Gramsci e o Sul do mundo: entre Oriente e Ocidente · PDF fileGramsci e o Sul do mundo: entre Oriente e Ocidente* CARLOS NELSON COUTINHO 1 Gramsci não dedicou muito espaço em sua

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  • Gramsci e o Sul do mundo: entre Oriente e Ocidente*

    CARLOS NELSON COUTINHO

    1Gramsci no dedicou muito espao em sua obra relao entre o

    Norte e o Sul do mundo no sentido em que hoje a entendemos, ou seja, como polaridade entre pases desenvolvidos e subdesenvolvi-dos (ou atrasados, ou, segundo o novo modismo, emergentes). O prprio problema do imperialismo, isto , da explorao do Sul pelo Norte, aparece apenas de passagem, tanto em seus escritos juvenis como nos Cadernos do crcere.

    Decerto j no Caderno 1, escrito entre 1929 e 1930, pode-se ler uma breve nota dedicada explicitamente a esse tema, intitulada pre-cisamente Norte e Sul, na qual Gramsci afi rma:

    A hegemonia do Norte teria sido normal e historicamente benfi ca se o industrialismo tivesse tido a capacidade de ampliar seus quadros com certo ritmo, para incorporar cada vez mais novas zonas econmicas assi miladas. Essa hegemonia seria, ento, a expresso de uma luta entre o velho e o novo, entre o progresso e o atraso, entre o mais produtivo e o menos produtivo [...]. Todas as foras econmicas seriam estimuladas e diviso se seguiria uma unidade superior. No entanto, no foi assim. A hegemo-nia se apresentou como permanente; a diviso se apresentou como uma

    * Comunicao apresentada no seminrio Immaginare lEuropa nel mondo post-coloniale. Gramsci e i Sud del pianeta, patrocinado pela Universit di Napoli lOrientale, Npoles, 8-10 de maio de 2003.

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    condio histrica necessria por um tempo indeterminado e, portanto, aparentemente perptua para a existncia de uma indstria setentrional.1

    A avaliao negativa expressa nas frases fi nais no oculta as iluses presentes no incio da nota. Com efeito, Gramsci parece supor, por um lado assim como faziam os tericos da II Internacional e talvez o prprio Marx em seu clebre texto sobre o colonialismo ingls na ndia2 , que o colonialismo, a hegemonia do Norte sobre o Sul (e hegemonia ainda utilizada aqui num sentido que lembra mais dominao do que direo), pudesse levar a uma homogeneidade entre as duas zonas, ou seja, nas prprias palavras de Gramsci, a uma unidade superior. Ao contrrio, hoje tornou-se ainda mais evidente que enquanto predominarem as leis da acumulao capitalista a relao NorteSul no poder deixar de ser estruturalmente assimtrica. E, por outro lado, Gramsci parece crer que essa unidade superior no foi alcanada somente porque o Norte foi incapaz de fazer que o Sul se industrializasse. Ora, vastas zonas do Sul do mundo penso sobretudo em muitos pases da Amrica Latina e, em particular, no Brasil se industrializaram j h muitas dcadas, sem que isso tivesse levado a uma unidade superior com o Norte. Ao contrrio, essa industrializao tardia produziu novas formas de explorao e de dependncia.

    J que a nota citada um texto B, ou seja, jamais retomado e/ou reescrito nos CC 3, poder-se-ia supor que Gramsci a abandonou pre-cisamente por ter compreendido que no devia opinar sobre temas com os quais no estava devidamente familiarizado. Infelizmente, os CC no confi rmam essa suposio. Com efeito, num texto C mais tar-dio, escrito provavelmente em 1932, pode-se constatar que Gramsci continuava prisioneiro de uma viso pouco diferenciada do Sul do mundo. Ele acreditava que, na medida em que o Sul permanecia como uma zona globalmente atrasada, ainda seria vlida para todo ele a estratgia fundada na guerra de movimento. Em outras pala-vras, todo o Sul do mundo seria para retomar conceitos do prprio

    1 Antonio Gramsci, Cadernos do crcere, 6 v. (Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1999-2002), v. 5, p. 153. Essa obra ser citada, a seguir, no corpo do texto como CC, seguida, respectivamente, pelo nmero do volume e da(s) pgina(s). 2 Karl Marx, O domnio britnico na ndia, em Karl Marx e Friedrich Engels, Obras escolhidas (Rio de Janeiro, Vitria, 1956), v. 1, p. 316-22. 3 Para a distino entre textos A, B e C, cf. Carlos Nelson Coutinho, Introduo, em CC, vol. 1, p. 12.

  • Gramsci Oriente e no Ocidente4. Assim, depois de afi rmar que nos pases desenvolvidos (que ele chama de modernos) a estrat-gia da guerra de movimento (adequada aos pases orientais) fora superada, cedendo lugar guerra de posio (prpria dos pases ocidentais), Gramsci afi rma:

    A questo se apresenta para os Estados modernos, no para os pases atrasados e as colnias, onde ainda vigoram as formas que, em outros lugares, j foram superadas e se tornaram anacrnicas5.

    Se na nota Norte e Sul, antes citada, pode-se perceber a presena de preconceitos prprios da II Internacional, aqui evidente, ao contr-rio, a recepo acrtica de formulaes adotadas pela III Internacional, a qual, como se sabe, inseria todos os pases da frica, sia e America Latina na categoria geral de pases coloniais e semicoloniais e indicava para eles uma comum estratgia revolucionria de tipo insurrecional.

    indiscutvel que Gramsci manifestou interesse por pases e culturas do Sul do mundo, sobretudo (mas no apenas) em suas notas espar-sas sobre os intelectuais. Escreveu, por exemplo, notas sobre a China e o Japo, sobre o mundo rabe e sobre a frica. Contudo, chama a ateno o fato de que, entre as regies que hoje formam o Sul do mundo, foi certamente a Amrica Latina aquela que recebeu menos ateno ao longo dos CC. Gramsci dedicou pouqussimas notas a nosso continente, embora este tenha sido sempre (e ainda perma nea) a regio do Sul mais prxima da cultura europia, a qual, de resto, Gramsci considerava a nica histrica ou concretamente universal6.

    Alm disso, mesmo nas poucas vezes em que falou da Amrica Latina, Gramsci quase sempre o fez de modo excessivamente sum-rio e pouco exato. Nas 2.500 pginas dos CC, o Brasil, por exemplo, merece de Gramsci uma nica meno, onde nosso pas aparece, sem especifi caes, ao lado do Mxico, da Argentina, do Peru, do Chile e da Bolvia7. Gramsci afi rma que, em todos esses pases, por oposio ao jesuitismo, tinham ainda [em 1930] grande infl uncia a Maonaria e o tipo de organizao cultural como a Igreja positivista8. E cr que os eventos dos ltimos tempos (novembro de 1930), ocorridos

    4 No Oriente, o Estado era tudo, a sociedade civil era primitiva e gelatinosa; no Ocidente, havia entre o Estado e a sociedade civil uma justa relao (CC, 3, 262). 5 CC, 3, 24.6 CC, 1, 263-4.7 CC, 2, 31.8 Ibidem.

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    no Brasil e nos outros pases citados que ele caracteriza como insurreies militar-populares , demonstrariam a exatido de sua observao anterior sobre a oposio entre jesuitismo e maonaria. As coisas, contudo, no ocorreram desse modo. Se nos ativermos ao caso brasileiro, certo que, em outubro de 1930, nossas classes dominantes promoveram uma revoluo passiva, pelo alto; porm, como em toda revoluo passiva, tambm nela no ocorreu nenhuma participao popular signifi cativa; alm disso, os militares desempenharam nela um papel importante, mas essencialmente secundrio. Portanto, estamos longe de uma insurreio militar-popular. Ademais, essa revoluo passiva nada teve que ver com uma suposta batalha ideolgica entre o jesuitismo e a maonaria ou a Igreja positivista.

    2Apesar de todas essas lacunas e inexatides, Gramsci tem sido um

    dos autores estrangeiros mais lidos e infl uentes no Sul do mundo, muito em particular na Amrica Latina. Nosso continente, com a natural exceo da Itlia, foi a primeira regio do mundo a entrar em contato mais estreito com a obra de Gramsci. J em 1950, ou seja, apenas trs anos depois da edio italiana, uma editora de Buenos Aires ligada aos comunistas, a Lautaro, publicou uma traduo espanhola das Cartas do crcere; entre 1959 e 1962, a mesma editora ps disposio do leitor de lngua castelhana quase todos os volumes dos CC na edio temtica de Togliatti e Felice Platone. No Brasil, a edio em portugus de quatro volumes dessa mesma edio, bem como de uma antologia da edio Caprioglio-Fubini das Cartas, teve lugar entre 1966 e 1968. Nos anos subseqentes e at nossos dias, as edies e reedies de Gramsci se multiplicaram na Amrica Latina. Temos hoje tradues tanto em portugus como em espanhol signifi cativamente publicadas no em Portugal e na Espanha, mas no Brasil e no Mxico da edio crtica da totalidade dos CC, que terminaram de vir luz, como mais uma confi rmao da permanncia entre ns do interesse por Gramsci, j neste incio do sculo XXI. E o que talvez seja ainda mais impor-tante: a presena de Gramsci se faz sentir em muitas das mais lcidas anlises de nosso continente feitas pelos prprios pensadores latino--americanos. Gramsci hoje, sem dvida, um dos autores estrangeiros mais lidos e infl uentes em nuestra Amrica. De resto, foi o marxista que melhor resistiu atual onda do neoliberalismo conservador e chamada crise do socialismo.

  • Diante desse aparente paradoxo, podemos indagar: por que Gramsci conquistou precisamente na Amrica Latina, cujas experincias no parecem t-lo interessado muito, uma infl uncia que (se excluirmos a Itlia) ele talvez no tenha desfrutado em nenhum pas ou regio do Norte do mundo? Devemos, antes de mais nada, recusar uma resposta to bvia quanto equivocada: seria certamente um exagero explicar essa infl uncia latino-americana de Gramsci acreditando poss-vel propor uma transposio mecnica de suas agudas observaes sobre a questo meridional italiana para o problema global das rela-es entre o Norte e o Sul do mundo. Talvez se possam estabelecer entre as duas questes algumas interessantes analogias, mas que no passam precisamente disso: analogias.

    Creio, ao contrrio, que se quisermos identifi car as razes dessa forte presena de Gramsci em nossa cultura, que resulta da sua capa-cidade de nos ajudar a compreender nossos problemas de ontem e de hoje ser certamente mais adequado recorrer a dois complexos problemticos centrais em sua obra, ou seja, o par categorial Ociden