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Graça Rojão - Coolabora, CRL · O que era isto que lhe estava acontecer? Tudo lhe parecia absurdo. tudo à sua volta lhe pareceu estranho 18 / Os olhos do medo Os olhos do medo

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Com «Os Olhos do Medo» Fernando Paulouro Neves contribui para iluminar a penumbra que envolve as questões de género e mais especificamente a violência contra as mulheres. Este conto serve de mote a João Lourenço, que aceitou o desafio de construir um imaginário de personagens através da ilustração.Interpela o nosso viver privado e colectivo, abalando as convicções sobre civilidade e barbárie. Pergunta-nos quem somos afinal, que realidade tenebrosa se esconde em costumes ditos bran-dos e que relações de poder subsistem em sociedades ditas democráticas, onde ser mulher não é sinónimo de condição humana.Seria mais cómodo pensar que a violência sobre as mulheres é residual, que acontece apenas em destinos longínquos. Porém, é também do nosso chão que falamos, das nossas vivências e da nossa quotidiana indiferença em relação ao atentado aos direitos humanos basilares: o direito à dignidade e à integridade física e psicológica.Expressamos aqui os nossos agradecimentos aos dois artistas que aceitaram participar de forma tão generosa nesta iniciativa e contribuir para a prevenção e o combate à violência de género. O seu gesto demonstra também que este não é um tema que interessa apenas a mulheres, mas sim uma questão de cidadania que diz respeito a todas as pessoas que se empenham na construção de uma sociedade mais justa e respeitadora dos direitos humanos. É com empenho que a CooLabora promove este livro, no âmbito do projecto Violência Zero. Esperamos que contribua para ampliar a reflexão e a consciência crítica, fundamentais no refor-ço da capacidade transformadora de todos e todas nós, impelindo-nos porventura a ser (mais) intolerantes com o que é verdadeiramente intolerável.Agradecemos ao Museu de Lanifícios da UBI o entusiasmo com que acolheu esta iniciativa, viabilizada pelo apoio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, através do Programa Operacional do Potencial Humano.

Graça Rojão

Presidente da CooLabora

Os olhos do medo / 3

Texto: (c) Fernando Paulouro Neves

Ilustrações: (c) João Lourenço

Design Gráfico: João Lourenço / www.estudionomada.com

Tiragem: 500 exemplares

COOLABORA, CRL

Consultoria e Intervenção Social

Quinta das Rosas, Lote 6, RCH Esq.

6200-551 Covilhã PT

Tel e fax: +351 275335427

Telemóvel +351 967455775

www.coolabora.pt

Catálogo produzido para a exposição e lançamento do conto «Os Olhos do Medo», realizados no Museu de

Lanifícios da Universidade da Beira Interior, Covilhã, para assinalar o dia 25 de Novembro - Dia Internacional

Para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres.

Covilhã, Novembro de 2011

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A cidade é um chão de palavras pisadasa palavra criança a palavra segredo.

A cidade é um céu de palavras paradasa palavra distância e a palavra medo.

José Carlos Ary dos Santos

Os olhos do medo / 5

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A primeira pancada atingiu-a de surpresa e um fiozinho de sangue escorreu-lhe do canto da boca. Gosto adocicado. À segunda, esquivou-se como pôde. Desviou o rosto do punho que lhe caía em cima e que raspou na quina do armário. Ele fez um esgar de dor e de surpresa, parou por um momento para olhar o golpe na mão e ela aproveitou a momentâ-nea pausa no combate para rodopiar no espaço minúsculo em que se acoitara, ao canto, e esgueirar-se à roda da mesa da cozinha. Mal teve tempo para equacionar a surpresa do que lhe estava a acontecer.

a primeira pancada atingiu-a de surpresa

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Outro golpe, o terceiro, atingira-a em cheio na face, uma dor aguda quase a deixara sem sentidos. Ele voltou à carga, agarrou-a pelos cabelos, parecia agora segurar matéria inerte. Amedrontou-se com o peso morto que tinha entre as mãos e deixou-a cair, desamparada, no chão. Estaria morta? Lentamente, o pânico começou a tomá-lo, o medo rodeava-o por todos lados. Imóvel, petrificado pela brutalidade. Fugiu dali, a correr. Uma porta bateu, com estrondo.

o pânico começou a tomá-lo, o medo rodeava-o por todos lados

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Eulália ouviu vagamente uma porta que se fechava. E horas depois – quantas? – despertou do torpor de sofrimento e abriu outra vez os olhos para o mundo. Os sinais da agressão marcavam-lhe o corpo, mal abria um dos olhos, dilatado pelo hematoma, continuou dei-tada no chão à espera que as forças voltassem. Demorou a recompor-se, e, depois de algu-mas tentativas, conseguiu finalmente equilibrar-se e ficar de pé. Doía-lhe o corpo todo, mas a dor maior ia até ao fundo da alma. Pensava na infra-humanidade a que a violência remete um ser humano, a pessoa feita quase objecto sem assomo de dignidade. Eulália percebeu, então, na pele, o domínio da irracionalidade, o universo de absurdo que a vida (vida?) podia ser.

o domínio da irracionalidade

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Tudo fora o epílogo de uma outra espécie de morte anunciada. Morte em sentido cívico e social, já se vê. As frequentes discussões, a ciumeira acéfala, a teimosia dele em querer obrigá-la a deixar o emprego para ficar em casa, contrastavam com a afirmação de liberdade de Eulália, que não abdicava do direito de dispor de si, de construir, na vida de todos os dias, a sua própria biografia, a sua história de vida. Ele amplificou a retórica da ameaça, estilizou a ofensa verbal, começou a perder a cabeça sempre que ela voltava mais tarde do emprego. Até que.

a teimosia dele em querer obrigá-la a deixar o emprego para ficar em casa

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Mais tarde, muito mais tarde, a memória regressava sempre à reconstituição topográfica do drama, angústias de longa duração que voltavam sempre, grudadas à alma como uma lapa, visita de todos os momentos, às vezes fragmentária, outras como um filme em câmara lenta, lavrando uma e outra vez as feridas psicológicas que, por serem interiores e intrans-missíveis, não cicatrizavam nunca, pois mais abertas são as feridas na dor que o pensamento fabrica. E ela lembrava-se, então, dos instantes da violência sofrida, que pareciam eternos, e de como a certa altura deixara de proteger o rosto com as mãos, abandonando qualquer atitude de defesa pessoal, enfrentando-o apenas com o olhar, como se um espelho imagi-nário lhe devolvesse a imagem do ódio.

a memória regressava sempre à reconstituição topográfica do drama

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Sim, era isso – olhar apenas, ver a violência em estado puro, decifrar o grão de areia que bestializa as pessoas e as transforma em fazedoras de infernos, mesmo que às vezes sejam climatizados e domésticos. Lembra-se bem, Eulália, da vontade que se apossou dela, uma força interior de que nem sequer suspeitava, que lhe fez levantar o rosto e olhar, olhar ape-nas, sem uma palavra ou um gesto, indiferente à agressão iminente. Eram os olhos e só os olhos que falavam. Olhou-o bem nos olhos, fixou-os, entrou por eles dentro como dizem que fazem na selva os caçadores, quando ficam sozinhos diante das feras.

olhar apenas, sem uma palavra ou um gesto, indiferente à agressão iminente

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Desejou esse confronto visual, rosto contra rosto, para, num olhar que misturou nas suas águas angústia e medo, mostrar toda a perplexidade de que um olhar é capaz, quando al-guém descobre que afinal desconhece o outro, sobretudo se o outro for o companheiro de muitos anos (pensava ela: de uma vida).

Naquele momento, lembra-se bem, tudo à sua volta lhe pareceu estranho. Foi como se a realidade, o que estava a acontecer, o instante e a hora exacta da súbita violência, fossem pura imaginação, coisa que jamais poderia fazer parte da rotina de um quotidiano até então vivido sem sobressaltos. O que era isto que lhe estava acontecer? Tudo lhe parecia absurdo.

tudo à sua volta lhe pareceu estranho

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O respirar ofegante do medo, o barulho da loiça a estilhaçar-se no chão, as cadeiras arras-tadas, os restos de comida espalhados ao acaso – despojos avulso de uma guerra doméstica, sinais de um combate oculto entre quatro paredes. Tudo tão rápido, sombras de sombras, gritos sufocados, gestos de medo, palavras amordaçadas em silêncios de vergonha.

despojos avulsos de uma guerra doméstica, sinais de um combate oculto entre quatro paredes

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Sombras de sombras que passam e ninguém vê, pensou outra vez Eulália. A indiferença é o veneno que corre e vai matando lentamente. Toda a gente sabe e finge ignorar, era ela a falar para si, pensando em voz alta, lembrando-se que também sucedera com ela pensar que essas desgraças da violência doméstica só acontecem aos outros, coisas de gente pobre, de margem ou de mau vinho, quando afinal a brutalidade física e psicológica infligida às mulheres está muitíssimo bem distribuída por todas as classes sociais, é o á-bê-cê dos dias, fenómeno traumático transversal a toda a sociedade.

toda a gente sabe e finge ignorar

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Quantas vezes, quantas?, conhecera já estes rituais de violência, no registo dos jornais, que depois as televisões amplificam, o sangue a correr por sobre os «brandos costumes», fata-lidades que a vida (ou a morte) encerra, mortes físicas e mortes psicológicas para todos os gostos. Quantas vezes, quantas?, essa factualidade mórbida, que se tornava notícia de ho-rário nobre quando havia «últimas consequências», mortes violentas, mulheres decapitadas ou assassinadas à frente dos filhos, desfechos fatais em que às vezes morriam todos, a come-çar pelo agressor que, depois da obra feita, se suicidava. Crónica de costumes de arrepiar, todos os dias alimentada pelos quotidianos cinzentos de pessoas sombras de sombras.

essa factualidade mórbida que se tornava notícia de horário nobre

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Eulália olhava agora a realidade com outros olhos. Percebera que a violência doméstica, que vivera dramaticamente, estava cada vez mais presente na sociedade. Muitas vezes, à noite, enquanto fumava um cigarro, gostava de olhar da varanda da casa a imensa paisagem urba-na que se estendia no horizonte, milhares de casas e ruas, luzes que acendiam e apagavam, e pensava nos dramas ocultos dentro das paredes das casas da cidade grande, dos choros e dos gritos, e os versos de uma canção do Zeca vinham então ao seu encontro como se a poesia estivesse a querer cantar cidades futuras, e cantava só para si:

a cidade é um chão de palavras pisadas

e uma lágrima furtiva abria um sulco no rosto porque pensava na comum humanidade que po-deria ser a felicidade dentro da cidade, se a urbe fosse um chão de palavras amadas, onde «o puro pássaro», como um dia pediu um poeta, o Ruy Belo, para o seu país futuro, fosse possível.

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dramas ocultos dentro das paredes das casas da cidade grande

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a palavra esperança voou sobre o clarão da cidade

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As luzes da cidade, por momentos, pareciam mais intensas na noite escura. Eulália poisou os olhos num horizonte de luz e descobriu no céu inalcançáveis estrelas, que brilhavam, brilhavam. Por um instante, a palavra esperança voou sobre o clarão da cidade. Eulália sor-riu e recomeçou a chorar. As feridas continuavam abertas.

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Fernando Paulouro NevesJornalista. Autor de: «O Foral: Tantos relatos, Tan-

tas Perguntas» (Teatro), «A Guerra da Mina e os

Mineiros da Panasqueira» (com Daniel Reis), «Os

Fantasmas Não Fazem a Barba» (ficção), «A Ma-

terna Casa da Poesia. Sobre Eugénio de Andrade»

(ensaio). Director do «Jornal do Fundão».

João LourençoDesigner de comunicação.

Criou e «conduz» o Estúdio Nómada (atelier itine-

rante de artes visuais).

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