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GRUPO DE TRABALHO VII TEORIA SOCIAL Coord.: Profª Eva Lenita Scheliga A ontogênese da atividade criativa a partir de G. Lukács Talitha Priscila Cabral Coelho ................................................................................................................................................ 596 A problemática gnosiológica e a ideologia em Marx Luiz Alexandre Barbosa Pinto Júnior .................................................................................................................................... 606 O urbanismo como modo de vida na obra “Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre Cristine Palma Zochio .............................................................................................................................................................. 626

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GRUPO DE TRABALHO VII TEORIA SOCIAL

Coord.: Profª Eva Lenita Scheliga

A ontogênese da atividade criativa a partir de G. Lukács

Talitha Priscila Cabral Coelho ................................................................................................................................................596

A problemática gnosiológica e a ideologia em Marx

Luiz Alexandre Barbosa Pinto Júnior ....................................................................................................................................606

O urbanismo como modo de vida na obra “Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre

Cristine Palma Zochio ..............................................................................................................................................................626

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A ONTOGÊNESE DA ATIVIDADE CRIATIVA A PARTIR DE G. LUKÁCS

Talitha Priscila Cabral Coelho

Professora Assistente do Departamento de Psicologia (DPI/UEM)

Resumo: Este artigo é resultado de revisão bibliográfica realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (2010-2011). Trata-se de uma investigação teórico-conceitual visando compreender a capacidade humana criativa tomando como fundamento ontológico o materialismo histórico dialético. Vale lembrar que nossa interpretação dos escritos de Marx foi mediada pelas explicações de um dos seus destacados intérpretes, o filósofo húngaro G. Lukács (1885-1971). Interessou-nos, em especial, derivar desta teoria a concepção de psiquismo humano e capacidade criativa contida em uma ontologia do ser social articulada aos fundamentos das obras de L. S. Vigotski (1896-1934) e demais psicólogos soviéticos da abordagem Histórico-Cultural. Cônscios de que os estudos de Marx como um todo se objetivaram em uma teoria explicativa da sociedade burguesa, portanto, com contribuições inclinadas ao campo filosófico, sociológico e econômico, no presente estudo, salientamos apenas os pressupostos, as categorias fundamentais ao estudo da criatividade. Para tanto, nos debruçamos, inicialmente, sobre a categoria trabalho (elemento central na obra de Marx), por meio da qual se desdobram todas as outras categorias (tais como: consciência, divisão social do trabalho e alienação do trabalho). Como resultado deste estudo da atividade criativa, apontamos algumas contribuições para o campo da Psicologia no contexto da formação do trabalhador.

Palavras-chave: Atividade criativa; G. Lukács; L. S. Vigotski; Psicologia Histórico-cultural.

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A ONTOGÊNESE DA ATIVIDADE CRIATIVA A PARTIR DE G. LUKÁCS

A presente pesquisa é resultado de revisão bibliográfica realizada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (2010-2011). Trata-se de uma investigação teórico-conceitual visando compreender a capacidade humana criativa tomando como fundamento ontológico o materialismo histórico dialético.

Nossa interpretação dos escritos de Marx foi mediada pelas explicações de um dos seus destacados intérpretes, o filósofo húngaro G. Lukács (1885-1971). Interessou-nos, em especial, derivar da obra marxiana as concepções de psiquismo e criatividade contidas nesta teoria que é uma ontologia do ser social; que, por sua vez, se articula aos fundamentos das obras de L. S. Vigotski (1896-1934) e demais psicólogos soviéticos da abordagem Histórico-Cultural.

Cônscios de que os estudos de Marx como um todo se objetivaram como um desvelamento da sociedade burguesa – com contribuições inclinadas ao campo filosófico, sociológico e econômico – no presente estudo, salientamos apenas os pressupostos, as categorias fundamentais ao estudo da criatividade. Para tanto, nos debruçamos, inicialmente, sobre a categoria trabalho (elemento central na obra de Marx), por meio da qual se desdobram todas as outras categorias (tais como: consciência, divisão social do trabalho e alienação do trabalho). Como resultado deste estudo da atividade criativa, apontamos algumas contribuições para o campo da Psicologia no contexto da formação do trabalhador.

Feita a “varredura” da situação atual das publicações científicas que tratam de criatividade e trabalho, pelo material revisado, constatamos uma tentativa por parte dos pesquisadores deste tema em evitar conceituações simplistas, unilaterais, que reduzam este fenômeno humano tão complexo a definições limitadas. Contudo, ao elegerem a uma explicação “multicausal” ou “multidimensional” para fenômeno criativo chama a nossa atenção justamente o oposto: a imprecisão conceitual e teórico-metodológica, algo que põe em risco os esforços de conceituar a criatividade e, com isso, possibilitar a sua promoção.

Haja vista a constatação da necessidade de um aprofundamento acerca das múltiplas dimensões que constituem a criatividade, do que consistiria o fator “interno”/psicológico e o fator “externo”/ambiente passa a ser preponderante. Na ausência de um tratamento mais detalhado destas dimensões, consideramos que, ao se abordar, majoritariamente, o fator ambiental como inibidor ou estimulador da criatividade, sem considerar as relações sociais e a divisão de classes historicamente dadas, bem como pela frequente defesa do uso de testes que avaliem o potencial criativo, algo está sendo sinalizado: se a pluralidade de dimensões que afetam a criatividade incorpora a dimensão psicológica apartada das relações sociais de produção, o reducionismo é inevitável.

Consideramos possível evidenciar os elementos essenciais da teoria marxista e dela derivar uma concepção materialista histórica e dialética da criatividade. Aqui, aventuramo-nos na difícil tarefa de sintetizar e destacar alguns elementos que julgamos indispensáveis à

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esta perspectiva, portanto, também indispensáveis para compreensão das categorias de análise desenvolvidas por Vigotski ao tratar da constituição da consciência pelas relações sociais de produção e as consequências do trabalho alienado para a atividade psíquica, em especial a atividade criativa.

A obra de Marx consiste em e resulta de uma densa investigação da sociedade burguesa pela via analítico-abstrativa1. Para o autor, o abstrato aparece no pensamento como o processo da síntese de múltiplas determinações do concreto, como resultado e não como ponto de partida. Assim, desvendar o real, ou seja, aquilo que está aparente, visível aos nossos olhos, prescinde da apreensão das múltiplas determinações que o constitui. Deste modo, em termos metodológicos, para compreendermos a sociedade atual da troca de mercadorias que visa à acumulação de capital, devemos partir do estudo da mercadoria, célula mãe do capital, unidade do diverso, cujas determinações não são apreendidas na aparência (Marx, 2011).

Segundo Marx, se, para estudarmos a sociedade atual, ao invés de apreendermos a essência, partíssemos, por exemplo, da população, teríamos apenas uma abstração, por desprezarmos as classes sociais que a compõem. Classe social, por sua vez, constitui-se em um termo vazio de sentido se forem ignorados os elementos que a compõem (como a divisão do trabalho, o trabalho assalariado, o capital, etc.). Por meio deste caminho metodológico que parte do abstrato (ou concreto sensível, aparente na empiria) ao concreto (síntese do diverso), é possível obtermos conceitos cada vez mais simples; saímos do “concreto idealizado” até atingirmos as determinações mais simples.

No caso da obra principal de Marx, O Capital, observamos que o autor parte da sociedade atual como “uma coleção de mercadorias”, algo possível de se constatar na aparência e que, ao longo de sua exposição, vai perdendo seu caráter abstrato, visível, aparente, e vai ganhando concretude, complexidade. Ao discorrer e analisar as múltiplas determinações da sociedade capitalista, Marx seguiu superando importantes pensadores da economia política de até então (entre eles A. Smith, D. Ricardo, S. Mill) à medida que seguia explicitando a essência do modo capitalista de produção. Explicitando inclusive que o trabalho na forma social do capital é

1 Este método, que permeia toda sua obra, é objeto de exposição de Marx (1974) no texto O método da economia política.

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transformado em mais uma mercadoria2.

Consideramos que, graças ao desenvolvimento das forças produtivas vivenciado por Marx em meados do século XIX, as condições materiais estavam postas e tornou-se acessível ao pensamento humano a essência do capital (materializada na obra O Capital) não como a representação caótica do todo, e sim com uma rica totalidade de determinações e relações, representação do concreto pensado (Marx, 1974, p. 122).

Marx, que contou com a colaboração de Frederick Engels (1820-1895), contribuiu para compreensão da gênese do humano, do salto do natural (orgânico) ao social. Com base em suas investigações, consideramos as manifestações dos fenômenos tipicamente humanos (pensamento, linguagem, memória lógica, domínio da atenção, criatividade, etc.) como resultado, ponto de chegada, produto de um desenvolvimento, portanto, chave para compreensão do que o precedeu (da sua gênese). Marx provou, através de revisão bibliográfica, que os estágios mais primitivos do humano, bem como as sociedades antigas podem ser reconstruídos no pensamento, tendo como base as manifestações atuais, superiores, no capitalismo. Nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, ele afirma que:

A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão, desenvolvendo tudo que fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação etc. A anatomia do homem é a [uma] chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia da antigüidade etc. (Marx, 1978, p. 120).

Por este método de análise, elaborado e posto em exercício por Marx na investigação do capitalismo, em que o mais complexo é uma chave para entendermos o menos complexo, temos também uma concepção do que é a realidade e do que é o homem para além da aparência

2 A respeito da emergência da força de trabalho como mercadoria, Marx explica que: “O produtor direto, o trabalhador, só pode dispor de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado à gleba e de ser escravo ou servo de outra pessoa. Para vender livremente a sua força de trabalho, levando sua mercadoria a qualquer mercado, tinha ainda de livrar-se do domínio das corporações, dos regulamentos a que elas subordinavam os aprendizes e oficiais e das prescrições que entravavam o trabalho. Desse modo, um dos aspectos desse movimento histórico que transformou os produtores em assalariados foi sua libertação da servidão e da coerção corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos historiadores burgueses. Mas os que se emanciparam só puderam se tornar vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os seus meios de produção e os provaram de todas as garantias que as velhas instituições feudais asseguravam à sua existência. Os capitalistas industriais, esses novos potentados, tiveram de remover os mestres das corporações e os senhores feudais, que possuíam o domínio dos mananciais das riquezas. Sob esse aspecto, representa-se sua ascensão como uma luta vitoriosa contra o poder feudal e seus privilégios revoltantes, contra as corporações e os embaraços que elas criavam ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem” (Marx, 1998, p. 829).

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(em sua gênese e desenvolvimento). No século XXI, em que as criações humanas possibilitam, por exemplo, a um homem conversar em tempo real, em som e imagem, com outra pessoa em qualquer lugar do mundo, a capacidade criativa expressa nesta invenção tecnológica que “aproxima” entes queridos é o ponto de chegada, resultado de muitas outras criações anônimas ao longo da história.

Compreender o homem e sua manifestação criativa pelo método materialista e dialético exige que se faça uma abordagem genética (que busque a origem) da complexidade deste objeto real, em seu processo histórico, que articule a sua gênese com a configuração presente. Assim, para conhecermos a expressão cultural contemporânea da criatividade do trabalhador, partiremos da gênese do homem (do orgânico para o social) e o seu desenvolvimento até retornarmos à sua forma mais desenvolvida.

No livro Para uma Ontologia do Ser Social, Lukács (1981a, 1981b) expõe os fundamentos ontológicos das categorias específicas do ser social3, apreendendo a manifestação do humano em sua origem (formas precedentes) e desenvolvimento. O autor explica que Marx destacou como categoria fundante do ser social o trabalho, ou seja, a atividade vital de reprodução do homem. Encontramos nela uma ontologia, ou seja, uma teoria explicativa da gênese do humano que parte da própria vida dos homens, da atividade que eles realizam objetivada no mundo concreto.

A maioria das vezes em que os mais importantes filósofos do nosso tempo e do passado trataram da ontologia do ser social, elucida Lukács (1981b), fizeram-no ora considerando o ser social tal qual os outros seres da natureza, ora considerando o homem como algo radicalmente diverso dos outros seres em geral4. Já em Marx, encontramos a análise de toda uma série de determinações categoriais imbricadas – trabalho, linguagem, cooperação, divisão do trabalho, etc. –, as quais possibilitam novas relações da consciência com a realidade e, em decorrência, consigo mesma. Nesta perspectiva, com a análise da gênese e desenvolvimento destas categorias, podemos obter o caráter ontológico concretamente apreendido como um momento de passagem (salto qualitativo) da prevalência da vida orgânica à social (Lukács, 1981b).

Do salto ontológico, necessário para transformação do ser em outro ser qualitativamente diferente, Marx destacou, dentre outras, a categoria trabalho, por ter o trabalho um caráter

3 Oldrini (1996) esclarece que, nesta obra, Lukács concebe ontologia criticamente, partindo do conceito hartmanniano e indo além; portanto, se afasta de uma ontologia dogmática, apriorística, já condenada por Kant. Lessa (2007) sugere como fio condutor destes seus últimos estudos: “(...) explicitar as mediações sociais que fazem do homem o único demiurgo de seu próprio destino, de tal modo a demonstrar a possibilidade ontológica (que não significa a viabilidade prática imediata, nem implica num programa) da revolução comunista (na acepção marxiana do termo)” (p. 86). Na defesa de uma ontologia marxista, Lukács estabeleceu uma adesão crítica ao stalinismo e também um diálogo crítico com o que de mais significativo ocorreu no debate teórico do século XX (Lessa, 2007).

4 Veremos mais adiante que encontramos semelhança nesta ideia com a crítica de Vigotski à chamada velha Psicologia que, ora objetivista, ora subjetivista, desconsidera o caráter social e qualitativamente deferente da atividade humana.

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intermediário, enquanto as outras categorias se desdobram no ser social já constituído: “quaisquer manifestação delas [outras categorias], ainda que sejam muito primitivas, pressupõem o salto como já acontecido” (Lukács, 1981b, p. 2).

Portanto, o trabalho possui papel privilegiado no salto ontológico. É o produto do trabalho que o homem pode usar apropriadamente (possui um valor de uso5) para a reprodução da vida, é a condição de sua existência. Mas o que o torna categoria ontológica central é que esta necessidade de manutenção da subsistência imbricada a certo domínio dos elementos da natureza se transforma em um posicionamento diferente diante da realidade, uma posição de agir intencionalmente (teleologicamente) na produção de meios para garantir a subsistência, que se cristaliza no produto do seu trabalho, ou seja, nas criações humanas.

A finalidade nasce de uma necessidade humano-social; mas, para que ela se torne uma verdadeira posição de um fim, é necessário que a busca dos meios, isto é, o conhecimento da natureza, tenha chegado a um certo nível adequado; quando tal nível ainda não foi alcançado, a finalidade permanece um mero projeto utópico, uma espécie de sonho, como, por exemplo, o vôo foi um sonho desde Ícaro até Leonardo e até um bom tempo depois. Em suma, o ponto no qual o trabalho se liga ao pensamento científico e ao seu desenvolvimento é, do ponto de vista da ontologia do ser social, exatamente aquele campo por nós designado como busca dos meios. Agora podemos agregar que a ininterrupta produção do novo (...) está contida neste modo de surgir e de se desenvolver do trabalho (Lukács, 1981b, p. 14).

Esta posição teleológica e essencialmente criativa consistiu inicialmente na ação direcionada a um fim e mediada pela memorização do nexo (lógica) entre o real e a satisfação das necessidades vitais. Um exemplo de teleologia na vida do homem primitivo é o domínio de um elemento da natureza como a pedra e o efeito de despedaçá-la e torná-la mais pontiaguda, após o choque de uma pedra com outra, para facilitar o abate da presa. Temos aqui uma ação sobre as duas pedras, cuja finalidade será o abate do animal para alimentar-se, lascar a pedra, obviamente, não sacia a fome, mas entre a fome e o abate temos a mediação da pedra e da ação de lascá-la para melhor abater.

Destarte, temos na gênese das criações humanas a imbricação dialética entre realizar trabalho e conhecer a realidade, em que o ato de conhecer transforma a realidade conhecida e o sujeito que conhece.

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo, braços e pernas,

5 “A utilidade de uma coisa faz com que ela tenha um valor-de-uso. Mas esta utilidade não é algo aéreo. Determinada pelas propriedades materialmente inerentes à mercadoria, só existe através delas” (Marx, 2011, p. 58).

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cabeça e mãos, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza (Marx, 2011, p. 211).

Quando, antes da ação (consciente), já se espera um determinado resultado, temos o germe do reflexo consciente, da especificidade humana de idealizar antes de concretizar.

Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho, aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade (Marx, 2011, p. 212).

Nesta passagem, temos enunciada a categoria ontológica central do trabalho. É por intermédio dele que se realiza, no âmbito do ser material, uma posição teleológica que dá origem a uma nova objetividade. O trabalho se torna o “modelo de toda práxis social”, que, através de mediações às vezes muito complexas, sempre são transformadas em realidade as posições teleológicas, as quais, em última análise, são materiais (Lukács, 1981b, p. 5).

O resultado da teleologia do trabalho se materializa nas criações humanas, no mundo objetivo, incorpora-se ao tempo e à vida (à história), produzindo consequências bastante relevantes, transformando dialeticamente a realidade e o próprio homem, fundando a humanidade. O homem, produto e produtor, salta para novas possibilidades/alternativas de produzir sua subsistência em contínuas realizações de posições teleológicas e, embora jamais possa se desvincular da base biológica, sofre uma ruptura, um recuo dos limites naturais e concomitante desenvolvimento da sociabilidade (linguagem, pensamento, etc.).

Ao compreendermos a gênese do ser social marcada pela posição teleológica e a capacidade especificamente humana de produzir idealmente, ou seja, o concreto pensado na consciência antes da produção material, estamos nos aproximando do momento em que podemos derivar um conceito de atividade criativa com base no materialismo histórico dialético.

Quando um projeto ideal se realiza materialmente, ou seja, quando uma finalidade pensada é transformada em uma finalidade material, se confrontarmos seu resultado com a natureza, teremos algo que é qualitativamente novo, algo que espontaneamente não surgiria na natureza, possibilitando compreender o processo de criação de maneira genérica nesta perspectiva teórica. Exemplificando:

A casa tem um ser material tanto quanto a pedra, a madeira, etc. No entanto, a posição teleológica faz surgir uma objetividade inteiramente diferente com relação

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aos elementos primitivos. Nenhum desenvolvimento imanente das propriedades, das legalidades e das forças operantes no mero ser-em-si da pedra ou da madeira pode fazer “derivar” uma casa. Para que isto aconteça, é necessário o poder do pensamento e da vontade humanos que organize tais propriedades de uma forma inteiramente nova em seus fundamentos (Lukács, 1981b, p. 11).

Por este exemplo, notamos que Lukács (1981b) enfatiza o papel decisivo da consciência na ação criativa e como momento essencialmente separatório (homem X animal), ao invés de frisar a mera fabricação de produtos em si. O autor define o homem como um “ser que dá respostas” diante das carências (adversidades do meio). Se ele dá respostas é porque perguntas foram feitas, as quais demandaram elementos, ou seja, um certo domínio do que existe para serem formuladas. Por meio da atividade laborativa o homem generaliza estas possibilidades de solução da carência, desenvolve a vontade e o pensamento, o que põem a consciência não mais como um “epifenômeno” da reprodução biológica.

A realização de finalidade, como categoria da nova forma de ser, tem, além disso, uma importante conseqüência: a consciência humana, com o trabalho, deixa de ser, em sentido ontológico, um epifenômeno. (...) Somente no trabalho, quando põe os fins e os meios de sua realização, com um ato dirigido por ela mesma, com a posição teleológica, a consciência ultrapassa a simples adaptação ao ambiente – o que é comum também àquelas atividades dos animais que transformam objetivamente a natureza de modo involuntário – e executa na própria natureza modificações que, para os animais, seriam impossíveis e até mesmo inconcebíveis (Lukács, 1981b, pp. 17-18).

Portanto, ao homem, caracterizado como ser de necessidades, o carecimento material é motor das perguntas e respostas humanas da reprodução consciente individual e social, colocando em movimento o enriquecimento da atividade com novas mediações.

Para esta abordagem, tudo o que existe, determinações da existência, move e é movido. A historicidade das relações do ser social se realiza como um processo de construção e reconstrução do ser, continuidade e ruptura, relações que são movidas e movem a história na tensão contraditória entre a liberdade e a necessidade. Assim sendo, a consciência humana, que é um subproduto da matéria transformada pelo homem, também é uma criação humana. Ao criar meios para vencer suas carências, o homem transforma o mundo e se transforma, e o contexto que forjou estas criações é histórico e passível de ser captado pela mente humana para além da aparência se concebido dialeticamente, em constante movimento.

O espaço de vida e prática dos homens não está pronto e acabado, está sempre criando novas possibilidades, movimentado pelas carências, explicitando uma singularidade, dando origem à personalidade humana (criando novas potencialidades humanas), mas não de acordo com as vontades individuais dos homens. O homem cria, pensa, escolhe a partir das condições materiais que lhe são postas pela natureza, pelas conquistas e transformações anteriormente

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objetivadas e acumuladas, pelas suas necessidades e pelas novas relações que vai estabelecendo com o mundo e com os outros homens (Marx & Engels, 1987).

Chegamos, portanto, à compreensão do papel decisivo da consciência na passagem do orgânico ao social, ao conceber a consciência como reflexo da realidade e que, dialeticamente, sobre essa base concreta, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la. Isto quer dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser criativo, movimentada por uma adaptação ativa e com a finalidade de suprir as carências.

De modo que as criações humanas são, prioritariamente, constituídas de elementos materiais, produto da atividade criativa desenvolvida/impulsionada pelas necessidades materiais, e representam conquistas que poderão ser utilizadas em favor de uma menor fragilidade humana frente à natureza, portanto, em favor da liberdade, já que o trabalho intensifica e estende o domínio humano sobre o real.

Quando as carências são supridas, ou seja, quando a satisfação da necessidade aproxima os homens do reino da liberdade, já que cria novas cadeias de mediações que transformam, ininterrupta e reciprocamente, os homens, as relações sociais, a natureza, criam-se novas forças que o homem passa a dominar e que movimenta as suas próprias capacidades psíquicas em níveis mais altos.

Concluímos que o homem, ser que realiza posições teleológicas, portanto consciente, tem a possibilidade de um desenvolvimento superior, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas transforma o homem ao desenvolver-lhe novas capacidades. Encontramos, nesse movimento, o campo fecundo da contínua tendência de descobrir coisas novas, de criar algo novo, sempre partindo do que existe e é conhecido.

REFERÊNCIAS

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_____. O Capital: Crítica da economia política. (Vol. I, livro Iº, tomo 2). São Paulo: Abril Cultural, 1984

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_____. O Capital: crítica da economia política. (Livro 1, vols. I e II, 16. ed. Reginaldo Sant´Anna, Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998

_____. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Boi Tempo, 2004

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Marx, K. & Engels, F. A ideologia alemã I. São Paulo: Hucitec, 1987

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_____. O Manifesto Comunista. 1848. Recuperado em 15 de dezembro, 2008, de <http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/manifestocomunista.html>

OLDRINI, Guido. Para ir às raízes da ontologia (marxista) de Lukács. Simpósio Internacional Lukács, Campinas, SP, 2008

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

Luiz Alexandre Barbosa Pinto Júnior

Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá

Resumo: O fenômeno da ideologia ganhou grande repercussão a partir do momento que a obra de Marx ganha reconhecimento no campo da teoria social. Desde então várias interpretações surgiram, acerca desse fenômeno, dado o caráter não-sistemático do tratamento que Marx dá ao tema. Em diferentes momentos de sua obra, o autor usa o termo ideologia com significados também diferentes, o que incentivou o surgimento de várias interpretações, muitas vezes em contradição com os próprios princípios norteadores de sua obra. O reconhecimento de que essas múltiplas definições do termo ideologia existem em função da produção teórica marxiana remete-nos ao objetivo último desse trabalho. Qual seja, apresentar, de modo sucinto, o surgimento do pensamento de Marx, ressaltando o caráter ontológico das afirmações deste, de modo a debater com algumas das diversas interpretações desse pensamento, que veem no fenômeno da ideologia, uma falsidade socialmente condicionada, uma falsa consciência. Argumentamos que essas interpretações estão pautadas em uma base filosófica racionalista, que postula a prioridade do critério de conhecimento no sujeito conhecedor, na problemática gnosiológica, em detrimento do objeto a ser conhecido, do ser-precisamente-assim existente, base essa, estranha ao pensamento materialista ontológico de Marx.

Palavras-chave: Karl Marx; Gnosiologia; Ontologia; Falsa consciência.

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

INTRODUÇÃO

O problema da Ideologia assumiu muitas formas nas mais variadas formulações teóricas desde o século XIX até os dias de hoje. A centralidade da reflexão sobre o tratamento a ser dado às ideias, pensamentos, concepções, formas de consciência, conferiu a problemática da ideologia, um lugar de destaque nas discussões filosóficas, sociológicas e científicas dos últimos três séculos.

A formulação de Marx teve um papel central na apropriação ulterior do problema por outros autores. Mesmo não sendo o cunhador primário do termo, Marx o utiliza, principalmente nas duas obras de juventude destinadas a um “acerto de contas” com a filosofia neo-hegeliana de sua época e com Feuerbach, A Sagrada Família e A Ideologia Alemã. Desse modo, devido a importância histórico-social da obra de Marx no fim do século XIX e no século XX, várias outras interpretações e apropriações foram formuladas na tentativa de esclarecer o problema, diversificando cada vez mais o universo de significados imputados ao problema da ideologia.

Ao constatarmos o fato de ser a obra de Marx o apêndice do salto que se dá para os vários sentidos modernos assumido pelo termo, podemos constatar que a variação desse sentido também acontece em função das diversas apropriações feitas em torno dessa obra. Isso nos coloca a necessidade de fazer um resgate da obra do autor, no sentido de identificar, no seio de sua construção teórica de articulação categorial, onde se coloca o fenômeno da ideologia, e qual o papel cumprido por ele. Para isso não poderíamos deixar de dialogar com uma longa tradição de diferentes matizes que propõe diferentes abordagens frente a obra de Marx, identificando qual a relação especifica que essas correntes e/ou tradições estabelecem.

A principiar pela tentativa de demonstração da linha traçada por grande parte dos historiadores do termo vale a pena mencionar que imputam a Francis Bacon o início da preocupação com o fenômeno ideológico. É importante ressaltar, como bem lembra Vaisman (1989) que essa preocupação já traz em si mesma, uma orientação da análise do problema. Identifica-se o início da tematização da ideologia com a preocupação com o conhecimento científico correto. Bacon, em seu Novum Organum, formula sobre os ídolosafirmando serem eles “noções falsas que ocupam o intelecto humano e nele se acham implantadas, /.../ a ponto de ser difícil o acesso a verdade”. (BACON, 1999, p.39) Com base nessas formulações a ideologia é identificada como a responsável pelo erro, pela ilusão e pela falsidade que impede o avanço da ciência, possibilitando assim que se defina as preocupações de Bacon, como as primeiras a tratarem do tema.

Um outro ponto ressaltado sempre pelos historiadores do termo foi a sua origem, identificada pela primeira vez na obra de Antoine Desttut de Tracy, Élements d’idéologie, na qual o autor caracteriza a ideologia como a “ciência dasideias”, a “base necessária para a edificação das ciências, na medida em que através dela seria possível evitar as falsas ideias” (VAISMAN,

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1989: 401). De Tracy foi intelectual ativo na representação da “burguesia revolucionária” francesa, fez parte do “Institut Nationale” onde se ocupou de “criar para as écolescentrales do serviço civil um novo programa de educação nacional, que teria como base a ciência das ideias”, incialmente contando com todo o apoio de Napoleão Bonaparte. (EAGLETON, 1997, p.68) Segundo Konder, os ideólogos, como eram chamados o grupo de intelectuais do qual De Tracy fazia parte, deram sinais de que queriam “ensinar” Napoleão Bonaparte a dirigir o Estado, fazendo críticas e proposições a este. (KONDER, 2003, p.22) Bonaparte se enfurece com esses intelectuais e começa a designá-los de “ideólogos” no sentido negativo, dizendo que eles “destroem todas as ilusões” dos povos, e afirmando que:

“Todas as desgraças que afligem a nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história” (CHAUÍ, 1980: 77).

A influência decisiva da formulação de Marx quanto ao termo e ao fenômeno da ideologia é campo de grande discussão entre os historiadores desse termo e os estudiosos do marxismo. De modo predominante, tende-se a imputar a Marx um papel importante na constituição do significado moderno que o termo veio a assumir. Muitos autores afirmam a existência de uma suposta “teoria das ideologias” na obra de Marx, responsabilizando o filósofo alemão pela absorção da significação que os filósofos iluministas franceses deram à palavra, como ciências das ideias, porém, usando-a também no sentido que lhe foi atribuído por Napoleão Bonaparte. A primeira vez que Marx fez uso do termo ideologia foi em A Sagrada Família. Ao dialogar com a análise da revolução francesa elaborada por Bruno Bauer, Marx comenta o fato de NapoleãoBonaparte sentir certo desprezo pelos “ideólogos”, bem como pelos industriais, embora reconhecesse a importância da “base burguesa do estado moderno”. (VAISMAN, 1996: 40).

Ester Vaisman, em sua tese de doutorado, intitulada A Determinação Marxiana da Ideologia, identifica as várias problemáticas que surgiram nas várias interpretações feitas a partir do uso que Marx faz do termo ideologia em sua obra. Segundo a autora “parece claro que a linha de demarcação principal, no interior da bibliografia compulsada, é aquela que estabelece um elo de continuidade entre a doutrina dos ídolos de Bacon, a teoria iluminista dos pré-juízos e Marx, passando por Hegel e Feuerbach!” Ou seja, o problema da ideologia como ideias falsas que atrasam o conhecimento científico, surge em Bacon, na sua instauração empirista, passa pelos iluministas franceses que procuram explicar o surgimento das ideias e afastar as falsas ideias, tem sua expressão também colocada nas obras de Feuerbach e Hegel,através da associação da auto-alienação com o atraso do conhecimento científico, em cada autor de maneira peculiar, e ganha sua forma mais acabada em Marx.

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

Para o que nos importa no âmbito desse artigo, ao invés de fazermos uma análise exaustiva das várias formulações a respeito do tema, exploraremos de maneira sucinta como a constatação do caráter ontológico da teoria social de Marx coloca sobre novas bases as possibilidades de tematização da categoria da ideologia.

O CARÁTER ONTOLÓGICO DA OBRA DE MARX E A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA

Segundo Vaisman, na trilha de Lukács, a constatação da dominação da problemática gnosiológica em torno do tema da ideologia é na verdade, o fruto de uma “tendência que vem se desenvolvendo há, praticamente, dois séculos no campo da filosofia”. (VAISMAN, 1989, p.407) Essa tendência é identificada por Lukács no fato de “o pensamento filosófico ter sido inteiramente dominado pela teoria do conhecimento, pela lógica e pela metodologia”, ignorando-se assim como um “despropósito intempestivo” “toda tomada de posição sobre o problema de saber se alguma coisa é ou não é”, toda tomada de posição “sobre a questão do ser”. (LUKÁCS apud VAISMAN, 1989, p. 407-408)

Iremos analisar, nessa parte de nosso artigo, como os enunciados de Marx, “se interpretados corretamente /.../, são entendidos – em última instância – como enunciados diretos sobre um certo tipo de ser, ou seja, são afirmações ontológicas”, para posteriormente determinar de que maneira Marx concebe onologicamente a problemática do conhecimento, modificando sensivelmente as possibilidades de interpretação dos trechos contidos em sua obra acerca do fenômeno da ideologia. (LUKÁCS, 1979, p.11)

No Terceiro Manuscrito dos Manuscritos Economico-Filosóficos, Marx postula: “Um ser não-objetivo é um não-ser”, e desenvolve a questão da seguinte maneira:

“Assenta um ser, que nem é ele próprio objeto nem tem um objeto. Um tal ser seria, em primeiro lugar, o único ser, não existiria nenhum ser fora dele, ele existiria isolado e solitariamente. Pois, tão logo existam objetos fora de mim, tão logo eu não esteja só, sou um outro, uma outra efetividade que não o objeto fora de mim. Para este terceiro objeto eu sou, portanto, uma outra efetividade que não ele, isto é, [sou] seu objeto. Um ser que não é objeto de outro ser, supõe, pois, que não existe nenhum ser objetivo. Tão logo eu tenha um objeto, este objeto tem a mim como objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não efetivo, não sensível, apenas pensado, isto é, apenas imaginado, um ser da abstração. Ser (sein) sensível, isto é, ser efetivo, é ser objeto do sentido, ser objeto sensível, e, portanto, ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é ser padecente.” (MARX, 2004, p.127-128)

O trecho acima é uma categórica oposição ao “ser não objetivo, espiritualista” de Hegel. Marx “identifica ser à objetividade” e também “procura demarcar o caráter relacional

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da mesma”, de “constante interação objetivamente existente entre seres efetivos enquanto tais, ressaltando ao final o seu caráter de padecimento, ou seja, de carecimento do outro”. (VAISMAN, 1996, p.127) Esse trecho representa uma característica fundamental, apontada por Marx, da determinação ontológica do ser, a determinação de que um ser para existir, deve ser objeto de outro ser, ou, deve ser objetivo. Um ser da abstração, um “ser somente pensado” é um não-ser.

Aqui ressoam em Marx os ecos do materialismo de Feuerbach, na medida em que esse efetua uma “virada ontológica” reconhecida pelo jovem filósofo. Marx se apropria das idéias de Feuerbach as levando, contudo, para além do que o próprio Feuerbach pensava. Deteremos-nos a isso adiante, importa agora reconhecer alguns pontos conexos dessa relação.

Quando Feuerbach diz que “um ser só pensante e, ademais, que só pensa abstratamente, não tem representação alguma do ser, da existência, da realidade”, ele está questionando a possibilidade de o ser “só pensante” conhecer algo da realidade. Isso acontece justamente por que “só mediante os sentidos se dá um objeto em sentido verdadeiro – e não mediante o pensar por si mesmo. O objeto dado pelo pensar ou idêntico a ele é apenas pensamento”. Ou seja, só mediante os sentidos do ser objetivo é possível o pensamento conhecer algo. Um ser que só pensa, “pensa por si mesmo”, e o seu objeto não é diferente de si, é apenas pensamento. Quando Marx diz que somente um ser objetivo tem objetos fora de si, ele está justamente reafirmando a tese de Feuerbach segundo o qual “o ser é tão diferenciado como as coisas que são. /.../ O ser não é um conceito universal, separável das coisas. É uno com o que é”. (FEUERBACH apud CHASIN, 2009, p.43-44)

Contudo, essa confirmação do pensamento de Feuerbach vem ceifada de críticas e distanciamentos. No que segue podemos ver um trecho onde Marx particulariza a relação da objetividade do ser em geral, para o “ser natural”:

“O homem é imediatamente um ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, está, em parte, dotado de forças naturais, de forças vitais, é um ser natural ativo /.../ como ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, é um ser que padece, condicionado e limitado, tal qual o animal e a planta; isto é, os objetos de seus instintos existem exteriormente como objetos independentes dele.” (MARX apud VAISMAN, 1996, p.129)

Nesse trecho Marx coloca que o homem, enquanto ser natural, necessita de objetividades que são exteriores a ele, que existem fora do seu corpo. Dessa maneira necessita de satisfazer essas necessidades, ou, como afirma Chasin, essa “limitação ou incompletude”, recorrendo à externalidade. Marx aponta uma determinação importante do ser do homem, na medida em que afirma que ele, como um ser natural, não pode prescindir de características específicas desse modo de ser. Lukács, em sua Ontologia, vai fazer largas considerações sobre a “insuperável base natural” do “ser social”, apontando que o ser social, ou seja, o ser humano, “pressupõe o

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ser da natureza orgânica e inorgânica”. (LUKÁCS, 1979, p.16-17) A nosso ver, essa afirmação lukácsiana está em perfeita consonância com a afirmação de Marx reproduzida acima, determinando o ser natural, frente ao ser em geral.

Contudo, para Marx, essa relação não se esgota aí. O homem não é apenas um ser natural, o homem é um “ser natural humano”, um “ser genérico”. Vejamos como Marx desenvolve essa peculiaridade do homem:

“Mas o homem não é apenas ser natural, mas ser natural humano, isto é, ser existente para si mesmo [fürsichselbstseiendesWesen], por isso, ser genérico, que, enquanto tal, tem de atuar e confirmar-se tanto em seu ser quanto em seu saber. Consequentemente, nem os objetos humanos são os objetos naturais assim como estes se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. A natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente, imediatamente disponível ao ser humano de modo adequado.” (MARX apud CHASIN, 2009, p.92)

Podemos observar claramente a diferenciação que Marx, já no início do trecho, faz. O homem não é apenas um ser natural, ele é um ser genérico, ou seja, em seu modo de agir ele se relaciona ativamente com a natureza fundando um gênero novo, o gênero humano. Em outras palavras, agindo no mundo de um modo que lhe é próprio ele inaugura novas características que confirmam uma nova concretização do ser, e que cada vez mais se afastam (conforme sua ininterrupta ação) das determinações e/ou limitações estritamente naturais. Portanto o homem se diferencia do ser natural por ser também um ser ativo, que quanto mais atua e conhece, mais ele se afirma como homem. Ele se autoconstrói no seu gênero.

A decorrência disso é imediata. Na sua ação sobre a natureza, “o homem tem sua gênese, a história; mas esse ato genérico lhe é consciente1 e, enquanto tal, supera a si mesmo. A história é a verdadeira história natural do homem”. Portando o homem em seu saber e em seu agir, concomitantemente e conscientemente, modifica a natureza e a si mesmo através do trabalho (ação consciente de intercâmbio com a natureza), suprindo suas necessidades enquanto ser natural, mas ao mesmo tempo criando novas necessidades sociais a serem supridas, construindo e conhecendo a si mesmo e o mundo a sua volta. Esse é o marco da gênese da história do homem, que a partir daí se diferencia da história natural e passa a ser a história da relação do homem com a natureza e da relação do homem entre si. (FREDERICO, 2009, p.195)

1 A “consciência”, ou o “saber” do Homem, como afirma Marx, não pressupõe aqui o completo conhecimento da realidade que rodeia o indivíduo que age, em cada situação diversa. A ação da consciência na realidade, pressupõe somente uma “resposta” à situação que cerca o sujeito, resposta esta, que por sua vez, só mostra sua correspondência com o real no âmbito da prática. Lukács se posiciona categoricamente sobre essa questão: “Se agora, partindo do sujeito que põe, lançamos um olhar sobre o processo global do trabalho, notamos imediatamente que esse sujeito certamente realiza a posição teleológica de modo consciente, mas sem jamais estar em condições de ver todos os condicionamentos da própria atividade, para não falarmos de todas as suas consequências. É óbvio que isso não impede que os homens atuem.” (LUKÁCS, p.233, 2007)

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A partir dessa concepção totalmente nova é que Marx consegue ir além do materialismo sensualista do filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Acusa Feuerbach de somente compreender a realidade através de uma “dupla contemplação”, por um lado como uma “contemplação profana”, com a qual acessa o “sensível”, ou, estabelece o “objetivo” como o realmente existente, e, por outro, através de uma “contemplação elevada, filosófica”, pela qual capta a “verdadeira essência” das coisas.

“Ele [Feuerbach] não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas.” (MARX, 2007, p. 30)

Assim, a contribuição de Feuerbach é exposta nos seus devidos limites, como o próprio Marx reconheceu. Ao não reconhecer o caráter de atividade sensível do “ser natural humano”, Feuerbachacaba por não reconhecer o ser social enquanto tal, e, portanto, de continuar a compreender a relação entre natureza e sociedade como “antíteses que se excluem”. (LUKÁCS, 1979, p.13)

Na primeira das famosas “Teses Ad Feuerbach”, aforismos identificados por Engels em um caderno de anotações de Marx, publicados pela primeira vez no livro de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, Marx expõe de modo categórico um ponto central de sua crítica ao materialismo de Feuerbach, diz ele:

“O principal defeito de todo materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo em oposição ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo – que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal.” (MARX 2007, p.533)

Portanto, para Marx,Feuerbach não compreende o lado ativo do homem, e por isso, não compreende serem os objetos e os sentidos do homem, também frutos da sua autoconstituição, levada a cabo pela sua atividade. A consequência disso se mostra no fato de para ele, subjetividade e objetividade se manterem como exterioridades, limitando assim a possibilidade de conhecer o homem agindo na história.

Por outro lado, o idealismo, na medida em que compreende o lado ativo, concebe a atividade humana somente como atividade ideal, como atividade pensada. A consequência disso é a de não conceberem o caráter sensível, efetivo da atividade, convertendo a história, na

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“história das ideias”, e necessitando de recorrer ao recurso lógico da “alienação da ideia” para remeter a realidade sensível. Vaisman acertadamente identifica que para Marx não se trata de afirmar que toda atividade ideal seja falsa, o que “é falso ou falsificador é considerar a atividade das ideias como a única atividade autenticamente humana. /.../ Falsificador, segundo Marx é o procedimento que estabelece identidade entre ideia e atividade”. (VAISMAN, 1996, p.135)

A objetividade que existe envolvendo o homem, e com a qual ele se relaciona, é modificada pelo caráter ativo da ação do homem, de maneira que após ser modificada não é mais apenas objetividade sensível, mas se torna subjetividade que se objetivou, e é, portanto, um ente totalmente novo, uma objetividade humana. Por exemplo: uma arvore que após ser trabalhada pela subjetividade humana vira uma mesa.

Contudo, não é apenas a objetividade que se modifica, pois nessa relação também a subjetividade que modifica é ela mesma modificada, não sendo nunca mais a mesma após o ato de objetivação. Após objetivar-se a subjetividade é interpelada pelas consequências de sua ação de modo a conhecer novas propriedades e características da realidade na qual age.

Ao admitir a realidade do novo gênero em questão, o gênero humano, como atividade sensível, Marx desemboca em um novo modo de caracterizar a relação entre objetividade e subjetividade. A objetividade do homem, aquela com a qual ele se relaciona, modificando suas formas, retirando dela aquilo que precisa para suprir suas necessidades, ganha uma forma humana, pois se trata de objetividade modificada subjetivamente, tanto pela atividade prática, quanto pela percepção que os homens fazem dela.

Por outro lado, a subjetividade humana, na medida em que modifica a objetividade através da sua atividade, o faz estabelecendo na realidade uma nova objetividade que somente existia subjetivamente, ou idealmente. Portanto, no mundo dos homens a objetividade não é algo exterior ao sujeito, mas sim algo constituído subjetivamente pelo próprio homem. Da mesma maneira, a subjetividade humana não é puro potencial orgânico de faculdades cognitivas naturais, isoladas do mundo, mas sim subjetividade que ao modificar o mundo para suprir suas necessidades, modifica a si própria conhecendo o mundo a sua volta.

Assim, pela mediação da prática sensível, subjetividade e objetividade desenvolvem um intercâmbio que não as permite serem concebidas como exterioridades puras. E pela mesma mediação a subjetividade que modifica o mundo o conhece, de modo que o critério do conhecimento não é mais somente a organização adequada do pensamento do sujeito que procura conhecer, mas sim a própria realidade na qual o sujeito está inserido e se propõe a modificar, a própria realidade do objeto.

É por essa via que a nova relação coloca também uma nova forma de analisar a possibilidade do conhecimento. O conhecimento é possível, pois o sujeito que age no mundo antecipa sua ação idealmente levando em conta a constituição do objeto onde deve agir. Porém

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essa antecipação não é o conhecimento. É na prática que ocorre a confirmação ou a negação daquilo que o sujeito antecipou idealmente, na medida em que corresponde ou não à lógica própria do objeto. Assim, “pensar e ser são /.../certamente diferentes, mas [estão] ao mesmo tempo em unidade mútua”, são dois momentos da atividade sensível cuja unidade é a própria confirmação do “ser genérico” do homem. (MARX apud CHASIN, 2009, p.100)

A instauração teórica de Marx, portanto, não é de maneira nenhuma a negação da existência da atividade ideal, e a redução da prática humana somente a ação prática, sensível. Negando a interpretação empirista do mundo, viciada na realidade sensível, Marx também desautoriza, nesse ponto, qualquer interpretação mecanicista de sua obra. A atividade humana é atividade ideal e atividade real ao mesmo tempo. Prescindindo de um dos lados, o outro lado se descaracteriza enquanto ação humana e perde sua especificidade.

De justa inovação, a formulação de Marx supera uma tradição filosófica que, na teoria do conhecimento, somente consegue conceber a relação entre subjetividade e objetividade mediante a prévia “separação ontológica de sujeito e objeto”. De maneira que o critério para o conhecimento correto se coloca como a exata constituição das faculdades cognitivas do sujeito conhecedor, isolado do mundo, e da objetividade que procura conhecer. É nessa medida, como diz Chasin, que:

“A possibilidade do conhecimento é inteiramente descaracterizada: não é mais indagado se o homem é capaz de conhecer, mas se um logos desencarnado – enquanto tal sem gênese determinada e sem vínculos necessários – tem essa faculdade. Por isso no dizer de Marx, polemizar ‘acerca da realidade ou não-realidade do pensamento – que é isolado da prática – é uma questão puramente escolástica’” (CHASIN, 2009, p.102)

Para Marx as possibilidades de conhecimento estão inscritas no próprio ser que “se confirma” na sua ação e em seu conhecimento. Não se trata aqui de perguntar se o homem é capaz de conhecer, mas de confirmar que na sua práxis o homem realmente conhece, e a séculos se autoconstituiu com base nesse conhecimento. A partir dessa confirmação ontológica é que se pode pensar como se colocam as possibilidades de conhecimento em relações sociais infinitamente mais complexas, atentando para as condições determinantes tanto no sujeito que conhece como no objeto a ser conhecido.

Nesse sentido vale abordar de maneira mais explícita uma determinação que já vem implícita desde o início desse capítulo, para que possamos tratar de modo adequado as possibilidades de conhecimento do individuo: trata-se da sociabilidade enquanto condição de existência do novo gênero, tanto em seu pensamento, quanto em sua ação.

Sobre isso Marx afirma:

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

“Assim como a sociedade mesma produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por ele. A atividade e a fruição, são também modos de existência, segundo a atividade social e a fruição social. A essência humana da natureza está, em primeiro lugar, para o homem social, pois é primeiro aqui que ela existe para ele na condição de elo com o homem, na condição de existência sua para o outro e do outro para ele, é primeiro aqui que ela existe como fundamento da sua própria existência humana, assim como também na condição de elemento vital da efetividade humana/.../ Portanto, a sociedade é a unidade essencial completada do homem com a natureza, a verdadeira ressurreição da natureza, o naturalismo realizado do homem e o humanismo da natureza levado a efeito.” (MARX, 2004, p.106-107)

Para Marx, portanto, a sociedade não somente produz o homem como também é produzida por ele. A diferença entre o ser natural e o ser natural humano, é que no ser natural o modo de existência do ente, exemplar unitário, está dado biologicamente e não vai além dessas possibilidades biológicas. Já a condição social do ser natural humano, faz com que ele supere cada vez mais essa base natural através de sua atividade. Mas isso somente é possível, pois a atividade e a fruição não são somente dos indivíduos isolados, mas sim da sua ação articulada com conjunto da sociedade. Ou seja, o “homem social” é a “condição” de existência do ser natural humano, justamente porque é o seu próprio “modo de existência”.

Ainda assim, a existência genérica do homem social não possibilita a identificação de todo ser individual com o gênero, imediatamente. Para Marx:

“é preciso evitar fixar mais uma vez a ‘sociedade’ como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também – e isto necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais particular ou universal. (MARX, 2004, p.107)

O autor afirma, portanto, que a vida individual do ser natural humano, é e só pode ser uma “confirmação da vida social”, onde o indivíduo se apropria das produções humanas que lhes são dispostas e exterioriza seu modo de vida particular. “Todo modo de efetivação individual – prático/teórico – se dá na trama da interatividade humano-social”. (VAISMAN, 1996, p.188) Nessa medida também o modo de sentir e pensar dos indivíduos inseridos em uma formação social específica tem larga relação com ela. Fica claro para Marx, quando em confronto direto com a concepção dos jovens hegelianos que separa consciência do ser real, sensível, que a consciência tem desde o início um caráter social, de necessidade relacional entre os homens. Para ele a consciência é “consciência do vínculo limitado com as outras pessoas”, da

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“necessidade de firmar relações com os indivíduos que o cercam”, e está vinculada diretamente com os processos de vida que as relações sociais engendram e as respostas correspondentes. Essa determinação, contudo, não implica diretamente a afirmação da correspondência mecânica entre relações de produção e consciência social, como muito se vem fazendo em nome das afirmações de Marx. No famoso trecho do Prefácio de 57, Marx estabelece isso com muita clareza. Após considerar as relações de produção e o fato de a totalidade dessas relações constituir a “base” sobre a qual se ergue a “superestrutura política e jurídica”, o autor afirma categoricamente: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.”2 (MARX, 2007, p.45)

A constatação desse caráter social do pensamento vai desvendar, no plano do conhecimento, os condicionamentos aos quais estão submetidos os sujeitos que se propõe a conhecer a realidade. “/.../ se em suas representações põem a realidade de cabeça para baixo, isto é consequência de seu modo de atividade material limitado e das suas relações sociais limitadas que daí resultaram”. (MARX & ENGELS apud VAISMAN, 1999, p.197)Disso resulta necessariamente que diferentes relações sociais, em diferentes épocas, ou, que diferentes localizações sociais dos sujeitos em uma estrutura social determinada, vão também determinar socialmente a possibilidade do conhecimento. É a essa determinação social do pensamento que Marx vai sempre recorrer quando, na crítica aos “economistas vulgares”, identifica o posicionamento teórico dos seus autores na sua origem social, de classe.

Nesse ponto, o estabelecimento do caráter prático e social do conhecimento nos leva a uma problemática que, levantada por Chasin, após Lukács, é de grande importância para o tratamento da temática da ideologia e do conhecimento em geral, principalmente no âmbito das Ciências Sociais. Trata-se da contraposição que atualmente se costuma postular da relação entre interesse e verdade. Como diz Chasin, nos dias atuais a “verdade interessada passou a ser compreendida apenas como verdade utilitária, funcionalizada ou instrumentalizada, sem que fosse encarado a sério o tema preliminar da verdade e da falsidade como utilidades históricas”. (CHASIN, 2009, p.103)

Para Marx não se pode concluir pelo critério do interesse se uma formulação ideal é falsa ou não, pois toda formulação ideal humana tem em vista ou modificar a natureza,

2 O trecho citado do famoso prefácio é objeto de inúmeras polêmicas no que se refere ao modo como Marx trata a influência da “base” sobre “superestrutura”. Daí muito se incorreu ao erro de interpretar a passagem como uma espécie de “economicismo” de Marx, na medida em que a base econômica determinaria todas as outras expressões sociais, como a ideológica, política, jurídica e etc de maneira causal e mecânica. Fundamental para compreender com clareza a afirmação com a qual Marx finaliza o trecho, a saber, “não é a consciência dos homens que determina o ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”, é perceber a correlação entre base e superestrutura como componentes de um complexo maior que é a totalidade do ser social, a qual Marx imputa, definitivamente, a determinação da consciência. Dessa maneira, a base econômica não é a determinante da consciência, mas como seu próprio nome diz, ela é a base, a condição de possibilidade, da existência das relações jurídicas, políticas, religiosas e ideológicas em geral. É a partir dessa base, e sempre retornando a ela, que se estabelecem e se desenvolvem as diferentes formas de consciência. (LUKÁCS, 1979,p.41)

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

ou, as próprias relações sociais, de maneira que o interesse é a própria confirmação de sua existência. Como diria Marx o homem “se confirma tanto em seu ser como em seu saber”. Aqui se demonstra um aspecto que vai acompanhar Marx durante toda sua obra, na medida em que, como diz Lukács, ele vai analisar os seus interlocutores sempre recorrendo à “crítica ontológica” dos limites científicos de um tempo histórico determinado3. Nesse caso específico, a crítica ontológica se direciona no sentido de afirmar falsa a tentativa de problematizar a possibilidade de conhecimento sob um prisma que separa o ser que pensa do seu processo de vida real. Para Marx “a consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente”, ou seja, o sujeito que pensa e que formula teoricamente, está inserido em determinadas relações sociais que exigem dele respostas para as questões que surgem a partir delas. Portanto o sujeito que formula uma resposta sempre a formulará de maneira interessada, buscando esclarecer as conexões dos fenômenos em questão.

Na crítica aos “economistas vulgares” que Marx faz tanto n’A Miséria da Filosofia, como em As Teorias da Mais-Valia esse procedimento de vai se mostrar com toda intensidade.Não se trata de saber se tal afirmação é errada porque contém o interesse de um grupo social específico recusando-a assim de maneira moral, mas sim saber, segundo a própria lógica do objeto em questão, se a afirmação é falsa ou verdadeira, e posteriormente determinar, segundo a vinculação social na qual se encontra a afirmação, a causa da sua falsidade ou veracidade, ou seja, a exata conexão que acusa se o erro advém realmente do interesse socialmente determinado.

É nessa relação específica que algumas das formulações sobre a questão da ideologia incorrem por vias estranhas ao estatuto que o pensamento de Marx inaugura. Como argumentaremos a seguir essas vias se fundamentam em um “critério científico-gnosiológico” para determinar um certo tipo de pensamento como falso e enquadrar as formulações de Marx acerca da categoria da ideologia nesse rol. Tipicamente, esse tipo de tratamento é dado à questão principalmente pela obra de Althusser, quando este estabelece o que chama de “corte epistemológico” entre a ciência e a ideologia.

3 Lukács no capítulo de sua Ontologia dedicado a Marx, vai expor de modo detalhado como a relação entre essência e fenômeno no ser social vai chegar até o “agir interessado”, de maneira que grupos sociais com interesses determinados possam se apropriar da ciência de modo a deixar de lado as conexões reais da realidade. Nesse sentido aponta a importância da “critica ontológica”, uma “nova forma tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia” criada por Marx, que assume “uma cientificidade que no processo de generalização nunca abandona esse nível, mas que, apesar disso, em toda verificação dos fatos singulares, em toda reprodução ideal de uma conexão concreta, tem sempre em vista a totalidade do ser social e utiliza essa como metro para avaliar a realidade e o significado de cada fenômeno singular; uma consideração ontológico-filosófica da realidade em-si, que não se põe acima dos fenômenos considerados, coagulando-os em abstrações, mas se coloca ao contrário – crítica e autocriticamente – no máximo nível de consciência, como o único objetivo de poder captar todo ente na plena concreticidade da forma de ser que lhe é própria, que é específica precisamente dele.” (LUKÁCSapud CHASIN, 2009, p.104-105)

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ALTHUSSER E O “CORTE EPISTEMOLÓGICO”

Em um primeiro momento o problema da ideologia foi de fato importante na teorização de “alguns autores particularmente importantes para a formação da sociologia do conhecimento”. Nesse caso específico, segundo Vaisman, o “fenômeno da ideologia, é concebido como sinônimo de pensamento socialmente condicionado”, sendo portanto dado um tratamento diverso em cada caso apontado. Contudo, Vaisman prossegue, afirmando que: mesmo que se mostrem “as várias definições dos objetos e dos atributos dessa disciplina, /.../, convém sublinhar que a questão central, sem dúvida, é a própria problemática do conhecimento” sendo que:

“nesse quadro, é fácil perceber o modo pelo qual a teoria das ideologias de Marx foi abordada e assimilada pela sociologia do conhecimento: como uma reflexão específica sobre o papel dos fatores de caráter sócio-economico na formação das ideias falsas”. (VAISMAN, 1996, p.56)

Um fato importante que Vaisman aponta, é a possibilidade de se “identificar nesta fase, em certa medida, elementos de preparação da etapa subsequente que se caracteriza pelo aparecimento da polêmica epistemológica” em torno na obra de Marx, e portanto, da problemática da ideologia. O autor mais característico dessa “etapa” é o filósofo francês Louis Althusser, na obra de quem, segundo Vaisman, ocorre uma “radicalização do critério gnosiológico na determinação do que é ideologia.”. Ao afirmar que “a questão epistemológica é o próprio objeto da filosofia marxista”, Althusser estabelece à filosofia “simplesmente uma função no campo da prática teórica, a de ‘traçar uma linha de demarcação no interior do domínio teórico, entre ideias consideradas verdadeiras e ideias consideradas falsas, entre o científico e o ideológico’”. (ALTHUSSER apud VAISMAN, 1989, p.402)

O que segue dessa afirmação, de maneira bastante clara, é que “ideológico,/.../, é todo enunciado que, em termos puramente epistemológicos, se configura de modo oposto àquela que seria a função teórica ou função do conhecimento”. Portanto, para Althusser haveria uma “descontinuidade drástica, de ordem ‘qualitativa, teórica e histórica, que podemos designar, com Bachelard, pelo termo ‘corte epistemológico’”. (VAISMAN, 1989, p.402)

Embora se trate de uma relação complexa, que não pretende de modo algum ser esgotada nesse trabalho, é preciso indicar que essa concepção é fruto de uma separação epistemológica entre subjetividade e objetividade, característica do pensamento epistemológico cientificista que, embora se particularize de diversas formas em outros autores e doutrinas filosóficas, tem seu estatuto centrado no critério gnosiológico que postula a centralidade da busca pelos critérios de conhecimento no sujeito conhecedor e não no objeto a ser conhecido.

Como vimos anteriormente o novo estatuto que o pensamento de Marx inaugura deixa de recorrer a essa separação para pensar a problemática do conhecimento, fundamentando ontologicamente um enriquecimento perceptivo da questão, na medida em que reconhece que

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tanto o sujeito é histórica e socialmente determinado em seu pensamento, quanto o objeto em seu desenvolvimento.

Tendo em vista esse estatuto a pura e simples caracterização da ideologia como falso, se opondo à ciência, se, confrontada com trechos famosos e recorrentemente invocados da obra de Marxpara caracterizar a ideologia, inclusive pelo próprio Althusser, coloca toda uma série de complexos e instituições sociais tais como as “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas” nos termos de uma falsidade.Isso faz com que Althusser em seu ensaio, Aparelhos Ideológicos do Estado, tenha que caracterizar a ideologia como um “mecanismo que transforma imaginariamente o indivíduo em sujeito, mas também tem a função de ‘conduzir sua auto-sujeição ao sistema dominante’”, (VAISMAN 1989, p.404)

A própria afirmação de Althusser sobre o tema, na sua obra Elementos de Auto-Crítica, datada de 1972, deixa claro que o próprio autor reconhece essa relação:

“apesar de todas as minhas precauções, eu o concebi [o corte epistemológico] e defini nos termos racionalistas da ciência e da não ciência. Não abertamente nos termos ‘clássicos’ da oposição entre a verdade e o erro (aquela do cartesianismo, retomando uma posição ‘fixada’ desde as origens, desde o platonismo). Não nos termos de uma oposição entre o conhecimento e a ignorância (aquela da filosofia das luzes). Mas, ouso dizer o pior: nos termos de uma oposição entre A Ciência e A Ideologia.” (ALTHUSSER apud VAISMAN, 1996, p. 74)

“IDEOLOGIA EM GERAL” E FALSA CONSCIÊNCIA

A demarcação do fenômeno da ideologia como uma falsidade, ou como uma falsa consciência, contudo, não pode ser afirmada somente uma simples interpretação errônea dos textos de Marx. Há que se considerar que existem trechos diversos da obra do autor onde realmente há caracterizações diferenciadas da ideologia. Muitos autores como Gramsci, Lukács e Vaisman, reconhecem essa “duplicidade” na caracterização que Marx faz do fenômeno da ideologia.

É principalmente n’A Ideologia Alemã, em um fragmento de dedicado a Feuerbach, mais especificamente no item: “A ideologia em geral, em especial a filosofia alemã”, que Marx & Engels vão expor a sua famosa passagem sobre sua concepção da história:

“Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser examinada de dois lados, dividida em história da natureza e história dos homens. /.../ teremos que analisar a história dos homens, pois quase toda ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida dessa história ou uma abstração total dela. A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história.” (MARX & ENGELS, 2007, p.86-87)

Podemos observar, nesse trecho, que os autores identificam a ideologia com uma

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“concepção distorcida da história”. Mas não só. Consideram também como “uma abstração dela”. Ou seja, a “concepção distorcida da história” não se trata de qualquer distorção, mas daquela distorção que faz “uma abstração total” da história. A frase arrematada no final do trecho é categórica nesse sentido. “A ideologia, ela mesma, é apenas um dos lados dessa história” (grifos nossos)

Vejamos que esse modo de proceder de Marx & Engels, é mesmo um nervo vital de sua argumentação levada a cabo nas mesmas páginas que seguem a do trecho citado. Importa para eles naquele momento explicar que, o que os indivíduos pensam, como eles representam o mundo idealmente, é uma consequência do “modo” pelo qual eles “exteriorizam sua vida”, ou seja, produzem as condições de sua própria existência. Nesse sentido afirmam que não há consciência separada do mundo, e que uma consciência invertida é fruto do “modo limitado de atividade material” e de “relações sociais limitadas”. É nesse sentido que vão censurar os hegelianos: “A nenhum desses filósofos ocorreu a ideia de perguntar sobre a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, sobre a conexão de sua crítica com seu próprio meio material.” (MARX & ENGELS, 2007, p.84)

Em outro longo trecho essa relação fica mais exposta ainda, pois nele os fundadores do marxismo colocam o pensamento “sobre os seus próprios pés”:

“A produção de ideias, de representações, da consciência, está em princípio, imediatamente entrelaçada coma a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. /.../ Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência [Bewusstsein] não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente {bewusste Sein], e o ser dos homens é o seu processo de vida real. Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmera obscura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida /.../.” (MARX & ENGELS, 2007, p.93-94)

Nesse trecho Marx e Engels nos dizem que ideologia, é a representação da realidade onde “os homens e as relações aparecem de cabeça para baixo”, ou seja, onde se concebe a realidade como produzida pelas ideias, e não pelo “desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde” ou pelo “processo histórico” de sua vida.

A interpretação de Vaisman é marcante nesse sentido. Para a autora, os trechos citados se referem à questão da ideologia da mesma maneira como o termo é usado para designar Proudhon na obra, A Miséria da Filosofia. Ou seja, diz que Proudhon “encara as categorias econômicas como ideias puras, ‘pensamentos espontâneos, independente das relações reais’”. (VAISMAN 1996, p. 232) O termo ideologia n’A Ideologia Alemã e n’A Miséria da Filosofia assume um sentido onto-crítico frente a um “procedimento especulativo” específico, que diz

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respeito “à inversão ontológica perpetrada pela especulatividade neohegeliana. Ou seja, a inversão não remete à ideia falsa, mas à falsidade de que as ideias gerem o ser”. (VAISMAN, 1996, p. 150)

Já a interpretação de Terry Eagleton, em sua obra Ideologia, caminha para outros rumos. Eagleton aponta que “a teoria das ideologias de Karl Marx é provavelmente mais bem entendida como parte de sua teoria da alienação”, na qual Marx explica que “em certas condições sociais /.../, os poderes, produtos e processos humanos escapam ao controle dos sujeitos humanos e passam a assumir uma existência autônoma”, começando a “exercer sobre eles um poder imperioso”, ao ponto de eles próprios se submeterem a o que, na realidade, nada mais é do que “os produtos de sua própria atividade”. Continua Eagleton, dizendo que “a teoria da ideologia /.../ de Marx e Engels diz respeito a essa lógica generalizada de inversão e alienação”, arrematando que “se os poderes e instituições humanos podem ser submetidos a esse processo, então a consciência também pode.” (EAGLETON, 1997, p.71)

Para o autor a lógica que rege essa ligação necessária entre a “teoria da ideologia” de Marx e sua “teoria da alienação” se funda em três constatações. Em um primeiro momento Eagleton constata a tese materialista de que a consciência nada mais é do que a consciência do mundo existente, de modo que esta não pode ser desligada do “processo de vida real”. Em um segundo momento o autor constata que a consciência é um fruto da prática, mas a prática se constitui de relações sociais invertidas, ou, alienadas. Conclui, portanto, postulando que essa inversão dada na realidade através do fenômeno da alienação, tem um reflexo na consciência tornando a própria consciência da pratica existente, ou seja, do mundo alienado, uma consciência invertida, uma falsa consciência.

Deparamos-nos aí com duas interpretações diferentes sobre a categoria da ideologia, no modo como ela aparece nos trechos retirados de A Ideologia Alemã, obra que é referência para o estudo da categoria nas Ciências Humanas de maneira geral. Por um lado Ester Vaisman caracteriza que o modo a ideologia é utilizada aí se refere a um instrumento crítico de uma forma específica de pensamento, a especulatividade neohegeliana. Por outro Terry Eagleton trás a tona a categoria da alienação e identifica a ideologia como o reflexo da inversão posta na realidade pela alienação, na consciência.

Contudo, Marx, no Prefácio a Contribuição à Crítica da Economia Política, já mencionado aqui, vai utilizar a categoria de maneira fundamentalmente diversa.

“na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais

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determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação que se produziu na base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais transformações, convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem ser verificadas fielmente com a ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.” (grifos nossos) (MARX. 2007. p.46)

A produção social da consciência, a organização produtiva dos homens, as relações de produção, todas essas categorias são analisadas nesse trecho em um nível de generalização muito maior. Ao que nos importa aqui convém nos determos na analise do termo ideológico empregado por Marx no trecho citado. O autor chama a atenção do leitor a “distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção” das “formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”.

Ora, a não ser que Marx pretendesse enunciar todas as formas diferenciadas da produção econômica como especulativas, ou errôneas, ou falseadas, não há como interpretemos, a luz do estatuto ontológico da obra do autor, a ideologia da mesma maneira que nos trechos explicitados n’A Ideologia Alemã.

É baseado nesse trecho que Lukács, em sua obra tardia, Para uma Ontologia do Ser Social, irá caracterizar o fenômeno da ideologia como uma “forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social dos homens consciente e operativa”, afirmando assim que a ideologia “não é uma qualidade fixa deste ou daquele produto espiritual, mas, ao invés, por sua natureza ontológica é uma função social, não uma espécie de ser” (LUKÁCS apud VAISMAN, 1989, p. 418-420)

Para Vaisman, a ideologia no segundo sentido levantado por Marx é muito mais “denominativa de um amplo complexo de entificações sociais, onde estão incluídas formas de consciência, bem como dos horizontes sociais a partir das quais são engendradas”. (VAISMAN, 1996, p.237) Vaisman em sua tese chega a analisar vários momentos da obra do autor onde ele utiliza o termo, e conclui que existem duas acepções diferentes, mas “não necessariamente excludentes”: no primeiro caso o termo ideologia é empregado na “identificação da filosofia

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especulativa neohegeliana em particular e à especulação em geral” denominado pela autora do sentido “onto-crítico”; e no segundo caso, mencionado acima, o sentido é denominado “onto-nominativo”. (VAISMAN, 1996, p.237)

Desse trecho também se convencionou tirar como consequência, outra forma de conceber o fenômeno da ideologia enquanto toda e qualquer forma de consciência distinta das categorias econômicas. Desse tipo de afirmação é que surgiram definições de ideologia enquanto “concepção de mundo”, uma definição um tanto quanto generalizada. Cabe aqui apenas chamar a atenção para o fato de que Marx não só coloca todas as relações enunciadas como “formas ideológicas”, mas que ele também enuncia uma relação de condição, ou seja, as “formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim”.

CONCLUSÃO

A determinação social do pensamento na obra de Marx, vai delinear de maneira mais clara em que medida pode emergir uma “falsa consciência” ou uma consciência falseada da realidade social. Isso vai mostrar como certas condições sociais históricas podem favorecer, limitar, possibilitar e até impossibilitar o aparecimento de certas formações ideais ou formas de consciência. A relação feita por teóricos que relacionam a teoria da alienação com o fenômeno da ideologia se estabelece de maneira mecânica e limitada. O complexo intrincado de relações concretas que estabelece os reflexos do processo de alienação na consciência, em suas diversas formas, é imediatamente identificado com a categoria da ideologia.

A constatação da “inversão” real impetrada pela existência da alienação do ser social na história, por si só estabeleceria um limite à consciência deste, que não poderia fugir à existência da falsa consciência. Parece-nos, como argumentamos acima, que mesmo nos trechos onde Marx relaciona a inversão na consciência com uma inversão real, ele se refere a uma possibilidade complexa de determinação dessa inversão que deve ser avaliada conforme cada manifestação histórica da inversão em questão. Ao tematizar a realidade alemã com a qual se deparava, o autor identifica nela a limitação que tem seu reflexo no pensamento neohegeliano especulativo.

Dessa forma Eagleton concebe a existência de um “paradoxo” na teoria de Marx e Engels sobre a ideologia. Pois se, em uma realidade na qual as relações sociais alienadas desembocam em uma consciência invertida (falsa consciência), como pode a teoria que faz a crítica da ideologia se prestar como portadora da verdade? O autor chega a aventar, baseado nessa conclusão, que a teoria de Marx e Engels conserva ainda “algo de uma estrutura racionalista ou iluminista”. Ao mesmo afirma ser ela anti-racionalista, na medida em que concebe que a base das formações ideais é a atividade prática social, “as contradições que essa atividade gera”. Mais a frente ele recorrerá a divisão manual e intelectual do trabalho para justificar o que

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chama de “erro ideológico”, afirmando que as ideias que se separam da atividade material não necessariamente deixam de ser determinadas por esse processo, essa separação, em si mesma, é fruto do processo em questão. (EAGLETON, 1997, p.71)

Parece-nos que esse impasse se desenvolve em torno da vinculação simplista entre o fenômeno da alienação e o da ideologia. Como afirmado acima, a compreensão da complexidade da determinação social do pensamento, em cada caso, pode identificar as necessidades sociais inerentes aos erros impetrados pelas formações sociais falsas. Isso porque ela desvenda uma nova forma de perceber a relação que o sujeito conhecedor em seu pensamento tem com o objeto a ser conhecido, pois se mostra totalmente vinculado ao desenvolvimento social alcançado pelo pensamento nas condições de existência na qual se encontra.

As consequências decorrentes dessa nova forma de perceber os enunciados de Marx foram demonstradas por nós, nos limites desse artigo como um veículo para possíveis interpretações que julgamos mais ricas sobre o fenômeno da ideologia. A categoria da ideologia, a luz desse “retorno a Marx” inaugurado por Lukács, abre possibilidades de identificação das disputas de consciência que ocorrem na complexa sociedade de classes atual de maneira muito mais dinâmica do que aquela que identifica a função teórica da ideologia simplesmente com a identificação do falso, do manipulado, do velamento e etc.

Na trilha do que afirma Lukács, o fenômeno da “falsa consciência” existe, mas ele tem uma forma particular, ele se constitui como formas de consciência que “não resistem a uma crítica gnosiológica”, ou seja, que quando confrontadas ao real se demonstram equivocadas. Isso não faz com que toda falsa consciência exerça realmente uma papel determinante na “batalha das ideias” que permeia todo o conflito social. As novas possibilidades de ação da “arma da crítica”, com a categoria da ideologia pensada em seu formato ontológico, podem ser muito melhor pensadas na sua função de se “apoderar das massas”. (MARX, 2010)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHASIN, J. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução metodológica. São Paulo. Boitempo Editorial. 2009.

CHAUÍ. M. O que é Ideologia? São Paulo: Círculo do Livro, 1980.

EAGLETON, T. Ideologia. São Paulo. Boitempo Editorial e Editora Unesp. 1997.

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KONDER, Leandro. A questão da Ideologia. São Paulo: Companhia das letras, 2002.

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A PROBLEMÁTICA GNOSIOLÓGICA E A IDEOLOGIA EM MARX

LESSA, Sérgio. Para compreender a ontologia de Lukács. Ijuí.Editora UNIJUI. 3ª edição. 2007

LUKÁCS, György. O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro. Editora UFRJ. 2007

_____. Ontologia do Ser Social: Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx. São Paulo. Editora Ciências Humanas. 1979.

_____. Ontologia do Ser Social: Introdução. In: <www.sergiolessa.com/BibliotecaLukacs.html>. Ultimo acesso em: 29/12/2011.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo. Editora Expressão Popular. 2007.

_____. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

_____. A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

_____. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo. Boitempo Editorial. 2005

_____. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo, Boitempo Editorial. 2004

NETTO, J.P. Teoria e Revolução em Marx. In: Democracia e Transição Socialista: Escritos de Teoria Política. Belo Horizonte. Oficina de Livros. 1990

VAISMAN, E. A Ideologia e sua Determinação Ontológica. In: Ensaio 17/18. São Paulo: Editora Ensaio, 1989, p 399 - 444.

_____. A Determinação Marxiana da Ideologia. Belo Horizonte: UFMG, 1996.

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O URBANISMO COMO MODO DE VIDA NA OBRA “SOBRADOS E MUCAMBOS, DE GILBERTO FREYRE

Cristine Palma Zochio

Bacharel e aluna do Mestrado Acadêmico em Ciências Sociaispela Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Resumo: Em Sobrados e Mucambos, obra publicada em 1936, Gilberto Freyre relata a decadência do sistema patriarcal brasileiro nos séculos XVIII e XIX e caracteriza desta maneira como ocorreu a modernização e urbanização do país. No mesmo período, em 1938, Louis Wirth publica O Urbanismo como Modo de Vida, trabalho que descreve sua proposta para a teoria sobre o urbanismo, concebendo a cidade como entidade sociológica. O presente artigo tem por finalidade demonstrar que é possível apropriar-se da teorização sobre o urbanismo como modo de vida de Louis Wirth para corroborar a obra de Gilberto Freyre no tocante à urbanização e modernização do país.

Palavras-chave: Urbanismo; Louis Wirth; Gilberto Freyre.

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O URBANISMO COMO MODO DE VIDA NA OBRA “SOBRADOS E MUCAMBOS, DE GILBERTO FREYRE

INTRODUÇÃO

A teorização do meio citadino de caráter urbano e as implicações que esse meio pode inferir na vida cotidiana de seus habitantes foram percebidas por Louis Wirth como necessárias para a melhor compreensão da cidade sob o viés sociológico. A proposta do autor em questão, no trabalho intitulado O Urbanismo como Modo de Vida, foi a de criar uma teoria sobre o urbanismo com a intenção de depreender os significados urbanos que permeiam a cidade e, de forma mais direta e sucinta, determinar variáveis e características específicas do modo de vida urbano. Louis Wirth alega que os estudos em relação à cidade – no período no qual escreve - são precários de teorização sobre esse modo de vida - urbana - e que, para a realização de um trabalho eloquente, apresenta-se necessário, em um primeiro momento, determinar quais são de fato os caracteres que determinam a cidade como entidade sociológica.

O trabalho mencionado, coloca-se relevante ressaltar, não se limita em categorizar apenas variáveis características do modo de vida urbano, mas também apresenta três perspectivas empíricas de compreender este modo específico de vida: urbanismo na perspectiva ecológica; urbanismo como forma de organização social; personalidade urbana e comportamento coletivo. Para o presente artigo, que propõe a compreensão e assimilação do modo de vida urbano, apresentado na teoria sobre o urbanismo de Louis Wirth, à obra Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, serão utilizadas apenas as três variáveis características do urbanismo como modo de vida: número; densidade e heterogeneidade.

DESENVOLVIMENTO

Louis Wirth relata que a variável número diz respeito ao tamanho do agregado populacional, ou seja, remete à ideia do montante de habitantes em uma determinada região, em uma determinada cidade. Pode-se inferir que quão maior for este número de habitantes, maior será a diferenciação entre eles existente e, por consequência, menor será também a interação pessoal.

O aumento no número de habitantes de uma cidade será determinante para a alteração no caráter das relações sociais. Enquanto o número do agregado se apresenta restrito, as relações sociais configuram um perfil mais solidário e menos individualista. Gilberto Freyre demonstra que o declínio do patriarcalismo no Brasil acentuou essas relações sociais de caráter mais individualista e menos solidárias, relações solidárias tão típicas e facilmente percebidas nos tempos de Casa-Grande & Senzala1.

O autor de O Urbanismo como Modo de Vida ainda explicita que, com o aumento numérico, as segmentações sociais conduzem ao superficialismo, ao anonimato, à maior emancipação do indivíduo (WIRTH, 1967). Condição esta - emancipatória - que permite ao habitante da cidade

1 Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala. 51ª ed. Global Editora, São Paulo 2003.

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CRISTINE PALMA ZOCHIO

depender em menor grau de uma única personalidade, de um único proprietário, aumentando assim sua independência de decisão. Gilberto Freyre declara que essa maior emancipação do indivíduo, benéfica no quesito relacionado à ascensão social - do bacharel; do médico; do mulato - era também por outro lado maléfica na medida em que nem todos conseguiam de fato ascender socialmente e, porventura, se a ascensão não se concretizava na ordem social assim imposta - a ordem individualista - os indivíduos desprovidos de sentimentos de solidariedade não sentiam a necessidade de auxiliar os desamparados. Por esta razão, Gilberto Freyre insiste na ideia de que a diferenciação aqui imposta pela modernização do país - iniciada com Dom João VI - alarga os laços de solidariedade, deixando-os quase inexistentes, enquanto que enrijece os de exclusão, deixando que seja visível o quão segregadas são as diferenças.

A diferenciação urbana, acentuada pela variável numérica descrita por Louis Wirth, também tende a aumentar os contatos secundários no lugar de contatos primários. Na obra freyriana Sobrados e Mucambos, o autor relata a importância dos contatos intermediários personificados no indivíduo do mascate - no início da decadência patriarcal - assim como no papel do negociante - com uma urbanização menos patriarcal e mais sólida - que podem ser interpretados via urbanismo, como contatos de caráter secundário. Os senhores brancos de engenho - brancos enquanto característica social - limitaram-se aos contatos secundários em um primeiro momento mais em relação à diferenciação de status e de classe social do que em virtude a uma diferenciação de caráter impessoal ou blasé2.

Densidade, a segunda variável descrita por Louis Wirth, busca demarcar que uma cidade só poderá conceber seu modo de vida urbano se os habitantes que nela se encontram forem em montante o suficiente para projetar uma densidade mínima em um determinado território. Pode-se auferir que a variável densidade permite que o pesquisador corrobore a variável número. Número e densidade se apresentam desta maneira como indissociáveis, visto que, sem a densidade necessária, o número de uma cidade pode se apresentar como distorcido ou simplista.

É determinante, aliás, que para a compreensão total do modo de vida urbano as três variáveis trabalhadas por Louis Wirth sejam analisadas em paralelo, sendo a análise única de uma delas irrelevante para a pesquisa sobre a teoria do urbanismo. A análise restrita de apenas uma variável apresenta-se como inválida para o estudo do urbanismo como modo de vida.

A maior aglomeração de habitantes em determinados locais tende - como a variável número - a uma alteração da ordem social estabelecida. Com a densidade urbana, as relações sociais e suas estruturas se tornam mais complexas e apresentam maior diferenciação. Georg Simmel sugere que o contato físico na vida citadina, apesar de estreito, devido às mudanças de estrutura social, se tornaram também muito mais distantes e impessoais.

[...] conforme sugeriu Simmel, o contato físico estreito de numerosos indivíduos

2 “A essência da atitude blasé consiste no embotamento do poder de discriminar.” (1967: 16) Georg Simmel, A Metrópole e a Vida Mental.

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produz necessariamente a mudança nos meios através dos quais nos orientamos em relação ao meio urbano, especialmente em relação aos nossos concidadãos. Tipicamente, nossos contatos físicos são estreitos, mas nossos contatos sociais distantes. (WIRTH, 1967: 103)

É o ar blasé que penetra a cidade. É o sentimento mais individualista e menos solidário. É a impessoalidade dos sobrados sobrepujando a pessoalidade das casas-grandes.

A terceira variável - heterogeneidade - que Louis Wirth retrata é talvez a mais complexa, pois solidifica em si a diferenciação mencionada das duas primeiras variáveis - número e densidade.

O habitante da cidade tem autonomia para tomar decisões individuais, contudo não será representado individualmente, mas sim em grupos representativos. O pessoalismo anterior - das casas-grandes - não é explícito como em outros tempos, mas também não é possível afirmar que tenha desaparecido inteiramente. Observa-se, nos grupos representativos que emanam do urbanismo como modo de vida, o sentimento de solidariedade. Com esse novo modo de vida, o pessoalismo se concretiza em pessoalismo de grupos e não mais apenas de indivíduos. A heterogeneidade depreende-se pelos diversos grupos que se apresentam na cidade urbana, muitas vezes em virtude de raça, língua, ocupação, renda e status social. A diferenciação neste ponto se apresenta de forma a segregar os diversos grupos em territórios na cidade:

O local e a natureza do trabalho, a renda, as características raciais, étnicas, o status social, os costumes, hábitos, gostos preferências e preconceitos estão entre os fatores significantes de acordo com os quais a população urbana é selecionada e distribuída em locais mais ou menos distintos. Elementos populacionais diversos, habitando localidade compacta, tendem portanto a se separar uns dos outros na medida em que suas necessidade e modos de vida são incompatíveis uns com os outros e na medida em que seja antagônicos. Do mesmo modo, pessoas de status e necessidades homogêneos, consciente ou inconscientemente, se dirigem ou são

forçadas para a mesma área. (WIRTH, 1967: 103)

Com a obra freyriana Sobrados e Mucambos, esse aspecto fica visível aos olhos do leitor e pesquisador, posto que essa visibilidade fosse de fato requerida aos “olhos dos estrangeiros” 3. Os sobrados - em sua fase mais urbanizada - ocupam lugar privilegiado, local de prestígio, territórios socialmente valorizados, perto dos centros e das comodidades da cidade, dos instrumentos que a mesma oferece: teatros; museus; igrejas; comércios. Os mucambos, por outro lado, se estabeleceram onde foi possível, muitas vezes longe do centro, em local afastado para determinar a distância social existente entre os antagonismos. O negociante estrangeiro ocupa um território intermediário, onde se apresenta no centro das cidades, porém sem toda

3 Os “olhos dos estrangeiros” , citado na obra de Gilberto Freyre Sobrados e Mucambos faz referência à necessidade de demonstrar aos europeus - ingleses e franceses - que o modelo de civilização que se implantava no Brasil era semelhante ao existente na Europa.

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a exacerbação dos sobrados de senhores brancos – enfatizando que senhores brancos é uma denominação socialmente construída por Gilberto Freyre, que não representa a cor ou raça de fato do indivíduo.

A arquitetura dos sobrados, em oposição à dos mucambos, se comporta como insígnia de distinção social. Gilberto Freyre detalha o quão maléficas eram percebidas as construções dos sobrados para o quesito saúde - fechados, sem ventilação - e determina que essa tendência de fechar os sobrados para si era um meio de proteção à rua. A relação casa em contraponto à rua foi tocante na obra freyriana enquanto determinante para a não completa urbanização dos sobrados, demonstrando desta maneira que o patriarcalismo rural brasileiro ainda perpetuava-se por meio das estruturas físicas de moradia. Louis Wirth descreve que, por mais urbanizada que uma cidade se apresente, esta ainda levará consigo alguns resquícios de seu passado, muitas vezes rural. Com a oposição da casa à rua, pode-se depreender alguns destes resquícios que o autor determina como parte do urbanismo como modo de vida, assim “O patriarcalismo brasileiro, vindo dos engenhos para os sobrados, não se entregou logo à rua; por muito tempo foram quase inimigos, o sobrado e a rua.”(FREYRE, 2003: 139).

Os mucambos, ao contrário, são aceitos por Gilberto Freyre como o tipo adequado de moradia para o clima do Brasil, embora fossem construídos de materiais menos dignificantes e menos embelezadores do ponto de vista urbano europeu. A diferenciação mostra neste ponto o quão segregador e visual se concretiza o modo de vida urbano, assim como se solidifica a característica afirmada por Louis Wirth que uma determinada cidade de caráter urbano exerce influência sobre outra ou outras cidades visto que o “[...] o contato com as modas inglesas, que se acentuou depois da chegada de D. João VI, influiria consideravelmente sobre os estilos de vida e até de arquitetura doméstica no Brasil [...]” (FREYRE, 2003: 154).

Essa influência europeia - inglesa e francesa - exercida sobre as cidades brasileiras no final do século XVIII e principalmente na primeira metade do século XIX - período no qual a Corte portuguesa é transferida para o Brasil - pode ser observada por meio da diferenciação nas moradias: sobrados buscando o modo de vida europeu no referente a materiais, distanciando-se ao máximo da assimilação visual dos mucambos, nos utensílios utilizados dentro das casas, utilizando agora louças inglesas, talheres, móveis e madeiras europeias, nos jardins dos sobrados, agora não mais com intenção profilática, mas sim de apenas embelezamento com flores e árvores de origem europeia no lugar das árvores frutíferas, com a geometria intacta no lugar da assimetria característica das casas-grandes e principalmente na indumentária e no tocante à beleza, tão cheia de tecidos pesados e inapropriados para o clima brasileiro.

A diferenciação - na moradia, nos utensílios, nos jardins e na indumentária - determina quão profunda foi a heterogeneidade encontrada no país, característica essa tão marcante do urbanismo como modo de vida. Dessa exacerbada heterogeneidade percebe-se íntima relação entre heterogeneidade, influência europeia e segregação social. Novamente, a diferenciação

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social acentua-se pela diversidade de características que um novo modo de vida proporciona.

A heterogeneidade no Brasil patriarcal - de casas-grandes e senzalas - pode ser descrita por Gilberto Freyre como ínfima, pois como o autor decreta, na sociedade patriarcal brasileira, o que de fato se presenciava era um equilíbrio de antagonismos, onde o senhor branco, apesar de sádico e opressor, tratava com sentimentos de solidariedade os seus escravos e toda a família patriarcal. É relevante pontuar que o sistema agrário patriarcal brasileiro não percebia como oprimido apenas o escravo, mas sim toda a família do patriarca, sendo o homem branco senhor de engenho e fazenda o único opressor. Essa é uma das marcas que irão se prolongar no período semiurbano e posteriormente urbano da modernização e do período da nova ordem social do país, corroborando para o argumento de Louis Wirth que o urbanismo como modo de vida levará consigo as marcas do passado.

Gilberto Freyre apresenta a influência europeia - inglesa e francesa - nas cidades brasileiras como modificadora de valores e costumes, de diferenciações e segregações.

É verdade que ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonismos, tornavam-se maiores as oportunidades de ascensão social, nas cidades, para os escravos e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou

intelectual extraordinária [...]. (FREYRE, 2003: 270)

É no ambiente urbano que oposições tão severas tomam lugar, como a riqueza em contraponto à pobreza, a ordem em contraponto ao caos (WIRTH, 1967: 103).

Rompeu-se o equilíbrio para acentuar-se pela exclusão violenta de diferenças, a supremacia ou a superioridade do elemento europeu, senhoril e urbano, agora com um sentido nitidamente burguês francês, capitalista, francês e inglês de dominação. Dominação de ‘superior’ sobre ‘inferiores’. (FREYRE, 2003: 517)

Louis Wirth define essas características de oposições típicas da cidade urbana e, em Sobrados e Mucambos é possível fixar-se a ideia de que quão maior foi a influência europeia sobre as cidades brasileiras, maiores foram essas oposições.

O quão benéfica ou maléfica se consolidou esta influência europeia nas cidades do Brasil é neste momento irrelevante, mas de modo concreto buscou-se demonstrar que esta característica urbana - a influência - de uma determinada cidade sobre a outra produz modificações na estrutura social.

A influência europeia que resguarda o Brasil no início de suas modificações estruturais de cunho urbano sempre ocorreu no sentido inglês e francês do termo, nunca no sentido português. Na obra de Gilberto Freyre, o autor usa a denominação de reeuropeização do Brasil para determinar a influência inglesa e francesa no país. Categoriza-se como segunda europeização - reeuropeização - visto que a primeira europeização brasileira apresenta-se do

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contato do português aventureiro4 com os nativos. O português, tão carregado de cultura moura, não se qualifica como o típico europeu industrial, mas sim como o europeu ibérico.

Pode-se auferir que a reeuropeização brasileira aconteceu por diversos fatores, dentre eles o da expansão comercial burguesa europeia. Não é possível conceber a ideia de um Brasil reeuropeizado sem pensar no tocante ao comércio, que inferiu de forma violenta para essa transformação, vendendo a imagem europeia de civilidade. Conceber a ideia de uma influência europeia branda, sem segundas intenções - intenções comerciais - é inaceitável. Por meio do modelo de sociedade europeia, considerado no momento em questão o único aceitável e digno do mundo moderno, é que se vendeu a imagem de civilização moderna e adequada para os padrões de vida que se impunham no âmbito brasileiro, “[...] a Europa ganhara um prestígio novo, no Brasil, como modelo da ‘civilização perfeita’ a que todos os brasileiros deviam aspirar [...].”(FREYRE, 2003: 560).

Ressalta-se que, apesar da expansão comercial europeia inglesa e francesa ocorrer em um momento no qual o urbanismo se manifesta como modo de vida, é imprescindível desvincular o processo capitalista de industrialização do processo de urbanização. Os dois processos podem acontecer paralelamente em um determinado momento, sem que isso comprometa a submissão de um processo em relação ao outro (WIRTH, 1967: 96).

De maneira delongada, Gilberto Freyre descreve o quão tensa foi essa mudança de um modelo de civilização de caráter europeu português, para o caráter europeu inglês, francês. Declara que não fora uma mudança delicada e que houve, em muitos momentos, resistência, principalmente feminina, para a aceitação desse novo modo de vida.

No Brasil dos princípios do séculos XIX e fins do VIII, a reeuropeização se verificou [...] pela assimilação, da parte de raros, pela imitação [...], da parte do maior número; e também por coação ou coerção, os ingleses, por exemplo, impondo à colônia portuguesa da América [...] e mais tarde ao Império, uma série de atitudes morais e padrões de vida que, espontaneamente, não teriam sido adotados pelos brasileiros. Pelo menos com a rapidez com que foram seguidos pelas maiorias decisivas nessas transformações sociais.” (FREYRE, 2003: 431)

Como é sabido, o modelo de civilização de caráter urbano e europeu se sobrepôs ao antigo sistema agrário patriarcal brasileiro. Essa informação não determina uma total extinção das características do patriarcado brasileiro pela influência europeia com um modelo divergente de civilidade, mas sim a extinção do patriarcado enquanto sistema estruturante da sociedade brasileira.

A influência europeia atingiu diretamente a vida dos habitantes das cidades brasileiras e também a maneira de vivenciar essa cidade. Enquanto reclusos às casas-grandes e também

4 O português aventureiro é um conceito resgatado de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.

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senzalas - visto que o mulato ascende no ambiente urbano - os habitantes até então não precisavam lidar diretamente com uma igreja ortodoxa, concebida como instituição, assim como não era necessário o contato com instituições burocráticas públicas impostas pelo Estado ou mesmo cravar entraves com os oficiais de polícia ou as medidas judiciais que determinavam pagamento de dívidas dos senhores de engenho.

A influência advinda dos ingleses e franceses determinou uma mudança completa do modo de vida no Brasil e as cidades brasileiras configuraram-se à Europa. Vislumbravam o velho continente como o modelo de civilização a ser seguido e aqueles que fugissem a esse modelo não poderiam, portanto ser considerados civilizados.

As três variáveis - número; densidades; heterogeneidade - que Louis Wirth determina serem as características do urbanismo como modo de vida são, desta forma, depreendidas na obra freyriana Sobrados e Mucambos. A influência externa, assim como a diferenciação que permeiam o meio urbano, são, por Gilberto Freyre descritas de maneira a corroborar no campo da prática as ideias propostas por Louis Wirth em O Urbanismo como Modo de Vida.

CONCLUSÃO

A discussão apresentada neste artigo tem por intuito informar o leitor acerca de uma questão um tanto quanto pontual - a assimilação da teoria sobre o urbanismo de Louis Wirth do ano de 1938 à obra Sobrados e Mucambos de Gilberto Freyre do ano de 1936.

A intenção informativa da teoria sobre o urbanismo busca demonstrar que a cidade não deve ser compreendida como apenas uma área territorial demarcada, tampouco como um montante de habitantes aglomerados em determinados espaços, mas que a cidade é de fato uma entidade sociológica e deve ser interpretada como tal. A diferenciação que nela se manifesta deve ser compreendida igualmente como diferenciação social e não apenas como relação de ação e reação. A diferenciação social deve ser compreendia principalmente como relação de interação entre os habitantes de uma determinada cidade em detrimento com o local que esses indivíduos habitam na cidade.

Louis Wirth determina que o estudo das cidades em seu caráter urbano - teoria sobre o urbanismo - seja capaz de perceber as mazelas que permeiam esse território citadino, assim como podem ser também perceptíveis suas potencialidades. O estudo de maneira sociológica desses elementos - mazelas e potencialidades - é capaz de determinar quais interferências devem ser comedidas no ambiente urbano a fim de cessar ou, pelo menos, amenizar os problemas sociais e, possivelmente, acentuar as potencialidades.

Gilberto Freyre descreve de maneira convincente como era o modo de vida das e nas cidades brasileiras nos séculos XVIII e XIX. Não é necessário comprometer-se com a teoria

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freyriana para concordar que os argumentos que o autor estabelece para comprovar suas hipóteses são de extremo valor. Cabe ressaltar que a pretensão neste artigo foi a de utilizar-se apenas das formas e argumentos que corroborem com a teoria sobre o urbanismo de Louis Wirth, não dando o devido valor ou análise a questões mais pertinentes aos indivíduos e suas peculiaridades - como a mulher no seu ser delicado e oposto à violência masculina; o filho do senhor que se torna bacharel e apresenta-se com ideias divergentes das do pai; o mulato ascendendo socialmente em uma sociedade ainda arraigada pelo quesito branco social - e as trajetórias de vida que dizem respeito a todas as personagens expostas.

A obra freyriana em questão é anterior em publicação tanto quanto em seu contexto ao trabalho de Louis Wirth, mas apresenta em seu corpo as características necessárias - assim por Louis Wirth descritas - para determinar o que poderia ser uma cidade com delineados urbanos e, desta maneira, assumir o urbanismo como modo de vida.

No tocante à obra de Gilberto Freyre, fica fácil identificar que o sistema rural patriarcal permaneceu ainda em largos momentos no modo de vida urbano e esta é de fato mais uma característica deste tipo específico de vida, em que o passado permanece em resquícios no urbano.

Coloca-se interessante pensar que Louis Wirth determina que o contrário também possa ser pensado e o rural ser penetrado pelo urbano. Na obra freyriana, fica difícil mensurar esse ideal, mas em um momento mais contemporâneo das cidades, essa característica pode ser assimilada aos grandes condomínios de chácaras e sítios, assim como fazendas que buscam viver em um meio rural, com o discurso de buscarem uma vida mais perto da natureza, assim como o intuito de estarem sempre em contato com um sentimento mais bucólico. O discurso é vendido, porém, com características do modo urbano de vida, com as facilidades da urbanização como redes elétricas, galerias de água e esgoto, assim como a atitude blasé entre os moradores do condomínio - que buscam o mínimo de contato entre si - e demais recursos tipicamente urbanos, como coleta de lixo, segurança e vigilância do território e, em alguns condomínios, é possível encontrar áreas designadas ao uso de confraternização pública - que, muito provavelmente, não serão utilizadas.

O modo de vida urbano penetra a casa, o trajo e os costumes dos habitantes de uma cidade, assim como modifica os valores e estruturas sociais.

Em Sobrados e Mucambos, Gilberto Freyre possibilita a interpretação de um novo modo de vida que se impõe na sociedade brasileira, principalmente, com a chegada da Corte portuguesa. Esse modo de vida segue novos modelos de civilização e altera o sistema societário da época - o patriarcal - para um sistema de sociedade mais individualista, mais diferenciada em sua relação com as ocupações - divisão do trabalho - assim como altera os comportamentos em relação ao que deve ser declarado certo ou errado, belo ou não na nova ordem social.

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A interação entre os habitantes da cidade - onde o contato físico se torna estreito, mas seu distanciamento social alargado - é outro ponto característico desta sociedade urbana, descrito por Louis Wirth e percebido na obra de Gilberto Freyre.

Pode-se inferir de maneira concreta que os pontos que são analisados por Louis Wirth em sua teoria sobre o urbanismo - número; densidade; heterogeneidade; influência; diferenciação - são encontrados e correspondentes na obra freyriana. De forma sucinta, a variável número é percebida com o aumento de habitantes dos sobrados e mucambos em relação às casas-grandes e senzalas. A cidade proporciona a liberdade que ex-escravos e mulatos buscam, assim como a ascensão - a bacharel e médico - do filho do senhor de engenho lhe resgata a liberdade tirada nas casas-grandes.

A densidade é correlata da variável número e, quão maior se apresenta o aglomerado de habitantes que se deslocam de áreas rurais para as áreas urbanas, mais intensamente se perceberá o aumento na característica de densidade.

A heterogeneidade - como mencionado anteriormente - talvez seja a variável que mais determine a mudança real da ordem social e suas interações. É por meio da heterogeneidade que a diferenciação se manifesta, assim como uma maior tendência para a divisão do trabalho. Essa característica tão típica de cidades urbanas é que possibilita que as diversas liberdades sejam expressas e que o grau de dependência em relação a um único indivíduo seja ínfimo. Por outro lado, o grau de interdependência entre os diversos habitantes da cidade se apresenta elevado. Novamente, é a diferenciação de ocupações - divisão do trabalho - que possibilita essa mudança das interações sociais.

Por fim, a influência determina quais são os modelos sociais a serem seguidos em determinado período da história. Confirmar que uma única cidade exerça influência sobre outra é um tanto utópico. A realidade é que diversas cidades exercem influência suficiente para que se façam perceber em uma dada sociedade. O modelo típico de cidade europeia inglesa e francesa impôs a sua influência, mas isso não correspondeu a uma total extinção da influência anterior, concebida pelo conceito mouro e oriental dos portugueses. Apenas atenuou-se em relação à nova influência que se colocava na sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51ª ed. Global Editora, São Paulo, 2003.

_____. Sobrados e Mucambos. 15ª ed. Global Editora, São Paulo, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995.

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CRISTINE PALMA ZOCHIO

SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.

WIRTH, Louis. O Urbanismo como Modo de Vida. In: VELHO, Otávio G. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967.

RESUMOS SIMPLES - GRUPO DE TRABALHO VII TEORIA SOCIAL

Invisibilidade Histórica: O lugar dos indígenas em “Raízes do Brasil”

Verônica Yurika Mori ...............................................................................................................................................................638

O sistema sociometabólico do capital para IstvÁn Mészáros

Danielle Cristine Ribeiro ...........................................................................................................................................................639

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22 a 26 de Outubro de 2012638

INVISIBILIDADE HISTÓRICA: O LUGAR DOS INDÍGENAS EM “RAÍZES DO BRASIL”

Verônica Yurika Mori

Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá.Mestre do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UEME-mail: [email protected]

Resumo: O presente trabalho tem como proposta verificar a presença indígena nos escritos de Sérgio Buarque de Holanda, compreendendo a importância da contribuição do referido autor no pensamento social brasileiro acerca do ideário de nacionalidade brasileira. Pressupondo que, ao eleger a cultura da personalidade como característica principal da cultua brasileira, sendo esta herança luso-ibérica, o autor não leva em conta a contribuição dos povos indígenas para formação do Estado nacional, desconsiderando assim, o contexto histórico que se deu o contato entre indígenas e colonizadores. Neste sentido, essa vertente não somente cria uma lacuna acerca do conhecimento histórico como também resulta em inúmeros efeitos para os povos indígenas hoje

Palavras-chave: Cultura atávica; Indígenas; Portugueses; História.

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22 a 26 de Outubro de 2012639

O SISTEMA SOCIOMETABÓLICO DO CAPITAL PARA ISTVÁN MÉSZÁROS

Danielle Cristine Ribeiro

Mestranda no Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UNESP - FFC/ Marília.Bolsista da Fundação de amparo à pesquisa do estado de São Paulo – FAPESP

Resumo: O objetivo deste trabalho consiste em compreender a dinâmica de funcionamento do sistema sociometabólico do capital, de acordo com a análise de István Mészáros. Por sociometabolismo do capital podemos entender uma estrutura totalizante de organização e controle, cujos elementos constitutivos – capital, trabalho (assalariado) e Estado – estiveram submetidos, antes do contexto capitalista, a diferentes sistemas de controle do metabolismo social. Ao romper com a coesão e a restrição internas definidas pelos sistemas de controle precedentes, a evolução histórica do capital determinou uma mudança radical sobre o sistema sociometabólico da sociedade, que culminou gradualmente na consumação do sistema do capital plenamente desenvolvido. Para realizar a presente proposta, a metodologia de pesquisa consistirá na análise imanente de parte da obra de Mészáros, além de revisão bibliográfica a respeito das discussões que envolvem o tema da política e do desenvolvimento histórico do capital e do capitalismo – com destaque para parte da obra de Marx. Portanto, a partir da exposição dos pressupostos históricos que possibilitaram a existência do sistema do capital plenamente desenvolvido, da apresentação dos seus componentes orgânicos e do esclarecimento sobre como ocorre a dinâmica de inter-relação entre tais componentes, pretendemos tornar compreensível a base material de mediações sobre a qual se fundamenta as condições para a reprodução do sistema sociometabólico do capital.

Palavras-chave: