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Graça Craidy, doutoranda
Subversivos no liquidificador
PPGCOM PUCRS
RESUMOEsta reflexão busca entender a relação entre os criadores publicitários brasileiros dos anos 60/ 70 e o imaginário da ditadura militar e do capitalismo, pela análise de famoso anúncio publicado um mês após o AI-5, em janeiro de 1969, na revista Propaganda, sob a forma de pastiche de um polêmico tema motivador de perseguições políticas, na época. Com o título Os Subversivos, o anúncio comunicava ao mercado a chegada de uma nova equipe de criadores publicitários à agência de propaganda Norton, de São Paulo. Sob o ponto de vista teórico, vale-se dos estudos de Barthes.
ABSTRACTThis reflection intends to understand the relation between the brazilian ad creative people of the 60/ 70's and the imaginary of the military dictactorship and the capitalism, through the analysis of the picture and copy of a famous ad published just a month after ( 1969, January) one of the most represives acts of the brazilian military dictactoryship - the AI-5, on Propaganda magazine, under the title The Subversives. The ad announced to the market the arrival of a new staff of creatives at Norton ad agency, in São Paulo, joking with the subject subversion, a very dangerous theme to anyone, by that time.
PALAVRAS-CHAVE ( KEY WORDS)- criador publicitário ( ad creative)- imaginário ( imaginary)- discurso ( speech)- ditadura militar ( military dictactorship)
Autora: Graça Craidydoutoranda em Comunicação PUCRSprofessora de Publicidade [email protected]
Subversivos no liquidificador
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Os criadores publicitários, o capitalismo e o imaginário da ditadura militar
Ressaca.
Naquele janeiro de 1969, ainda vigorava fresca no país a vertigem do AI-5
(13/12/1968) recém empurrado goela abaixo dos brasileiros como o mais cruel dos atos
institucionais, afirmação explícita da ditadura militar agora com poderes plenos para
cassar políticos, caçar dissidentes e fechar o Congresso, as Assembléias Legislativas e as
Câmaras de Vereadores, cala-boca assumido sobre os últimos simulacros de liberdade
política ainda presentes pós 1964.
Enquanto a democracia brasileira lambia as feridas e a sociedade
adivinhava novos tempos disciplinares, ocupada entre o anticomunismo e a sedução do
consumo que se avizinhava em atraentes e miraculosos trajes modernos, no restrito
mundo da publicidade um anúncio de página dupla na revista Propaganda (Ed.
Referência) assinado pela agência paulista Norton aparentemente desaforava a ditadura,
sob o breve e incisivo título Os subversivos.
Rasgando os 42 cm horizontais do anúncio, sob o temerário epíteto, cinco
rapazes bem-vestidos, ao redor de 30 anos, fotografados de propósito em câmera baixa
para parecerem poderosos, portavam teatralmente suas ditas " armas subversivas" _ duas
réguas-tês e três máquinas de escrever _ em manifesto pastiche das fotos publicadas na
imprensa sobre o desmantelamento dos chamados "aparelhos subversivos" contrários ao
regime. Eram os cinco criadores publicitários Neil Ferreira, José Fontoura da Costa,
Carlos Wagner de Morais, Aníbal Guastavino e Jarbas José de Souza _ três redatores e
dois diretores de arte, nessa ordem _ recém contratados pela Norton para, segundo o
texto do anúncio, " subverter" o mercado da propaganda.
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Esse peça publicitária Os subversivos _ foto e texto - constitui o corpus do
meu
trabalho, onde busco compreender - compreender, como quer a semiologia, e não
descobrir _ de que maneira os citados criadores, legítimos representantes de uma parcela
inovadora dos criadores publicitários nos ditos Anos de Chumbo, se relacionavam com a
ditadura militar e com a expansão do capitalismo e de que modo se valeram da dialética e
do discurso via a vampirização do imaginário _ para Barthes (1999), o mesmo que
ideologia, _ especificamente neste anúncio, com o fim de argumentar em favor de suas
próprias causas, transformando não apenas os bens e serviços que anunciavam em
mercadoria, mas também eles próprios, criadores, convertidos em produto espetacular _
como bem profetizaram Guy Debord ( 1997) e os teóricos críticos de Frankfurt _
evidenciando assim a banalização do ideário vigente por meio de um pseudo discurso
contra-ideológico que parecia desafiar as perigosas regras militares. Mas, não.
Divisor na escritura publicitária do Brasil, junto com os movimentos
bernbachianos das agências DPZ e Almap, esse anúncio reafirmou a passagem de um
encaminhamento retórico formal pré-Bill Bernbach _ o americano fundador da nova
linguagem criativa na publicidade mundial _ a um discurso claramente informal,
ressonâncias da recente ascensão dos criadores publicitários brasileiros da DPZ (a
primeira agência com criadores no comando) ao poder, respaldados pelo valor da ousadia
e da criatividade e, no caso d'Os subversivos, também, em uma aparente tentativa de
discurso contra-revolucionário, muito menos uma tentativa de eficácia contra-
hegemônica _ por pífia que seria _ e muito mais aparentemente feito para agradar, de
lambuja, aos patrulheiros de plantão pró-esquerda presentes nos bastidores dos
departamentos de Criação das agências, na época, onde atuavam vários ex-jornalistas.
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Metodologicamente, valho-me da DHE - Dialética Histórico Estrutural,
na busca das Condições Objetivas e Subjetivas desses atores sociais, e nas suas chances
de mudança de status quo, apoiada teoricamente por Pedro Demo (1990). Como técnica,
uso a Semiologia de Barthes (1999), tanto no que tange ao Discurso (imagem e
linguagem) e ao Imaginário (ideologia), como à fotografia (Punctum e Studium) (1989).
Para o cenário específico do momento histórico estrutural de então, assumo os olhares do
historiador Carlos Fico ( 1997), pesquisador da ditadura e do jornalista José Ruy Gandra
( 1995), pesquisador da criatividade publicitária nacional.
( Título e texto do anúncio)Os subversivos. Já era tempo de denunciá-los à nação. Olha as armas terríveis que eles têm nas mãos. São armas que podem abalar governos ou vender produtos. Com elas, esses homens são capazes de mudar a história de um país ou a história de um produto. Basta apertar um botão. De uma máquina fotográfica. Uma câmera de cinema. Um aparelho de TV. A tecla de uma máquina de escrever. Eles usam essas armas para gerar insatisfações, criar descontentamentos, acender desejos (...).Você passa a olhar o seu vizinho porque ele comprou um carro novo. Sua mulher passa a olhar a geladeira velha (...). Seu filho barbudinho passa a (...) a velha geração porque você não quer ver o último filme do Jean-Luc Godard. Sua filha passa a odiar você porque você admite as mini-saias bem minis, mas só para as filhas dos outros. São homens tão perigosos que só poderiam estar em dois lugares. Na cadeia. Ou numa agência de propaganda. A Norton Publicidade conseguiu pegá-los antes. Agora eles estão na Norton, de armas em punho. A sua ideologia está infiltrada em uma das principais cidades brasileiras, onde a Norton mantém focos de subversivos plenamente insatisfeitos. Subversão não é um negócio novo na Norton. Há 25 anos que ela vem unindo todos os recursos de comunicação para subverter a vida das pessoas. Eles vão tentar convencer você a morar numa casa própria. Ou a mudar para uma casa melhor. Vão tentar convencer você de que ar condicionado num país tropical é necessidade, e não luxo. Vão tentar convencer você a concordar com a sua mulher, quando ela quer um fogão avançado. Calçar um bom sapato. Comprar coisas boas numa grande loja. Movimentar a sua conta num banco sólido. Vão tentar convencer você a ter a coragem de ambicionar tudo aquilo que torna a vida um pouco melhor. (...) comendo um chocolate, por exemplo. Ou tomando uma bebida. Mas eles sabem também que você pode ser um conformista. Esse é o risco que eles correm. E ninguém é subversivo sem correr um grande risco. Norton Publicidade S.A. 25 anos de eficiência e sinceridade. São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Fortaleza. Por enquanto. ( Texto do anúncio Os Subversivos; Cliente: Norton Publicidade S.A.; Veículo: Revista Propaganda; Data de veiculação: Janeiro de 1969.)
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1968, o ano do proibido proibir
Poucos ficaram imunes àquele ano de 1968. O clima era de repressão. Por
outro lado, de ousadia. Na França, no famoso Maio de 68, estudantes clamavam por
todas as liberdades, da sexual à social, aos apupos de "Seja realista, peça o impossível",
contaminando outras categorias e outros países, de operários a intelectuais, atemorizando
as classes dominantes e até seu presidente, na época, Charles De Gaulle, que, consta,
refugiou-se em Baden-Baden, na Alemanha, protegendo-se das manifestações.
No Brasil, em setembro do mesmo ano, o deputado Márcio Moreira Alves
( que logo seria cassado ) propunha o repúdio popular ao militares e o boicote às
comemorações da Semana da Pátria. No mês seguinte, 1240 estudantes no 30º Congresso
da UNE desafiavam a ditadura e se reuniam em um sítio em Ibiúna/ SP, até serem
denunciado por locais, traídos pelo imenso volume de pão comprado nas quitandas da
cidade, e presos, um a um, pelo DOPs.
Na Inglaterra, The Beatles lançavam o antológico Álbum branco em meio a
incenso, I-ching, maharishi ioge e à canção Back to URSS, que elogiava as garotas
soviéticas e dizia ser "uma sorte estar de volta ao lar, camarada". Nos Estados Unidos, os
jovens protestavam contra a Guerra do Vietnã, proclamando love and peace.
Caetano Veloso e Os Mutantes, no Brasil, eram vaiados com É proibido
proibir, no mesmo palco onde Chico Buarque e Tom Jobim venciam o Festival
Internacional da Canção com a poética Sabiá, hino sutil pela anistia _ " Vou voltar, sei
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que ainda vou voltar" _ , mas a platéia vaiava de novo e pedia por Pra não dizer que
não falei de flores, de Geraldo Vandré, que propunha, sem meias-palavras: " Vem,
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vamos embora que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer".
Antes que o Natal de 1968 chegasse, Gilberto Gil e Caetano Veloso seriam presos, por
alegada incitação à subversão, e mais tarde exilados na Inglaterra, obrigados a repensar o
" Eu digo não ao não" da É proibido proibir (1968).
Ou seja, apesar da repressão, apesar das prisões, apesar da constante
ameaça, havia _ exatamente pelo indefectível magnetismo do proibido _ um contagiante
estímulo ao revés no ar para que os jovens se rebelassem, desobedecessem, burlassem,
desafiassem, desproibissem. Ainda que sem muito risco, como no caso dos criadores
publicitários aqui citados que, como certos hippies apenas nos adereços _ e por isso
chamados de hippies de boutique _ também poderiam ser nomeados subversivos de
boutique, protegidos que estavam por seu poderoso patrão, o paulista Geraldo Alonso,
conhecido no meio publicitário como sujeito de maus bofes, autoritário mas
empreendedor de sucesso, forjado no modelo do antigo agente de espaços em jornal,
fundador da agência Norton em meados da década de 40.
Geraldão, como era chamado, tinha "notórias relações no cenário
político" _ garante Gandra (1995:53) e apesar de sua agência haver brilhado nos anos 50,
perdera de certa forma o trem da história e tentava agora recuperar espaço apostando nos
- apelidados por ele _ " barbudinhos da criação", Neil Ferreira e equipe, e no novo valor
que começava a se estabelecer na propaganda, em oposição ao valor do mero negócio: o
da criatividade. Um valor de tal maneira tornado importante no final dos anos 60, que
mereceu de Gandra (1995:54) a ponderação: " Pois não é que, de repente, qualidade de
criação e dinheiro queriam dizer quase a mesma coisa?" Entre muitos que consideram
Os subversivos uma mudança significativa no perfil da propaganda brasileira, o colunista
Subversivos no liquidificador
Marcio Ehrlich, do site A Janela Publicitária, (22/01/2000) endossa que, de fato, a equipe
criativa fez uma verdadeira revolução: " 'Os Subversivos' representam um marco na
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década, com campanhas memoráveis", confirma Ehrlich. Tão memoráveis que no ano
seguinte, em 1970, Geraldo Alonso foi escolhido O Publicitário do Ano, pelo já
tradicional Prêmio Colunistas _ concedido anualmente por jornalistas especializados em
publicidade _ e Neil Ferreira eleito vencedor da privilegiada categoria Exemplo do Ano,
na mesma premiação. Exemplo de virada criativa, segundo o próprio Neil (2007), que
assegura ter ressuscitado a Norton, com os trabalhos criativos da sua equipe.
Quem conta como nasceu o antológico anúncio em questão é ele, Neil
Ferreira, principal autor, redator, diretor de criação e ex-jornalista naquele 1969, com 26
anos (dos quais os últimos seis dedicados à publicidade ), que gosta de se pensar e aos
outros quatro subversivos como Os 5 Beatles e o seu antológico anúncio como o Sgt.
Pepper's Lonely Hearts Club Band da propaganda:
Estávamos todos na casa do Jarbas José de Souza, diretor de arte, o 1o. à direita [ da foto do anúncio]. Íamos jantar e tentar discutir um anúncio para comunicar ao mercado a intenção da Norton ao contratar-nos. Cada um dos 5 Beatles (...) tinha uma idéia. Democráticamente, eu (diretor de criação e comandante da equipe, além de me considerar um dos Beatles era também o George Martin), determinei que entrariamos na Norton para "subverter tudo". Focamos na "subversão", quem faz a subversão são os "subversivos", datilografrei na minha minúscula "Olivetti Lettera 22", que carregava para todos os cantos, o título em caixa alta e baixa "Os subversivos". Escrevi a 1a. linha do texto: "já era tempo de denunciá-los à nação" (FERREIRA, 2007, por email)
Lá fora, no mundo real, o noticiário vivia recheado de fotos de subversivos
denunciados à nação tanto pelos soldados da ditadura quanto pelos próprios civis da
classe média _ historicamente medrosa e fiel amante de segurança e estabilidade _ que
entendiam a subversão como uma espécie de prévia sinistra do apocalipse, onde
Subversivos no liquidificador
comunistas devoravam criancinhas e de sobremesa lambuzavam os beiços
desapropriando ricas herdades. No signo " comunista", o monstro- morador que Barthes
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(1987:15) categorizava como " estereótipo" se arrastando na língua, onde cada um de
nós ao mesmo tempo " mestre e escravo" _ diz ele _ se aloja confortavelmnente na
servidão dos signos tartamudeando: " Digo, afirmo, assento o que repito".
Nas fotos das notícias, a pose dos denunciados à nação era bem parecida com
a dos subversivos de propaganda, só que em vez da câmera baixa que Barthes (1989)
qualificaria como studium, porque reveladora da intenção do fotógrafo no caso dos
subversivos de propaganda, de enaltecer os objetos sem o olho do olhante da foto dar-se
conta, os subversivos de verdade eram mostrados nos jornais em câmera alta, vistos de
cima, o que os tornava menores e oprimidos, claro recado semiológico de que a situação
estava sob controle, debaixo dos tacões das botas dos governantes que haviam assumido
para si não apenas a missão de acabar com veleidades socialistas em focos espalhados
pelas muitas esquerdas que se debatiam no Brasil de então, como a de implantar o
progresso e a educação na sociedade brasileira, " motivando a vontade coletiva para o
esforço nacional de desenvolvimento", como salienta o historiador Carlos Fico, em seu
Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil
(1997:94), ao comentar o trabalho da famosa AERP, Assessoria Especial de Relações
Públicas da Presidência da República, que liderava o processo de comunicação do
governo militar.
Neil Ferreira (2006), revela que sua intenção foi, de fato, explicitamente
mimética dos noticiários, ao colocar os cinco subversivos da propaganda com seus
aparatos de subverter feito fossem armas de verdade, ao mesmo tempo em que o texto
lançava mão de uma analogia ritmada, um prego ora na subversão de verdade, ora na
subversão da propaganda:
Subversivos no liquidificador
Há um permanente subtexto referindo-se à situacão política do
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momento. A milicaiada viva "denunciando subversivos à nação". Quando um"aparelho" caia, eram apresentadas fotografias do "vasto material subversivo apreendido", geralmente máquinas e escrever, estêncils, mimeógrafos.( FERREIRA, 2006)
Toda língua _ diz Barthes em sua famosa Aula proferida em 1977, no
Colégio da França (1987: 13) _ é " uma reição generalizada", uma espécie de campo de
luta onde aquele que fala sujeita aquele que escuta. E vice-versa, " servidão e poder se
confundindo inelutavelmente" (1987:15).
" Olha as armas terríveis que eles têm nas mãos", diz a primeira linha do
texto, o poder emboscado no discurso, como alerta de novo Barthes (1987:14). O olho
olha as tais armas terríveis e o que vê? Máquinas de escrever e réguas-tês. Bem de
acordo com o pensamento barthesiano, aliás: armas de exercício de poder. "São armas
que podem abalar governos (...)" O olho pára, apreensivo. Na época, era tremendamente
perigoso alguém querer " abalar governos". Por outro lado, é bem aqui que os torcedores
das arquibancadas da esquerda, nas agências de propaganda, faziam as suas holas, na
parte em que o texto parece ameaçar os milicos. Mas ninguém vai preso.
E o texto continua, naquilo que Barthes (1987) entende como o não-
dito da estrutura, passado ideologicamente, abrigado no dito, "para além do que é dito"
(1987:14): " (...) ou vender produtos". Ah, produtos! O gosto pela corda bamba é
irresistível: "Com elas, esses homens são capazes de mudar a história de um país ou a
história de um produto". Perceba-se aqui como nessa frase fica claro que é insinuado ter
o mesmo peso mudar a história de um país e mudar a história de um produto. O mesmo
peso moral, ético, conceitual, bem de acordo, aliás - como vai-se ver mais adiante - com
Subversivos no liquidificador
a percepção de Carlos Fico (1997) que entende o incentivo ao consumo como a única
forma de liberdade permitida aos brasileiros pela repressão militar. E o texto subversivo
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continua: "Basta apertar um botão". Aqui, o coração se sobressalta. Em plena Guerra Fria
entre Estados Unidos e União Soviética, o imaginário popular vivia atormentado pela
possibilidade de alguém ensandecido apertar o temível botão que acionaria a bomba
atômica mundial, ameaça mútua que mantinha os dois grandes cães rosnando com suas
coleiras e correntes sob controle. " [ O botão] De uma máquina fotográfica. Uma câmera
de cinema. Um aparelho de TV. A tecla de uma máquina de escrever." A essas alturas, o
leitor virou cúmplice do autor, o anzol do texto publicitário já o fisgou. Como indica
Barthes (1987:14), assim que é proferida, " a língua entra a serviço de um poder" e é no
interior dela que ela mesma deve ser combatida, não pela mensagem de que ela é
instrumento _ Barthes ( 1987:17) ressalta _ mas " pelo jogo das palavras de que ela é o
teatro". No caso, um jogo de palavras a serviço da laudação do sistema reinante e dos
subversivos de propaganda, que continuam sua farsa compartilhada.
" Eles usam essas armas para gerar insatisfações, criar
descontentamentos, acender desejos ", segue o texto do anúncio, e a parte de acender
desejos erótica bem na medida para só tanger sem ofender o imaginário. E o anúncio
continua, explorando todos aqueles sentimentos ditos menores de que a propaganda em
nome do capitalismo é acusada de provocar: " Você passa a olhar o seu vizinho porque
ele comprou um carro novo. (...) Sua filha passa a odiar você porque você admite as
mini-saias bem minis, mas só para as filhas dos outros." Espertamente, para criar ao
mesmo tempos empatia e verossimilhança, bem como recomendam os princípios da
Retórica, o texto se apropria de uma cena típica de então, passagem da sociedade de um
modelo machista autoritário para um modelo atenuado pelo movimento feminista e pela
liberação sexual, onde a virgindade começa a perder o seu valor de dote casadoiro,
substituída aos poucos pelo valor da autonomia das mulheres que acorrem às
universidades e ao mercado de trabalho, sedentas por decidirem seus próprios rumos.
Subversivos no liquidificador
Como num filme de gangster, o pastiche do anúncio sapeca agora
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um cravo bem pregado na ditadura: " São homens tão perigosos que só poderiam estar
em dois lugares. Na cadeia." Valhei-me!- haveria de pensar o leitor, lembrando da Rua
Tutóia em São Paulo, do DOI-CODI, de má lembrança, ou da recente fuga do perigoso
Capitão do Exército Carlos Lamarca que há pouco tinha escapado do 4º Regimento de
Infantaria, com 63 fuzis FAL, 10 metralhadoras e farta munição, conforme o Almanaque
da Folha. "Ou numa agência de propaganda", assopra o texto de Neil. A persuasão segue
o seu trilho e lá pelas tantas, atrevidamente, aparece a palavra das mais perigosas de se
pronunciar, então, junto com a perigosíssima democracia: ideologia. " A sua ideologia
está infiltrada em uma das principais cidades brasileiras, onde a Norton mantém focos de
subversivos plenamente insatisfeitos." Até o verbo _ infiltrar _ foi escolhido a dedo para
assumir o jargão da ditadura, que Barthes (1989) chama de socioleto, espécie de dialeto
falado por um grupo. Quase no fim do texto, o anúncio revela, afinal, a que veio: "
subverter a vida das pessoas", declara Neil.
Intervalo: a propalada subversão da propaganda, que aparentemente não
tinha nada a ver com a ditadura, na verdade, tinha tudo a ver com a filosofia
desenvolvimentista do governo militar, que implanta o capitalismo conservador de
inspiração americana, acreditando - via aumento da produção, do crédito e do consumo -
libertar a sociedade de dois perigos, ao mesmo tempo: do espartano comunismo chinês,
cubano ou russo, que vigoravam na moda de esquerda de então, e também do atraso no
relógio da modernidade, onde o Brasil como país do futuro precisava se engajar. Por
bem ou por mal.
Carlos Fico (1997), em sua pesquisa sobre a ditadura, a propaganda e o
Imaginário social do Brasil, descobriu que a vontade do Brasil de cumprir a sua vocação
para o primeiro-mundismo se estabelece clara no período militar, mas que na verdade
seria uma espécie de otimismo " reinventado" pela AERP/ARP do cel. Otávio Costa, e
divulgado nas mensagens de governo feito um resgate atualizado e naturalizado de uma
construção histórica do imaginário brasileiro. No entender de Fico (1997) desde Pero
Vaz de Caminha, passando por " gigante pela própria natureza", " criança, não verás
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nenhum país Subversivos no liquidificador
como este", ou pelos " 50 anos em 5" de Juscelino - o Imaginário nacional cultiva o
elogio
do Brasil como fadado a ser grande, e do brasileiro como o privilegiado habitante deste
país fadado a ser grande, legitimado pela natureza generosa, pela industrialização, pela
moderna Brasília, no mito reiterado, segundo Fico, em " centenas de poemas, milhares de
textos, milhões de falas e milhões de imagens ao longo dos séculos" (1997:74).
Fico (id:112) observa ainda que a participação à qual o brasileiro era
convidado em tempos de repressão, _ do tipo Faça a sua parte. Ajude o Brasil a crescer
_ , na verdade nunca acontecia, a não ser, em dado momento, como " simulacro de
participação" via a modernidade do consumo. Nada mais coerente, então, que o discurso
subversor do anúncio da Norton, que nos últimos parágrafos claramente anunciava o seu
convite ao consumo: " Eles [ os subversivos] vão tentar convencer você a morar numa
casa própria. Ou a mudar para uma casa melhor. Vão tentar convencer você de que ar
condicionado num país tropical é necessidade, e não luxo. Vão tentar convencer você a
concordar com a sua mulher, quando ela quer um fogão avançado. Calçar um bom
sapato. Comprar coisas boas numa grande loja. Movimentar a sua conta num banco
sólido. Vão tentar convencer você a ter a coragem de ambicionar tudo aquilo que torna a
vida um pouco melhor. (...) comendo um chocolate, por exemplo. Ou tomando uma
bebida."
E, para encerrar, caso o leitor ainda não tenha se sentido estimulado ao
consumo, o texto do anúncio não deixa por menos e o xinga de " conformista". Perceba-
se: o oposto de ser consumidor é ser conformista: " Mas eles sabem também que você
pode ser um conformista. Esse é o risco que eles correm". Isto é: um jeca tatu afásico e,
ainda por cima, antiquado. Como quem diz: OK que você não tenha coragem de
enfrentar a ditadura, mas, fugir da raia do consumo também já é muita estultície.
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Sorria, você está sendo analisado
Como os objetos de predileção da Semiologia são o que Barthes (1987:40) chama de
textos do Imaginário _ narrativas, imagens, retratos, expressões, idioletos,
Subversivos no liquidificador
paixões _ é interessante tentar compreender em que aspectos a foto do anúncio _ também
ela texto, discurso _ revela a ideologia do não-dito.
Começando pela esquerda, o primeiro redator, Carlos Wagner de Morais,
acavalado em cima da sua máquina de escrever, o braço dobrado e tenso sobre o carrinho
da máquina, como se fosse uma canga, óculos fundo de garrafa que lhe aumentam o ar
meio aparvalhado, o pescoço enterrado no peito, guarda uma expressão desconfiada de
quem vai sair correndo ao primeiro sinal de perigo. Ironicamente, é o que mais tem cara
de subversivo de verdade, isto é, suspeito, porém, ao que parece, desaquinhoado da
valentia e desfaçatez apregoadas no texto.
Ao lado de Wagner está o segundo subversivo: o redator José Fontoura da
Costa, o velho, como chama Neil. O olhar um pouco arrogante, olhando de cima, o terno
e gravata passando uma certa hierarquia em relação aos desengravatados da foto, a
segurança com que segura a máquina com o braço estendido, a mão esquerda
delicadamente encostada na lateral da máquina, sem pressionar, apenas garantindo que o
carrinho não saia do lugar, indica um sujeito firme porém, se necessário, flexível. Um
verdadeiro subversivo falso, eu diria.
No meio, no entanto, à esquerda de Fontoura, atrás de uma régua-tê e dentro
de um par de calças listradas que o fazem parecer apoucado de inteligência e com jeito
um tanto clown, o diretor de arte Aníbal Guastavino, olhar mansamente ovino e cara de
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bem-mandado se mostra incapaz de matar uma mosca com sua régua-tê cruzada no peito
feito um escudeiro distraidamente de guarda, mais se escondendo aperigo atrás da arma
que se mostrando perigoso marginal.
Imediatamente ao lado de Aníbal, ele, o chamado geniozinho da
criação, subversivo-mor, Neil Ferreira. Não há no meu entender dúvida nenhuma de
quem lidera o grupo. Ainda que de menor estatura que seus pares, a postura, o olhar
cortante, a cabeça erguida desafiadora, o terno e principalmente o que me parece o
punctum da foto - segundo Barthes, punctum quer dizer picada, pormenor, o detalhe que
bole e denuncia " a
Subversivos no liquidificador
foto dentro da foto" - é a forma com que Neil segura a sua máquina de escrever: pela
base e bem na pontinha dos dedos. Como se não fosse pesada e ao mesmo tempo dando a
impressão de que, sim, ele estava no time, faria todas as promessas acontecerem, mas
que
não se enganassem: ele não sujaria as mãos com tudo aquilo. Seu corpo, talvez. Sua
alma, jamais. Como fica evidente em Do porão ao poder ( 2007), o eterno outsider da
propaganda brasileira.
E, por fim, último à direita, o diretor de arte Jarbas José de Souza, em uma
elegante camisa listrada com gravata, segura suavemente a sua régua-tê pendurada
displicentemente, em uma mão com os dedos entreabertos, indicando intimidade com a
ferramenta, um ar interrogativo e de cima para baixo, como quem indaga: quem é você,
leitor? Conforme Neil, foi ele, Jarbas, quem fez a foto, daí talvez, se um observar bem,
percebe-se que o dito fotógrafo está um passo à frente do seu par Carlos Wagner de
Morais, na outra ponta, não só não completando harmoniosamente a meia-lua como
praticamente extrapolando o corte superior da foto, de tão em primeiro plano que se
coloca no olho do leitor. Eu diria que Jarbas é o menos comprometido em ser
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politicamente um subversivo, ainda que se saiba ter sido ele dos primeiros adesistas ao
novo discurso revolucionário de Bill Bernbach, ex-presidente do Clube de Criação de
São Paulo e também conhecido como o expert em tipografia, fundador da All Type -
empresa de fotoletras e fotolitos. No meu entender, Jarbas estaria mais para subversivo
técnico, pragmático, sua postura na foto levando a crer que dedica mais paixão ao tête-a-
tête com a prancheta do que com consumidor.
Como a história acabou, na Censura? Em pizza, reporta Neil ( 2006):
O anúncio foi um atrevimento, sim. não me lembro da revista ter sido recolhida, mas eu fui "recolhido" (gentilmente, anote-se) a um escritório de censura, na rua Xavier de Toledo, ao lado do prédio do Mappin, centrão de São Paulo. Falei com o diretor, um militar em roupas civis, que me perguntou muito sobre "o que eu queria dizer com aquele anúncio e por que tinha escolhido a palavra "subversivos" tão grande no título". Repeti tim-tim-por- tim igual explicação que havia dado ao Geraldão antes do anúncio sair. Queria falar sobre a agência, como estava no texto, seus profissionais, como estava no texto, o que os clientes poderiam esperar, como estava no texto. Sobre a palavra "subversivo", falei horas, não fui sequer ouvido. Então apelei efalei, "olha coronel, essa palavra equivale a mulher pelada no anúncio, é só para chamar atenção". Ele me ofereceu água, cafézinho e no maior cavalheirismo me disse "porra por que não falou isso antes ". E todo mundo foi pra casa dando risada. ( FERREIRA, 2006, por email)
In-conclusão
Subversivos no liquidificador
Nesse breve " gozo do signo imaginário" _ como chama Barthes (1987:41) _
ao desvendar o " véu pintado" do discurso propiciado pela semiologia, entendo que a
teoria barthesiana do poder embutido na língua, aqui, de forma clara, mostrou-se útil para
a compreensão do recorte dialético histórico estrutural. Através do estudo desse anúncio
considerado rito de passagem, no meu modo de ver agora não só da propaganda como de
um dado corpus filosófico, político, textual, posso compreender melhor não a língua _
missão impossível, segundo Barthes (1987), pois não se pode sair dela para dela falar _
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mas a vida brasileira, em um determinado momento histórico e em uma dada estrutura,
principalmente na comprovação de que na ditadura militar, apesar dos convites da
propaganda oficial, o brasileiro foi instado a participar da vida política apenas e tão
somente por uma via: a do consumo, discurso, aliás, assumido com generosidade pela
propaganda, aqui representada pelos Os subversivos. <>
Referências:BARTHES, Roland - Aula. São Paulo: Cultrix, 1987.
- O prazer do texto. São Paulo:Perspectiva, 1999
- A câmara clara. Lisboa:Edições 70, 1989
- Elementos da semiologia. São Paulo:Cultrix, 1999
CRAIDY, Maria da Graça - Do porão ao poder. A ascensão dos criadores publicitários
brasileiros ( 1970-1990) Dissertação de Mestrado.
PPGCOM/PUCRS, 2007.
DEMO, Pedro - Dialética e qualidade política, in HAGUETE, Andre e outros, Dialética
hoje, Petrópolis: Vozes, 1990.
FERREIRA, Neil - Depoimento por email à autora. São Paulo: 2006 e 2007.
FICO, Carlos - Reiventando o otimismo. Ditadura, propaganda e imaginário social no
Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997
GANDRA, José Ruy - História da propaganda criativa no Brasil. São Paulo: CCSP,
1995. <>
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