

    ContactRafael Chambouleyron

    Tv. Quintino Bocaiuva, 1574/130166035-190 Belm Par

    E-mail: [email protected]

    Vanice Siqueira de MeloRua Gaiaps, 303

    66033-840 Belm ParE-mail: [email protected]

    Abstract

    This article examines the Portuguese expansion towards the eastern hinterlands

    of the captaincies of Maranho and Piau, in eighteenth-century PortugueseAmerica. It focuses on the relationship between the many wars against the In-dians of this region, the spread of cattle ranching and the personal and politicalinterests of the governors of the State of Maranho and Par.

    Keywords

    Captaincy of Maranho - captaincy of Piau - eighteenth century - Indians -wars - cattle ranching.

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    A poro oriental do Estado do Maranho e Par que, em princpios dosculo XVIII, congregava as capitanias do Maranho e do Piau teve uma his-tria conturbada durante boa parte do perodo colonial. Se a sua ocupaocomeou poucos anos depois da conquista de So Lus aos franceses, o vastoserto que se espraiava a sudeste dessa cidade foi marcado por recorrentesconflitos contra grupos indgenas que embaraavam a expanso dos enge-nhos e dos currais dos portugueses. Regio cobiada pela Coroa, pelas auto-ridades e moradores, assistiu, em finais do sculo XVII, a um processo de ex-panso em direo ao leste precedido de inmeras guerras contra os ndios esedimentado, em grande medida, por meio da doao de sesmarias, principal-

    mente numa conjuntura de incremento do consumo das carnes, em razo dodesenvolvimento das Minas. Este artigo examina esse processo, nas primei-ras dcadas do sculo XVIII, procurando conectar as guerras expanso dogado, mas tambm aos interesses principalmente dos governadores do Estado.

    Trata-se, assim, de entender a relao entre conflitos, gado e governado-res a partir de duas questes principais: por um lado, a relao entre guer-ra e expanso da pecuria (que caracterizou igualmente outras regies daAmrica portuguesa); por outro lado, o papel dos governadores nesse pro-cesso. A indagao que nos fazemos ao analisar esse perodo a de pensar

    em que medida a guerra e a expanso da pecuria na regio oriental do Es-tado do Maranho e Par (capitanias do Maranho e Piau) acompanhou ummovimento contemporneo que se dava no Estado do Brasil, ou foi tambmmarcado pela ao particular dos governadores do Estado do Maranho ede seus interesses na regio.

    Os alarves e o jardim do Maranho

    Desde o incio do sculo XVII, os portugueses instalaram engenhos nos

    rios que desguam nas baas da ilha de So Lus; um dos primeiros relatosaps a ocupao de So Lus e fundao da cidade de Belm, escrito pelocapito Simo Estcio da Silveira, refere-se aos rios Itapecuru, Mearim, Mu-nim, Pindar e Maracu como lugares onde se poderia fundar um reino opu-lentssimo.2Esta primeira impresso se manteve ao longo do sculo XVII ea regio passou a ser ocupada principalmente por engenhos cobiados in-

    2 SILVEIRA, Simo Estcio da. Relaa Sumaria das cousas do Maranho. Escripta pello Capi-to Symo Estacio da Sylveira. Dirigida aos pobres deste Reyno de Portugal [1624]. Anais daBiblioteca Nacional (ABN). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, vol. 94, 1974, p. 113.

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    clusive pelos holandeses que ocuparam So Lus de 1641 a 1643.3Entretanto,a partir da dcada de 1650, nas correspondncias trocadas entre o Estado ea corte, comeam a aparecer inmeras notcias sobre a ao deletria dosndios. J em 1649, os ndios Uruati teriam matado quatro religiosos jesutasestabelecidos no Itapecuru.4Em 1662, o procurador do povo do Maranho,Jorge de Sampaio e Carvalho, representava na corte que o rio Munim temterras e vrzeas considerveis em bonidade para nelas se plantar canas defazer acar. Entretanto, explicava, nada era possvel se a regio no fossedefendida dos alarves de que de ordinrio infestado.5

    A seriedade da ameaa devia certamente ser pesada em razo das in-

    meras notcias que exaltavam os rios do Maranho. Escrito provavelmentenos anos 1660 ou pouco depois, um texto annimo que dava uma rpidanotcia das povoaes do Estado lamentava que, no rio Itapecuru, no ha-via mais que um ou dois engenhos, porque se despovoou por medo dostapuias que o infestavam.6Mais ou menos na mesma poca, referindo-se aoItapecuru, o ouvidor-mor Maurcio de Heriarte advertia sobre a ameaa dosndios do corso, que muitas vezes fazem dano aos engenhos e moradores.7

    As correrias dos ndios preocupavam a Coroa, as autoridades rgiasno Maranho e os moradores. Ao longo das primeiras dcadas da segunda

    metade do sculo XVII, a ao dos ndios tinha sido responsvel pelo des-povoamento da faixa oriental da capitania do Maranho. No sem razo, nadcada de 1680, o capito Manuel Guedes Aranha declarava que, jardimque era do Maranho, o Itapecuru, para o que j teve e para o que capaze desejado, est como despovoado pelas assaltadas e dano que o tapuia domato por repetidas vezes lhe tem dado.8

    3 MARQUES, Cezar Augusto.Diccionario historico-geographico da provincia do Maranho. Maranho: Typ.do Frias, 1870, p. 340; CARDOSO, Alrio Carvalho.Maranho na Monarquia hispnica: intercmbios,

    guerra e navegao nas fronteiras das ndias de Castela (1580-1655). Doutorado, Histria, Universidadde Salamanca, 2012, p. 269.

    4 BETTENDORFF, Joo Felipe, SJ. Crnica da misso dos padres da Companhia de Jesus no Maranho .Belm: Secult, 1990 [1698], p. 69.

    5 Requerimento dos oficiais da cmara e procuradores do povo da cidade de So Lus. ArquivoHistrico Ultramarino AHU, Maranho, 1662, documento 463.

    6 Noticia do Estado do Maranha. Biblioteca da Ajuda, 1660-1670, cdice 50-V-37, f. 139.7 HERIARTE, Maurcio de. Descrio do Estado do Maranho, Par, Corup e rio das Amazonas.

    In: VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Histria geral do Brasil. Tomo 3. 8 edio. So Paulo:Melhoramentos, 1975, p. 172.

    8 ARANHA, Manuel Guedes. Papel poltico sobre o Estado do Maranho. Revista do InstitutoHistrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, tomo 46, 1 parte, [c. 1682] 1883, p. 3.

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    Nas dcadas finais do sculo XVII, a Coroa passa a se mobilizar pararetomar o controle do leste do Estado do Maranho e Par. Mas somentea partir dos anos 1690 que as guerras organizadas pelas autoridades contraos ndios hostis tiveram lugar na capitania do Maranho. A partir do finaldo sculo XVII, h um esforo da Coroa em expulsar ou dominar os ndiosque investiam contra as povoaes do leste do Estado do Maranho e Par.A primeira dessas guerras aconteceu em 1691. Segundo o padre Bettendorff,com esta esfrega dada aos Caicai ficou algum tanto, ainda que no de todo,seguro o recncavo do Maranho, pois estes ndios no se acovardaramcom a diminuio e foram continuando suas hostilidades.9Por esta razo,

    em 1695, foi planejada a realizao de outra guerra contra os ndios hostis nacapitania do Maranho.10

    Aps a realizao das guerras de 1691 e de 1695, entretanto, as queixasdos moradores dos rios Itapecuru, Mearim, Munim e da recm-criada vilade Icatu contra os ndios persistiram. Segundo o padre Bettendorff, a in-vestida de 1695 contra os ndios serviu para exacerbar os nimos daquelesbrbaros e outros como eles contra os brancos. Os ndios continuavam as-saltando os escravos e os mesmos brancos, quando se achavam descuidadose os moradores no iam para as suas lavouras e canaviais, por medo de

    alguma morte desastrada.11

    Assim, em 1698-1699, novamente o tema da guerra vinha tona. Emuma petio escrita por seu procurador, os moradores da capitania do Mara-nho insistiam que a capitania depende totalmente de povoarem-se os riosdo Itapecuru e Mearim, e de se povoarem as suas terras, o que no podiaser feito em razo dos contnuos assaltos do gentio do corso.12Em carta dejulho de 1699, o prprio governador, Antnio de Albuquerque Coelho deCarvalho, reconhecia que as correrias dos ndios causavam graves trans-tornos s lavouras.13Contudo, a guerra, deflagrada pelo sucessor de Coelho

    de Carvalho, o loco-tenente Ferno Carrilho (1701-1702, participante das ex-pedies contra Palmares e depois capito-mor do Cear), deixou dvidassobre a sua legitimidade em razo dos excessos praticados pelas tropas.

    9 BETTENDORFF, Joo Felipe, SJ., op. cit., p. 517.10CCU, 26/01/1696, AHU, Maranho, documento 912.11BETTENDORFF, Joo Felipe, SJ, op. cit., p. 558.12A petio encontra-se anexada em: CCU, 21/02/1699, AHU, Maranho, documento 977.13A carta do governador do Maranho para o rei escrita na cidade de Belm, em 24/07/1699,

    encontra-se anexada em: CCU, 14/10/1699, AHU, Par, documento 356.

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    A ao de Ferno Carrilho (e no s ela) levou a Coroa a reconsideraro lugar das guerras e suas implicaes. No h dvida de que as guerras daltima dcada do sculo XVII parecem estar atreladas a uma poltica maisgeral, de h tempos consolidada, cujo sentido era a retomada da poro lesteda capitania do Maranho, como mencionamos acima, movimento contem-porneo tomada dos sertes das capitanias do norte do Estado do Brasil. Aesse interesse da Coroa, levado a cabo pelas autoridades rgias, soma-se umaconjuntura especfica do Estado do Maranho e Par, que foi o agravamentodos problemas de mo-de-obra, decorrentes da irrupo de uma grave epi-demia de bexigas, entre 1695 e 1696.14Assim, os conflitos da virada do sculo

    XVII para o XVIII tm uma natureza tanto de aquisio de escravos comode domnio territorial e garantia dos territrios de produo da capitaniado Maranho, problemas que para as autoridades e moradores do Estadodo Maranho e Par no eram excludentes.15Por outro lado, o aumento dasguerras contra os ndios, desde finais do sculo XVII, ensejou por parte daCoroa um incremento nos prprios mecanismos de controle sobre os con-flitos. Como aponta Mrcia Mello, a investigao sobre a legitimidade dascausas das guerras esteve marcada pela implantao efetiva das Juntas dasMisses no Estado do Maranho e Par.16

    Mas a ao de Ferno Carrilho (pessoalmente implicado nos circuitos deescravizao indgena que se estendiam at o Par),17condenada pelas auto-ridades, permite entrever o avigoramento de uma figura a do governador que ter um papel cada vez mais importante na deflagrao dos conflitosao longo das primeiras dcadas do sculo XVIII, paralelamente, nesse con-

    14 CHAMBOULEYRON,

    Rafael, BARBOSA, Benedito Costa, BOMBARDI, Fernanda Aires e SOUSA.Claudia Rocha de. Formidvel contgio. Epidemias, trabalho e recrutamento na Amazniacolonial (1660-1750). Histria, Cincias, Sade Manguinhos. Rio de Janeiro: Casa Oswaldo Cruz,v. 18, n. 4, 2011, p. 987-1004.

    15Tratamos desta questo em texto voltado fundamentalmente para o sculo XVII. Ver: CHAM-BOULEYRON, Rafael e MELO, Vanice Siqueira de. ndios, engenhos e currais na fronteiraoriental do Estado do Maranho e Par (sculo XVII). In: MOTTA, Mrcia; SERRO, Jos Vicentee MACHADO, Marina (orgs.).Emterras lusas: conflitos e fronteiras no Imprio portugus. Guarapuava/Niteri: Unicentro/EdUFF, 2012, p. 236-64.

    16MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e.F e Imprio: as Juntas das Misses na conquista portuguesa.Manaus: EdUFMA, 2009, p. 162-63 e 317.

    17Sobre Ferno Carrilho, ver: SANTOS, Fabiano Vilaa dos. Feitos de armas e efeitos de recom-pensa: perfil do sertanista Ferno Carrilho. Klepsidra, n 19, 2004. Disponvel em http://www.klepsidra.net/klepsidra19/fernaocarrilho.htm. Acesso em 2/03/2011. MELLO, Marcia ElianeAlves de Souza e, op. cit., p. 307-309.

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    texto, poltica mais geral da Coroa com relao aos ndios do Estado doMaranho e Par.18

    As aes dos governadores Cristvo da Costa Freire (1707-1718) e Ber-nardo Pereira de Berredo (1718-1722), queremos crer, indicam o papel centralque os governadores adquirem no contexto geral do Estado do Maranho ePar. H, desde o sculo XVII, um gradativo processo de centralizao daspolticas rgias para a regio que ter nos governadores em geral apoiadospelos moradores um instrumento fundamental.19Ora, justamente os con-flitos com diversos grupos indgenas nas primeiras dcadas do sculo XVIII,bem como a relativa paz estabelecida no incio dos anos 1720, quando Joo

    da Maia da Gama (1722-1728) assume o governo, revelam indcios de que aao dos governadores na expanso pelos sertes orientais do Estado pare-cia estar talvez mais atrelada aos interesses que construam na conquista, doque a uma poltica mais geral orquestrada pela Coroa, muito embora a cortetenha, em diversos momentos, abalizado e garantido as aes levadas a cabopelas autoridades rgias.

    Guerras e pecuria

    Um dos principais vetores da expanso portuguesa nas capitanias doMaranho e do Piau foi a criao de gado. A partir do sculo XVII, o de-senvolvimento desta atividade modificou a paisagem de diversas reas dointerior. Extensas regies da Amrica portuguesa dominadas por milharesde ndios transformaram-se em importantes reas criatrias, fundamentaispara o abastecimento de carne em outras regies da colnia.

    As inmeras guerras contra os ndios que aconteceram no interior daregio hoje denominada de nordeste, a partir da segunda metade do sculoXVII, so associadas interiorizao pecuria na Amrica portuguesa. Essas

    interpretaes articulam o avano da criao de gado e as guerras contra os

    18Essa poltica tinha se definido, em linhas gerais, nas ltimas dcadas do sculo XVII, com oRegimento das Misses (1686), a permisso dos resgates e guerra justa (1688) e com a divisodos distritos missionrios entre as ordens religiosas (1693). Para uma discusso recente sobreeste perodo, ver: GUZMN, Dcio de Alencar. A colonizao nas Amaznias: guerras, comrcioe escravido nos sculos XVII e XVIII. Revista Estudos Amaznicos. Belm: UFPA, vol. III, n 2,2008, p. 103-39; DIAS, Camila Loureiro. Civilidade, cultura e comrcio: os princpios fundamentais da

    poltica indigenista na Amaznia (1614-1757). Dissertao de mestrado, Histria, USP, 2009, p. 49-86;MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e, op. cit., p. 243-317.

    19Ver: CHAMBOULEYRON, Rafael.Povoamento, ocupao e agricultura na Amaznia colonial (1640-1706).Belm: Aa/PPHIST/CMA, 2010.

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    grupos indgenas necessidade de expanso da conquista territorial portu-guesa. A historiografia que trata da interiorizao portuguesa por meio dapecuria, no interior do hoje nordeste, frequentemente enfatiza as condiesnaturais e os problemas decorrentes da criao de gado e desenvolvimentoda agricultura e da plantao da cana na mesma regio como justificativapara a expanso portuguesa para as reas interioranas.

    Capistrano de Abreu, por exemplo, atribui s regies imprprias ao cul-tivo da cana qualidades para o desenvolvimento da criao de gado. Almdisso, atribui s hostilidades dos ndios a justificativa para os conflitos. Se-gundo Capistrano de Abreu, as margens do rio So Francisco, onde se loca-

    lizavam inmeras fazendas de gado, eram habitadas por numerosos gruposindgenas. A recusa destes ndios em ceder pacificamente as terras dessaregio para a expanso da pecuria e as tentativas de usufrurem do gadodeterminou a realizao das guerras contra eles.20

    No mesmo sentido, para Jos Alpio Goulart, o processo de interiorizaoteria sido dificultado pela presena dos holandeses em diversas regies inte-riores do nordestee pela indiada revoltada, comprimida pelo avano do gado.As guerras movidas contra esses dois grupos teriam sido fundamentais para odesenvolvimento da pecuria, pois elas tiveram o mrito de devassar quase

    completo o interior nordestino, favorecendo um expansionismo da pecuria.21

    A articulao entre o desenvolvimento da pecuria e os conflitos com osndios evidente nas discusses de Odilon Nunes acerca da ocupao por-tuguesa no Piau. Para Nunes, os conflitos com os ndios na segunda metadedo sculo XVII consistem na luta pelo domnio da terra: era a luta dos cria-dores de gado contra os grupos indgenas que vivenciavam um processo deespoliao das suas terras. No sculo XVIII, o combate pela terra permeadopor outros aspectos, pois j seria um conflito entre sesmeiros e posseiros.22

    Nesse sentido, a expanso portuguesa pelo interior do nordestefoi inter-

    pretada pela historiografia como um movimento que ocorreu sob o signoda violncia e represso aos grupos indgenas. Maria do Socorro Cabral

    20ABREU, Joo Capistrano de. Captulos de histria colonial. Braslia: Conselho Editorial do SenadoFederal, 1998, p. 133.

    21GOULART, Jos Alpio. O Brasil do boi e do couro.Rio de Janeiro: Edies GDR, 1965, vol. 1, p. 26-28.22NUNES, Odilon.Pesquisas para histria do Piau.Teresina: Imprensa Oficial, 1966, vol. I, p. 63-105.

    Sobre a ocupao do Maranho e Piau na segunda metade do sculo XVIII, ver: BRANDO,Tanya Maria Pires.A elite colonial piauiense: famlia e poder. Teresina: Fundao Cultural MonsenhorChaves, 1995; e MOTA, Antonia da Silva.As famlias principais: redes de poder no Maranho colonial.So Lus: EdUFMA, 2012.

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    lembra que a violncia contra os indgenas do Maranho esteve presente nolitoral e no sul maranhense.23J Francisco Jos Pinheiro associa o aumentoda doao de sesmarias intensificao dos conflitos contra os grupos in-dgenas no Cear; para ele o conflito foi se agudizando medida que asterras iam sendo ocupadas, principalmente nas duas primeiras dcadas dosculo XVIII.24Como defendeu Luiz Mott, a violncia foi a tnica do contatointertnico. A violncia que foi o modus vivendidesta sociedade.25Assim,inmeras vezes os grupos indgenas so compreendidos como vtimas doavano da fronteira luso-brasileira pelo Maranho e pelo Piau, apesar dasinmeras resistncias oferecidas por eles. Nesse sentido, Luiz Felipe de Alen-

    castro, ao abordar a chamada Guerra dos Brbaros, considera que, se a im-plantao do trfico negreiro e a ao dos missionrios ajudaram a preservaros ndios, logo os nativos se tornaram um obstculo expanso da fronteiraagropastoril, razo pela qual passaram a ser dizimados.26

    Pedro Puntoni analisou os conflitos contra os ndios que aconteceramno interior do nordestedurante o sculo XVII como uma poltica do governoportugus com relao aos ndios que eram considerados empecilho ex-panso e desenvolvimento da pecuria na regio, constituindo uma amplae duradoura muralha que se erguia no serto. Puntoni argumenta que es-

    sas guerras representavam um novo padro de relacionamento do Imprioportugus com as populaes indgenas, pois, diferentemente das guerrasocorridas no sculo XVI que objetivavam submeter os ndios, as guerras nosculo XVII pretendiam aniquilar as populaes indgenas.27

    De um modo em geral, as reflexes sobre a interiorizao portuguesa,portanto, associam o avano da pecuria ao surgimento dos conflitos comos ndios, em grande medida, como um movimento de causa e efeito. 28A

    23CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Caminhos do gado: conquista e ocupao do sul do Maranho. SoLus, SIOGE, 1992, p. 64-133.

    24PINHEIRO, Francisco Jos. Mundos em confronto: povos nativos e europeus na disputa peloterritrio. In: SOUSA, Simone de (org.). Uma nova histria do Cear. 2 edio. Fortaleza: EdiesDemcrito Rocha, 2002, p. 27-37.

    25MOTT, Luiz.Piau colonial. Populao, economia e sociedade. Teresina: Projeto Petrnio Portella, 1985, p. 131.26ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes. Formao do Brasil no Atlntico sul. So Paulo:

    Companhia das Letras, 2000, p. 337.27PUNTONI.A guerra dos Brbaros. Povos indgenas e a colonizao do serto nordeste do Brasil, 1650-1720.

    So Paulo: Hucitec/EdUSP, 2002, p. 17, 45-46.28Para Cristina Pompa, entretanto, os conflitos na segunda metade do sculo XVII no nordeste

    colonial foram muito mais do que guerra de extermnio para permitir o avano da frentepastoril. Para ela, houve contnuas rearticulaes de relaes econmicas e de poder, com

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    expanso portuguesa na regio seria determinante para o surgimento dasguerras contra os ndios. Assim, poderamos dizer que essas interpretaesnaturalizam o desenvolvimento da pecuria e a emergncia dos conflitos,pois compreendem que as guerras contra os ndios so inevitveis diante doimperioso expansionismo portugus sobre suas terras.

    Os conflitos com os grupos indgenas foram analisados pela historiografiacomo uma poltica da Coroa portuguesa aplicada aos ndios hostis na Amricaportuguesa. Por essa razo, estariam associados somente ao desenvolvimen-to das atividades econmicas na expanso do povoamento lusitano. Ou seja,as guerras estavam articuladas s necessidades de expanso e dominao

    territorial portuguesa. Dessa maneira, as guerras so compreendidas comomecanismos de conquista territorial e de escravizao dos grupos indgenas.Nesse contexto, a partir da experincia oriental do Estado do Maranho

    e Par, argumentamos aqui que, para alm dessa relao entre expansionis-mo e conflito, inserida numa poltica mais geral da Coroa para a Amricaportuguesa, as guerras contra os ndios so tambm determinadas por inte-resses construdos localmente, principalmente por parte dos governadoresque, no Estado do Maranho e Par, desde o sculo XVII, tiveram um papelfundamental para a organizao da conquista, mesmo depois de acabados os

    seus governos.29

    Nesse sentido, acreditamos que as guerras contra os ndios ea paz alcanada com eles no se explicam somente por determinaes maisglobais tanto da poltica indigenista portuguesa quanto da poltica de expan-so do gado emanadas da Coroa. H um componente de interesses pessoaise de conflitos internos que ajuda a entender o significado desses eventos nocontexto especfico do Estado do Maranho e Par. Desta maneira, no Estadodo Maranho e Par, as guerras estavam igualmente associadas a diversosnegcios construdos localmente. Os embates que se seguiram deflagraode diversas guerras no leste do Estado nos governos de Cristvo da Costa

    Freire e de Bernardo Pereira de Berredo e a relativa paz que se seguiu no go-verno de Joo Maia da Gama fornecem indcios dessas complexas relaes.

    avanos e recuos, em que os ndios no exerceram apenas o papel de vtimas mudas ou deprotagonistas de uma cega quanto intil resistncia, procurando inserir-se nas contingn-cias histricas em funo de seus prprios interesses. POMPA, Cristina.Religio como traduo:missionrios, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: EdUSC, 2003, p. 218.

    29O caso mais notvel dos governadores Gomes Freire de Andrade e Antnio de AlbuquerqueCoelho de Carvalho (finais do sculo XVII e princpios do sculo XVIII) que, mesmo depois determinados seus mandatos, eram frequentemente ouvidos no Conselho Ultramarino e, em grandemedida, foram responsveis por ditar as polticas da Coroa para a conquista do Maranho e Par.

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    Grandes danos e hostilidades: Cristvo da Costa Freire

    Nas primeiras dcadas do sculo XVIII, as guerras na poro orientaldo Estado continuaram. Em 1704, o governador d. Manuel Rolim de Moura(1702-1705) respondia aos oficiais da Cmara de So Lus sobre uma guerraao gentio do corso solicitada pelos vereadores, afirmando de sua parte noterem faltado escoltas e diligncias contra os ndios hostis.30Mas durante ogoverno de Cristvo da Costa Freire que os conflitos se acirram. De fato, noincio do sculo XVIII, a capitania do Piau, cuja primeira ocupao estevemarcada pela participao de gentes da Bahia e Pernambuco, se incorpora

    jurisdio do Estado do Maranho e Par.31

    Esse processo, no fundo, permitiaaos representantes da Coroa no Estado do Maranho e Par tambm a exten-so da sua influncia poltica, que se expressava por meio das relaes queestabeleciam com grupos locais, j estabelecidos na regio ou em So Lus, ouindivduos vindos do alm-mar; a guerra podia representar aqui um interes-sante mecanismo de construo de redes de influncia para os governadores.

    Assim, logo no incio de seu governo, Costa Freire escrevia ao monarcainformando sobre os grandes danos e hostilidades que o gentio do corsotem feito todos esses anos aos moradores dos rios Mearim, Munim e Ita-

    pecuru, como referia uma consulta do Conselho Ultramarino. Diante dasituao, o prprio Conselho considerava que era justssima a guerra quese assentou em Junta que se convocaram no mesmo Estado para se evitartantos insultos quanto cometiam estes ndios.32Em outubro do mesmo ano,d. Joo V escrevia ao governador autorizando a guerra e acrescentava aindaque a fizesse cruamente ao tal gentio. Alm disso, recomendava tambm

    30Senhores officiais da Camara. Par, 28/04/1704. Arquivo Pblico do Estado do Maranho Apem, livro de correspondncia (1696-1798), ff. 30-31.

    31Sobre o processo de ocupao do Piau a partir de finais do sculo XVII, ver: ALENCASTRE,Jos Martins Pereira de. Memria cronolgica, histrica e corogrfica da provncia do Piau.Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro . Rio de Janeiro: IHGB, tomo 20, [1857], p. 14-22;COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Cronologia histrica do Estado do Piau.2 edio. Rio de

    Janeiro: Editora Artenova, 1974 [1909], p. 42-67; LIMA SOBRINHO, Barbosa. O devassamento doPiau. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946, p. 41-73; GOULART, Jos Alpio. O Brasildo boi e do couro.Rio de Janeiro: Edies GDR, 1965, vol. 1, p. 17-28; NUNES, Odilon, op. cit.,p. 63-105. Sobre a incorporao do Piau jurisdio do Estado do Maranho e Par, ver:GALINDO, Marcos. Governo das almas: A expanso colonial no pas dos tapuia. 1651-1798 . Tese dedoutorado, Histria, Universiteit Leiden, 2004, p. 240-244.

    32O governador do Maranha da conta dos gr.desdanos, e hostilidades. 12/10/1707. AHU, cdice274, ff. 186-186v.

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    ao governador que escrevesse a Antonio da Cunha Souto Maior, que viviano Piau,33para que fosse ao Maranho com toda a gente que puder agregara si para se incorporar com a tropa que haver de expedir da capitania doMaranho, dando a ele 60 soldados.34

    O mestre de campo Antonio da Cunha Souto Maior combateu os ndioshostis na regio oriental do Maranho at o ano de 1712, quando foi assas-sinado por um grupo de ndios que tambm roubaram os apetrechos deguerra, causando muitas destruies pelas povoaes da regio.35Tratava-sedo levantamento geral dos tapuias do norte, capitaneados por Mandu La-dino, como lembrou Jos Maria Pereira de Alencastre.36

    Aps o assassinato do mestre de campo, o governador do Maranhoconcedeu o posto ocupado a Bernardo Carvalho de Aguiar. Essa concessode patente a Carvalho de Aguiar foi criticada pelo procurador da Coroa epelo Conselho Ultramarino. Acreditava o procurador da Coroa que as ra-zes em que se fundou o governador para nomear o novo mestre de campono eram bastante suficientes. Para o Conselho Ultramarino, o governadordeveria somente encomendar o mando da tropa de guerra sem lhe dar pa-tente de posto certo e determinado. Porm, atendendo ao prstimo de Ber-nardo Carvalho de Aguiar e a utilidade que se pode seguir da continuao

    da guerra, acreditava o conselho que o rei deveria passar a patente do postode mestre de campo a Carvalho de Aguiar.37A concesso arbitrria da patente de mestre de campo a Bernardo Car-

    valho de Aguiar por Costa Freire sugere que este governador tinha interes-ses na participao de Carvalho de Aguiar nas tropas de guerras enviadascontra os ndios hostis. Embora fosse reconhecido o prstimo de BernardoCarvalho de Aguiar, a nomeao dele era uma tentativa de satisfazer aosinteresses do governador, ampliando suas alianas, e do mestre de campo.

    33Uma eleio que reuniu os moradores do serto do Piau, em 1697, menciona seu nome. Ver:Termo da eleio q.efizero os moradores do certo do Piauhi, do lugar, p.ase fazer a Ig.jadeNossa Senhora da Victoria. 11/02/1697. In: ENNES, Ernesto. As guerras nos Palmares.So Paulo:Companhia Editora Nacional, 1938, p. 364-65.

    34Para o governador geral do Maranho, 25/10/1707. ABN, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,vol. 67, 1948, p. 15-17.

    35O gov.ordo estado do Maranha da conta das mortes, roubos e extrooens. 14/11/1713. AHU,cdice 274, ff. 232v-234.

    36ALENCASTRE, Jos Martins Pereira de, op. cit., p. 26-27. Sobre o levante, ver tambm: HEMMING,John.Red gold: the conquest of the Brazilian Indians. Londres: Papermac, 1995, p. 379-80.

    37O gov.ordo estado do Maranha da conta das mortes, roubos e extrooens. 14/11/1713. AHU,cdice 274, ff. 232v-234.

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    Nos anos seguintes, o governador enviou inmeras vezes BernardoCarvalho de Aguiar ao serto para combater os ndios hostis. Aps guer-rear contra os ndios que teriam assassinado o mestre de campo Antonioda Cunha Souto Maior, Bernardo Carvalho de Aguiar foi chamado em 1714pelo governador para realizar outra guerra. O governador Cristvo da Cos-ta Freire afirmava que, nesse ano, tivera noticias das mortandades estragose hostilidades que fazia o gentio do corso na Parnaba. Assim, ordenara aomestre de campo Carvalho de Aguiar que fizesse uma cruenta guerra contraos ndios.38Nesse mesmo perodo, os moradores dos rios Itapecuru, Mearime Munim tambm eram alvos de investidas dos ndios Barbados. Assim, em

    1715, o governador Cristvo da Costa Freire foi, pessoalmente, fazer guerraaos Barbados e teria avisado ao mestre de campo Bernardo Carvalho deAguiar e ao sargento-mor Miguel de Abreu Seplveda que se unissem a ele e tropa de So Lus nas Aldeias Altas, onde os esperou em vo por um ms.39

    O sucessor de Cristvo da Costa Freire no governo do Maranho, Ber-nardo Pereira de Berredo, no mantinha alianas com o mestre de campoBernardo Carvalho de Aguiar. O prprio Carvalho de Aguiar escreveu aoConselho Ultramarino censurando a postura do governador Pereira de Berre-do, como veremos. Alm disso, os oficiais da Cmara de So Luis, aliados pol-

    ticos do Bernardo Pereira de Berredo, escreveram ao rei d. Joo V, em julho de1721, criticando a atuao do mestre de campo Carvalho de Aguiar que teriadeixado de combater os ndios, voltando para suas fazendas, o que aumentavaainda mais as runas e considerveis perdas nestes pobres moradores. 40

    Outro indcio das conexes entre as guerras e os interesses dos gover-nadores era a participao do sargento-mor Francisco Cavalcanti. Desta vez,era o provedor-mor da Fazenda Vicente Leite Ripado que, em julho de 1718,se queixava da atuao de Cavalcanti nas expedies ao serto, quando, em1716, fora enviado por Costa Freire a combater os ndios do corso.41Segundo

    Leite Ripado, havia pblica queixa de que Francisco Cavalcanti, passandopela povoao dos Long, havia roubado os moradores dela, invadindoas casas como salteador pblico com alguns de sua comitiva. Alm disso,soldados do presdio do Iguar teriam presenciado furtos e descaminhos

    38A carta de Cristvo da Costa Freire, escrita em So Lus, em 14/04/1716, est anexada em:CCU. 6/10/1718, AHU, Maranho, documento 1199.

    39 Carta de Cristvo da Costa Freire. Belm, 11 de junho de 1716. AHU, Par, documento 519.40Carta dos oficiais da Cmara de So Lus. So Luis, 18/07/1721. AHU, Maranho, documento 1310.41Ver: Ordem em forma de regim.toq. leva o mestre de campo da conquista Bernardo de Carv.oe

    Aguiar. So Luis, 29/10/1716. Anexado em: CCU, 6/10/1718, AHU, Maranho, documento 1199.

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    nas munies, mantimentos e mais petrechos e provises da dita tropa.Esses crimes j haviam sido praticados antes por Cavalcanti, segundo o ou-vidor, no se atrevendo a denunci-lo os soldados por respeito e temor dogovernador e capito geral, de quem era feitura e muito favorecido o ditocabo Francisco Cavalcanti.42Diferentemente do que acontecia com Carvalhode Aguiar, Francisco Cavalcanti tambm soubera conquistar a estima dosucessor de Costa Freire, correndo Leite Ripado riscos se ousasse prend-lo,dados os favores dos governadores.43

    As queixas do provedor-mor sobre os procedimentos do sargentoFrancisco Cavalcante devem ser compreendidas a partir dos conflitos exis-

    tentes entre os membros da burocracia colonial. Como lembrou David Feiopara o caso do Estado do Maranho e Par, os governadores teriam menosconflitos com os oficiais da cmara do que com os ouvidores e provedo-res. O provedor da Fazenda, Vicente Leite Ripado, era acerbo opositor dosgovernadores Cristvo da Costa Freire e Bernardo Pereira de Berredo.44J Francisco Cavalcanti, por sua vez, estava inserido nas redes de poder einfluncia existentes no Estado do Maranho.45

    Atrevidos e insolentes: Bernardo Pereira de Berredo

    Em 1718, Pereira de Berredo assume o posto de governador do Mara-nho. No ano seguinte, fazia guerra aos ndios Guanar. Segundo o prprioBerredo, em agosto de 1719, chegava a So Lus, depois de uma temporada noPar, e pretendia ir logo campanha que determinava fazer na capitania doPiau. Segundo Berredo, os atrevidos e insolentes, os tapuias de corso danao Guanar, trazendo outras vrias da mesma natureza debaixo de seunome, pediram um missionrio ao governador, que destacou o padre Joode Avelar, e acabaram matando-o aleivosamente junto com outros ndios,

    ferindo outro religioso e o capito-mor do Itapecuru.46

    42Carta de Vicente Leite Ripado. So Luis, 10/07/1718. AHU, Maranho, documento 1198.43Carta de Vicente Leite Ripado. So Luis, 13/07/1720. AHU, Maranho, documento 1252.44Sobre as relaes entre os governadores e os provedores da Fazenda, ver: FEIO, David Salomo

    Silva. As cmaras municipais: administrao, elites e exerccio do poder local na Amaznia colonial (1707-1722). Monografia de graduao, Histria, Faculdade de Histria, UFPA, 2007, p. 51-66.

    45DIAS, Joel Santos.Os verdadeiros conservadores do Estado do Maranho: poder local, redes de clientela e cultura polticana Amaznia colonial (primeira metade do sculo XVIII). Dissertao de mestrado, Histria, UFPA, 2008, p. 249.

    46A carta de Bernardo Pereira de Berredo escrita em So Lus a 20/03/1720 est anexada em:CCU, 5/03/1721. AHU, Maranho, documento 1296.

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    O governador do Maranho resolveu, assim, fazer cruelmente a guerrapelo mesmo rio seguindo a sua estrada at as aldeias dos Barbados que fo-ram os principais scios neste brbaro insulto. Saiu da cidade de So Lus nodia 16 de setembro de 1719, com 230 soldados pagos e outros tantos ndios,fazendo um destacamento das melhores tropas no Peritor, ficando ali en-trincheirado com mais de 20 soldados e mais ndios dos que no tinhamprstimo para a guerra no mato.47 Os demais soldados foram procurados ndios que acabaram percebendo sua aproximao pela desgraa dedisparar-se uma arma.48A refrega, contudo, teve lugar matando-se muitosndios e outros fugindo embrenhando-se nas matas virgens, como sempre

    costumam. A tropa continuou pelo rio Mearim, batendo o gentio do corsoque o infestava, recolhendo-se a So Lus, passados trs meses e meio decampanha com a importante presa de duzentos e trinta tapuias. 49

    Os oficiais da Cmara de So Lus, que mantinham estreitos laos po-lticos com Bernardo Pereira de Berredo, elogiaram a sua ao. O prprioBerredo escrevera cmara pouco antes da campanha, oferecendo-se nadefesa das suas fazendas e segurana das suas vidas no s na ocasio daprxima campanha, mas em todas as mais que para conseguir este gloriosofim me parecer preciso.50Segundo os oficiais de So Lus, Bernardo Pereira

    de Berredo sem atender aos inconvenientes de uma trabalhosa jornada seabalou da cidade do Par a vir para esta do Maranho para libertar a ca-pitania das violncias e opresses do gentio brbaro que a infestava.51

    47Anos antes, em 1692, o ouvidor-geral do Estado, Miguel da Rosa Pimentel, chamava a aten-o para as singularidades da guerra do mato: e andam to destros os ndios e mamelucos

    neste emprego que o no tm por danoso, o que para os soldados do reino pela falta dacriao dos matos, e s tm serventia para o presdio das fortalezas. Informaa do Estadodo Maranha. Lisboa, 4/09/1692. Biblioteca da Ajuda, cdice 50-V-34, n 43, f. 201. A respeitodas peculiaridades da guerra braslica, ver: PUNTONI, Pedro. A arte da guerra no Brasil.Tecnologia e estratgia militar na expanso da fronteira da Amrica portuguesa, 1550-1700.

    Novos Estudos Cebrap. So Paulo: Cebrap, n. 53, 1999, p. 189-204.48Curiosamente e em contradio com o que escreve o governador Berredo em carta ao rei, este

    mesmo episdio narrado em seus Annaescomo tendo ocorrido a Cristvo da Costa Freire.Berredo chega a citar que Joo Nogueira de Sousa teria sido escolhido como cabo da tropa,algo que a ele se lhe imputa. Ver: BERREDO, Bernardo Pereira de.Annaes historicos do Estado do

    Maranha. Lisboa: Na Officina de Francisco Luiz Ameno, 1749, p. 676.49CCU, 5/03/1721. AHU, Maranho, documento 1296.50Snr.sofficias do Senado da Camr.adesta cid.e. So Lus, 29/08/1719. Apem, livro de correspon-

    dncia (1696-1798), f. 77.51Carta dos oficiais da Cmara de So Lus. So Lus, 28/05/1720. AHU, Maranho, documento 1238.

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    Entretanto, no foram todas as autoridades, que exaltaram a guerra rea-lizada pelo governador Pereira de Berredo.52Um deles foi Vicente Leite Ripa-do, ouvidor-mor, provedor da Fazenda e desafeto da Cmara de So Lus edo governador Bernardo Pereira de Berredo, como j mencionamos.53Segun-do consulta do Conselho Ultramarino, Vicente Leite Ripado queixava-se doinjusto procedimento de Berredo em seu governo, principalmente no queobrou na guerra que fez aos referidos tapuias provendo em postos pessoasindignas de os ocuparem, por respeitos particulares.54Em 1720, Leite Ripadoescreveu a sua verso de como a guerra contra os Guanar fora realizada.Segundo ele, de fato, os ndios, com nome fingido de Guanar, tinham pe-

    dido as pazes e missionrio, oferecendo-se ainda para ajudar os portuguesesna guerra contra os Barbados. Diante disso, Berredo teria tentado alde-los,valendo-se do padre Joo de Avelar que acreditava que os ndios eram mes-mo Guanar. Indo com o grupo, o religioso acabou sendo morto.55Com amorte do religioso, o governador teria convocado uma junta que opinarano haver bastante poder e o dito gentio ser muito numeroso e destemidoe estar de aviso pelo caso antecedente; mais ainda, havia poucos ndios deguerra. Entretanto, o governador decidiu prosseguir com a guerra, acompa-nhando o voto de Joo Nogueira, escolhido justamente como cabo da tropa,

    e culpado numa devassa. Outro criminoso que compunha a tropa, denun-ciado pelo ouvidor, era Sebastio Rodrigues que cumpria pena de degredo. 56

    Segundo Leite Ripado, uma vez instalado no Peritor, o governadorenviou a tropa, cujas intenes fracassaram, como vimos, pois o disparo deuma arma acabou avisando os ndios. Furioso com o fracasso da tropa, ogovernador mandou que partissem logo para o Mearim por terra at encon-trarem outro qualquer gentio. Transcorridos dois meses, a tropa encontrouuma aldeia na qual foram recebidos e estiveram com capa de paz. Entre-tanto, depois de trs dias debaixo da mesma paz, a tropa fez guerra aos

    ndios matando a uns e aprisionando aos outros, tomando por pretexto queo dito gentio queria levantar-se contra eles. Em seguida, foi a tropa a umasegunda aldeia ainda com maior hostilidade e mortandade os cativaram e

    52A esse respeito, ver: MEIRELES, Mrio M. Histria do Maranho. So Paulo: Siciliano, 2001, p. 144.53A esse respeito, ver: BERREDO, Bernardo Pereira de, op. cit., p. 681; MARQUES, Cezar Augusto, op.

    cit., p. 266-68; LIMA, Carlos de. Histria do Maranho. 2 edio revista e ampliada. So Lus: Insti-tuto Geia, 2006, p. 424-25; FEIO, David Salomo Silva, op. cit.; DIAS, Joel Santos, op. cit., p. 140-74.

    54CCU. 5/03/1721. AHU, Maranho, documento 1296.55Carta de Vicente Leite Ripado. So Lus, 13/06/1720. AHU, Maranho, documento 1252.56Idem.

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    se recolheram com 240 presas, fora outras que pelo caminho faleceram. Nacidade de So Lus, os cativos seriam examinados pela Junta das Misses,onde se constatou que eram de lngua geral a quem chamam Guajajaras,aldeados e de paz, no constando que tivessem feito alguma hostilidade,razo pela qual, argumentava o ouvidor, se no deviam reputar por gentiodo corso nem havia razes para se julgar por justa a guerra.57

    Quanto s presas de guerra, se tiraram os quintos para a Fazenda reale o governador tirou para si de joia vinte e quatro ndios justificando quecomo general lhe tocavam dez por cento, e dois por cento, como cabo datropa. O cabo Joo Nogueira levou quatro peas por joia e os mais a este

    respeito fazendo tambm repartio por alguns seus afilhados e aos solda-dos e aos ndios forros deu alguma coisa limitada em dinheiro do procedi-do do mesmo gentio que se vendeu em praa pblica. Vicente Leite Ripadoqueixava-se ainda do excesso dos gastos que a tropa teria importado. 58

    O mestre de campo Bernardo Carvalho de Aguiar, favorecido de Cris-tvo da Costa Freire, antecessor de Berredo, tambm censurou a atuaodo governador. Segundo consulta do Conselho Ultramarino, em janeiro de1721, Carvalho de Aguiar escrevera ao soberano queixando-se de que, aindaque o rei tivesse estabelecido as normas de repartio das presas de guerra,

    abusam muito de tal ordem os governadores do dito Estado, repartindopor si as ditas presas como lhes parece e tomando a titulo de joia quantasquerem com exorbitante excesso. Por essa razo, ficam a infantaria e ndiossem parte nem quinho nas ditas presas, o que lhes daria motivo a maiormurmurao e descontentamento. Como poucas peas eram dadas tropade guerra, entre ndios e soldados, estes procuravam matar ao gentio quelhes cai nas mos com prejuzo dos quintos reais e da Fazenda real.59

    Os conflitos e as alianas dos governantes e moradores do Estado doMaranho refletiam na organizao das tropas. A composio de uma tropa

    para combater os ndios obedecia, portanto, a interesses daqueles que eramresponsveis por organizar e enviar as expedies punitivas aos sertes, edos moradores do Estado do Maranho. Assim, as escolhas dos participantesdas tropas pareciam constituir tentativas de ampliar e concretizar alianase influncias polticas.

    57Ibidem.58Ibidem.59S.e o q. escreve o mestre de campo da conquista do Maranha e Piauhi Bernardo de Carvalho

    de Aguiar. 11/12/1721. AHU, cdice 274, ff. 283v-284.

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    A paz do dito gentio. Joo da Maia da Gama

    Ao que tudo indica, ao assumir seu governo, Joo da Maia da Gamaimprime uma mudana de rota na poltica com relao aos ndios dos ser-tes do acar e do gado que se estendiam a leste do territrio do Estadodo Maranho e Par. De fato, o governo do sucessor de Bernardo Pereirade Berredo foi caracterizado pela consolidao de uma relativa paz (e poruma concreta aproximao com os padres jesutas), que se manteve com oseu sucessor, Alexandre de Sousa Freire (1728-1732). Durante o governo deJoo da Maia da Gama, os ndios Caicai, Aru, Barbados e Guanar foram

    pacificados e os Trememb aceitaram viver com os jesutas no Piau. Comodefende Mrcia Eliane Mello, embora em 1720 ainda possam ser observadosconflitos com os grupos indgenas, crescia um grande interesse por parte daadministrao do Estado em promover a paz.60

    Isso no significa que Maia da Gama tenha totalmente abdicado do con-flito armado.61Em carta ao rei, o prprio governador refere-se a uma tropaque mandara a castigar os Guanar pelas mortes que tinham causado noaos portugueses, mas, sim, aos Caicai, estes postos na real vassalagem e obe-dincia de V. M.. Mas a mesma carta informava das pazes que tinham pedido

    os prprios Guanar (alm dos Aru) que explicavam, segundo o governador,que as mortes que tinham feito nos Caicai foi por serem seus inimigos, e porlhe terem morto seus parentes. O governador convocou a Junta das Misses,onde exps o caso, inclusive o problema das queixas de desconfianas quepodiam ter os nossos Caicai, de lhes no darmos satisfao com o castigo dosseus inimigos. Segundo o relato de Maia da Gama, pesadas todas as circuns-tncias, entretanto, resolveu-se aceitar-se e conceder-se pazes aos principaisdas ditas duas naes mais culpados. Assim, o tom da carta que o governa-dor Joo da Maia da Gama escrevia ao rei, em julho de 1726 (carta que vi-

    nha acompanhada dos traslados dos termos de paz firmados com os ndios),era definitivamente outro, j que insistia que as consequncias das pazes

    so as maiores que se podem considerar, descobrindo-se fertilssimos campos de quedo notcia, e povoando-se com grande utilidade dos dzimos de V. M., e abrindo-se caminho muito mais cmodo e breve para se conduzirem gados para as minas e

    60MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e, op. cit., p. 311.61Ver tambm: MEIRELES, Mrio M., op. cit., p. 146; LIMA, Carlos de, op. cit., p. 430.

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    abrindo-se a comunicao e caminho para o rio dos Tocantins, que desgua no Par,

    descobrindo-se as minas e riquezas daquele rio.62

    O dirio escrito por Maia da Gama sobre sua jornada de retorno a Portu-gal, percorrendo os sertes do Maranho at a Paraba, embora com um tomlaudatrio de sua pessoa, revela indcios de uma relao distinta com as popu-laes indgenas dos sertes orientais do Estado do Maranho e Par. Saindode So Lus em setembro de 1728, a descrio que faz dos sertes a de umaterra pacificada onde floresciam engenhos e currais. A importncia que atri-bui a sua ao no nada pequena nessa enorme tarefa de pacificar os sertes.

    Todos estes rios se achavam assim destrudos e despovoados at que eu, no ano de 1723,reduzi paz os Caicai e ao depois com eles e com as diligncias de paz, e que ultima-mente com guerra destru e reduzi paz todas as ditas naes, e entreguei o governocom todos postos em paz e quietao, tendo-se passado dois anos sem que houvesse omnimo prejuzo do dito gentio e deixei o dito rio Itapecuru navegado para algumas 70

    lguas, quando cheio, e povoado at suas cabeceiras e at as margens do rio Parnaba.63

    Mas, afinal, o que teria motivado essa mudana significativa? Ao quetudo indica, a escassez de guerras durante o governo de Joo da Maia daGama est relacionada a suas articulaes com outros grupos da sociedadecolonial, como os padres da Companhia de Jesus. Joo da Maia da Gamafoi ao Estado do Maranho acompanhado do desembargador Francisco daGama Pinto, que verificaria os abusos praticados nas expedies de obtenode mo-de-obra indgena. Para Fabiano Vilaa dos Santos, a sindicncia so-bre as expedies de apresamento ao serto foi recebida com antipatia peloscolonos que suspeitaram da articulao dos jesutas com o novo governadorpara retomar a primazia na conduo dos descimentos dos ndios.64Se osgovernos de Cristvo da Costa Freire e Bernardo Pereira de Berredo foram

    perodos de favorecimento de diversos moradores no apresamento de ndios,a chegada de Joo da Maia da Gama e do sindicante desembargador Francis-

    62Carta de Joo da Maia da Gama. So Lus, 9/07/1726. AHU, Maranho, documento 1525. Vertambm: MELLO, Marcia Eliane Alves de Souza e, op. cit., p. 312.

    63Dirio da viagem de regresso para o reino de Joo da Maia da Gama e de inspeo das barras dosrios do Maranho e das capitanias do norte, em 1728. In: MARTINS, Francisco de Assis Oliveira.Um heri esquecido (Joo da Maia da Gama). Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1944, vol. II, p. 8.

    64SANTOS, Fabiano Vilaa dos. A reao dos cidados do Estado do Maranho aos maus pro-cedimentos do governador Joo da Maia da Gama. REUNIO DA SOCIEDADE BRASILEIRADE PESQUISA HISTRICA, XXIV, 2004, Curitiba. Anais. Curitiba: SBPH, 2004, p. 150.

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    co da Gama Pinto pode ter representado uma retomada dos privilgios dosjesutas e dos seus aliados, como lembrou Joel Dias. 65

    Esta proximidade do governador com os jesutas certamente contribuiupara a maneira como Joo da Maia da Gama conduziu a governana do Esta-do do Maranho. provvel que esta articulao tenha favorecido a alianacom os Caicai, Aru, Barbados e Guanar. Por um lado, Maia da Gama podeter apoiado os jesutas a pacificarem estes ndios bravos. Por outro, talvez osprprios ndios tenham percebido que aquele contexto era benfico para pro-por aliana aos portugueses para que tivessem seus interesses assegurados.

    Foi tambm no governo de Maia da Gama que os ndios Trememb

    aceitaram se aldear. Segundo relato do prprio governador, estes ndios fo-ram at ele, como costumavam fazer, e que depois de praticados lhe dis-seram se queriam aldear e batizar seus filhos e lhe pediram o padre JooTavares da Companhia de Jesus. Por essa razo, Joo da Maia da Gama teriamandado dar aos ndios Trememb ferramentas, anzis e algum pano da Fa-zenda Real.66Assim, parece que no governo de Joo da Maia da Gama houveempenho em se aproximar dos ndios. Durante seu governo, no houvesucessivas guerras, como na administrao de Cristvo da Costa Freire e deBernardo Pereira de Berredo, o que refora a compreenso de que as guer-

    ras eram tambm movidas e explicadas pelas relaes que os governadoresconstruam com as redes locais de exerccio do poder.A grande questo aqui, e cremos que no h elementos suficientes para

    poder respond-la com satisfao, a de saber qual o grau de atrelamentodessa poltica de relativa paz aos ditames da Coroa. Mais ainda, h que selembrar que a conjuntura pode ter sido tambm fruto da ao dos prpriosndios que, inclusive, podem ter percebido o momento mais favorvel a elescom a chegada de Maia da Gama. Talvez, a to propalada paz, que o prprioMaia da Gama fazia questo de frisar, s tivesse sido mesmo possvel graas

    aos conflitos dos anos anteriores ao seu mandato, e tambm prpria von-tade das naes indgenas. De qualquer modo, a distino entre ndios hostise aliados, apontada pela bibliografia como uma perspectiva central para en-

    65DIAS, Joel Santos, op. cit., p. 123.66CCU, 9/12/1722. AHU, Maranho, documento 1350. Ver: MELO, Vanice Siqueira de. Os senhores

    absolutos de toda a costa foram aldeados: o estabelecimento da aldeia dos Trememb e o conflitocom os curraleiros (sculos XVII-XVIII). ENCONTRO INTERNACIONAL DE HISTRIA COLONIAL,3, 2010, Recife.Anais. Recife: UFPE, 2011, p. 759-65. Sobre os Trememb, ver tambm: BORGES,

    Jina Freitas. Os senhores das dunas e os adventcios dalm-mar: primeiros contatos, tentativas de colonizaoe autonomia Trememb na costa leste-oeste (sculos XVI e XVII). Tese de doutorado, Histria, UFF, 2010.

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    tender a poltica indigenista portuguesa,67parece ter sido mais malevel. Apaz oferecida aos Guanar e aos demais grupos marcadamente hostis pareceser um elemento nesse sentido.

    Entretanto, a mudana de governo parece ter alterado as relaes. A che-gada de Alexandre de Sousa Freire foi marcada pela retomada de um discur-so belicoso, expresso de maneira clara numa resposta do governador a umaproviso do rei que condenara a autorizao que Sousa Freire tinha dadopara uma guerra contra vrias naes. Segundo Alexandre de Sousa Freire,

    todos os gentios que infestam aqueles campos so gentios de corso quenunca se aldearam, nem os far aldear ningum. Logo adiante, emenda quena Cmara de So Lus havia ordem do governador Cristvo da Costa Freirepara se guerrear o gentio do corso, e como os que infestam as capitanias doPiau e suas anexas so todos desta condio pela maior parte, com ela sesalva todo o reparo. Enfim, escrevia que resolvera ordenar a todos os capi-tes-mores daqueles sertes, que cada um no seu distrito, fizesse a guerra.68

    Acerbo inimigo dos padres jesutas e de outras ordens religiosas, SousaFreire foi tambm acusado de inmeras irregularidades numa tropa que te-

    ria mandado desta vez regio ocidental do Estado, no serto do rio Negro.69Uma das razes que teriam ensejado tantas denncias era o interesse emconseguir peas escravas por meio das guerras, recebendo as joias que lhecabiam como autoridade. Ou seja, mais um governador era acusado de se fa-vorecer ilicitamente com o envio de tropas de guerras. No sem razo, numa

    67Ver principalmente: PERRONE-MOISS, Beatriz. ndios livres e ndios escravos. Os princpios

    da legislao indigenista colonial (sculos XVI a XVIII). In: CUNHA, Manuela Carneiro da(org.). Histria dos ndios no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 115-32.

    68A resposta est incompleta e pela referncia que faz dela o governador Jos de Serra, sabe-seque de 11 de setembro de 1732. Est anexa a carta de Jos de Serra. Belm, 21 de setembrode 1732. AHU, Par, documento 1284.

    69Aliado do governador Sousa Freire era Paulo da Silva Nunes, o mais famoso detrator dos reli-giosos da Companhia de Jesus no Estado do Maranho. A esse respeito, ver: SANTOS, FabianoVilaa dos. Pedras do ofcio: Alexandre de Sousa Freire e os jesutas no Estado do Maranho(1728-1732). REUNIO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PESQUISA HISTRICA, XXV, Rio de

    Janeiro, 2005.Anais. Rio de Janeiro: SBPH, 2005, p. 275-82; DIAS, Joel Santos, op. cit., p. 113-39; CARVALHO JNIOR, Roberto Zahluth de.Espritos inquietos e orgulhosos. Os frades capuchos na

    Amaznia joanina (1706-1751). Dissertao de mestrado, Histria, UFPA, 2009, p. 102-104; MELLO,Marcia Eliane Alves de Souza e, op. cit., p. 312-13. Ver tambm: REIS, Arthur Cezar Ferreira.Prestao de contas de um governante colonial do antigo Estado do Maranho e Gro-Par.

    Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. Rio de Janeiro: IHGB, n. 345, 1984, p. 85-99.

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    consulta do Conselho Ultramarino em 1730, o procurador da Coroa decla-rava que os governadores do Estado do Maranho, pelo interesse que lhesresulta nas suas joias, buscam motivo de fazerem guerra aos ndios seja ouno justa e no observam o disposto nas leis. Afirmava, igualmente, que osprelados que assistem na Junta das Misses por seu respeito no votam comliberdade.70A discusso acerca das joias prolongou-se pelos anos. A mat-ria sobre a jurisdio da guerra s foi resolvida quatro anos depois, quandoo Estado do Maranho e Par j era governado por Jos Serra (1732-1736).71

    Mas, afinal de contas, teriam sido finalmente desinfestados e pacificadosos sertes do Maranho e Piau? A considervel expanso do gado a partirde meados dos anos 1720 parece dar conta dessa possibilidade.

    A guerra, a paz e a expanso do gado

    semelhana dos sertes do gado em Pernambuco, Bahia, Paraba, RioGrande do Norte e Cear, no h dvida sobre o papel fundamental dasguerras levadas a cabo na pacificao, eliminao, domesticao e reconfi-

    gurao dos ndios que permitiu a expanso dos engenhos e currais de gadono lado oriental do Estado do Maranho e Par.72

    70Sobre a guerra q. o Gov.ordo Maranho Alexdr.ede Sousa Fr.emandou fazer aos Indios do RioNegro. 21/03/1730. AHU, cdice 209, ff. 28-30.

    71Para o mesmo, 3/04/1734. AHU, cdice 270, f. 209v. Ver: MELLO, Marcia Eliane Alves de Souzae, op. cit., p. 314.

    72A respeito desses outros sertes, ver: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Pecuria, agricultura

    de alimentos e recursos naturais no Brasil-colnia. In: SZMRECSNYI, Tams (org.). Histriaeconmica do perodo colonial. 2 edio revista. So Paulo: Hucitec/ABPHE/EdUSP/Ioesp, 2002,p. 123-35; PUNTONI, Pedro, op. cit., p. 89-289; PINHEIRO, Francisco Jos, op. cit., p. 27-37;ALBUQUERQUE, Manuel Coelho. Seara indgena. Deslocamentos e dimenses identitrias. Disserta-o de mestrado, Histria, UFC, 2002, p. 68-90; NEVES, Erivaldo Fagundes. Posseiros, rendeirose proprietrios: estrutura fundiria e dinmica agromercantil no alto serto da Bahia (1750-1850). Tese dedoutorado, Histria, UFPE, 2003, p. 146-62; VIEIRA JR., Antonio Otaviano.Entre paredes e baca-martes: histria da famlia no serto (1780-1850). Fortaleza/So Paulo: Demcrito Rocha/Hucitec,2004, p. 29-37; JESUS, Mirian Silva de.Abrindo espaos: os paulistas na formao da capitaniado RioGrande. Dissertao de mestrado, Histria, UFRN, 2007, p. 61-71 e 97-105; SILVA, Rafael Ricarteda.Formao da elite colonial dos sertes de Mombaa: terra, famlia e poder (sculo XVIII) . Dissertao demestrado, Histria, UFC, 2010, p. 75-93; MAIA, Lgio Jos de Oliveira.Serras de Ibiapaba. De aldeiaa vila de ndios: vassalagem e identidade no Cear colonial sculo XVIII. Tese de doutorado, Histria,UFF, 2010, p. 83-92; SILVA, Kalina Vanderlei.Nas solides vastas e assustadoras: a conquista do sertode Pernambuco pelas vilas aucareiras nos sculos XVII e XVIII. Recife: Cepe, 2010, p.195-213; ALVEAL,

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    Assim, a relao entre os governadores e as guerras se conectava igual-mente a outro aspecto importante da experincia colonial da Amrica por-tuguesa, a distribuio de terras. Em todo o Estado do Maranho e Par, pelomenos at meados do sculo XVIII, no houve distribuio de terras emsesmaria seno por parte dos governadores (excetuando-se alguns poucoscasos nas capitanias de donatrios). Assim, a articulao das guerras contraos ndios e da concesso de sesmarias na poro oriental do Estado revelaa imbricada relao que, por meio do poder dos governadores, assumiamessas mltiplas formas de ocupao do espao.

    Como era de se esperar, a guerra significava uma forma de acesso a terra.

    Isso por duas razes. Ela permitia que indivduos que tivessem participadodas pelejas legitimassem os seus pedidos. Isso valia no s para os soldadosdas expedies comandadas ou ordenadas pelos governadores, mas tambmpara aqueles que a sua custa e fazenda empreendiam aes contra os ndios.Por outro lado, os embates desinfestavam os sertes, como se dizia poca.

    Alguns dos participantes das vrias expedies para combater os n-dios no serto ao longo da primeira metade do sculo XVIII conseguiramsesmarias e se instalaram, justamente, nos sertes que haviam ajudado eajudavam a devassar. Era o caso, por exemplo, de Damaso Pinheiro de Car-

    valho, um dos primeiros povoadores da capitania do Piau (1715, riacho dasCabras);73do nosso j conhecido Francisco Cavalcante de Albuquerque (1719,rio Mearim);74de Francisco de Almeida, capito da conquista atual (1727, rioMearim);75de Manuel da Silva Pereira (1726, prximo ao rio Parnaba); 76deAntnio Gomes Leite (1728, prximo ao rio Gurgueia);77e de Joo Nogueirade Sousa (1729, instalado no Itapecuru).78

    Carmen e SILVA, Thyego Franklin. Na ribeira da discrdia: povoamento, polticas de defesae conflitos na capitania do Rio Grande (1680-1710). In: POSSAMAI, Paulo (org.). Conquistar edefender: Portugal, Pases Baixos e Brasil. Estudos de histria militar na Idade Moderna. So Leopoldo:Oikos, 2012, p. 235-49.

    73Damaso Pinheiro de Carvalho, em 12/01/1715; confirmao em 14/09/1722. ANTT, Chancelariade Dom Joo V, livro 60, ff. 226v-227v.

    74Francisco Cavalcante de Albuquerque, em 11/12/1719; confirmao em 27/04/1724. ANTT,Chancelaria de Dom Joo V, livro 61, ff. 101-102.

    75Francisco de Almeida, em 5/05/1727; retificada em 5/01/1735; confirmao em 4/02/1737. Apep,Sesmarias, livro 3, ff. 68-68v e livro 7, ff. 70-70v. ANTT, Chancelaria de Dom Joo V, livro 129, ff. 71-72.

    76Manuel da Silva Pereira, em 18/01/1726; confirmao em 22/03/1728. ANTT, Chancelaria deDom Joo V, livro 75, ff. 59-60.

    77Antnio Gomes Leite, em 12/07/1728. Apep, Sesmarias, livro 5, ff. 11-11v.78Joo Nogueira de Sousa, em 21/07/1729. Apep, Sesmarias, livro 5, ff. 77-78.

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    Por outro lado, em vrios pedidos de terras reproduzidos nas concesses,h referncias ao dos tapuias dos sertes e ao papel dos prprios supli-cantes nos conflitos contra os ndios. Manuel Pires Ribeiro, sargento-mor doParnaba, por exemplo, alegava ter povoado com gado o stio Santo Antnioda Boa Vista e Almas, no rio Long, onde tinha todas as fbricas necessriasde escravos, criados, cavalos, ferramentas, armas e munies, com as quaiso est defendendo da invaso do gentio brbaro que costuma assaltar as ca-pitanias do Piau. A sesmaria foi concedida por Pereira de Berredo em 1720.79

    Dois anos depois, em 1722, a famlia lvares de Sousa se apossava de consi-derveis extenses de terra no rio Paraim, a comear pelo capito-mor Manuel

    lvares de Sousa, que solicitava trs lguas e justificava seu pedido alegandomuito dispndio da sua fazenda e risco de vida com homens, e gentios forros assala-riados com muitas mortandades de gentio bravo com muitas tropas que lhe fez, e estfazendo como notrio, tem descoberto e desinfestado muitas terras e sertes daquela

    dita capitania.80

    Os filhos do capito-mor, Maria, Tom e Manuel, tambm moradoresno Parnagu, requeriam suas trs lguas cada um baseados nos notriosservios de seu pai.81Entretanto, apesar de tanta desinfestao dos sertes,

    a sorte no sorria para os lvares de Sousa. Pareceres do procurador daFazenda nos quatro requerimentos recomendavam que se negasse a con-firmao (como, de fato, no h registro delas nas chancelarias ou RegistroGeral de Mercs). O argumento era o tamanho das concesses. Embora osgovernadores costumassem passar pelo menos trs lguas para criao degado, de regra confirmadas pelos reis, certamente deve ter saltado aos olhosdo Conselho Ultramarino e dos procuradores a acumulao de tantas datasnuma mesma famlia. J o sobrinho de Manuel lvares de Sousa teve maissorte; anos depois, em 1729, informava ter comprado terras deste e de outro

    tio seu, a qual tinha povoado a sua custa e descoberto e tirado do poder do

    79Manuel Pires Ribeiro, em 27/07/1720; confirmao em 30/04/1724. ANTT, Registro Geral deMercs, Dom Joo V, livro 15, ff. 431-431v.

    80Requerimento de Manuel lvares de Sousa solicitando confirmao de sesmaria concedidaem 28/02/1722. AHU, Piau, documento 80.

    81Requerimento de Maria lvares de Sousa solicitando confirmao de sesmaria concedidaem 26/02/1722. AHU, Maranho, documento 1870; Requerimento de Tom lvares de Sousasolicitando confirmao de sesmaria concedida em 28/02/1722. AHU, Piau, documento 62;Requerimento de Manuel lvares de Sousa (filho) solicitando confirmao de sesmaria con-cedida em 1/03/1722. AHU, Piau, documento 78.

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    gentio brbaro, com perda de sua fazenda. Concedida a terra, foi finalmenteconfirmada em 1732.82O importante, de qualquer modo, no caso dos lvaresde Sousa, o fato de que o governador concedera as terras e que a guerracontra o gentio era o principal argumento dos pedidos.

    Anos antes, no governo de Joo da Maia da Gama, Verssimo ManuelRobalo Freire justificava seu pedido por ter desinfestado de gentio brbaroum stio na ribeira do Gurgueia. Depois de visto o parecer do procuradorda Fazenda do Piau e um sumrio de testemunhas, o prprio governadorreconhecia na concesso que Robalo Freire povoara a regio com gados va-cuns e cavalares, escravos e homens brancos que o beneficiam, e casa de vi-

    venda, o qual stio estava despovoado por causa do morcego e gentio.83

    Em1729, Alexandre de Sousa Freire concedia uma data de terra a Joo CarvalhoRamos que alegava ter povoado um stio no Gurgueia, desinfestando dogentio brbaro, com grande risco de sua vida e seus escravos; acrescentavaCarvalho Ramos que combatera os ndios, inclusive, no s na desinfestaoe povoao do dito stio, mas tambm nas mais ocasies de bandeiras quese deram ao dito gentio.84Havia aqui um misto de guerra oficial e priva-da que indica o imbricamento de uma ao que partia dos governadorese outra que partia dos particulares, embora se entrecruzando quando os

    interesses fossem os mesmos.As referncias aos conflitos, entretanto, eram mais complexas, pois nonecessariamente decorriam de uma participao individual e direta dos re-querentes (ou seus ascendentes) na guerra ou no combate aos tapuias. Nadcada de 1710, por exemplo, durante o beligerante governo de Cristvoda Costa Freire, em quatro sesmarias no rio Itapecuru, todas concedidasem julho de 1713, Joo Rebelo Bandeira, 85Felipe Borges,86Manuel Borges87eManuel Nunes Coelho da Costa,88moradores no Piau, reproduziam a mes-

    82Paulo Carvalho da Cunha, em 24/05/1729; confirmao em 9/06/1732. ANTT, Chancelaria deDom Joo V, livro 82, ff. 53v-54v.

    83Verssimo Manuel Robalo Freire, em 15/06/1727. Apep, Sesmarias, livro 3, ff. 132-132v.84Joo Carvalho Ramos, em 24/05/1729. Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 170-171.85Joo Rebelo Bandeira, em 25/07/1713; confirmao em 17/02/1715. ANTT, Chancelaria de Dom

    Joo V, livro 43, ff. 119-120v.86Felipe Borges, em 25/07/1713; confirmao em 10/03/1716. ANTT, Chancelaria de Dom Joo V,

    livro 45, ff. 91-92.87Manuel Borges, em 25/07/1713; confirmao em 10/03/1716. ANTT, Chancelaria de Dom Joo

    V, livro 45, ff. 89-90.88Manuel Coelho da Costa, em 25/07/1713; confirmao em 10/03/1716. ANTT, Chancelaria de

    Dom Joo V, livro 45, ff. 90-91.

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    ma expresso, alegando que a concesso era muito conveniente no s srendas reais desta capitania para a tropa de guerra que anda no serto, mastambm por ser aquela parte o couto de maior poder do gentio do corso, queinfesta estas capitanias.

    Em vrias concesses, a referncia s terras infestadas pelos gentios docorso legitimava o pedido dos requerentes, pois a ao de desinfestao epovoamento valorizava o que claramente aparecia como ermo e selvagem,uma verdadeira ao civilizadora (apesar de este termo no aparecer nadocumentao). Aqui, terra devoluta e presena de ndios hostis apareciamcomo indissociveis, como na concesso dada a Felipe Santiago, Lus Pinhei-

    ro Lobo e Manuel Vieira Botado (1713) que frisava que nas ribeiras do riodo Mearim se achavam algumas [terras] devolutas e infestadas do gentiobrbaro de corso.89Em 1719, h quatro concesses no rio Iguar, com reque-rimentos (transcritos nas datas) muito semelhantes, o que indica uma aoorquestrada entre requerentes e o governador no caso Bernardo Pereira deBerredo em que se repetia uma frmula que enfatizava o fato de as terrasserem ao mesmo tempo devolutas e s serem ocupadas pelo gentio br-baro.90Era o caso das sesmarias dadas a Pedro Oliveira Jardim,91Antnio daSilva Moura,92Simo da Silva93e Miguel da Silva.94

    Assim, devoluto no s no significava mais a terra que voltava Coroa,mas assumia o carter de vazio, de intocado, condio agravada pela exis-tncia de gentio brbaro. Em 1727, a sesmaria concedida a Joo Gomes no

    89Felipe Santiago, Lus Pinheiro Lobo e Manuel Vieira Botado, em 20/07/1713; confirmao em6/03/1715.ANTT, Chancelaria de Dom Joo V, livro 48, ff. 334-335v.

    90Esta ideia de vazio associada aos ndios no pode ser generalizada para a Amrica portugue-sa. Afinal, ainda no sculo XVIII, principalmente na segunda metade, a presena dos grupos

    indgenas se tornava fundamental para garantir a prpria soberania portuguesa sobre o ter-ritrio. Ver: MALDI, Denise. De confederados a brbaros: a representao da territorialidade eda fronteira indgenas nos sculos XVIII e XIX.Revista de Antropologia. So Paulo: FFLCH/USP,vol. 40, n 2, 1997, p. 183-221; DOMINGUES, ngela.Quando os ndios eram vassalos. Colonizao erelaes de poder no norte do Brasil na segunda metade do sculo XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000, p. 199-246;COELHO, Mauro Cezar.Do serto para o mar. Um estudo sobre a experincia portuguesa na Amrica, a partirda colnia: o caso do Diretrio dos ndios (1751-1798). Tese de doutorado, Histria, USP, 2005, p. 105-14.

    91Pedro Oliveira Jardim, em 22/05/1719; confirmao em 11/05/1724. Apep, Sesmarias, livro 2,ff. 162-163v.

    92Requerimento de Antnio da Silva Moura solicitando confirmao de sesmaria concedida em21/08/1719. AHU, Maranho, documento 1349.

    93Requerimento de Simo da Silva solicitando confirmao de sesmaria concedida em 21/08/1719.AHU, Piau, documento 14.

    94Requerimento de Miguel da Silva solicitando confirmao de sesmaria concedida em22/08/1719. AHU, Piau, documento 13.

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    serto do Gurgueia expressa essa condio, ao se referir a terras desertadasdo gentio do corso.95Poucos anos depois, a concesso dada a Francisco Xa-vier Chaves deixava claro essa mltipla condio se acham devolutas pornunca serem povoadas, nem pedidas por outra alguma pessoa por sereminfestadas do gentio do corso.96 Para os portugueses, definitivamente, osndios do corso ajudavam a construir uma paisagem selvagem e vazia quecabia aos moradores transformar.97

    Assim, o espao ocupado pelas sesmarias e a forma como ele referi-do so marcados pelos conflitos contra os ndios e a territorialidade que aguerra ensejava, inclusive na prpria toponmia. Em duas datas de terras, os

    pedidos, reproduzidos nas concesses, faziam referncia ao mestre de cam-po Antnio da Cunha Souto Maior. Francisco do Rego Monteiro era um delese pedia trs lguas no rio Negro na passagem por onde passava o defuntomestre de campos Antnio da Cunha Souto Maior.98 J Hilrio Vieira deCarvalho pedia tambm trs lguas em uma lagoa na estrada que abriu odefunto mestre de campo Antnio da Cunha Souto Maior.99

    Mas a desinfestao dos sertes, durante os governos de Cristvo daCosta Freire e Bernardo Pereira de Berredo, entre 1707 e 1722, permitiu igual-mente a expanso do Estado do Maranho e Par para o leste. Entre agosto

    de 1723 e maio de 1728, durante o governo de Joo da Maia da Gama, foramconcedidas 157 sesmarias, principalmente nos rios Itapecuru, Munim, Iguare Gurgueia (145 delas entre 1725 e 1728).100O prprio governador, no relatoda viagem que fez de volta do Maranho, como vimos, ressalta o seu papelno processo de expanso desencadeado pelas concesses de terra. Ao longodo dirio de sua jornada, faz questo de marcar as novas fazendas esta-belecidas pelos vastos sertes orientais do Estado do Maranho, fazendas[que] se povoaram com outras muitas que ficam fora do caminho para umae outra parte depois que meti de paz os Cahicahires[Caicai].101Pouco adiante,

    insiste em seu papel pacificador/povoador:

    95Joo Gomes, em 4/08/1727. Apep, Sesmarias, livro 3, ff. 156v-157.96Francisco Xavier Chaves, em 14/03/1732. Apep, Sesmarias, livro 6, ff. 56-56v.97Ver: MACHADO, Marina Monteiro.Entre fronteiras: posses e terras indgenas nos sertes (Rio de Janeiro,

    1790-1824). Rio de Janeiro/Guarapuava: EdUFF/Unicentro, 2012, p. 42.98Francisco do Rego Monteiro, em 6/05/1728. Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 49-49v.99Hilrio Vieira de Carvalho, em 6/05/1728. Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 49v-50v.100Ver: Apep, Sesmarias, livros 1 a 4.101Dirio da viagem de regresso para o reino de Joo da Maia da Gama e de inspeo das barras

    dos rios do Maranho e das capitanias do norte, em 1728. In: MARTINS, Francisco de AssisOliveira, op. cit., p. 12.

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    e todas estas terras era domiclio do gentio que meti de paz e estava assaltando oscomboios e matando muita gente sem embargo de irem armados e com tropa, o que

    fazia intratvel a comunicao do Piau com o Maranho e com as fazendas de todasas margens do Parnaba.102

    Qualquer que seja o papel que o prprio governador quer assumir noseu relato (recheado de seus feitos de governo, por sinal), no resta dvidade que, como dissemos anteriormente, o governo de Maia da Gama foi derelativa paz, fruto de uma poltica beneficiada pela aproximao do gover-nador com os padres jesutas que tantos atritos causou com os moradores.E, principalmente, fruto das guerras anteriores. Por outro lado, coincidncia

    ou no, pouco mais de 90% das sesmarias concedidas se concentra no per-odo que sucede a uma epidemia de bexigas.103Entretanto, a varola dos anos1724-1725 castigou muito mais a capitania do Par do que as do Maranhoe Piau, o que no nos permite chegar a nenhuma relao conclusiva entre adistribuio de terras e as consequncias do surto de varola.

    Certamente, a conjuntura favorvel, criada nas primeiras dcadas dosculo XVIII, por meio da guerra e tambm da paz, permitiu a continuaode uma poltica de distribuio de terras no governo do sucessor de Maia daGama, Alexandre de Sousa Freire, que concedeu 130 sesmarias nos sertes

    orientais do Estado, de junho de 1728 a maro de 1732.104Alis, com SousaFreire a expanso se concretizava cada vez mais a leste. De fato, alm dosrios Itapecuru, Munim, Mearim, Iguar, Gurgueia, Parnaba, onde assentavaou confirmava criadores de gado, chegou a conceder dez datas a moradoresque se estabeleciam ao p da serra de Ibiapaba, gerando conflitos com o ca-pito-mor do Cear, expressos em algumas das prprias concesses.105

    102Ibidem, p. 13.103Ver: SOUSA, Claudia Rocha de. O lastimoso castigo e fatal estrago das epidemias no Estado do Maranho

    e Gro-Par na primeira metade do sculo XVIII. Monografia de graduao, Histria, Faculdade deHistria, UFPA, 2011, p. 35-41.

    104Ver: Apep, Sesmarias, livros 4 a 6.105Antnio Gomes Linhares, em 22/06/1729. Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 185-185v; Maurcio

    Gomes, em 13/07/1729. Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 176-176v; Domingos Ferreira Chaves, em22/07/1729.Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 183v-184; Bernardo Vieira da Silva, em 22/07/1729. Apep,Sesmarias, livro 4, ff. 184-185; Manuel de Medeiros Garcs, em 1/08/1729. Apep, Sesmarias,livro 5, ff. 82-82v; Manuel Gomes Pereira, em 1/08/1729. Apep, Sesmarias, livro 5, ff. 82v-83v;

    Joo Batista, em 12/04/1730. Apep, Sesmarias, livro 5, ff. 125v-126; Loureno de AndradePassos, em 12/04/1730. Apep, Sesmarias, livro 5, ff. 126-126v; Manuel Batista, em 29/04/1730.Apep, Sesmarias, livro 5, ff. 129v-130; Antnio de Medeiros, em 22/07/1729. Apep, Sesmarias,livro 5, ff. 78-79. Tambm foi concedida uma sesmaria no Canind: Joo Batista Pinto, em

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    A origem dos sesmeiros a partir dos dados que eles prprios fornecemem sua petio parcialmente reproduzida nas concesses indica que a ex-panso na poro oriental do Estado, em grande medida, se fazia num terri-trio em parte ocupado. Das terras concedidas por Joo da Maia da Gama, 78possuem indicao da moradia do sesmeiro. Desses, 31 se apresentam comomoradores de So Lus. No caso das terras dadas por Alexandre de SousaFreire, das 73 que possuem indicao da origem dos sesmeiros, somente em18 delas aparece a cidade de So Lus. Com todo o cuidado que temos queter com esses dados, eles indicam, por um lado, que os governadores do Es-tado do Maranho e Par tiveram um papel importante na consolidao de

    um povoamento que inicialmente se estabelecera em finais do sculo XVII,vindo do Estado do Brasil, no caso especfico do Piau,106e do prprio Mara-nho, no caso desta capitania.107Mas, por outro lado, notadamente com Jooda Maia da Gama, h um movimento populacional que parece se originarem So Lus, lugar em que a influncia dos governadores e das redes queconstruam era significativa.

    Consideraes finais

    Do fim do sculo XVII s primeiras dcadas do sculo XVIII, as capitaniasdo Maranho e Piau assistiram a um incremento dos conflitos com os ndiose concomitantemente expanso do gado, processo legitimado pelas inme-ras concesses de sesmarias por parte dos governadores do Estado. A ocupa-o desses sertes, que data de princpios do sculo XVII, fez-se fundamen-talmente em duas frentes: uma partindo de So Lus em direo ao sudeste(a mais antiga) e a outra partindo da Bahia em direo ao oeste. Ambas sse consolidam realmente em finais do sculo XVII. Desde meados do sculoXVII e poca da incorporao da capitania do Piau ao Estado do Maranho

    e Par, no incio do sculo XVIII, se avigora outra fora poltica que so os go-

    30/06/1728. Apep, Sesmarias, livro 4, f. 120. Joo da Maia da Gama tambm concedeu umasesmaria no que hoje seria territrio cearense, riacho Pacoti: Antnio de Andrade do Couto,em 9/05/1728. Apep, Sesmarias, livro 4, ff. 56-56v. A notcia dessas sesmarias foi divulgadah quase cem anos no Cear: MUNIZ, Joo de Palma. Sesmarias cearenses.Revista Trimensal do

    Instituto do Cear. Fortaleza: Instituto do Cear, tomo XXXII, 1918, p. 3-6.106Ver a listagem de fazendas referidas pelo padre Miguel Carvalho em 1697. Dezcripo do certo

    do Peauhy Remetida ao Illm.oe Rm.oS.orFrei Francisco de Lima Bispo de Pernam.co. 2/03/1697.In: ENNES, Ernesto, op. cit., p. 370-87.

    107Ver: CABRAL, Maria do Socorro Coelho, op. cit., p. 59-73.

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    vernadores do Estado. As guerras e a distribuio de terras se tornam a umelemento importante dos poderes que exercem as autoridades rgias; da queseus interesses pessoais (e de suas redes) apaream por meio do seu complexoenvolvimento nos empreendimentos militares e na concesso de sesmarias.

    Significativamente, o perodo de maior distribuio de sesmarias, queocorre durante os governos de Joo da Maia da Gama e Alexandre de SousaFreire (287 sesmarias na regio oriental do Estado), coincide somente emparte com o auge da distribuio de terras na regio mais prxima e cont-gua poro oriental do Estado do Maranho e Par, a capitania do Cear,territrio tambm marcado pela economia do gado.108 O incremento dos

    conflitos no Maranho e Piau, por outro lado, no necessariamente coincidecom o auge das guerras no sculo XVIII, nos sertes do atual nordeste.109

    Nesse sentido, h indcios para se pensar, no caso do Maranho e do Piau,na existncia, paralelamente a uma poltica mais global da Coroa, de outrasforas e interesses, como os representados pelos governadores nesse cenriode co