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245 OS ATUAIS DESAFIOS PARA O FEMINISMO MATERIALISTA ENTREVISTA COM JULES FALQUET CURRENT CHALLENGES TO MATERIALISTIC FEMINISM INTERVIEW WITH JULES FALQUET Por Mirla Cisne 1 e Telma Gurgel 2 Submetido em 22/07/2014 Aceito em 03/08/2014 Jules Falquet é francesa, ativista feminista graduada em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Paris; doutora em Sociologia pela Universidade de Paris 3-Sorbonne; pesquisadora integrante do Centro de Documentação, Pesquisa e Estudos Feministas (CEDREF) da Universidade de Jussieu-Paris Diderot; professora de Sociologia Política dessa mesma univer- sidade. Suas principais obras publicadas são: De gré ou de force: les femmes dans la mondialisation. Paris: La Dispute, 2008; De la cama a la calle: perspectivas teóricas lésbico-feministas. Bogotá: Brecha Lésbica, 2006; Breve reseña de algunas teorías lésbicas. México: Fem-e-Libros, 2004. Atua e desenvolve estudos nas linhas 1 Assistente Social, doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e membro do Núcleo de Estudo sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM), pesquisadora do Grupo de Estudos Sobre o Feminismo e as Relações Sociais de Gênero (GEF) dessa instituição. Contato: [email protected] 2 Assistente Social, doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), membro do Núcleo de Estudo sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM), pesquisadora do Grupo de Estudos Sobre o Feminismo e as Relações Sociais de Gênero (GEF) dessa instituição. Contato: [email protected] Brasília (DF), ano 14, n. 27, p. 245-261, jan./jun. 2014.

Os Atuais Desafios Para o Feminismo Materialista - Entrevista Com Jules Falquet

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    OS ATUAIS DESAFIOS PARA O FEMINISMO MATERIALISTA

    ENTREVISTA COM JULES FALQUET

    CURRENT CHALLENGES TO MATERIALISTIC FEMINISM

    INTERVIEW WITH JULES FALQUET

    Por Mirla Cisne1 e Telma Gurgel2

    Submetido em 22/07/2014 Aceito em 03/08/2014

    Jules Falquet francesa, ativista feminista graduada em Cincias Polticas pelo Instituto de Estudos Polticos de Paris; doutora em Sociologia pela Universidade de Paris 3-Sorbonne; pesquisadora integrante do Centro de Documentao, Pesquisa e Estudos Feministas (CEDREF) da Universidade de Jussieu-Paris Diderot; professora de Sociologia Poltica dessa mesma univer-sidade. Suas principais obras publicadas so: De gr ou de force: les femmes dans la mondialisation. Paris: La Dispute, 2008; De la cama a la calle: perspectivas tericas lsbico-feministas. Bogot: Brecha Lsbica, 2006; Breve resea de algunas teoras lsbicas. Mxico: Fem-e-Libros, 2004. Atua e desenvolve estudos nas linhas

    1 Assistente Social, doutora em Servio Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e membro do Ncleo de Estudo sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM), pesquisadora do Grupo de Estudos Sobre o Feminismo e as Relaes Sociais de Gnero (GEF) dessa instituio. Contato: [email protected] Assistente Social, doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraba (UFPB), professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), membro do Ncleo de Estudo sobre a Mulher Simone de Beauvoir (NEM), pesquisadora do Grupo de Estudos Sobre o Feminismo e as Relaes Sociais de Gnero (GEF) dessa instituio. Contato: [email protected]

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    de pesquisas sobre movimentos sociais (camponeses, rurais, indgenas, de mulheres e feministas); processos revolucionrios; guerras, ps-guerra e democratizao; mundializao neoliberal; crtica do desenvolvimento; migraes; teoria e epistemologia feministas.

    A destacada contribuio dessa pesquisadora e ativista feminista nas Amricas Latina e Central, bem como na Europa, foi a principal motivao para que o grupo temtico de pesquisa em Servio Social, relaes de explorao/opresso de gnero, raa/etnia, gerao, sexualidades, da Associao Brasileira de Ensino e Pesquisa em Servio Social (GTP 6 da ABEPSS), a convidasse para ser a entrevistada desse nmero da Temporalis.

    Jules Falquet congrega compromisso poltico com a luta pela emancipao humana com uma produo cientfica assen-tada no feminismo materialista francfono, com destaque para a sua perspectiva terico-poltica da anlise da consubstanciali-dade e da coextensividade das relaes sociais de sexo (incluindo sexualidade), raa/etnia e classe.

    Nesta entrevista, Jules Falquet apresenta sua opinio sobre temas polmicos e desafios do feminismo na atualidade, reafir-mando seu compromisso com a emancipao das mulheres.

    1 Gostaramos de saber um pouco da sua trajetria terica e poltica em torno do feminismo. Como voc costuma falar, a questo do seu ponto de vista situado.

    R: Primeiro eu entrei no ativismo e, paralelamente, eu estudei Cincias Polticas, Sociologia e Antropologia em funo dos meus objetivos polticos, procurando sempre ligar a parte acadmica com o ativismo, apesar das mltiplas contradies que isso implica. Muitas vezes, sou vista como acadmica por parte das ativistas e como ativista demais pela academia. Mesmo sendo criticada em vrios momentos por estar nessa dupla posio, me considero uma privilegiada por estar nesses dois espaos, de muita fora e inspi-rao. Mas, tambm certo que me falta tempo para fazer o que preciso em ambos. Precisaria de dias de 48 horas. Dito isso, quero sublinhar que, para mim, o mais importante o intento de partici-par da transformao radical dessa sociedade.

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    No feminismo, uma das primeiras coisas que eu li foi Simone de Beauvoir, quando eu tinha 15 anos. Fiquei bem impressionada, me identifiquei. Beauvoir e Sartre foram muito importantes na primeira etapa da minha reflexo, pela negao fidelidade na relao amorosa, e no fato de Beauvoir falar da homossexuali-dade feminina como uma forma de rebeldia. Isso, sem dvida, contribuiu com a minha deciso de ser lsbica feminista, h quase 30 anos.

    Estudei Sociologia e, do ponto de vista acadmico, a pri-meira pesquisa que realizei foi para o meu mestrado, sobre as contradies da colonizao que imps a escolarizao (e, sobre-tudo, a castelanizao3) para as mulheres indgenas em Chiapas, um dos estados mexicanos com a maior proporo de popula-o indgena, e dos mais pobres. Para minha formao, foi muito importante a descoberta das lutas sociais no Mxico e na Amrica Central. Aprendi muito l sobre feminismo, lesbianidade, lutas camponesas e lutas sociais em geral nessa terra, logo aps a queda do muro de Berlim.

    Ao terminar o mestrado, morei em El Salvador por mais de dois anos para fazer minha pesquisa de doutorado sobre a partici-pao das mulheres no processo revolucionrio armado. Tambm aprendi muito com as mulheres salvadorenhas. Eu vivenciei em El Salvador o (re)aparecimento do feminismo4. Foi um pouco como se eu tivesse vivido o surgimento do feminismo na Europa nos anos 1970 um momento de muita fora. Foi diferente do euro-peu pelo contexto poltico centro-americano.

    Outro fato importante que presenciei depois foi o movi-mento zapatista, em Chiapas. Alm disso, primeiro em El Salvador e logo no Mxico, pude me aproximar da corrente do movimento feminista autnomo latino-americano e do Caribe. Tenho muita influncia dessa corrente, especialmente das mesoamericanas, por ter convivido no Mxico com algumas do grupo Complices e com centro-americanas do grupo Proximas, assim como por ter

    3 Refere-se imposio da lngua casteliana.

    4 Existiu um movimento de mulheres que, em parte, se reivindicou como feminista revolucionrio, no final dos anos 1970, antes da guerra, e que foi absorvido pela lgica da polarizao-militarizao da sociedade salvadorenha.

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    compartilhado bastante tempo com a dominicana Ochy Curiel e outras ativistas tericas muito lutadoras.

    Minhas primeiras reflexes sobre a globalizao neolibe-ral se deram com a aproximao com as feministas autnomas em sua crtica pioneira conferncia de Beijing (1995), ONU e ao processo de onguizao do movimento feminista na regio latino-americana. Logo, em 1996, participei da organizao do primeiro Encontro Contra o Neoliberalismo e Pela Humanidade, convocado pelo movimento zapatista, que foi o primeiro movi-mento social com alcance internacional a definir o neoliberalismo como adversrio.

    Tambm foram importantes para mim as anlises em psico-logia social da guerra propostas pelo jesuta espanhol radicado e assassinado em El Salvador em 1989, Ignacio Martn Bar, bem como o trabalho da jornalista Marie-Monique Robin, que traz informaes sobre a genealogia francesa da doutrina da guerra de baixa intensidade e da utilizao estratgica da tortura, que central na minha leitura da globalizao.

    Tambm no posso deixar de sublinhar a influncia das mulheres indgenas e das mulheres afros, como tambm das lsbi-cas feministas racializadas na Frana, que, com suas experincias e elaboraes, contriburam para minha melhor compreenso da necessidade de lutar contra o racismo.

    E, finalmente, acho muito importante a perspectiva libert-ria, rebelde, ante toda autoridade, crtica polcia, ao exrcito e ao sistema carcerrio, e que propicia a auto-organizao aut-noma frente ao Estado, que conheci primeiro no movimento anarco-punk e no Ocupa, no ltimo perodo.

    2 Voc se identifica com a perspectiva do feminismo materialista. Quais so as principais contribuies dessa perspectiva para a luta pela emancipao das mulheres?

    R: As reflexes feministas materialistas francfonas tm se estruturado ao redor da revista Questions Fministes desde o final dos anos 1970, especialmente com o trabalho de Christine

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    Delphy, Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu5, Monique Wittig, Monique Plaza e outras mais. O que demarca a proposta terica desse grupo , sobretudo, seu antinaturalismo e o con-ceito de rapports sociaux de sexe, para dizer rapidamente as coi-sas. Colette Guillaumin, em um artigo de 1978, foi quem articulou esse pensamento eminentemente coletivo de forma mais com-pleta, com o conceito de sexagem, ou seja, as relaes sociais de apropriao individual e coletiva das mulheres como classe de sexo, pelos homens como classe de sexo.

    Ela tambm, desde 1972, props uma reflexo muito pro-funda sobre a construo social do que hoje no mundo Ocidental se entende como a raa, como um processo de naturalizao baseado num sistema de marcas fsicas totalmente arbitrrias que teve a sua origem e causa no sistema escravista do sculo XVIII. Demostrou que tanto as opresses de sexo como as de raa se apoiam num processo semelhante de alteridade e naturaliza-o de determinados grupos sociais. Isso fundamental.

    Outro ponto que considero importante das feministas materialistas francfonas a conceituao das relaes sociais organizadas em torno da obteno de trabalho no sentido mais amplo (que inclui trabalho considerado como produtivo, repro-dutivo, procriativo, sexual, emocional etc.). Ainda que no tenha sido o seu propsito naquele momento, essa anlise permite compreender a imbricao, a vinculao fundamental, a consubs-tancialidade, como diria Danile Kergoat, das relaes sociais de sexo, de raa e de classe. Acho essa direo terica bem mais pro-funda do que a formulao em termos de sistema sexo-gnero, que tem sido recuperado pelo feminismo liberal, a qual bem simplificadora e redutora.

    Assim, Nicole-Claude Mathieu, j em 1971, no artigo Notes pour une dfinition sociologique des catgories de sexe [Notas para uma definio sociolgica das categorias de sexo], afirmou

    5 Nicole-Claude Mathieu faleceu em maro 2014. possvel acessar na lngua portuguesa uma apresentao do seu pensamento, realizado por Jules Falquet, no artigo Por uma anatomia das classes de sexo: Nicole-Claude Mathieu ou a conscincia das oprimidas (Disponvel em: ). H, tambm, em curso, uma traduo de um artigo de Mathieu pelo SOS Corpo.

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    que em vez de estudar apenas as mulheres (como o movimento feminista propunha como meio para retirar as mulheres da invisi-bilidade) tinha que se pensar as mulheres e os homens de forma relacional, dialtica, ou seja, social, como classes de sexo.

    interessante ver que, no ano seguinte, a sociloga brit-nica Ann Oakley props a existncia de um sistema sexo/gnero, que, em outra lgica, diferenciava o gnero, como um conjunto de papis sociais arbitrrios, do sexo. Isso no comeo pareceu um avano, mas, na realidade, deixava intacta a ideia de que o sexo era natural: apenas deslocava o problema. Isso foi criticado nos anos 1990 por Judith Butler, com muita razo, quando ela afirmou que o gnero estava construdo sobre uma base, na ver-dade, inexistente (falando que o gnero apenas um discurso reiterado que no tem base real).

    Mas acho que as feministas materialistas, muitos anos antes, j anteciparam esse problema melhor dizendo, tinham evitado a apropriao da lgica do gnero social construdo na base natural do sexo para conceber, numa perspectiva puramente social, os rapports sociaux de sexe como o que cria as mulheres e os homens. Nessa perspectiva, as mulheres e os homens no so definidos numa base biolgica, mas, sim, pela sua posio na organizao do trabalho, especificamente na diviso sexual do trabalho. a diviso sexual do trabalho, e a sua lgica de explora-o do trabalho de um grupo por outro, que cria duas (e apenas duas) classes sociais de sexos chamados mulheres e homens, no a presena de ovrios ou espermatozoides no corpo.

    Outro elemento extremamente importante o que explica Monique Wittig quando analisa a heterossexualidade no como um conjunto de prticas sexuais, mas como um sistema poltico--ideolgico que o fundamento mesmo dos rapports sociaux de sexe, ainda que seja invisibilizado como tal e naturalizado. O que ela chama de pensamento straight, ou heterossexu-alidade, a ideologia da diferena dos sexos, ou seja, a crena cega de que, na Natureza, existem de verdade universal, nica e exclusivamente, fmeas e machos (e que se atraem mutua-mente). Tristemente, as pensadoras francesas mais conhecidas, ainda bem que elas no se reivindicaram como feministas, so as

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    diferencialistas-essencialistas que acreditam que existe tal dife-rena natural dos sexos, como Irigaray, Cixous e Kristeva.

    O pensamento materialista e antinaturalista de Mathieu, Wittig, Guillaumin, Delphy, entre outras, no muito conhecido ainda, apesar de suas contribuies para a anlise das razes da opresso das mulheres. Quero insistir que as reflexes de Butler, que so antinaturalistas e se apoiam parcialmente em Wittig, so mais tardias e bem menos radicais que as anlises materialistas francfonas, porque se situam num plano bem mais individual, interpessoal e interacionista. Sendo assim, no considera a ela-borao completa de Wittig, que se fundamentou em Guillaumin e suas anlises no materialismo, no plano estrutural, coletivo, apoiada na ideia da existncia de classes de sexo e de lgi-cas de apropriao individual e coletiva da classe das mulheres pela classe dos homens (o que ela chama de relaes sociais de sexagem).

    3 Uma polmica em curso no feminismo a questo da legalizao da prostituio. Qual o seu pensamento sobre isso?

    R: Para mim, igual defender o matrimnio heterossexual, porque isso tudo faz parte do contnuo do intercmbio econ-mico-sexual analisado por Paola Tabet [ver abaixo], faz parte da mesma base da opresso das mulheres pelos homens. Vamos por partes. Acho que todas as mulheres, que num momento da vida tm que fazer trabalho sexual, devem poder se defender da explorao, como qualquer pessoa explorada. Por isso, se pre-cisa de organizaes do tipo sindical, entre outras. Assim, como tambm se precisa de mais instrumentos legais para garantir os direitos das mulheres no matrimnio.

    Mas, quando se fala no Estado legalizar a prostituio em si (que bem mais amplo e diferente de facilitar a organizao das mulheres contra a explorao em geral), considero outra coisa. Nesse caso, considero que o que o Estado faz permitir a visibili-zao e estruturao do setor do trabalho sexual para ter maior controle, podendo, assim, arrecadar mais impostos e controlar melhor a fora de trabalho, sem que isso, necessariamente, cami-nhe no sentido dos interesses das trabalhadoras desse campo, e sim dos empresrios e dos clientes.

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    Por outro lado, pode significar, e acho que nesse caso sig-nifica, um reconhecimento por parte do Estado de uma suposta necessidade social (de parte dos homens) da prostituio. Como feminista, estou convencida de que no existe nenhuma necessi-dade social da prostituio. Os homens no tm mais necessida-des sexuais do que as mulheres, nem tm mais direitos a obter satisfao sexual, menos ainda a custo da explorao do corpo e do trabalho das mulheres, que, na maioria dos casos, em rea-lidade, ganham muito pouco no trabalho sexual. Longe dos dis-cursos romnticos sobre o trabalho sexual, se umas ganham bem quando so jovens, desejveis e podem ficar com o dinheiro, na maioria dos casos, no so as trabalhadoras que ficam com os benefcios. Muitas trabalham foradamente, sem seguridade de nenhuma classe, e, sobretudo, por falta de melhor alternativa.

    Tambm acho que a sexualidade, a afetividade e o relaciona-mento entre pessoas poderiam ser muito mais ricos e diferentes se a sociedade conseguisse tirar esse iderio dos tipos de relao que existe na prostituio e tambm na lgica das prticas hete-rossexuais dominantes, que so um reducionismo tremendo das inmeras formas possveis de se relacionar fsica, sexual, emocio-nal ou espiritualmente entre as pessoas.

    Nesse tema, acho muito interessante o pensamento da antroploga italiana Paola Tabet (La grande arnaque) sobre o contnuo do intercmbio sexual, que liga tanto as diversas formas matrimoniais como as mais variadas formas prostitucionais de rela-cionamentos entre homens e mulheres, em diferentes contextos patriarcais, caracterizados por: (1) a falta de acesso das mulheres aos recursos; (2) a falta de acesso das mulheres aos conheci-mentos; (3) a ameaa permanente da violncia masculina. Tabet explica que nesse quadro a imensa maioria das mulheres no tem mais opes que no a de circular entre o matrimnio, a prostitui-o e tudo que est entre essas duas extremidades do contnuo do intercmbio econmico-sexual (heterossexual). Acho que no nenhum ideal para as mulheres nem para a humanidade. Isso no significa que as prticas sexuais da heterossexualidade sejam todas negativas. No uma questo de prticas pontuais, uma questo de lgica geral do relacionamento entre as pessoas, das desigualdades abismantes entre homens e mulheres.

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    Queria destacar uma coisa: as pessoas que esto em condi-es mais difceis nisso so as que tambm, alm de no terem privilgio de sexo, no tm privilgio de raa, nem de classe. Isso tem muito a ver na discusso da prostituio. Quando falamos em prostituio, tambm estamos falando do racismo, da opresso de classes, no apenas da opresso de sexo. Tambm estamos falando da dominao de raa, de classe e de sexo de umas pes-soas sobre outras. Temos que pensar, e muitas vezes no se fala nisso, nos compradores dos chamados servios sexuais. Quem so esses compradores? Por que fazem isso? Por que tm eles direitos irrestritos a consumir? Porque tudo isso tem a ver com o poder aquisitivo de algumas pessoas e o poder em geral e pouco a ver com sexualidade, e bem menos ainda com o livre exerccio da sexualidade das mulheres e o seu prazer.

    4 Recentemente, o Brasil aprovou a unio civil de pessoas do mesmo sexo e alguns estados brasileiros j permitem o casamento. Como voc pensa essa questo?

    R: Na verdade, eu sou contra o matrimnio tanto para as pessoas heterossexuais como para as bissexuais, as lsbicas e os gays. Para chegar a uma igualdade maior, o caminho politica-mente mais interessante seria lutar pelo desaparecimento da ins-tituio matrimonial. Existem sociedades, na China (a sociedade Mosuo o Na) e no Senegal (parte da cultura Senufo), onde no existe o matrimnio como instituio. Isso comprova, ento, que no uma fatalidade universal a instituio matrimonial. O matri-mnio e a exclusividade da relao entre duas pessoas (sobre-tudo exigida das esposas) tm sido analisados e criticados por um monte de feministas ao menos desde o sculo XIX.

    A reflexo da Alexandra Kolontai no comeo do sculo XX, quando fala sobre o amor e a camaradagem na sociedade socia-lista com a criao de uma multiplicidade de vnculos sociais na nova sociedade, ou os experimentos de vida comunitria alterna-tiva, por exemplo, nos anos 1960 e 1970, abre muitas possibilida-des diferentes. Por que as pessoas precisam se integrar lgica heterossexual, pequeno-burguesa, que tambm um modelo bastante ocidental de relacionamento entre as pessoas?

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    No tema do matrimnio de mesmo sexo, uma mudana sig-nificativa seria a possibilidade de formalizar a solidariedade eco-nmica entre mulheres. Isso no apenas para compartilhar na vida cotidiana e para a questo da transmisso, da herana mate-rial, mas tambm da herana social. Isso poderia significar uma mudana profunda, no sentido das linhas de poder na sociedade que se reproduzem no apenas horizontalmente, com os meca-nismos de aliana (instituio matrimonial), mas verticalmente, por meio das lgicas de filiao entre geraes. Ento, o feito de criar novas linhas de transmisso que poderiam ser linhagens de mulheres cria tambm coisas novas, diferentes, que podem produzir transformaes. O limite principal que o matrimnio seja apenas entre duas mulheres e sem questionar as formas dominantes heterossexuais de funcionar. Por isso, no acho que o matrimnio entre pessoas de mesmo sexo em si vai significar uma mudana radical e, sobretudo, no vai mudar muita coisa no campo das lgicas capitalistas, nem das lgicas racistas.

    5 Com relao aos sujeitos do feminismo ou o feminismo como sujeito representante de vrios segmentos da sociedade ou apenas de um, no caso, as mulheres, voc acha que h possibilidade de, alm das mulheres, haver insero ou voc considera que j h insero de outros sujeitos para alm das mulheres na construo do feminismo?

    R: No gosto muito da maioria dos debates sobre o sujeito do feminismo, sobretudo, quando para defender o direito dos homens a participar no movimento feminista, especialmente em espaos onde, por muitos anos, foram legitimamente excludos (certos encontros, certas marchas, refgios, estruturas de forma-o ou de debate). Para mim, o feminismo um projeto poltico, isso o que tem que se debater, no sobre a identidade de quem o constri, mas sobre o projeto poltico e a posio social (dominante ou no) e a tica de quem o constri, muito mais do que sobre a identidade dessas pessoas. Acho que a perspec-tiva da maioria desses debates tem a ver com uma perspectiva de identidade que eu recuso completamente. Numa lgica antina-turalista, de qualquer jeito, no um problema de voc ter ov-rios, pnis ou no ter, ou ter as duas coisas. Isso no tem nada a

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    ver com o projeto poltico que voc pode desenvolver. Melhor dizendo, tem a ver, mas no mecanicamente, mas de uma forma muito complexa.

    O que acho, sim, que todo grupo oprimido tem o direito de se organizar sem a presena das pessoas que elas consideram representantes de grupos opressores. Ento, mulheres que se definem como indgenas tm todo o direito de se reunir sem as mulheres que elas consideram brancas. As pessoas que se con-sideram como mulheres oprimidas podem se reunir sem pes-soas que elas consideram como opressoras (homens). Isso no significa no fazer aliana, mas significa ter grupos autnomos, ter liberdade de escolher com quem voc se rene e luta. Isso apenas para grupos dominados. Um grupo de homens, enquanto so dominadores, acho que no deveria ter direito de impedir a participao de uma mulher. totalmente diferente se um grupo de mulheres impede a participao de homens, enquanto domi-nantes em relao s mulheres.

    Agora, tem outra discusso sobre o sujeito do feminismo que foi trazida, entre outras, pelas feministas chicanas, com outra abordagem. Essa discusso no sobre o sujeito do feminismo no sentido das pessoas que podem ou no participar do movimento, mas sobre o que significa ser sujeito dependendo da posio que se tem na sociedade. Por exemplo, o trabalho de Norma Alarcn: Le sujet politique du fminisme [O sujeito poltico do femi-nismo] ou o de Gloria Anzalda: The new Mestiza [A nova mestia] nos anos 1980 e 1990, que analisam a situao em que vivem as chicanas, no marco da mestiagem e do racismo imperante na sociedade estadunidense. Refletem sobre como a subjetividade delas estava dividida entre diferentes culturas e diferentes rea-lidades, passando, tambm, pela questo da classe, das prticas sexuais etc. Isso outra reflexo. Nesse sentido, elas fizeram uma crtica da ideia de que o sujeito algo simples, necessaria-mente unitrio, monoltico, no problemtico. Se sentir como um sujeito unificado, elas disseram, um privilgio das dominantes. Nesse caso, as mulheres brancas de classe privilegiada preten-diam, por meio do feminismo liberal, se tornar to privilegiadas como os homens brancos da classe dominante, sem pensar um

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    s instante nas outras mulheres (nem nos homens proletarizados e/ou racializados).

    Ento, a reflexo das chicanas, por exemplo, sobre o sujeito do feminismo no tem tanto a ver com certos debates de hoje que o que pretendem, no fundo, apenas que os homens bran-cos e privilegiados entrem no movimento feminista e at lider--lo, beneficiando-se dos seus privilgios que os garantem mais tempo, mais conhecimento, mais autoridade do que a grande maioria das mulheres. Uma coisa fazer alianas com diferentes setores de homens, outra coisa deixar que homens faam parte diretamente do movimento feminista e, aos poucos, tornem-se dirigentes dele por cima das prprias mulheres. Tambm, no precisamos ter casais de dirigentes, ou seja, uma mulher e um homem, no estilo paritrio. Isso apenas reforaria a ideologia heterossexual da diferena sexual. preciso, sim, que os homens lutem contra os prprios privilgios, mas que o faam em espa-os prprios e sem querer impor suas ideias ao movimento femi-nista. O mesmo deve acontecer no movimento LGBTQI.

    6 Como voc avalia o conceito de heteronormatividade?R: Tem pessoas que usam o conceito de heteronormativi-

    dade como uma forma de se referir heterossexualidade como sistema ideopoltico, preferindo esse conceito palavra heteros-sexualidade, para no se confundir com as prticas sexuais. Mas acho que, em realidade, ao se referir normatividade, quer dizer, ao conceito de norma, esse conceito de heteronormatividade ter-mina sendo redutor porque invisibiliza o problema principal atrs das normas, que so as estruturas. As lgicas estruturais so a razo das normas. Portanto, acho que o problema no so as nor-mas, as normas mudam o tempo todo: o importante lutar con-tra as causas estruturais da situao. Nesse caso, contra a diviso sexual, a diviso racial e a diviso social do trabalho. Tem pessoas que acham que os homens devem lutar contra a norma que lhes impedem de chorar. Eu acho que eles devem lutar contra a divi-so social do trabalho que lhes permite deixar sempre (ou exigir) que sejam as mulheres que limpam o cho. O problema no a normatividade que diz que as mulheres so fracas, o escandaloso

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    que as mulheres sejam sempre menos remuneradas que os homens para um trabalho igual ou maior.

    A heteronormatividade um conceito tirado do trabalho da Wittig, trabalho s vezes muito mal traduzido (s vezes, at por homens que muito pouco conhecem do movimento feminista e menos das elaboraes tericas do feminismo materialista, de onde ela se inspira). A perspectiva dela muito mais profunda. Para se entender bem, tem que se lembrar de que Wittig se vin-cula reflexo da Guillaumin. Acho que pegar s a heteronorma-tividade, em vez, por exemplo, dos conceitos de pensamento straight e da ideologia da diferena sexual uma simplifica-o, um reducionismo do pensamento dela. Para ela, a heteros-sexualidade no uma prtica sexual obrigatria (isso o que afirma Adrienne Rich), porque sequer uma prtica sexual. Como j falei, a heterossexualidade algo bem mais amplo, uma ide-ologia hegemnica que ela chama de pensamento straight. a ideologia, a crena de que existe universalmente uma suposta diferena sexual, que o fundamento de todas as sociedades. Essa ideologia da diferena sexual a base das relaes sociais de sexo (o que simplificadamente podemos chamar de lgica(s) patriarcal(is)). Por isso, Wittig permite compreender que a sexu-alidade no um quarto eixo de opresso, muito menos do sexo, da raa e da classe. Ao contrrio, faz parte integral, mesmo o corao das relaes sociais de sexo.

    Eu acho que o primeiro ato de uma feminista, de uma ls-bica, de uma menina, de uma criana que tem um mnimo sen-tido de justia, enquanto toma conscincia da organizao da sociedade, criticar o modelo feminino to absurdo, arbitrrio e opressor que est sendo imposto a ela. Os homens, os meninos tambm, deveriam criticar, mas criticam muito menos porque, ainda que seja impositivo, traz privilgios para eles. Acho tam-bm que as pessoas sensatas deveriam criticar os modelos raciais e de classe que a sociedade nos impe. Mas, sobretudo, debaixo desses modelos, o problema real a organizao to injusta e desigual do trabalho, ou seja, a sua diviso com base na lgica de sexo, de raa e de classe.

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    7 Uma questo ideolgica muito forte na sociedade a de que as mulheres j alcanaram a liberdade devido ao acesso ao mercado de trabalho e ao fato de algumas poucas ocuparem cargos de destaque, de direo. Como voc avalia essa ideologia de que as mulheres chegaram ao patamar de igualdade?

    R: Bem, sabemos que tal igualdade no verdade, sobre-tudo, para aquelas mulheres que no tm privilgio de raa e de classe. Isso a Danile Kergoat, dentre outras, tem refletido muito, sublinhando o que ela chama da dualizao da classe das mulhe-res com o avano das lgicas neoliberais. No Brasil, muito evi-dente quando voc v os salrios, o tipo de emprego. A grande maioria das empregadas domsticas so negras (e mulheres), e as empregadoras, na sua maioria, so brancas. Eu acho que tem tido progresso, tem tido avano, no vamos negar. Tem existido certo avano para certas mulheres. Mas, esses avanos se devem a uma reorganizao do racismo e do classismo. Ento, no d para ficar to contente. As mulheres foram trazidas para o mercado assala-riado por conta das necessidades do capitalismo, como tambm o capitalismo terminou com a escravido porque achava mais econmico e mais rentvel passar s lgicas do assalariamento.

    8 Uma outra polmica que acompanha historicamente o movimento feminista a legalizao do aborto. Como voc avalia a importncia dessa pauta para as mulheres?

    R: muito importante que possamos ter controle de quantos(as) filhos(as) queremos ter. Tambm devemos ter a liberdade de ter qualquer tipo de filhos e filhas, porque, em mui-tas situaes, no querem que tenhamos filhos(as) escuros(as)s de pele ou que tenhamos filhas do sexo feminino, por exemplo, mas tambm preciso lutar contra a esterilizao forosa (como ocorre com muitas mulheres afros ou indgenas, entre outras), como contra a poltica que define que tenhamos um determinado nmero de filhos ou filhas. preciso lutar pelo direito anticon-cepo e pelo direito de interromper a gravidez pela razo que a mulher considere necessria, ou seja, a despenalizao da inter-rupo voluntria da gravidez (IVG). Agora, se a legalizao da IVG implicar o fato de o Estado ter que opinar sobre a nossa pro-criao, eu acho que uma discusso um pouco diferente. Acho

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    que seria ainda melhor se as mulheres tivessem nas suas mos os meios para interromper a gravidez quando elas quiserem, sem ter que depender do Estado. No incio da gravidez, tem meios bem simples de interromp-la.

    Na Frana, h apenas um despenalizao da IVG, no uma legalizao propriamente e depende do Estado. proibido a mulher mesma fazer. Ainda que as leis permitam realizar o aborto, as polticas de privatizao da sade e a falta de capa-citao de ginecologistas fazem com que o direito seja constan-temente ameaado. Ento, apenas a lei no suficiente. O que quero dizer com isso que precisamos ter controle do nosso corpo. Precisamos ter muito mais controle e muito mais infor-mao de como as mulheres engravidam e de que podemos ter prazer e vivenciar a sexualidade que no seja necessariamente para procriao. H muitas formas de se relacionar para diminuir essa presso, esse vnculo com a gravidez. Tem um texto muito interessante da Paola Tabet, que se chama Fecundidade natural, procriao forosa, em que ela diz que incrvel que sempre a fecundidade seja entendida como limitar a quantidade de filhos e filhas, quando muitas sociedades, o que esto fazendo o tempo todo aumentar o que ela chama de risco de gravidez para as mulheres, ou seja, que muitas sociedades organizam a exposio mxima das mulheres ao coito fecundante sobreproduo ou intensificao de produo de filhos(as). A procriao analisada por Tabet (no apenas, mas tambm) como um trabalho. Dito isso, quero colocar que, evidentemente, sou a favor da legaliza-o da interrupo voluntria da gravidez.

    9 Quais os principais desafios que voc considera diante da mundializao neoliberal para o feminismo?

    R: Eu acho que agora a luta ecolgica (realmente, pela sobrevivncia da terra me que nos permite viver) e antimilita-rista, que vo juntas na sua oposio globalizao neoliberal e so profundamente feministas. A justia ambiental tem muito a ver com a luta antirracista e com a questo de classe, porque as pessoas que so danificadas, so mortas, so exterminadas pela questo do meio ambiente so fundamentalmente pessoas do campo, pessoas dos bairros populares, pessoas racializadas

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    e, muitas delas, so mulheres. Acho que uma prioridade a luta contra o agronegcio, os transgnicos, a apropriao das terras. Lutar contra a indstria nuclear, lutar contra as transnacionais armamentistas que so ligadas s transnacionais extrativistas e que so, cada vez mais, ligadas s transnacionais do agroneg-cio. Lembremos que o primeiro golpe de Estado promovido pela CIA foi no Ir para aceder ao petrleo provocando a revoluo do Aiatol Khomeini que durou anos e no foi muito favorvel para as mulheres o segundo na Guatemala, para defender a United Fruit Company, propriedade estadunidense, com consequncias terrveis para as populaes maias e, dentro delas, especialmente as mulheres maias. O armamentismo, as guerras, as indstrias extrativistas e energticas tm muito a ver umas com outras e com a opresso das mulheres, sobretudo as mulheres racializa-das e proletarizadas. O petrleo serve para fazer os agrotxicos e os fertilizantes, que, por sua vez, servem para o agronegcio (e para a guerra, para mobilizar as aeronaves e os tanques). uma cadeia muito integrada. E so os mesmos que tm os meios de comunicao e, no poucas vezes, esto incrustados no poder poltico, como foi o caso da famlia Bush.

    Acho que muitas vezes ficamos no micro, nas normas e nos papis de sexo e esquecemos a luta contra a militarizao, no s contra a guerra, mas contra a militarizao prpria, que uma prioridade; uma luta contra a lgica da guerra e da guerra de baixa intensidade, que uma forma de controle poltico, esta-dual, sobre os povos e a mo de obra. Realmente, esse perodo neoliberal se fundamenta numa guerra dos poderosos, que so donos do Estado, contra a gente. Ento, uma prioridade lutar contra essa guerra. Isso significa lutar contra toda a lgica de militarizao da sociedade e contra a perda das possibilidades de autonomia devido confiscao das terras, perda das guas, ao roubo das sementes pelas transnacionais. Isso acho que uma das prioridades das feministas e das mulheres, ou a prioridade.

    A luta feminista tem que ser ao mesmo tempo uma luta antir-racista, uma luta anticapitalista e a gente no pode ficar somente defendendo as mulheres, menos ainda a liberdade sexual indi-vidual (diferente lutar com uma perspectiva lsbica feminista, que permite ter maior claridade sobre a organizao das relaes

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    sociais de poder), porque isso s vai gerar o aprofundamento do racismo e o aprofundamento da explorao de classe.

    10 Quais as principais resistncias polticas do movimento feminista que voc destacaria?

    Acho que um exemplo de luta radical muito inspirador foi a ao das mulheres contra a transnacional Aracruz Celulose no 8 de maro de 2006. Acho que, significativamente, tanto no movi-mento antiglobalizao, as camponesas, as mulheres do campo, das florestas, da beira do mar, por muitos motivos, nesses ltimos anos, tm estado frente das lutas. Muitas vezes, elas tambm so mulheres racializadas. A luta das mulheres indgenas zapatis-tas outro caso muito ilustrativo. Tambm toda a reflexo e as lutas descoloniais, que agora so celebradas como a novidade e a perspectiva mais radical, fazem parte da longa histria de luta das mulheres indgenas, das mulheres afros e de muitas mulheres racializadas de diferentes partes do mundo.

    Outra coisa que eu destacaria so as lutas lsbico-feminis-tas, mas lsbicas no como preferncia sexual, lsbicas como um posicionamento contra a naturalizao dos sexos, como j falei.

    11 Voc gostaria de deixar alguma mensagem para as mulheres brasileiras?

    Existem muitas lutas e muitos pensamentos enraizados nas lutas que no conhecemos, sobretudo as pessoas que so de classe privilegiada, brancas e do Norte. Ento, uma mensagem para as brasileiras e para as pessoas dos chamados pases do Sul: muito obrigada por tudo que esto desenvolvendo aqui, pelas lutas daqui, a partir da realidade daqui. Vocs so uma inspirao muito importante para as demais e um componente essencial da luta contra o neoliberalismo racista e patriarcal. Temos que ver como fazer mais alianas transnacionais, mas tm que ser mais igualitrias e provavelmente dirigidas pelas mulheres, feministas e lsbicas do Sul e ativistas, mais que pelas acadmicas e/ou as pessoas do Norte.

    Braslia (DF), ano 14, n. 27, p. 245-261, jan./jun. 2014.