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1 GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO: A REFORMA CURRICULAR MINEIRA Gabriela Pereira da Cunha Lima Cláudio Lúcio Mendes Introdução Nosso trabalho propõe uma reflexão acerca de algumas características marcantes do pensamento educacional “neoliberalizado”, partindo da ideia de que as práticas governamentais neoliberais tendem a enquadrar todos os objetos sob a ótica da economia, dilatando o campo da análise econômica para campos considerados como não-econômicos. Mais do que simplesmente analisar em termos econômicos diferentes fenômenos sociais, os governos neoliberais agem no sentido de interferir na conduta dos indivíduos, para que também eles passem a orientar suas vidas pautadas nos preceitos da utilidade, da eficiência e da performatividade. Argumentamos que cada vez mais somos levados a pensar sobre nós mesmos como ‘sujeitos-empresa’ (Você S/A), empreendedores de nossa própria vida, discurso que vem atravessando a educação e conformando suas práticas. Mas como podemos pensar o neoliberalismo? Que tipo de abordagem pode se mostrar mais produtiva, nos afastando dos discursos de celebração ou denúncia? Pensamos que devemos apreendê-lo “não como uma teoria nem como uma ideologia, menos ainda, claro, como uma maneira de a sociedade se representar; mas como uma prática, isto é, como uma ‘maneira de fazer’ orientada para objetivos e regulando-se por uma reflexão contínua” (FOUCAULT, 2008, p. 432). Para que possamos compreender então a governamentalidade neoliberal, como razão política e tecnologia de governo, traçaremos agora uma breve história do neoliberalismo, dando especial atenção à vertente norte-americana. De acordo com Foucault, “o neoliberalismo atual não é, de maneira nenhuma, como se diz muitas vezes, a ressurgência, a recorrência de velhas formas de economia liberal, formuladas nos séculos XVIII e XIX, que o capitalismo atualmente reativaria” (FOUCAULT, 2008, p. 159). Formulado em um contexto específico, no caso norte-americano, os anos 1930, o neoliberalismo se constrói em oposição a três fenômenos de seu tempo: a política keynesiana, aos programas de intervencionismo social e econômico postos em ação durante a Segunda Guerra, e ao crescimento da administração federal. Trata-se, para os neoliberais, de enformar o Estado e a sociedade a partir de uma economia de mercado, dilatando o campo da análise econômica sobre espaços considerados “não-econômicos”. Trata-se, portanto, de “generalizar a forma política do mercado para todo o corpo social,

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GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E EDUCAÇÃO: A REFORMA

CURRICULAR MINEIRA

Gabriela Pereira da Cunha Lima

Cláudio Lúcio Mendes

Introdução

Nosso trabalho propõe uma reflexão acerca de algumas características marcantes do

pensamento educacional “neoliberalizado”, partindo da ideia de que as práticas

governamentais neoliberais tendem a enquadrar todos os objetos sob a ótica da

economia, dilatando o campo da análise econômica para campos considerados como

não-econômicos. Mais do que simplesmente analisar em termos econômicos diferentes

fenômenos sociais, os governos neoliberais agem no sentido de interferir na conduta dos

indivíduos, para que também eles passem a orientar suas vidas pautadas nos preceitos

da utilidade, da eficiência e da performatividade. Argumentamos que cada vez mais

somos levados a pensar sobre nós mesmos como ‘sujeitos-empresa’ (Você S/A),

empreendedores de nossa própria vida, discurso que vem atravessando a educação e

conformando suas práticas. Mas como podemos pensar o neoliberalismo? Que tipo de

abordagem pode se mostrar mais produtiva, nos afastando dos discursos de celebração

ou denúncia? Pensamos que devemos apreendê-lo “não como uma teoria nem como uma

ideologia, menos ainda, claro, como uma maneira de a sociedade se representar; mas

como uma prática, isto é, como uma ‘maneira de fazer’ orientada para objetivos e

regulando-se por uma reflexão contínua” (FOUCAULT, 2008, p. 432).

Para que possamos compreender então a governamentalidade neoliberal, como razão

política e tecnologia de governo, traçaremos agora uma breve história do neoliberalismo,

dando especial atenção à vertente norte-americana. De acordo com Foucault, “o

neoliberalismo atual não é, de maneira nenhuma, como se diz muitas vezes, a

ressurgência, a recorrência de velhas formas de economia liberal, formuladas nos séculos

XVIII e XIX, que o capitalismo atualmente reativaria” (FOUCAULT, 2008, p. 159).

Formulado em um contexto específico, no caso norte-americano, os anos 1930, o

neoliberalismo se constrói em oposição a três fenômenos de seu tempo: a política

keynesiana, aos programas de intervencionismo social e econômico postos em ação

durante a Segunda Guerra, e ao crescimento da administração federal. Trata-se, para os

neoliberais, de enformar o Estado e a sociedade a partir de uma economia de mercado,

dilatando o campo da análise econômica sobre espaços considerados “não-econômicos”.

Trata-se, portanto, de “generalizar a forma política do mercado para todo o corpo social,

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de modo que [a economia de mercado] funcionará como um princípio de inteligibilidade

das relações sociais e dos comportamentos individuais” (FONSECA, 2008, p. 160). O

pensamento neoliberal toma o mercado como a “substância ontológica do ser social, a

forma (e a lógica) mesma desde a qual, com a qual e na qual deveriam funcionar,

desenvolver-se e transformar-se as relações e os fenômenos sociais, assim como os

comportamentos de cada grupo e cada indivíduo” (COSTA, 2009, p. 174).

Se o neoliberalismo em sua matriz norte-americana, para além de uma teoria política,

“é toda uma maneira de ser e pensar” (FOUCAULT, 2008, p. 301), se as análises da

economia de mercado são utilizadas para decifrar fenômenos não-econômicos, podemos

considerá-lo também como “um método de pensamento, uma grade de análise econômica

e sociológica” (idem, p. 301). E o que orienta, em linhas gerais, esse método de

pensamento? A generalização absoluta da forma do mercado. A educação, a saúde, a

segurança, a natalidade, a mortalidade, o casamento: o pensamento neoliberal toma para

si objetos antes pertencentes à demografia, sociologia, psicologia. Também ao Estado se

dirige essa crítica econômica, que se preocupa com os “tipos de racionalidade que são

postos em ação nos procedimentos pelos quais a conduta dos homens é conduzida por

meio de uma administração estatal” (idem, p. 437).

O neoliberalismo norte-americano exerce, então, uma crítica econômica permanente à

política governamental e ao comportamento humano. Desse modo, elege como sujeito

privilegiado de suas análises e ações o homo oeconomicus, identificando como objeto de

analise econômica “toda a conduta que responda de forma sistemática a modificações

nas variáveis do meio” (idem, p. 368). O homem econômico é aquele que reage

racionalmente às modificações nas variáveis do meio em que vive, “e que responde a elas

de forma não aleatória, de forma portanto sistemática, e a economia poderá portanto se

definir como a ciência da sistematicidade das respostas as variáveis do ambiente” (idem,

p. 368). Ora, ao definir assim seu escopo de análise e ação, o pensamento neoliberal

busca integrar à economia uma série de técnicas comportamentais, que tem por

finalidade programar os indivíduos, tornar o homo oeconomicus manejável,

eminentemente governável.

Investindo em nós mesmos: o sujeito-empresa e o pro duto-educação

Um exemplo importante desse avanço do olhar econômico sobre o mundo social

pode ser encontrado na Teoria do Capital Humano, desenvolvida a partir dos anos 1950

por membros da Escola de Chicago. Ao introduzir o trabalho na análise econômica,

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pensado não apenas em relação à variável temporal (como já haviam feito Adam Smith e

Ricardo), mas também em relação à sua própria natureza, às suas modulações

qualitativas, a Teoria do Capital Humano transcende o domínio de objetos da economia,

tomando o próprio comportamento humano, e sua racionalidade interna como objetos de

análise (FOUCAULT, 2008).

Assim como o capital econômico, essa teoria postula a existência de um capital

humano, que se refere a um conjunto de habilidades, capacidades e destrezas que

servem de moeda de troca para o indivíduo no mundo do trabalho. Educar-se é investir

em si mesmo. Investindo em si mesmo por meio da educação, o indivíduo se tornaria não

apenas mais produtivo, como também promoveria a “maximização crescente de seus

rendimentos ao longo da vida” (idem, p. 177). Assim, os indivíduos são “avaliados de

acordo com os investimentos que são permanentemente induzidos a fazer para

valorizarem-se como micro-empresas num mercado cada vez mais competitivo” (idem, p.

181). E nesse contexto de competitividade extrema, onde a concorrência é instigada e

valorizada, são desejáveis indivíduos “pró-ativos, inovadores, inventivos, flexíveis, com

senso de oportunidade, com notável capacidade de provocar mudanças, etc.” (idem, p.

181). Esses novos valores que permeiam a racionalidade neoliberal têm produzido uma

nova discursividade nas searas educativas, promovendo visões de mundo que leem o

social a partir de conceitos econômicos, reduzindo tudo a unidades de medida comuns às

outras formas do capital. A governamentalidade neoliberal, tanto no que tange a gestão

das populações quanto aos mecanismos de interiorização da norma e do governo dos

sujeitos para consigo mesmos, orienta-se para a produção de sujeitos-empresa,

transformando a experiência social e subjetiva em uma complexa jornada em busca de

capitais que podem ser valorizados e transformados em fluxos de renda. Assim “como a

unidade de base da economia é a empresa, também a unidade de base da sociedade não

é mais o indivíduo, mas o trabalhador-empresa” (idem, p. 177).

Podemos dizer então que, “no limite, o que está em jogo nessa forma de

governamentalidade neoliberal norte-americana é a pretensão de transmutar os

indivíduos em sujeitos-microempresas e de comercializar todas as relações humanas, a

qualquer hora e em qualquer lugar, mediante sua inscrição em relações do tipo

concorrencial” (COSTA, 2009, p. 179). O neoliberalismo exige a potência da individuação

de cada um, incitando e reforçando mecanismos de individualização por intermédio de

uma normatividade orientada por valores econômico-empresariais. Ao governamos a nós

mesmos e aos outros de acordo com aquilo que julgamos ser verdadeiro, “as formas

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como governamos dão origem a produção de verdade sobre a sociedade, a educação, o

emprego, a inflação, os impostos, os negócios, etc.” (FIMYAR, 2009, p. 41).

Performatividade, gestão e mercado: novos elementos das políticas educativas

A “neoliberalização” do pensamento e das práticas políticas ganhou força e amplitude

nos anos 1990, no Brasil e também em outros países da América latina, sob forte

influência de organismos internacionais, tais como O FMI e o Banco Mundial. Um marco

nesse processo foi a criação do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado

(MARE), em 1995, investido da tarefa de melhorar o desempenho da máquina

governamental, com base em uma série de reformas no aparelho do Estado. Nas

palavras de Bresser-Pereira, um dos principais articuladores dessa reorientação das

funções do Estado: “Constitui-se, então, todo um quadro teórico e uma prática

administrativa que visam modernizar o Estado e tornar sua administração pública mais

eficiente e voltada para o cidadão-cliente” (BRESSER-PEREIRA, 2000, p. 64). O então

denominado “Estado gerencial” passa a orientar suas ações a partir de alguns

pressupostos: a) delimitação das funções do Estado, reduzindo seu tamanho em termos

principalmente de pessoal por meio de programas de privatização, terceirização e

publicização1; b) redução do grau de interferência do Estado ao efetivamente necessário,

empregando programas de desregulação que aumentem o recurso aos mecanismos de

controle via mercado; c) o aumento da governança do Estado, ou seja, da sua capacidade

de tornar efetivas as decisões do governo, promovendo ajuste fiscal e reforma do Estado

rumo a uma administração pública gerencial; e finalmente, a separação, dentro do Estado,

ao nível das atividades exclusivas do Estado, entre a formulação de políticas públicas e

sua execução (BRESSER-PEREIRA, 1997).

Essa mudança de ênfase nas feições e atribuições do Estado afetaram

profundamente a arquitetura das políticas públicas. O Estado abandona seu lugar de

provedor e passa a se colocar, cada vez mais, como regulador e auditor de resultados:

“estamos a assistir ao desaparecimento gradual da concepção de políticas específicas do

Estado-Nação nos campos econômico, social e educativo e, concomitantemente, o

abarcamento de todos estes campos numa concepção única de políticas para a

competitividade econômica” (BALL, 2001, p. 100).

1 Denomina-se publicização o processo de transferência para o setor público não estatal dos serviços sociais e científicos e hoje o Estado presta (BRESSER-PEREIRA, 1997).

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Dito de outra forma, as políticas para a educação estão cada vez mais sujeitas às

prescrições do economiscismo (ibidem), e ideias como a de que “vivemos em uma

sociedade de aprendizagem” ou de que ”a economia se baseia no conhecimento”,

“servem e simbolizam o aumento da colonização das políticas educativas pelos

imperativos das políticas econômicas” (idem, p. 100). Esse novo paradigma economicista

de gestão pública redefine os papéis do Estado e cria uma nova linguagem na qual as

políticas públicas passam a fazer sentido. “As novas organizações de gestão pública

passam a ser ‘populadas’ de recursos humanos que necessitam ser geridos;

aprendizagem é rebatizada ‘produto-final de políticas custo-eficazes’; realizações passam

a ser um conjunto de ‘objetivos de produtividade’, etc.” (idem, p. 104).

Todas essas mudanças ocorridas no pós-Estado de Bem-Estar, no âmbito da

educação, impactam radicalmente sobre nossas experiências profissionais, a ponto de

vermos emergir uma nova prática ético-cultural do profissionalismo cuja moral utilitária

celebra o espírito empresarial, a competição e a excelência. Nesse sentido, pensar a

educação no “pós-Estado da Providência” (ibidem), requer analisar as tecnologias de

políticas que os Estados põem em ação, que “envolvem a implementação calculada de

técnicas e artefatos para organizar as forças e capacidades humanas em redes funcionais

de poder” (idem, p. 105), e procuram transformar e disciplinar as organizações do setor

público de modo a ajustá-los à economia política de competição global. Tais tecnologias

têm como elementos-chave a forma de mercado, a gestão e a performatividade,

produzindo ou promovendo “novos valores, novas relações e novas subjetividades nas

arenas da prática” (idem, p. 103). Em relação ao mercado, Ball afirma que esse configura

o ambiente moral dentro do qual as políticas públicas são arquitetadas e experienciadas

pelos diferentes sujeitos que dela participam, fundamentando o comportamento

competitivo e a luta pela vantagem. Um novo currículo ético é “criado na e para as

escolas”, ao mesmo tempo em que se estabelece “uma correspondência moral entre o

provimento público e empresarial” (idem, p. 107).

Também a gestão tem sido um mecanismo-chave nas reformas políticas

educacionais contemporâneas. A gestão “desempenha um papel crucial no desgaste dos

regimes ético-profissionais nas escolas e sua substituição por regimes empresariais e

competitivos. Enquanto os mercados trabalham de fora para dentro, a gestão funciona de

dentro pra fora” (idem, p. 108). Temos um novo herói no paradigma neoliberal: ele é o

gestor. A ele cabe difundir e incutir nos trabalhadores o sentimento de responsabilidade e

comprometimento, controlando e conformando a subjetividade dos professores. Deles é

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exigida a qualidade e a excelência, aferidas constantemente por meio de técnicas de

vigilância e auto-monitoramento. Todas essas tecnologias de política contribuem para a

conformação de uma cultura de performatividade, nas quais “o desempenho (de sujeitos

individuais ou organizações) funciona como medida de produtividade ou resultado, ou

exposição de ‘qualidade’, ou ‘momentos’ de produção ou inspeção” (idem, p. 109). No

ponto alto da cultura da performatividade estão “o balanço anual, relatórios escritos e

solicitações de promoção, inspeções, avaliações por colegas. Mais do que somente uma

estrutura de vigilância, há, na verdade, um fluxo contínuo de performatividades contínuas

e importantes, isto é, um espetáculo” (idem, p. 110).

O conjunto composto pelos elementos da gestão, do mercado e da performatividade

têm resultados diversos na subjetividade e prática docentes. A crescente individualização

das relações profissionais se fazem acompanhar pelo aumento do trabalho burocrático e

da vigilância sobre o trabalho docente e os produtos finais da educação. Ao mesmo

tempo, se distanciam as expectativas do pessoal técnico e da equipe docente,

confrontados por objetivos e valores muitas vezes antagônicos. Essas novas tecnologias

de políticas são “uma mescla de elementos físicos, textuais e morais” (idem, p. 112). Para

tornar as ideias que desenvolvemos até aqui mais concretas, traremos o exemplo da

reforma curricular empreendida pelo governo mineiro a partir de 2003, por meio da qual

se instituíram os Conteúdos Básicos Comuns para toda a rede estadual, cujos impactos

sobre a subjetividade e a prática docentes apontaremos a seguir.

A Reforma mineira

A reforma curricular promovida pelo governo mineiro, iniciada sob a gestão do

governador Aécio Neves (2003-2006), faz parte de um programa mais amplo promovido

em Minas Gerais, intitulado como “Choque de Gestão”, todo ele perpassado pela

racionalidade neoliberal. Recomendado pelo Banco Mundial como referência em gestão

pública, o Choque de Gestão tem como meta central o corte de gastos com a máquina

estatal. Há uma sintonia fina entre as agendas do Choque de Gestão e da reforma

curricular que institui os Conteúdos Básicos Comuns (CBCs), iniciada em 2003, quando

uma equipe de consultores escalada pela Secretaria estadual de educação de Minas

Gerais escreve as versões preliminares dos CBCs, para todas as disciplinas do currículo

dos ensinos fundamental e médio. Essa primeira versão, elaborada por especialistas, foi

discutida e testada nas escolas integrantes do projeto Escolas-Referência, criado pelo

governo mineiro também em 2003. O projeto, ainda em andamento, contemplava em sua

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fase inicial 200 escolas distribuídas por todo o estado, escolhidas por sua tradição, por

possuírem um grande número de alunos ou pelo reconhecimento positivo da comunidade

em que estão inseridas. Em 2004, o governo iniciou e implantação dos CBCs nessas

escolas, criando os Grupos de Desenvolvimento Profissional (GDPs), estruturados por

áreas de conhecimento. Esperava-se que por meio das atividades dos GDPs os

professores pudessem analisar as propostas preliminares dos CBCs elaboradas pelos

consultores do governo e, a partir daí, construíssem propostas de expansão, modificação

ou contextualização do documento. Vale dizer que “o comando central do governo

estruturou a sistemática do debate, o ritmo e o calendário de desenvolvimento, situação

que ocupou cinco horas semanais além da jornada de trabalho sem remuneração

sistemática” (MARQUES; JÚNIOR, 2012, p. 113).

As reflexões e sugestões surgidas no contexto dos GDPs, de acordo com o governo

mineiro (CRV2, 2013), foram levadas em consideração para a escrita da versão final dos

CBCs para todos os conteúdos, divulgados pela secretaria de educação do estado a partir

de 2007. Entretanto, ainda é preciso que sejam feitas pesquisas acerca do processo de

implementação e discussão da proposta dos Conteúdos Básicos Comuns nas escolas-

referência. Desconhecemos efetivamente o grau de participação dos docentes na

construção da proposta definitiva, comprometendo o caráter democrático que o processo

de teste e discussão do projeto-piloto supostamente confere à concepção dos CBCs.

Compreender o grau e o tipo de participação dos professores na elaboração da proposta

nos parece uma questão central, já que no contexto atual que Ball (2005) define como

“pós-profissional”, somos levados a obedecer regras geradas de forma exógena, onde “o

que conta como prática profissional resume-se a satisfazer julgamentos fixos e impostos a

partir de fora” (BALL, 2005, p. 542).

Ao longo dos últimos dez anos, o governo mineiro vem aprimorando um complexo

dispositivo avaliativo ligado à aplicação dos CBCs, articulado em torno do SIMAVE

(Sistema de Avaliação da Educação Pública), do qual fazem parte o PAAE (Programa de

Avaliação da Aprendizagem Escolar), o PROALFA (Programa de Avaliação da

Alfabetização) e o PROEB (Programa de Avaliação da Rede Pública da Educação

Básica). Os resultados trazidos por essas avaliações permitem ou desabilitam professores

e instituições a receberem um “prêmio por produtividade”, que “é um mecanismo de

bonificação para os servidores que integram as equipes dos órgãos/entidades que

assinaram o Acordo. O prêmio não é uma complementação salarial, mas sim, uma

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maneira de incentivar, por mérito, os servidores que conseguiram alcançar resultados

satisfatórios nas metas pactuadas” (SEPLAG/MG, 2013). Desde 2007 o governo vem

pactuando acordos com diversas unidades administrativas, por meio das Secretarias de

Planejamento e de Gestão e da Fazenda, onde o que está em jogo, além da bonificação

por produtividade, é a própria autonomia das instituições, e no limite, a sobrevivência das

mesmas. “O Acordo de Resultados é um instrumento de pactuação de resultados que

estabelece, por meio de indicadores e metas, quais os compromissos devem ser

entregues pelos órgãos e entidades do Poder Executivo Estadual, em linha com os

objetivos expressos na agenda de governo” (SEPLAG/MG3, 2013).

Esse dispositivo avaliativo também pode ser pensado como um incentivador, um

potencializador da cultura do desempenho que o governo mineiro pretende difundir entre

seus servidores. De acordo com a Secretaria de Planejamento e Gestão de Minas Gerais,

no cerne da reforma da gestão do Estado está o desejo de “auxiliar na implementação de

uma cultura voltada para resultados, estimulando, valorizando e destacando servidores,

dirigentes e órgãos ou entidades que cumpram suas metas e atinjam os resultados

previstos” (SEPLAG/MG, 2003).

Essas novas formas de regulação, baseadas no desempenho, afetam diferentes

dimensões das relações institucionais, estimulando novas relações entre os professores,

onde seu valor como profissional é proporcional à contribuição que ele dá à

performatividade de sua unidade. Também as relações professor-aluno são modificadas

nesse contexto, já que os professores passam a olhar também para os próprios alunos

como produtores (ou não) do desempenho “excelente” que a escola deve buscar. É

importante perceber que não se trata simplesmente de coisas que nos fazem, como nos

regimes anteriores de poder. Trata-se também e principalmente de coisas que fazemos a

nós mesmos e aos outros (BALL, 2005). Trata-se da nossa constituição em tipos

específicos de seres, e nesse caso, formas específicas de ser professor. Estamos diante

de uma nova forma de governamentalidade que busca “utilizar mais táticas do que leis, ou

utilizar ao máximo as leis como táticas. Fazer, por vários meios, que determinados fins

sejam atingidos” (FOUCAULT, 1992, p. 284).

O principal meio de acesso dos problemas à proposta curricular e seus princípios

norteadores é o Centro de Referência Virtual do Professor (CRV), portal criado em 2006

pela Secretaria Estadual de Educação, onde se encontram os currículos propostos para

2 crv.educacao.mg.gov.br (último acesso em 24 de março de 2014). 3 www.planejamento.mg.gov.br (último acesso em 24 de março de 2014).

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cada conteúdo, orientações pedagógicas, roteiros de atividades, vídeos e textos de apoio.

Entretanto, é curioso notar que o espaço criado para abrigar fóruns de discussão docente

acerca da proposta está indisponível, o que reforça a ideia de que as políticas

educacionais neoliberais suprimem os espaços democráticos de diálogo, substituindo-os

pelos imperativos do desempenho. Já não é mais importante pensar nas especificidades

do processo, o que importa é produzir os desejados resultados.

Procuramos identificar ao longo do nosso texto o modo como hábitos e sensibilidades

neoliberais vêm sendo incorporados aos discursos e práticas educacionais, promovendo

novas experiências e subjetividades docentes, emolduradas por uma moral utilitária que

se orienta para a competitividade econômica. Argumentamos que é cada vez mais

importante “estranhar” a nova governamentalidade hegemônica, inquiri-la, questioná-la,

desafiá-la. Assim fizemos porque acreditamos que precisamos construir respostas aos

desafios educacionais do nosso tempo. “Um tempo que demanda de nós não apenas a

compreensão do mundo em que vivemos, mas sobretudo, a criação de instantes de

suspensão dos sentidos já criados e a abertura de possibilidades de sua ressignificação”

(MEYER; PARAÍSO, 2012, p. 21), que, ainda que apenas por um momento, nos

possibilite desenhar novas e mais belas paisagens educacionais, distantes da onipresente

lógica e linguagem do mercado.

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