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VIII Seminário Nacional Sociologia & Política Maio, 2017, Curitiba Grupo de Trabalho 8 Pensamento Social Pelas margens, uma crítica: Beatriz Sarlo

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VIII Seminário Nacional Sociologia & Política

Maio, 2017, Curitiba

Grupo de Trabalho 8 – Pensamento Social

Pelas margens, uma crítica: Beatriz Sarlo

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Pelas margens, uma crítica: Beatriz Sarlo

Maria Caroline Marmerolli Tresoldi1

Resumo: Conjugando literatura e sociedade, estética e política, Beatriz Sarlo desempenhou, nas últimas décadas,

o papel de intelectual crítica no espaço público, construindo modos de sentir, pensar e atuar na Argentina.

Participando de redes intelectuais alternativas e inspirando-se em leituras que fazem da cultura um móvel de

compreensão da realidade social (como Walter Benjamin, Raymond Willians, Antonio Candido, Roland Barthes,

Pierre Bourdieu, entre outros), Sarlo refletiu, principalmente a partir de pistas deixadas pela obra de um dos mais

expressivos escritores argentinos, sobre a “cultura de mesclas” que caracteriza a sociabilidade periférica de seu

país no século XX. Com Jorge Luis Borges, “um marginal no centro e um cosmopolita nas margens”, a crítica

pensa o modo como as formas europeias se combinaram às matérias locais, e tenciona as relações entre o

universal e o local, cujos impasses e ambivalências marcam a vida social e intelectual argentina. Com a

finalidade de compreender algumas linhas-de-força que constituem a interpretação social tecida por Beatriz

Sarlo, e refletir sobre uma possível atualidade de seus escritos, essa comunicação se divide em dois momentos

analíticos. Em primeiro lugar, acompanha-se a formação de Sarlo a partir dos circuitos e dos debates intelectuais

dos quais fez parte. Em um segundo momento, após sugerir que Sarlo cria um “espaço novo” para a crítica

literária e cultural em seu país, são recuperados algumas de suas notas sobre Borges, com vistas a pensar os

desafios e dilemas criados em uma das margens da experiência moderna.

Palavras-chave: Beatriz Sarlo, Jorge Luis Borges, Vida Intelectual Argentina, Modernidade Periférica.

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas, com o

projeto “Olhares periféricos: crítica e sociologia no ensaísmo do Roberto Schwarz e de Beatriz Sarlo”. A

pesquisa é apresentada nessa comunicação de modo parcial. Tal pesquisa é orientada pela Profa. Dra. Mariana

Miggiolaro Chaguri e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-

mail: [email protected]

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Introdução

“O crítico precisa ter a atualidade bem agarrada pelos chifres”.

Walter Benjamin

As artes, a literatura, a arquitetura, a música, o teatro, o cinema, dentre outros

objetivos de cultura, para uma certa tradição da crítica cultural, são fontes de investigação e

de compreensão das tensões e das ambivalências que marcam os processos sociais. Não por

acaso, ao estudar os românticos alemães, Walter Benjamin (1999) observa que mais do que

interpretação, a crítica “reconstrói” e, se necessário, “complementa” as obras de arte

analisadas. Dentre os objetos de cultura, a literatura é um dos materiais privilegiados para se

compreender as dinâmicas da modernidade e do capitalismo, já que ela formaliza

esteticamente momentos decisivos do processo de racionalização da vida moderna, de “um

mundo sem deus”, para falar como Georg Lukács (2003), que perdeu suas mediações (como a

magia, a moral, a religião etc.), mas que, ao dar forma as experiências, abre a possibilidade de

pensar a existência da dissonância, e pode, como lembra Roberto Schwarz (2012a), tornar-se

um acontecimento para a teoria.

Ainda que a literatura em regiões periféricas à experiência europeia, como adverte

Antonio Candido (2007), possa ser marcado pelo “desinteresse e até menoscabo”, uma vez

que estaríamos “fadados” a depender da experiência de outras letras e de outras culturas,

pensar e produzir literatura em uma nação “culturalmente periférica” é um dos desafios

perseguidos por grandes escritores, como, por exemplo, pelo argentino Jorge Luis Borges (cf.

Sarlo, 2008). Problematizar a formação da intelectualidade em nas margens da cultura

ocidental, e os sentidos possíveis que a literatura assume em variados contextos, por sua vez,

foi uma das tarefas mais presentes nas gerações de críticos argentinos do século XX,

expressas nas páginas das revistas de Sur, Contorno, Passado y Presente, Punto de Vista etc; e

é um dos fios da meada sob os quais se constrói os ensaios da crítica literária e cultural

Beatriz Sarlo.

Com um itinerário intelectual que ela qualifica como “irregular”, com um currículo

acadêmico “particular”, e dialogando com tradições intelectuais argentinas, latino-americanas

e europeias, Sarlo hoje é reconhecida como uma das maiores críticas de seu tempo. Para

compreender algumas linhas-de-força que constituem seus trabalhos e explorar uma possível

atualidade teórica que eles oferecem para a teoria social contemporânea, essa comunicação

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apresenta, em um primeiro momento, sua formação a partir dos circuitos intelectuais e dos

contextos sociais mais amplos dos quais fez parte ao longo de sua trajetória.

Ao acompanhar essa trajetória, é possível notar algumas influências teóricas que vão

sendo decisivas em suas notas, que assumem a crítica e a sociologia como pontos de vista

incontornáveis e indissociáveis da tarefa de problematizar as mediações entre literatura e

sociedade, estética e política. Em seguida, circunscrevendo a hipótese de que Sarlo cria um

espaço novo para a crítica, no qual se constrói a figura da intelectual crítica e pública,

apresenta-se algumas linhas gerais de seus trabalhos sobre Jorge Luis Borges, em que são

problematizados os desafios teóricos e os dilemas empíricos criados no contexto de uma

modernidade qualificada como “periférica”. 2

Itinerário intelectual: uma trajetória “irregular”?

Olhar para a formação intelectual de Beatriz Sarlo nos oferece pistas e indícios para

compreender como sua interpretação crítica da sociedade argentina foi sendo desenhada: às

margens das especialidades acadêmicas, e não se furtando em dialogar com temas e

problemas de sua época. Nascida em 1942 na Argentina, Sarlo é descendente de famílias de

imigrantes de diferentes origens. Do lado materno, descende de italianos e espanhóis, que

tiveram alguma ascensão social, principalmente por meio da educação, e do lado paterno

descende de “criollos antigos” que não recordavam sua ascendência.

Na infância e na adolescência aprendeu francês, frequentou mensalmente museus e era

instigada a ler literatura pelos pais e por suas tias professoras. Durante o ensino primário e

secundário estudou em um colégio inglês de excelência, marcado por padrões pedagógicos

que não eram comuns na Argentina, sustentados pela disciplina da “autorresponsabilidade”.

Com um ensino exigente no colégio, que seria importante para sua formação intelectual

posterior, teve a possibilidade de estabelecer uma relação com a cultural europeia, lendo no

original uma obra de Shakespeare por ano (cf. Sarlo, 2009).

2 Recorta-se, em particular, os livros Modernidade Periférica (1988) e Jorge Luis Borges, um escritor na

periferia (1993). Sarlo escreveu mais de uma dezena de livros em que pensa a literatura e a cultura argentina (e

seus movimentos mais gerais na sociedade contemporânea), e alguns desses livros acabam perpassando o esforço

analítico aqui empreendido. Mas o recorte desses trabalhos se justifica na medida em que se tratam de momentos

decisivos da trajetória de Beatriz Sarlo, tanto porque são trabalhos que a tornaram reconhecida

internacionalmente, quanto porque elevaram a uma nova fase a recepção crítica das obras de Borges.

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Anos mais tarde, no início da década de 1960, ingressou na Faculdad de Filosofía y

Letras de la Universidad de Buenos Aires (UBA), no curso de Filosofia, mas como percebeu

que seus interesses se voltavam aos assuntos literários, abandonou a Filosofia e passou para o

curso de Letras, concluindo-o em 1966. Durante os anos na faculdade, em um momento de

grande efervescência intelectual, cultural e política na universidade e fora dela, Sarlo

frequentou um grupo de estudos com o professor de literatura inglesa Jaime Rest, adjunto de

Jorge Luis Borges, no qual eram discutidas as obras de importantes críticos culturais, como

Raymond Willians e Richard Hoggart. Mas foi nos entornos da faculdade que, segundo a

crítica, ela se formou: com os livreiros franceses; com a convivência em museus e em

institutos de teatro e de artes; com os grupos de estudos de estruturalismo e da obra de Roland

Barthes; e com os colegas que tinham alguma militância política no peronismo de esquerda

(cf. Sarlo, 2009).

No último ano de graduação e com as dificuldades de se inserir profissionalmente,

Sarlo desenvolveu atividades junto ao grupo Editorial Universitario de Buenos Aires

(Eudeba), e quando a editora sofreu intervenção do Golpe de Estado que levou ao poder o

general Juan Carlos Onganía em 1966, migrou para o Centro Editor da América Latina

(CEAL), fundado por Boris Spivacow, antigo diretor da Eudeba. O CEAL apareceu poucos

meses depois que o governo militar interviu na universidade, com o objetivo de organizar

coleções de livros (de artes, de literatura e teatro, de história, de política, de ciências sociais

etc.) com um preço acessível para as camadas populares.

As etapas seguintes de sua vida foram marcadas pelo intenso debate cultural e político

argentino, mas às margens da universidade, que sofria com a censura da ditadura militar.

Segundo Sarlo (2009), paradoxalmente, a ditadura proporcionou tempo para estudar

seriamente. Isso porque, durante a década 1970, além de seu trabalho na preparação de

coleções de literatura para o CEAL,3 Sarlo atuou em revistas literárias e culturais argentinas,

que construíam espaços de notável fermentação intelectual.

No período de 1972 a 1976, Sarlo fez parte da revista Los Livros, trabalhando na

preparação de resenhas de livros dedicados à crítica literária e ao pensamento social e político.

3 Apenas a título de referência, Sarlo organizou livros principalmente sobre crítica literária, poesia e literatura,

dentre outros temas que seriam influências importantes em sua trajetória: Evaristo Carriego y otros poetas

(1968), Antología de la crítica literaria del siglo XIX (1971), Ensayos Estruturalistas (1971), Ensayos políticos

(1971), Literatura y sociedad (1977), El cuento argentino contemporaneo (1979), La literatura de Mayo y otras

críticas (1979), El mundo de Roland Barthes (1981). Sobre o CEAL, conferir: Más libros para más: colecciones

del Centro Editor de América Latina (2008).

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Essa revista, que começou a ser publicada nos anos de 1969, introduziu a onda estruturalista

na Argentina e tinha como objetivo apresentar as novidades do mundo editorial, seja ele

argentino e latino-americano, seja europeu. Se a revista, em seu início, era dedicada apenas a

resenhas, com a politização da sociedade argentina no início dos anos de 1970, as páginas de

Los Livros começaram a registrar ensaios sobre os acontecimentos sociais e políticos de uma

sociedade em movimento, acentuando um vínculo entre crítica e política (e inspirada em

diversas tendências da crítica literária, não apenas o estruturalismo, mas também o new

criticism, a semiologia, o marxismo, a psicanálise etc.).4

A experiência adquirida no comitê editorial dessa revista é crucial para o projeto

coletivo que se inicia em 1978 em torno da revista Punto de Vista. Com o encerramento de

Los Livros em 1976, Beatriz Sarlo, Carlos Altamirano, Ricardo Piglia e outros intelectuais de

esquerda formaram um grupo de estudos em torno da literatura produzida na Argentina. Eles

tinham, segundo Altamirano (2016), tanto um impulso militante, quanto a ideia de juntar os

colegas e retomar a atividade intelectual que estava paralisada. Após pouco mais de um ano

nesse grupo de estudos, surgiu a ideia de organizar uma revista.

Punto de Vista foi inaugurada em março de 1978, com vistas a reestabelecer vínculos

entre os intelectuais oriundos das ciências sociais e da crítica literária contrários à ditadura.

Surgiu como uma revista marginal, para divulgar questões da história literária e cultural

argentina e latino-americana, bem como os novos métodos críticos e teorias sociais que

surgiam.5 Os três primeiros números foram financiados pela organização política “Vanguardia

Comunista”, responsável também por distribuir a revista, e após o terceiro número a

publicação começou a se autofinanciar, mesmo porque todos os diretores dessa organização

desapareceram.

4 Fabio Esposito (2015) observa que Beatriz Sarlo, Ricardo Piglia e Carlos Altamirano assumem a direção da

revista em 1973, no vigésimo-nono número, e nesse momento Los Livros deixa de ser uma revista voltada

apenas à crítica de livros, para se politizar em uma linha de esquerda revolucionaria identificada com o maoísmo.

Nos últimos números, Altamirano (2016) comenta que a revista se tornou cada vez mais sectária e, por esse

motivo, ele, Piglia e Sarlo deixaram a revista. Eles saíram pouco antes do Golpe de Estado de 1976, e acabaram

se “salvando”, já que os militares entraram no escritório da revista e colocaram pressão naqueles que

permaneceram por lá. 5 Em entrevista realizado com Carlos Altamirano (2016) ele comenta sobre esse ponto: “[Punto de Vista] não foi

uma revista confidencial, mas no início foi uma revista às margens, em um circuito muito pequeno. Tínhamos a

comunicação com outras revistas, contudo, também tínhamos atenção, pois não sabíamos onde os agentes do

Estado circulavam. Na sequência, com a democracia, aos poucos a revista se estabelece como elemento cultural

importante na vida intelectual argentina.”

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Como em seus primeiros números a sociedade argentina ainda era controlada pelo

Estado autoritário, que impunha inúmeras restrições aos intelectuais de esquerda, as primeiras

publicações da revista muitas vezes não apresentam os autores, ou são assinados por

pseudônimos. Apenas no décimo-segundo número, em 1981, sai o primeiro editorial no qual

o grupo de intelectuais que dirigia a revista é apresentado, dentre os quais Maria Teresa

Gramuglio, Carlos Altamirano, Hugo Vezzetti, Ricardo Piglia e Beatriz Sarlo – diretora desde

o início até seu encerramento em 2008.6

O editorial defendia a liberdade do pensamento crítico e a ampla circulação de ideias

na Argentina, elementos que caracterizaram os primeiros números da revista. Esses primeiros

números colocaram em circulação diversos materiais, como, por exemplo, análises de autores

chaves para a literatura e o pensamento argentino; resenhas de obras literárias que estavam

sendo lançadas (ou traduzidas); observações sobre teorias sociais contemporâneas;

comentários sobre filmes (nacionais ou estrangeiros); entrevistas com importantes intelectuais

latino-americanos (como Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar) ou ingleses

(como Raymond Willians e Richard Hoggart); textos que debatiam o vínculo entre prática

intelectual e política; reflexões acerca da cultura popular e da cultura de esquerda (e suas

relações com as variações do peronismo) etc. Ao trazer novidades para a cena intelectual

argentina, a revista foi firmando como um novo (e decisivo) “campo intelectual”.7

Além de formar um novo campo intelectual, as experiências adquiridas nos grupos

editoriais e nas revistas, em particular em Punto de Vista, serviram para Sarlo (2009) e para

seus colegas, como uma forma de pós-graduação, devido a um projeto de estudo sistemático e

coletivo acerca dos modos de se falar sobre literatura e sociedade / cultura e política e, mais

especificamente, sobre os desafios de pensar a formação da literatura argentina. Foi durante

esse período que revisaram leituras em torno da crítica literária e cultural de inspiração

6 A revista foi publicada por 30 anos, em noventa números. No último número Beatriz Sarlo (2008, p.3) comenta

sobre o fim da revista: “durante treinta años, Punto de Vista fue la mayor y más constante influencia sobre mi

vida. Otros podrán discutir si ha sido una revista influyente; sobre mí, no tengo dudas.” Quando estive no

escritório da crítica em março de 2017, perguntei se por ali ocorriam as reuniões de Punto de Vista. Ela

mencionou que sim, e observou que a revista esteve com ela não apenas ali, mas por todos os caminhos pelos

quais percorreu durante os trinta anos em que foi editora da revista. 7Sarlo (2016) argumenta que no ano de 1983 o suplemento “Cultura y Nación”, do jornal Clarín, utilizou a ideia

de novo “campo intelectual” argentino para se referir à revista. A expressão, cuja referência se encontra na obra

de Pierre Bourdieu, foi considerada uma vitória entre os integrantes de Punto de Vista, uma vez que eles foram

responsáveis por colocar em circulação traduções da obra do sociólogo francês. Os integrantes da revista se

orgulhavam porque acreditavam dar um passo adiante em relação a geração anterior, composta pelos críticos

David Vinãs e Adolfo Prieto, que faziam parte da revista literária Contorno, e era considerada a maior referência

entre eles para pensar a cultura política da Argentina.

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marxista (como Jean Paul Sartre, Antonio Gramsci, Georg Lúkacs, Theodor Adorno,

Raymond Willians), e conheceram nomes como Pierre Bourdieu. 8

Esse programa de estudos aparece em alguns livros compilados e escritos por Beatriz

Sarlo e Carlos Altamirano entre 1977 e 1983. No CEAL, por exemplo, eles organizaram o

livro Literatura y Sociedade (1977) e redigiram o livro Conceptos de Sociologia Literaria

(1980). Enquanto o primeiro livro é precedido de uma introdução pelos autores, que explicam

o que seriam trabalhos produzidos em torno de uma sociologia da literatura, e são

selecionados textos de Georg Lukács, Lucien Goldman, Robert Scarpit, Arnold Hauser, Harry

Levin, David Dalches e Pierre Bourdieu como exemplares na tarefa de problematizar as

relações entre literatura e sociedade; o segundo livro é um apanhado dos léxicos importantes

para o estudo nesse campo de trabalho, e são sistematizados conceitos e problemas teórico-

metodológicos para perquirir o “caráter social do texto literário”.

Mas é notadamente ao redor de Punto de Vista que Sarlo e Altamirano começam a

desenvolver projetos originais, autônomos e de longa investigação, algo que não havia sido

feito até então, reunidos mais tarde em livros como Literatura / Sociedade (1983) e Ensayos

argentinos: de Sarmiento a la vanguardia (1983)9. Esse livros, embora diferentes entre si, se

fiam na tarefa comum de pensar “o caráter cultural-simbólico do social por meio da literatura”

(Sarlo, 2009).

O primeiro livro já em seu título expressa a dívida intelectual com Antonio Candido,

de que o tecido das perspectivas sociais é indissociável do ato de elaboração da crítica. 10 No

apêndice do livro é incluído um texto do crítico brasileiro como um exemplo de “leituras

8 Em entrevista realizada com Altamirano em outubro de 2016, ele observou que ao se graduar em Letras em

1967 terminou os únicos estudos acadêmicos regulares que fez em sua vida. E foi assim com parte da geração

que se formou na época, uma vez que a universidade estava fechada para intelectuais progressistas. Nos anos

subsequentes, segundo Altamirano, esses intelectuais tiveram uma formação “mais livre”, autodidata e também

mais improvisada, sem a caracterização de um padrão universitário. Não por acaso Sarlo menciona, em

entrevista concedida à pesquisadora, sua trajetória como “irregular”. 9 Vale notar que a primeira edição de Ensayos argentinos foi publicada pelo Centro Editor da América Latina,

onde Sarlo e Altamirano colaboravam. O livro é, inclusive, dedicado à Boris Spivavow “nuestro editor, por el

espacio que abrió y supo mantener, el los peores momentos, dentro de la cultura argentina”. Literatura /

Sociedad, por sua vez, é dedicado aos companheiros de Punto de Vista, indicando que as discussões ali presentes

se deviam muito ao ambiente intelectual formado em torno da revista. 10 Em conversa com Beatriz Sarlo em março de 2017, ela comentou que conheceu pessoalmente Antonio

Candido em 1980, quando visitou o Brasil para preparar uma edição especial de Punto de Vista sobre a literatura

e crítica latino-americanas (ver o oitavo número de Punto de Vista). Na ocasião, participou das “Jornadas de

Literatura Latino-Americana”, no Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas,

onde também conheceu Antonio Cornejo Polar e Ángel Rama, além de outros críticos mais jovens, como Davi

Arriguci e Roberto Schwarz. Sarlo comentou que a visita ao Brasil foi um divisor de águas quando voltou a

Argentina, já que os brasileiros, mesmo no contexto da ditadura militar, estavam produzindo crítica da mais alta

qualidade: “era preciso movimentar a atividade intelectual como os brasileiros”.

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sociológicas” que Sarlo e Altamirano procuram levar a sério em seus trabalhos de crítica

literária (além de outros textos, como do uruguaio Ángel Rama). E o segundo livro, por sua

vez, é composto por um conjunto de ensaios que pensam o processo literário argentino, e as

questões da cultura letrada e da formação da identidade nacional como tema e como problema

no decorrer do século XX.

É precisamente nesses ensaios que Sarlo e Altamirano, inseridos nos debates em torno

da sociologia da literatura, começam a construir um espaço novo para a crítica literária e

cultural. Em meio a diferentes inspirações teóricas e dívidas intelectuais, sejam elas

argentinas (Adolfo Prieto, David Viñas, Tulio Halperin Donghi), latino-americanas (Ángel

Rama e Antonio Candido), sejam europeias (notadamente Raymond Willians e Pierre

Bourdieu) eles criam um espaço novo para a crítica, no qual pensam as relações entre a

literatura argentina em diferentes contextos, e suas mesclas com outras culturas e suas formas

de assimilação.11 No caso de Beatriz Sarlo, cujas afinidades eletivas incluem também os

escritos de Roland Barthes e Walter Benjamin,12 esse espaço novo criado é o chão teórico e

metodológico a partir do qual Sarlo estudará e escreverá sobre a literatura argentina nos anos

posteriores, agora ligada, em alguma medida, às práticas acadêmicas.

Com a redemocratização da sociedade argentina, e concomitantemente a atuação em

Punto de Vista e no CEAL, Sarlo começou a dar aulas na cadeira de Literatura Argentina, na

Faculdad de Filosofia y Letras da UBA.13 Quando ingressou na universidade em 1983, com o

final da ditadura militar, Sarlo (2017) comenta que seu currículo era “particular” em termos

acadêmicos, uma vez que saiu da universidade em 1966 e realizou uma trajetória em circuitos

intelectuais alternativos, que não eram caracterizados pelas especialidades acadêmicas. Na

11 Toma-se de empréstimo a ideia de Edward Said (2004) sobre afiliações teóricas. Segundo o autor, uma geração

de escritores, críticos, artísticas, pensadores etc., sempre relê as gerações anteriores, e na sistematização das

ideias, acaba criando um sistema novo, que ressoa de alguma maneira o sistema estabelecido. Do mesmo modo,

Silviano Santiago (2000) observa que o escritor latino-americano está sempre pensando “a partir de uma

meditação silenciosa e traiçoeira” das formalizações textuais e da experiência europeia, aderindo-as, recusando-

as ou combinando-as, de modo a criar algo “novo”. 12 No prefácio de Modernidade Periférica Sarlo comenta que os ensaios de Roland Barthes, Raymond Willians e

Walter Benjamin têm importância fundamental na construção de suas notas sobre literatura, cultura e política.

Para saber mais sobre as influências da crítica argentina, recomenda-se o livro Plan de operacionais (2013). Nele

são reunidos ensaios recentes publicados em jornais e revistas de Buenos Aires, em que Sarlo aponta alguns dos

pensadores e algumas ideias e conceitos que foram centrais para sua trajetória intelectual, dentre os quais,

Ronald Barthes, Jorge Luis Borges, Susan Sontag, Walter Benjamin e outros autores da órbita da Teoria Crítica. 13 Sarlo foi se firmando como importante intelectual Argentina no contexto da redemocratização da sociedade, e

ao longo dos anos recebeu bolsas de estudos de universidades estrangeiras e diversos prêmios. Foi professora

convidada da Universidade de Cambridge (na Inglaterra), das universidades da Califórnia, Columbia, Maryland

e Chicago (nos Estados Unidos), e permaneceu como professora da UBA até 2003.

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universidade Sarlo ensinou literatura argentina, inspirando-se em leituras que fazem da

cultura um móvel de compreensão da realidade social, como Walter Benjamin, Raymond

Willians, Pierre Bourdieu, Antonio Candido, Ronald Barthes etc.14 Os autores argentinos

estudados vão de Domingo Faustino Sarmiento aos clássicos do século XX (como Ezequiel

Martinez Estrada, Victoria Ocampo, Jorge Luis Borges, Roberto Artl, Julio Cortázar, Juan

José Saer etc.).

A despeito das marcantes diferenças entre si,15 sugere-se que o conjunto dos autores

que servem de inspiração para a crítica argentina, propõem uma discussão refinada sobre a

substância social das formas estéticas e culturais, fornecendo importantes ferramentas para o

exame das obras. Nesse sentido, avessa às fórmulas prontas, as trocas intelectuais com esses

autores desenham um projeto de análise literária e cultural em íntima relação com a reflexão

e crítica social. Desdobrando essa chave de leitura, a crítica e a sociologia aparecem

amalgamadas no ato de elaboração dos ensaios de Beatriz Sarlo, e é possível falar na

formação de uma ensaísta independente: com imaginação crítica, e vinculada a importantes

linhagens intelectuais de seu país (e para além dele), não pode ser classificada nos rótulos das

carreiras acadêmicas.16

Em outros termos, acompanhado a trajetória de Beatriz Sarlo aqui narrada, percebe-se

que a crítica teve uma formação importante na infância e na adolescência, que possibilitou

que ela pensasse o país com um duplo olhar: de quem pensa a partir e por meio da

experiência argentina, mas que olha também para fora, para as tradições intelectuais e

culturais europeias e, mediante elas, procura entender o movimento mais geral da sociedade

contemporânea. Esse duplo olhar – no qual a crítica e a sociologia aparecem como pontos de

14 Assim, as leituras realizadas por Sarlo em “circuitos alternativos” deixavam de ser “leituras clandestinas” e

ganhavam um “canal institucional” (cf. Sarlo, 2016). 15 Sobre esse aspecto, Altamirano (2016) comenta: “Pierre Bourdieu e Raymond Willians não tinham razão para

andarem juntos. Bourdieu, no caso de Beatriz, que era muito barthesiana, parecia um contrassenso. Bourdieu e

Barthes estavam mais para divórcio do que para casamento! Nesse sentido, se era uma formação mais livre, era

também mais improvisada.” 16 O livro Sociologia no Espelho, escrito por Alejandro Blanco e Luiz Carlos Jackson (2014), acompanha o

processo de institucionalização da sociologia e da crítica literária na Argentina e no Brasil. No âmbito da crítica

literária, demonstra como as figuras de Adolfo Pietro e de Antonio Candido foram responsáveis pelos processos

de renovação da crítica literária nestes países, a partir de meados do século XX, processos que ocorreram por

meio de uma relação profunda com a sociologia. Mesmo porque, nesse período, ambas as disciplinas

enfrentavam problemáticas semelhantes, em que se pese os problemas de formação cultural e da modernização

da sociedade nos dois países. Os trabalhos de Pietro e de Candido tiveram continuidade por meio do ensaísmo de

Beatriz Sarlo e de Roberto Schwarz, mas avançaram em linhas originais, principalmente ao pensarem os desafios

teóricos e dilemas empíricos criados pela modernidade e pelo capitalismo periféricos (cf. Tresoldi, 2016).

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vista combinados17 – se aprofundou em circuitos intelectuais alternativos dos quais Sarlo fez

parte, notadamente em torno do CEAL e das revistas Los Livros e Punto de Vista, formando

uma intelectual pública, cuja originalidade e espírito “crítico” é pensar os desafios teóricos e

empíricos criados pela experiência social e literária nas margens da experiência europeia. Tal

originalidade aparece quando a crítica se dedica ao estudo de um dos escritores centrais da

literatura Argentina: Jorge Luis Borges.

Um lugar para Borges? Um lugar para a crítica?

Ao decidir se dedicar ao estudo de Machado de Assis, Roberto Schwarz (2008)

comenta que uma frase de Jean Paul Sartre lhe impressionou muito. Essa frase dizia que no

andamento do estilo e da forma de um bom autor, de algum modo, estaria presente a história

mundial. Os caminhos que levaram Beatriz Sarlo a estudar Borges em certa medida se

aproximam da ideia de Sartre que Schwarz tomou de empréstimo.18

Borges é um dos maiores escritores argentinos, e seria impossível analisar o processo

de formação da literatura argentina sem Borges (cf. Sarlo, 2009). Além disso, seguindo a

trilha da argumentação de Sarlo, é possível pensar que em Borges entrevemos o destino da

história universal, uma vez que em seus escritos se faz presente o conflituoso processo de

olhar para a tradição literária argentina, ao mesmo tempo em que se lê a tradição ocidental (e

as versões que o Ocidente produz do Oriente), o que o possibilita, no argumento da crítica,

17 Pensar temas, questões e problemas de seu contexto, ou em outros termos pensar o “presente histórico”, é uma

marca dos trabalhos de Beatriz Sarlo, e igualmente, um ponto de vista crítico e sociológico também o são, afinal,

formada em Letras, Sarlo foi se aproximando da sociologia como curiosa e autodidata. Vale notar um dado de

pesquisa curioso: em grande livrarias argentinas, quando há seções dedicadas à crítica literária, aos ensaios

argentinos etc., os livros de Sarlo compõe as prateleiras da sociologia. 18 Note-se, como já mencionado, que Sarlo conheceu pessoalmente Schwarz em visita ao Brasil em 1980. Na

ocasião, a crítica argentina tomou contato com o primeiro trabalho de Schwarz sobre Machado de Assis: Ao

vencedor as batatas (1977), e ele a inspirou como estudar um grande escritor elevado a condição de cânon. A

ideia de “periferia” ou “margens”, por exemplo, aparece tanto no trabalho do crítico brasileiro quanto da crítica

argentina: o segundo livro de Schwarz sobre Machado de Assis, Um mestre na periferia do capitalismo, é de

1990, e o livro de Sarlo sobre Borges foi publicado primeiramente em inglês, em 1993, com o título Jorge Luis

Borges: a writer on the edge e no mesmo ano foi vertido e revisto pela autora para a edição argentina, sob o

título de Jorge Luis Borges: un escritor en las orillas (sublinhados meus). Os trabalhos de Sarlo, do mesmo

modo, são inspirações para crítico brasileiro pensar a recepção contemporânea, nacional e estrangeira, da obra de

Machado de Assis (ver, nesse sentido, “Leituras em Competição”, reunido no livro Martinha versus Lucrécia

(2012). Sugere-se, portanto, que os críticos, cada qual ao seu modo e apoiados em importantes escritores do

Brasil e da Argentina, vão construindo leituras paralelas para pensar as dinâmicas mais gerais da modernidade e

o capitalismo visto desde sua periferia.

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tencionar as relações entre campo e cidade, arcaico e moderno, nacional e estrangeiro e, a

partir disso, compreender de modo mais complexo as múltiplas experiências modernas

vividas pela sociedade argentina no início do século XX.

As interpretações críticas da obra de Borges e, a partir e por meio delas, da literatura e

sociedade argentina, começaram a ser desenhadas por Sarlo no livro Modernidade Periférica.

Partindo de uma visão corrente de que Borges pouco (ou nada) teria a ver com a história

nacional, a crítica buscará desconstruí-la em Jorge Luis Borges, um escritor na periferia,

demostrando como esse escritor se ocupou dos temas nacionais desde a juventude. Ao se

intrigar com o progresso vertiginoso e com a decadência de bairros tradicionais de Buenos

Aireis, Borges formalizou aquela experiência em seus contos, articulando tais experiências às

formas mais consagradas da literatura ocidental. Mas a hipótese que norteia a leitura de Sarlo

sobre Borges já está lançada em Modernidade Periférica.

Esse livro acompanha – analisando um intenso material empírico composto

principalmente por revistas e obras literárias – a modernização acentuada de uma grande

capital da periferia entre os anos de 1920 e 1930. Observando aspectos artísticos e

intelectuais, Sarlo (2010) indica que a modernidade que toma forma em Buenos Aires está

livre dos “constrangimentos nacionais” o que, em alguma medida, guarda um aspecto

positivo. Ocorre, no entanto, que essa modernidade é marcada por uma insensibilidade com a

problemática local, funcionando como um “universalismo vazio”. Nessa linha, a crítica sugere

que se trata de uma modernidade às margens da experiência moderna europeia, e olhar para as

matérias locais experimentadas pela modernização da cidade, é tarefa das mais importantes

para se compreender a formação de algo novo: a “cultura de mesclas”.

A ideia de “modernidade periférica” arma, assim, o problema teórico e metodológico

de compreender o modo como local e universal, arcaico e moderno, imbricam-se nos

processos de modernização pelos quais a Argentina passou no século XX – que combinavam

intensa urbanização, alfabetização, crescimento da mídia etc., com contradições de fundo,

indicando a “inadequação” das ideias importadas (Sarlo, 2010).19 Dito de outra maneira, a

suposta “inadequação” cria uma cultura de mesclas: uma mistura, uma bricolagem, uma

19 O título do livro surgiu, segundo Sarlo (2009), em conversas com Carlos Altamirano. A ideia de uma

“modernidade periférica” já estava desenvolvida, de acordo com a crítica, nos trabalhos de Schwarz, em

particular no ensaio “As ideias fora do lugar”, que abre o livro Ao vencedor as batatas, e tem o objetivo de

assinar o modo com as ideias, as formas e os ornamentos europeus vão sendo aclimatados em outras

circunstâncias históricas, sem que com isso deixem de produzir soluções culturais originais.

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aclimatação de marcos culturais locais com as formas e ideias europeias. E tal cultura de

mescla é, segundo a crítica, amplamente formalizada nos escritos de Borges, cuja

característica principal é apresentar resoluções formais – estéticas e políticas – para os

dilemas em torno do local e do universal. Esse é o objeto de estudo da crítica em Jorge Luis

Borges, um escritor na periferia. 20

Nascido em 1899 em Buenos Aires, a biografia de Borges, como narra Sarlo (2008), é

plasmada pela pergunta “o que fazer com o fato de ser argentino?”, “como é possível escrever

literatura na Argentina?”. Seguindo a leitura da crítica, essas questões, que alimentam os

primeiros escritos e contos do autor entre os anos de 1920 e 1930, se fazem sentir na ficção de

Borges até seus últimos livros e dão o “tom nacional” de sua literatura. Na infância e

adolescência, durante a Primeira Guerra Mundial, Borges é educado na Suíça e é formado

pelos livros ingleses da biblioteca familiar. Olhando para um passado criollo, Sarlo lembra

que Borges quer evitar as armadilhas da literatura local, da “cor local”, que só produziam uma

literatura regionalista e particularista, mas, ao mesmo tempo, não renuncia completamente a

densidade cultural de sua nação periférica: formada nas sagas familiares, nas guerras civis,

nas lutas entre índios e brancos.

As marcas do passado argentino, de acordo com a crítica, não desaparecem jamais da

obra de Borges. Pelo contrário, sua literatura articula fragmentos dispersos de uma incipiente

tradição literária de seu país e os reelabora com as leituras estrangeiras. É justamente essa a

originalidade – estética e ideológica – operada por Borges: armar uma problemática cultural

para esse “lugar excêntrico” que é seu país (Sarlo, 2008). Em outros termos, ao ler a literatura

estrangeira à contrapelo da literatura rio-platense, Borges discute problemas centrais da teoria

literária contemporânea (e igualmente problemas estéticos e sociais caros as culturas

periféricas, que são mobilizados por Sarlo em diferentes livros, e centralmente em

Modernidade Periférica).

20 É curioso notar que o livro é resultado de conferências que Sarlo deu na Universidade de Cambridge. Nas

palavras da crítica: “ao falar precisamente ali, e em inglês, sobre Borges, tive uma sensação curiosa. No âmbito

daquela universidade inglesa, uma argentina falava de um escritor argentino que hoje todos consideram

‘universal’ (...). Longe das condições que, na Argentina, rodeiam seus textos, Borges quase perdeu sua

nacionalidade: é mais forte que a literatura argentina, e mais sugestivo que a tradição cultural a que pertence”

(Sarlo, 2008, p.13). O trecho indica que um certo distanciamento do lugar no qual os contos de Borges foram

produzidos levaram a crítica perceber a originalidade do escritor para tratar dos problemas da sociedade

argentina de meados do século XX, originalidade que se perde quando Borges é alçado a posição de um cânone

da literatura mundial, onde apenas suas soluções estéticas entram em jogo.

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Instalados nos limites, nas margens entre a cultura de uma nação periférica e a cultura

ocidental, entre diferentes gêneros literários, entre diferentes línguas, e se sentido estrangeiro

em todos os espaços, Borges é o escritor das “orillas”. Se as “orillas” representam um lugar

espaço geográfico entre as planícies e as primeiras casas de Buenos Aires em 1900, ou seja,

entre campo e cidade; não deixam de ser também um espaço social, político e cultural

ocupado por uma nação nova e “periférica”, na qual vão se imprimindo marcas de distância –

mas também de imitação – da cultura europeia.

Nessa linha, Sarlo (2008) argumenta que não há escritor mais argentino do que

Borges. Escrevendo em um encontro de caminhos e cruzamentos da tradição ocidental com a

tradição rio-platense, ele se interrogou “como ninguém sobre a forma da literatura numa das

margens do Ocidente”, fazendo das orillas / das margens / da periferia uma estética (Sarlo,

2008, p.16). Sua obra não se instala, segundo a crítica, nem no criollismo vanguardista de

seus primeiros livros, nem na erudição heteráclita de seus contos, falsos contos, ensaios e

falsos ensaios.21 Ao contrário, para Sarlo, nos escritos de Borges encontramos a “consciência

de mescla” e a nostalgia de uma literatura (europeia) que um latino-americano nunca vive de

todo como “natureza original”. Uma consciência articulada de maneira interessada e não-

dependente. 22

Em linha gerais, do ponto de vista estético, Sarlo aponta que Borges formalizou tanto

a problemática nacional quanto as múltiplas trocas do local com outras culturas e suas

assimilações (em que se pese especialmente a cultura ocidental, herança de nossos processos

de colonização), sendo possível sintetizá-lo como um escritor “cosmopolita nas margens”. Por

outro lado, Borges também é um “marginal no centro”. Quando se torna parte do cânone de

uma tradição universal, segundo a crítica, as marcas de sua nacionalidade são diluídas e se

21 Nas palavras da crítica: “Borges reelabora, em teoria y en la práctica de su escritura, um núcleo criollista (...).

Borges rescata al subúrbio tanto del pintoresquismo sentimental como del fervor reivindicativo, u lo coloca em

um espacio propriamente estético, produciendo, al mismo tempo, su transformación. El subúrbio, las orillas

imprecisas que separan a la ciudad del campo se conviertem em la matéria literária nueva, no por la

reivindicacion voluntarista de valores más fantaseados que reales, sino por el aura (para decirlo de algún modo)

que rodea a la zona y que es, sobre todo, producida por sus invenciones” (Sarlo, 2004, p. 41, grifo da autora). 22 Os trabalhos de Roberto Schwarz que servem de inspiração para Sarlo enfatizam que a matéria textual

produzida por escritores e intelectuais latino-americanos pode até mesmo resultar “superior” ao modelo copiado,

o que relativiza a noção de original, uma vez que, ao se organizar os conteúdos locais por intermédio dos

modelos importados, trabalha-se a um só tempo com o singular e o universal, o local e o global. Assim, ao

investigar a “filiação de texto” e a “fidelidade aos contextos” de certos escritores, artistas e pensadores, abre-se

espaço para problematizar as dificuldades históricas e coletivas do subdesenvolvimento.

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perde justamente “um dado inseparável de seu mundo, o laço que o unia às tradições culturais

rio-pratenses e ao século XIX argentino” (Sarlo, 2008, p.14).

A reputação mundial de Borges, como observa Sarlo, “o purgou-o de nacionalidade”,

e um de seus efeitos é desconsiderar o chão social no qual as obras foram pensadas – os

autores e contextos com os quais dialogou e promoveu suas rupturas literárias. Nesse ponto,

Sarlo esboça uma crítica a universalização do autor: a presença de uma certa “cor local” deve

ser estuda em seus desdobramentos, com vistas a retirar do confinamento histórico as

“margens da experiência europeia”. Nesse sentido, assim como Borges não reduz a empiria

local e as formas “universais” a essências singulares, sugere-se que Sarlo também vai tecendo

uma interpretação social crítica e original na qual o moderno e a periferia aparecem de modo

articulado em meio a suas diferenças – diferenças que desnudam o desenvolvimento do

sistema capitalista.

Trata-se de uma interpretação na qual os impasses e as ambivalências que marcam a

vida social e intelectual argentina vão sendo construídas em íntima relação com as dinâmicas

mais gerais da sociedade contemporânea, e o “universal” como categoria é colocado em

xeque. Do mesmo modo que as “orillas” são importantes para as formalizações estéticas

operadas por Borges, às margens / a periferia assume uma função heurística na obra de

Beatriz Sarlo, como tema e como problema: não se referem apenas a um lugar geográfico,

elas configuram também um modo de olhar para a heterogeneidade que constitui as diferentes

experiências sociais, estéticas e políticas da modernidade.

Dito de outro modo, “às margens”, “a periferia”, aparecem como um meio – como um

desafio analítico, teórico e metodológico – pelo qual se pode compreender e interpretar a

experiência moderna, em um esforço de parar de se questionar “que horas são?”.

Precisamente nesse sentido, sugere-se que os trabalhos de Sarlo possuem originalidade para a

agenda de pesquisas contemporâneas, que procuram desnaturalizar a história universal e

reconhecer a complexidade das histórias locais, de modo a assinalar as assimetrias de poder

que perpassam a circulação do conhecimento em escala planetária.

Como se sabe, a experiência social, política e cultural latino-americana (mas também

de outras ex-colônias e periferias), é marcada pela tentativa de se tornar moderna. Não por

acaso, as questões acerca de uma “modernidade inacabada”, da imitação da cultura europeia,

da problemática do atraso etc., perpassam a preocupação de artistas, escritores e intelectuais –

que procuram refletir sobre a “hora histórica” do país dependente. Se essas considerações aos

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poucos deixam de reverberarem nos objetos de pesquisa contemporâneos, é importante

observar que a problemática da periferia continua desafiando nossa imaginação sociológica,

como demostra os recentes trabalhos de João Marcelo Maia sobre o pensamento brasileiro e a

agenda de pesquisa na teoria social hoje (2009, 2011).

Seguindo a trilha de Maia, retomar ensaios como os de Beatriz Sarlo é uma tarefa

incontornável para pensar as diversas formas a partir das quais a “condição periférica” foi

formalizada. Além disso, tratam-se de notas que oferecem indícios para analisar as relações

que se estabelecem no circuito das “viagens das ideias”, cuja potencialidade é revisitar o

questionamento dos cânones ocidentais (sejam eles da literatura ou das ciências sociais), no

qual se perfilam as dicotomias e tensões entre local e universal, periferias e centro.

Considerações finais

Vistos em conjunto, os ensaios de Beatriz Sarlo configuram um espaço novo para a

crítica literária e cultural, no qual se perfila a figura de uma intelectual crítica e pública

dedicada a pensar o tempo presente a partir e por meio das mediações entre literatura e

sociedade, estética e política. A figura programática de Jorge Luis Borges, de ser um homem

que pensa o seu tempo histórico, é reafirmada pela crítica, indicando a atualidade teórica que

estudos produzidos nas semiperiferias do capitalismo podem ter para a teoria social

contemporânea.

Escritos em um momento no qual a sociedade argentina passava por inúmeras

transformações no final da década de 1980 e início da década de 1990, os livros de Sarlo

recuperados na parte final dessa comunicação, enunciam um potencial heurístico “das

margens” para compreender as dinâmicas que formam a vida moderna – fato que torna as

categorias mais abrangentes e, como consequência, pode tornar a produção teórica mais

ampla. Nesse sentido, se com a “situação de globalização” e da mundialização da cultura é

necessário repensar o hífen histórico que liga o centro e suas periferias (e os trabalhos

recentes da crítica apontam para isso), sugere-se que os ensaios de Sarlo analisados podem

oferecer pistas teóricas e metodológicas para os debates contemporâneos que incorporam e

(re)significam criticamente os cânones ocidentais, de modo a construir novos mapas teóricos

para se pensar e agir na sociedade contemporânea.

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