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  ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS   PESQUISA E PÓS-GRADUÇÃO 7º ENCONTRO DA ANDHEP  UFPR 2012 23 a 26 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR) GT: Teoria e Fundamento s Filosóficos dos Direitos Humanos 2º sessão: Direitos Humanos: fundamentaçõ es insurgentes na América Latina Teoria crítica, direitos humanos e acesso à terra: conexões necessárias Gabriela Maia Rebouças (UNIT) - Autora Verônica Teixeira Marques (UNIT) - Co-Autora

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  • ASSOCIAO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS PESQUISA E PS-GRADUO

    7 ENCONTRO DA ANDHEP UFPR 2012

    23 a 26 de maio de 2012, UFPR, Curitiba (PR)

    GT: Teoria e Fundamentos Filosficos dos Direitos Humanos

    2 sesso: Direitos Humanos: fundamentaes insurgentes na Amrica Latina

    Teoria crtica, direitos humanos e acesso terra: conexes necessrias

    Gabriela Maia Rebouas (UNIT) - Autora

    Vernica Teixeira Marques (UNIT) - Co-Autora

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    Teoria crtica, direitos humanos e acesso terra: conexes necessrias

    Gabriela Maia Rebouas1 (UNIT) - Autora

    Vernica Teixeira Marques2 (UNIT/ITP) - Co-Autora

    RESUMO: Considerando que o acesso terra tem sido objeto de conflitos em

    propores mundiais e que a grande maioria da populao est alijada deste direito,

    tornando a vida extremamente difcil e particularmente cruel, este texto pretende

    estabelecer as conexes necessrias entre teoria crtica, direitos humanos e acesso

    terra, explorando os referenciais filosficos que substanciam uma viso crtica,

    emancipadora e libertria dos direitos humanos, para vislumbrar horizontes de acesso

    terra inclusivos, promovendo a vida de maneira mais igualitria e digna.

    1 INTRODUO: a criminalizao dos movimentos de acesso terra

    Os conflitos pelo acesso terra, sejam agrrios ou urbanos, expem uma faceta

    amarga da luta pelos direitos humanos (DH): sendo a ordem extremamente protetora

    da propriedade individual, valores como dignidade, famlia, trabalho e at a vida

    perdem fora nesta disputa. O acesso terra engloba tanto a propriedade da terra

    onde se possa viver e trabalhar, quanto o acesso terra produtiva, a utilizao de

    recursos naturais, paisagsticos, entre outros.

    Estudos apontam que as reas de maior conflito sobre a terra esto localizadas

    na sia, frica e America Latina (MISEREOR, 2005). Nesta ltima, quase todos os

    pases tentaram, a partir da dcada de 60 do sculo XX, implementar polticas de

    reforma agrria que, no obstante algum esforo poltico e social, mostraram-se

    fracassadas. No Brasil, os conflitos e a forte desigualdade de acesso permanecem at

    hoje, migrando inclusive para os espaos urbanos, onde a tnica continua sendo a

    criminalizao de tais movimentos.

    Recentemente, a desocupao da favela do Pinheirinho3 no Municpio de So

    Jos dos Campos em So Paulo, exps mais um captulo de violao de direitos

    1 Gabriela Maia Rebouas Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco,

    Professora Titular da Universidade Tiradentes - UNIT e membro do Ncleo de Ps-Graduao em Direito (NPGD/UNIT), atuando como pesquisadora na rea de direitos humanos, subjetividade e resoluo de conflitos. 2 Vernica Teixeira Marques Doutora em Cincias Sociais pela Universidade Federal da

    Bahia, Professora Titular da Universidade Tiradentes - UNIT e membro do Ncleo de Ps-Graduao em Direito (NPGD/UNIT), atuando como pesquisadora na rea de direitos humanos, democracia e polticas pblicas. 3 A Polcia Militar cumpriu mandado de desocupao do Pinheirinho em dezembro de 2011,

    desabrigando cerca de 6 mil pessoas. Um efetivo de 2 mil militares atuou na regio, utilizando munio no-letal e bombas de gs lacrimogneo, alegadamente aps resistncia dos moradores. Oficialmente, apenas uma pessoa ficou ferida com gravidade e foi encaminhada ao hospital municipal. No dia 20.01.2012, o Tribunal Regional Federal (TRF) suspendeu a ordem

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    humanos de uma coletividade de famlias, ao tempo em que corroborou a tendncia

    hegemnica da Justia brasileira em tratar questes humanas de acesso terra,

    moradia e vida digna no plano meramente particular de posses e patrimnio. Na

    periferia das grandes cidades, percebe-se o efeito perverso de uma modernidade cuja

    imagem precisa ser sempre purificada de seus prprios conflitos e contradies. Uma

    periferia que, a despeito da posio geogrfica urbana, se confunde com o campo

    quando se trata de excluso e pobreza.

    No to recentemente, os movimentos organizados de luta no campo por

    reforma agrria, nos remetem novamente ao contexto da criminalizao, alijados que

    esto do solo de reconhecimento dos discursos usuais de direitos humanos. Esse

    contexto registrado no Relatrio sobre a criminalizao dos movimentos sociais no

    Brasil que lista um considervel nmero de entidades organizadas, a saber:

    Dentre os Movimentos Sociais que organizam populaes do campo em ocupaes rurais como forma de conquista de seus objetivos deve se destacar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento de Libertao dos Sem Terra (MLST) como movimentos populares de trabalhadores rurais que reivindicam o direito a terra e lutam por justia social, Movimento dos Agricultores Sem-Terra (MAST), Movimento Terra Trabalho e Liberdade (MLT), Movimento dos Trabalhadores Rurais no Brasil (MTB), Movimento de Luta pela Terra (MTL) Movimento das Mulheres Campesinas (MMC) presente em 18 Estados, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) articulado em 14 Estados e enfrenta as regies de conflito onde esto sendo construdas vrias barragens no Brasil, Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) que est em 17 Estados e vem estruturando um novo modelo de agricultura, o Movimento das Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTRNE). (QUEIROZ, 2006, p.6)

    , portanto, preciso partir da contextualizao do acesso terra como uma

    questo problemtica em termos de legitimao. Assim, com o compromisso em

    propagar uma perspectiva inclusiva dos direitos humanos, que permita o

    reconhecimento do protagonismo daqueles que lutam pelo acesso terra como um

    direito necessrio para a concretizao do direito vida digna, tendo em vista a

    correlao entre este acesso e o direito moradia, alimentao, aos recursos

    naturais e inclusive ao crdito, este artigo pretende enfrentar, pela tica de uma teoria

    crtica dos direitos humanos, os abismos entre direitos humanos e acesso terra, seja

    de reintegrao de posse do terreno, mas a Justia estadual determinou a continuidade da ao. Disponvel em http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI5581769-EI5030,00-Acao+no+Pinheirinho+foi+absurda+diz+ministra+de+Direitos+Humanos.html. Acesso em 03.05.2012. Um Novo Pinheirinho surgiu, batizado com este nome, no Distrito Federal, onde igualmente a justia determinou a reintegrao de posse e o despejo das famlias, que afirmam resistir. Cf. NO DF, FAMLIAS SEM-TETO DO "NOVO PINHEIRINHO" MONTAM RESISTNCIA CONTRA DESPEJO. Disponvel em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/05/02/no-df-familias-sem-teto-do-novo-pinheirinho-montam-resistencia-contra-despejo.htm. Acesso em 02/05/2012.

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    no nvel discursivo, visivelmente desconexo, seja no plano terico-filosfico de

    legitimao deste discurso.

    Os compromissos deste artigo incluem pensar e propor caminhos tericos que

    permitam implementar polticas pblicas de acesso terra bem como apoiar como

    legtima a luta por reconhecimento dos movimentos de reforma agrria e das

    territorialidades urbanas, afastando-os de um tendncia perversa de criminalizao e,

    a um s tempo, reinscrevendo-os positivamente entre os direitos humanos do tempo

    presente.

    2 Abismos entre direitos humanos e acesso terra: discursos desconexos.

    O discurso de criminalizao das lutas por acesso a terra um mecanismo

    usado para deslegitimar as reivindicaes dos movimentos sociais e entidades

    populares, estrategicamente elaborado para isolar os movimentos e criar uma opinio

    pblica negativa a respeito, inclusive de forma a desencorajar o apoio de outros

    setores da sociedade.

    preciso compreender que este fato no aleatrio, ele reflexo de um

    conjunto de ideologias prprias da modernidade que contribuem para que os discursos

    em torno dos direitos humanos sejam percebidos nas aes clssicas de cidadania

    com muito mais evidncia, a respeito dos direitos individuais e, pouco ou quase nunca,

    em relao aos direitos coletivos ou insurgentes.

    Em relao propriedade privada e o acesso terra, embora a construo dos

    direitos subjetivos e dos ideais da modernidade tenham historicamente includo a

    identificao da propriedade como um direito indisponvel do indivduo, imerso na

    ideologia liberal e individualista, o acmulo de propriedades e a excluso de parte

    significativa da populao a este bem nunca pareceram ter a mesma relevncia.

    Perversamente, o liberalismo se alimenta da desigualdade na medida em que se faz

    dependente do capitalismo, cuja lgica de acumulao permanece como leitmotiv do

    sucesso do jogo.

    Assim, preciso investigar em que momento e como o discurso dos direitos

    humanos foi sendo construdo ao largo de um projeto efetivo de acesso a bens e

    direitos, que incluiria, certamente, o acesso terra. Lembra Singer que algum que

    no tem onde morar, que no dispe de endereo fixo em que possa ser encontrado,

    que pode ser enxotado de qualquer espao pblico que porventura ocupe (...)

    algum que perdeu o reconhecimento de sua condio humana (SINGER, 2009).

  • 4

    H diversos diplomas legais e polticos que vo responder pelo que o Ocidente

    vem, historicamente, denominando direitos humanos. A primeira fase de

    internacionalizao (COMPARATO, 2003, p.55 ss) destes direitos tem incio na

    segunda metade do sc. XIX e se prolonga at a segunda grande guerra mundial,

    marco histrico que delimita a segunda fase de internacionalizao, cujo smbolo a

    Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948). Partindo de uma natureza

    humana centrada na ideia de dignidade, e tendo em vista a unio dos povos

    (estabelecida definitivamente como valor aps a segunda grande guerra), os direitos

    humanos aparecem inicialmente com um sentido poltico forte, de resistncia e

    revoluo. No obstante a importncia histrica e poltica, o lastro de subjetividade

    que tais direitos preservam ainda se circunscreve numa perspectiva de construo de

    um super-homem irrealizvel, reforando os antagonismos entre discursos e prticas e

    evidenciando as vantagens pragmticas de um discurso de direitos fundamentais4.

    Sobretudo falando do campo jurdico, os direitos humanos perdem espao nos

    discursos como elemento poltico de lutas e passam a ser o substrato dos direitos

    fundamentais - verso objetivada pela positivao jurdico-estatal. Criando este vnculo

    com os direitos humanos e ao mesmo tempo promovendo uma distoro, o discurso

    hegemnico intenta construir uma teoria que preserva a fora retrica da ideia de que

    h direitos inalienveis, aqueles que se tornam, portanto, bens supremos no Estado

    liberal, embora deixando para trs qualquer sentido histrico de luta de classes ou

    grupos. A manobra inclui preservar caractersticas da teorizao dos direitos

    subjetivos, reforando o atributo de universalizao, que promove uma ruptura com os

    conflitos histricos e enfrentamentos reais nos diversos contextos de excluso.

    Ganhando espao na teoria jurdica, os direitos fundamentais vo se afirmar

    enquanto estabilizao e consolidao de uma ordem institucionalizada. Como vemos,

    as argumentaes apontam que os direitos fundamentais ganham em positividade,

    objetividade e funcionalidade, caractersticas que sero superestimadas na

    consolidao do neoliberalismo5, e tomam o lugar dos direitos humanos no cenrio de

    4 Muitos autores falam at em direito humano fundamental (cf. FERREIRA FILHO, 2000),

    construindo uma simbiose, a nosso ver negativa, entre direitos humanos e direitos fundamentais, ou criando uma redundncia desnecessria. Em geral, quem adota esta linha acaba por restringir a discusso dos direitos em tela ao espao nacional, alm de esperar uma posio sempre mais protagonista do prprio Estado. Assim, aqueles que lutam por direitos, construindo um protagonismo que quebra o status quo, acabam por ter sua luta criminalizada, sempre recebida pelo poder institudo como contraordem. 5 Tomamos aqui a noo de neoliberalismo trabalhada por Agostinho Ramalho Neto, quando o

    delineia como uma ideologia supressora de direitos ao resumir a cidadania ao consumo. A soberania do estado passa ao Mercado, numa subsuno do poltico ao econmico. A cidadania, por seu turno, vai pouco a pouco perdendo seus sentidos: poltico (de participao ativa na gesto da sociedade poltica) e jurdico (a cidadania enquanto direito a ter direitos) (MARQUES NETO, 2010, p.116), para identificar-se ao acesso ao consumo. O sujeito de

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    concretizao social. Esta substituio tem um preo: se os direitos fundamentais so

    aqueles j positivados nas cartas constitucionais, eles se harmonizam de tal forma

    com o Estado que as reivindicaes se limitam ao j concedido e no mais a

    questionar o prprio Estado ou alargar as fronteiras de realizao de uma noo de

    humanidade porvir. A reduo empreendida, portanto, afeta diretamente a noo de

    humano e de direitos, condicionada que resta pela funcionalidade sistmica dos

    direitos fundamentais.

    Por outro lado, perceptvel que a discusso de direitos humanos surgida em

    um solo filosfico tpico da modernidade, ganhava uma funcionalidade mais poltica do

    que jurdica (acontece o inverso no discurso dos direitos fundamentais), portanto

    adjacente legitimao como direitos. como se o discurso de direitos humanos

    funcionasse como uma vlvula redentora ou legitimadora da concretizao do Estado

    liberal sem, contudo, aliviar as tenses conflituosas dentro dele. Esta situao

    agravada pelo avano do neoliberalismo que vai, agora, esvaziando inclusive o Estado

    a um mero regulador do Mercado, de modo que a condio sine qua non do cidado6

    e sujeito de direitos ser, antes de tudo, consumidor. Compreende-se, neste passo,

    porque ento as lutas dos movimentos de acesso terra, para superarem um estado

    de excluso, enfrentam de cara o processo de criminalizao: elas esto fora e contra

    a prpria lgica do Mercado e do consumo, elas retornam terra o seu significado

    social, de dignidade e vida boa, de igualdade e desenvolvimento, caractersticas que o

    neoliberalismo rechaa para fazer da terra apenas mercadoria, especulao ou

    produo em escala de competitividade mundial7.

    A complexidade destas tenses pode ser compreendida como interna ao prprio

    paradigma da modernidade, rico, complexo, ambicioso e revolucionrio. Conforme

    Boaventura de Sousa Santos (2002, p.50), a modernidade assenta-se em dois pilares

    principais regulao (constitudo pelo princpio do Estado, pelo princpio do mercado

    e pelo princpio da comunidade) e emancipao (atravs da racionalidade esttico-

    direitos, por excelncia, no neoliberalismo, o consumidor que, agora, sequer encontra barreiras ou identidades culturais. Brasileiros, sem nunca sarem de territrio nacional, podem possuir eletrnicos de Taiwan, bolsas de palha da Indonsia, consumir msica eletrnica americana, chupetas alems, vinhos franceses e tudo, tudo o que puderem da China. 6 A cidadania, esta construo histrica do estado democrtico de direito, que encerrava na

    perspectiva moderna o feixe de direitos polticos, sociais e econmicos dos sujeitos, calcada na liberdade e buscando a igualdade, vem sendo sensivelmente vilipendiada pelas perspectivas reducionistas do neoliberalismo. Para um apanhado mais completo da concepo de cidadania, cf. MARQUES, Vernica Teixeira et all. Cidadania e Acesso justia. In: REBOUAS, Gabriela Maia; MARQUES, Vernica Teixeira. Direito e Mobilidade social: novos desafios. Rio de janeiro: Lumne Iuris, 2012. 7 Cf. o diagnstico acerca da reduo da terra aos mecanismos de poder e o escndalo

    relacionado nova onda de investimentos em terras (ZAGEMA , 2011). Tambm, conferir o estudo sobre a corrida internacional por terras como reserva de recursos naturais, para utilizao no agronegcio de etanol e outras matrizes energticas (SAUER, 2011).

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    expressiva das artes, cognitiva-instrumental da cincia e moral-prtica da tica e do

    direito).

    Este projeto de modernidade um projeto contraditrio, que no consegue

    equilibrar seus elementos. Assim, na prtica, a modernidade caminhou para uma

    hipertrofia em torno da regulao do Estado e do mercado, atrofiando a comunidade e

    no outro pilar, sufocando a ideia de emancipao apenas realizada pela racionalidade

    instrumental da cincia. Os efeitos deste desequilbrio e concentrao no princpio do

    mercado e do Estado tm reflexos, sobretudo, em relao aos desdobramentos do

    liberalismo em neo-liberalismo e, tambm, numa razo instrumental que embrutece a

    relao sujeito-objeto, tornando-a cada vez mais objetificada.

    As contradies da modernidade contribuem tambm para a percepo do

    espao urbano como rico e moderno em dicotomia com o espao rural, supostamente

    taxado de pobre e arcaico. Como mostra Srgio Sauer, esta dicotomia tem funcionado

    como uma lgica explicativa fundante da realidade social, que ora contrape os dois

    plos, ora subordina, incondicionalmente, o rural ao urbano (2003). como se o rural

    pudesse estar fora das representaes da sociedade, inclusive numa tica globalizada e

    ps-moderna (SAUER, 2003).

    Mas a percepo terica destas contradies, dos desequilbrios entre os pilares

    e seus princpios, essa realidade dura e cruel de um mundo desigual e injusto que

    prega, no discurso exatamente a igualdade de oportunidades e a justia, este

    paradoxo no , por si s suficiente para alterar a realidade, fazendo-a buscar

    equilbrio ou convulsionando-a na direo de uma mudana de paradigma. A

    modernidade permanece como paradigma dominante porque, na prtica, as

    contradies com o discurso conseguem ampliar a margem de autonomia em relao

    aos compromissos firmados, sempre vistos como ideais a alcanar e quase nunca

    como responsabilidades a assumir concretamente.

    Nesse sentido, compartilhamos com a ideia de que, eleito como uma categoria

    cientfica do direito (MAIA, 2009, p.8) e baseado na perspectiva de uma subjetividade

    essencial, o direito subjetivo, no qual se baseia a teoria dos direitos humanos e dos

    direitos fundamentais, presta um vigoroso auxlio na articulao de uma subordinao

    da poltica moral para a construo de um imaginrio liberal. E, com isso,

    reforaramos a perspectiva de uma projeo ideal e metafsica do sujeito, planificando

    identidades (MAIA, 2009, p.6 e 9) e postergando, ainda mais, a construo de novas

    identidades para os movimentos de acesso terra, sem a pecha criminalizadora.

    Portanto, a reduo dos direitos humanos a um discurso de direitos fundamentais

    contribui para o enfraquecimento dos direitos humanos como instrumento de lutas por

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    emancipao e alarga, ao mesmo tempo, a retrica discursiva destes direitos com

    movimentos conservadores de criminalizao8.

    Avanando no debate, uma segunda perspectiva nos ajuda a compreender as

    desconexes entre acesso terra e direitos humanos. Andrei Koerner (2002, p.87-111)

    entrecruza os critrios: (i) as relaes entre as ordens polticas interestatal e estatal e

    (ii) as relaes entre os sujeitos e as normas; e identifica a possibilidade de

    caracterizao de quatro parmetros: globalismo, estatismo, contextualismo e trans-

    localismo.

    No globalismo a ordem poltica global, cujo sistema de normas mandatrio,

    predomina sobre o sistema de normas do Estado e sobre as normatividades sociais.

    No estatismo, ao contrrio, deve predominar a ordem poltica estatal, devendo a

    ordem internacional de direitos humanos e as normatividades sociais serem

    reconhecidas pelo sistema estatal para terem efetividade. No contextualismo

    prevalece a ordem poltica estatal em consonncia com as diferentes normatividades

    oriundas dos grupos sociais. Por ltimo, o trans-localismo, acentua a prevalncia de

    uma ordem internacional

    cuja normatividade resulta da combinao das diversas

    normatividades do globo, a qual no se pe como ordem mandatria,

    mas como resultado de um processo de dilogo intercultural, que

    promove o reconhecimento das diferenas e, pois, consensos. O

    sujeito de direitos humanos concebido a partir das capacidades ou

    prticas sociais. Para ser justa, a ordem normativa global deve levar

    em conta, alm das necessidades bsicas e capacidades dos

    indivduos (o que pode ser alcanado com uma ordem internacional

    igualitria), as diferentes concepes comunitrias da vida boa

    (KOERNER, 2002, p.92).

    A concepo de direitos humanos apresentada at aqui se insere numa

    perspectiva globalista, j que acentua esse sujeito de direito universal, nutre uma

    perspectiva otimista da histria e cr numa ordem internacional igualitria. Afora esta

    concepo, a nfase relativista da concepo estatista, ao concentrar-se numa ordem

    normativa imperativa centrada em critrios formais de legitimao, no significa

    avanar no reconhecimento dos atores que lutam pelo acesso terra. Ao defenderem,

    por exemplo, que uma poltica global de direitos humanos tem um carter de

    mandamento moral para os Estados (KOERNER, 2002, p.97) e que, portanto, os

    direitos fundamentais so mais efetivos porque nomeados pela ordem estatal,

    8 Um diagnstico significativo deste movimento de criminalizao no Brasil pode ser encontrado

    em QUEIROZ, Rosiana P. (org) A criminalizao dos movimentos sociais no Brasil: relatrio de casos exemplares.- Braslia: MNDH; Passo Fundo: IFIBE, 2006.

  • 8

    sacralizam a fora do Estado no lugar de promover uma maior distribuio de bens e

    direitos.

    O extremo relativismo dos contextualistas, tambm identificados por

    comunitaristas, pode ser criticado por isolarem demais as culturas, tornando-as

    independentes umas das outras e criando um pluralismo entre as ordens locais,

    nacionais e internacionais a ponto de serem acusados de cinismo frente ao sofrimento

    explcito de certas comunidades em fatos histricos marcados pela opresso de seus

    governos ou de disputas entre Estados. Na linha dos contextualistas, a pretenso de

    universalidade dos direitos humanos um apelo ocidental imperialista e no um

    desejo de todos os povos. Em relao aos direitos humanos, os contextualistas no

    avanam alm de uma pauta moral, costumeira de valores das comunidades.

    Na tentativa de ultrapassar as crticas de estatistas, contextualistas e globalistas,

    o trans-localismo percebe com realismo as dificuldades econmicas e polticas de

    convivncia na esfera internacional, embora veja a universalizao dos direitos

    humanos como um avano positivo. Isto no quer dizer que acredite num universal

    humano, mas aponta para muitos universais, contingentes em relao aos contextos

    culturais que possam, contudo, diferentemente dos contextualistas, dialogar. Os trans-

    localistas esto associados a uma certa cultura de paz, que busca na formao de

    consensos o caminho para a convivncia entre os diferentes9.

    Portanto, buscando uma perspectiva de direitos humanos que d conta das

    diferenas, que promova a incluso das massas, preciso realinhar as foras entre os

    critrios citados, quais sejam, (i) as relaes entre as ordens polticas interestatal e

    estatal e (ii) as relaes entre os sujeitos e as normas, para que a questo do acesso

    terra seja colocada no centro dos discursos de direitos humanos, e no ao largo

    dele.

    Com Boaventura de Sousa (SANTOS, 1997) e Koerner (2002), preciso

    desconfiar das perspectivas demasiadamente otimistas da capacidade humana em

    harmonizar os diferentes, de modo que os direitos humanos precisam ser vistos no

    espao de lutas e resistncias contra-hegemnicas de emancipao, na esfera em

    que compartilhar menos uma boa ao proveniente de uma razo prtica e mais

    uma estratgia de vida e experimentao de formas de subjetividade mutantes.

    9 Trata-se da proposta de uma hermenutica diatpica, a qual considera impossvel,

    inadequado ou insuficiente alcanar um mnimo denominador comum cultural, dada a

    necessria posicionalidade dos agentes, sempre relacionados s suas prprias culturas. A

    hermenutica colocada como processo de interpretao da prpria cultura e da cultura do

    outro, diatpica, pois a presena irredutvel do outro faz parte do processo, o qual , tambm o

    resultado (KOERNER, 2002, p.105-106).

  • 9

    Os espaos por onde as lutas identitrias em relao terra podem ganhar

    reconhecimento precisam ser construdos. A luta pela terra um processo social,

    poltico e econmico que abarca um conjunto de transformaes no campo,

    redistribuindo a propriedade da terra e o poder, redirecionando e democratizando a

    participao da populao rural no conjunto da sociedade brasileira (SAUER, 2003).

    A participao nas mobilizaes e lutas pela posse da terra produz uma renovao das representaes e valores das pessoas acampadas e assentadas (Geiger, 1995). Esta renovao no se reduz a uma atualizao momentnea como resultado, por exemplo, da unidade exigida pelo contexto de privaes, ameaas e medo dos acampamentos mas em resignificaes que modificam representaes e a prpria conscincia das pessoas. O envolvimento nas lutas um processo social que possibilita a reorganizao das diversas representaes, provocando alteraes da percepo da prpria identidade. Isto possibilita tambm uma reconstruo da conscincia de sujeito, baseada na conquista do direito ao trabalho e no significado simblico da produo (SAUER, 2003).

    Para tanto, necessrio enfrentar as contradies expostas, aventurando-se

    pela proposio de uma teoria crtica dos direitos humanos, ciente e comprometida

    com formas plurais e distintas de protagonismos, responsveis pela interao com os

    outros na medida dos cuidados consigo, na tentativa de reverter preliminarmente o

    discurso criminalizador das lutas de acesso terra para acopla-los, positivamente, aos

    discursos de luta e efetivao dos direitos humanos.

    3 Fundamentos filosficos possveis de uma teoria crtica para os direitos

    humanos10.

    Impulsionados pelo desafio de pensar diferentemente os direitos humanos hoje,

    exploramos neste ponto as propostas de trs autores contemporneos sobre a

    questo: Repensar derechos humanos: de La anestesia a La sinestesia (2007) de

    David Snchez Rubio, A (re)inveno dos direitos humanos (2009a) e Teoria crtica

    dos direitos humanos (2009b) de Joaquin Herrera Flores, e Filosofia da Libertao de

    Enrique Dussel (1995).

    Quando David Snchez Rubio prope repensar os direitos humanos, ele parte

    da perspectiva que se encontram os direitos humanos hoje, tanto em sua prtica

    quanto em sua construo terica, anestesiados. Com referncia a Eduardo Galeano

    10

    Estas reflexes esto aprofundadas em REBOUAS, Gabriela Maia. Por uma nova potica dos direitos humanos: em busca de outros caminhos de legitimao. In: BERTOLDI, Mrcia Rodrigues; SPOSATO, Karyna Batista (Coords). Direitos Humanos: entre a utopia e a contemporaneidade. Belo Horizonte: Forum, 2011. p. 115-127.

  • 10

    quando afirma sobre o abismo entre o que se diz e o que se faz em termos de direitos

    humanos, Sanchez Rubio (2007, p.11) chama a ateno para o fato de que em la

    poca actual, y dentro del contexto de la cultura occidental, el imaginrio sobre el cual

    se fundamenta y se asienta nuestra manera de entender derechos humanos es

    insuficiente, bastante reducido y demasiado estrecho.

    Seu itinerrio ser aquele de pensar imagens, cegueiras, espelhos e

    obscuridades sobre os direitos humanos, passando pela anlise das intervenes

    humanitrias violentas em nome dos direitos humanos, a chegar aos paradoxos do

    universal para propor, enfim, que na confluncia entre fico e cincia, se possa

    repensar os direitos humanos para alm da modernidade, reconstruindo a prpria

    caracterstica do humano a partir de um referencial de subjetividades nmades

    (RUBIO, 2007, p.11).

    A inspirao vem, particularmente, do uso que Rosi Braidotti (2002) d em seu

    artigo Diferena, diversidade e subjetividade nmade. Defendendo uma perspectiva

    feminista, no simplria, da relao entre diversidade cultural e gnero, Braidotti

    discute a propriedade da adjetivao nmade para significar esta outra perspectiva da

    subjetividade, que privilegia a diferena, que privilegia o movimento de deslocar o

    olhar histrico e reinventar a existncia, e no mais a identidade, o mesmo e o

    progresso.

    A renncia a isto tudo seria uma posio mais confortvel, em favor

    de uma viso descentralizada e multi-dimensionada do sujeito como

    entidade dinmica e mutante, situada em um contexto, em

    transformao constante. O nmade expressa minhas prprias

    figuraes de uma compreenso situada, culturalmente diferenciada

    do sujeito (BRAIDOTTI, 2002).

    Inserida no caldeiro da discusso da ps-modernidade, a subjetividade nmade

    tem a ver com a simultaneidade de identidades complexas e multi-dimensionadas.

    (...) O sujeito nmade um mito, ou fico poltica, que me permite pensar sobre e

    mover-me atravs de categorias estabelecidas e nveis de experincia (BRAIDOTTI,

    2002).

    Antes, porm, Sanchez Rubio compartilha a crtica de se reduzir os direitos

    humanos aos direitos fundamentais constitucionalmente previstos, como um elemento

    de esvaziamento do potencial transformador dos sujeitos envolvidos, acirrando o

    abismo entre normatividade e efetividade de tais direitos. Pese a existir um

    reconocimento de la importancia de los derechos fundamentales o derechos humanos

    constitucionalizados, los mecanismos de no aplicabilidade y la ausencia de garantas

    convincentes estaran a la orden de todos los das (RUBIO, 2007, p. 23).

  • 11

    A construo de uma identidade a partir da qual a subjetividade pensada como

    lastro para os direitos humanos e, por conseguinte, para os direitos fundamentais, de

    onde se extrai critrios para classificar gnero, sexo, raa, classe, etnia, religio, so

    critrios a um s tempo para a igualdade formal discursiva como para a desigualdade

    material concretizada. Para enfrentar esta anestesia paradoxal, torna-se fundamental

    com Sanchez Rubio compreender a democracia entendida como um modo de vida e

    os direitos humanos como procesos de creacin continua de tramas sociales de

    reconocimiento y subjetividades a timpo completo y em todo lugar (RUBIO, 2007, p.

    27).

    Assim, repensar os direitos humanos com Sanchez Rubio (2007, p. 119) importa

    em explorar a cincia-fico na construo de um imaginrio social e de uma prtica

    emancipatria por novas formas de dignidade humana, sinestsicas, de grupos e

    coletividades que enfrentam a luta, resistem e repensam sua existncia, na criao de

    relaes humanas que superem as condies atuais de excluso, explorao,

    dominao, marginalizao e as transformem em relaes de incluso e participao,

    horizontais e solidrias.

    Mas se repensar um movimento necessrio, e concordamos que a perspectiva

    moderna da construo dos direitos humanos demasiadamente limitada para poder

    monopolizar toda a utopia e potencial emancipador desta expresso direitos

    humanos; se concordamos que esta perspectiva no s castradora das diferenas

    quanto inaudita para as lutas e sofrimentos de populaes inteiras excludas das

    sociedades ocidentais em suas bandeiras universalizantes, especialmente cega para a

    questo da distribuio de terras produtivas; importa em (re)inventar novas prticas e

    legitimar esta outra perspectiva sinestsica dos direitos humanos. Importa, ento,

    explorar o imaginrio de Herrera Flores (2009a).

    Flores situa inicialmente os direitos humanos como a afirmao da luta do ser

    humano para ver cumpridos seus desejos e necessidades nos contextos vitais em que

    est situado (FLORES, 2009a, p.25). Por isso, contrape-se a categorizar os direitos

    humanos como privilgios, declaraes de intenes ou postulados metafsicos

    apriorsticos. Contrape-se a identificar o universal como transcendncia ou

    racionalidade lgico-dedutiva. Antes, o universal dos direitos humanos deve ser

    compreendido na imanncia do fortalecimento de indivduos, grupos e organizaes

    que buscam acesso a bens que fazem com que a vida seja digna de ser vivida

    (FLORES, 2009a, p.25).

    Para tanto, preciso superar o discurso evangelizador dos direitos inalienveis,

    de uma concepo clssica de direitos humanos como o direito de ter direitos, que em

    ambos os casos, encerram a discusso dos direitos humanos num catlogo ou

  • 12

    plataforma de direitos reconhecidos formalmente ou normativamente. Mas, se esses

    direitos no so transformados em empoderamento dos sujeitos envolvidos nos

    processos de luta, o que adianta v-los reconhecidos retoricamente em diplomas

    legais ou textos jurdicos? Este simplismo de viso sobre os direitos humanos

    denunciado por Herrera Flores (2009a, p.33) como um crculo vicioso, paralisante,

    para conectar com a potica de Sanchz Rubio.

    Reconhece Herrera Flores (2009a) que, para (re)inventar os direitos humanos,

    preciso enfrentar a complexidade cultural, emprica, jurdica, cientfica, filosfica,

    poltica e econmica que os envolve, isso porque toda cultura est contaminada por

    muitas culturas e racionalidades. Diante disso, o que se defende no objetivamente

    a igualdade ou a diferena, mas o justo dentro das igualdades e diferenas existentes.

    Da a necessidade de se propor a interdisciplinaridade, a interculturalidade e

    completude dos Direitos Humanos, no seu incessante processo de construo,

    desconstruo e reconstruo de conceitos.

    Esta complexidade multifacetada s poder ser enfrentada com uma teoria

    crtica e realista dos direitos humanos, que envolva uma perspectiva integradora e

    contextualizada em prticas sociais emancipadoras. Ou seja, para ser realista, importa

    saber onde estamos e que caminhos podem ser propostos, olhando a vida em sua

    imanncia, como e tem sido vivida. Por outro lado, para ativar uma teoria crtica,

    preciso reconhec-la como atitude de combate das condies dadas e capacidade

    para elaborar uma viso alternativa do mundo, para alm de suas atuais

    contingncias. Portanto, o pensamento crtico e realista tambm um pensamento

    criativo e propositivo, e preciso abrir a possibilidade das pessoas se defenderem de

    acordo com os seus prprios critrios de dignidade humana, conforme o contexto

    cultural, tico, poltico e social.

    Surgem ento os cinco deveres bsicos para os que pretendem (re)inventar com

    Herrera (FLORES, 2009a, p.67-69) os direitos humanos: a partir de uma plataforma de

    compromissos e deveres para construir zonas de contato emancipadoras, importa em

    Reconhecimento, Respeito, Reciprocidade, Responsabilidade e Redistribuio. Com

    isso, seria possvel construir uma nova cultura dos direitos humanos que contempla a

    abertura social triplamente caracterizada: abertura epistemolgica, intercultural e

    poltica (para a democracia participativa), atualizando a esperana na conduo da

    ao humana.

    A questo do acesso terra perpassa por todos os cinco elementos: preciso

    em primeiro lugar reconhecer a luta destes movimentos como legtima e inserida na

    plataforma justa dos direitos humanos; sem ela, no haver o respeito diversidade e

    dignidade dos envolvidos, um contingente enorme de pessoas ao redor do mundo e

  • 13

    significativamente no Brasil; a reciprocidade se dar na medida da diminuio das

    tenses e conflitos no campo ou na cidade, na construo de uma sociedade

    responsvel, com polticas pblicas voltadas para o desenvolvimento humano e cultura

    de paz. Faz-se necessrio, enfim, uma redistribuio dos bens e acessos, na medida

    em que garantir a propriedade e sua funo social no diz respeito a uns poucos, mas

    a todos, enquanto vivos.

    Por outro lado, para uma compreenso definitiva das contribuies de uma teoria

    crtica dos direitos humanos em conexo com o acesso terra, preciso evidenciar a

    tica da alteridade11 de que fala Dussel (1995), na construo de sua filosofia da

    libertao. A condio primeira da alteridade, que o encarar o outro em sua

    singularidade, exige uma tica, no sentido de que viver conviver. E vai alm: significa

    compreender as condies imanentes dos excludos, a dor em sua excluso, na

    superao da intolerncia de ver o outro como o oposto de si, o inimigo; significa no

    criminalizar o diferente, reduzindo-o sempre ao mesmo; significa sim, tomar

    conscincia da histria e dos diferentes protagonistas da histria, compreendendo as

    lutas por emancipao como mago de uma sociedade libertria e democrtica.

    4 guisa de concluso: conexes necessrias entre teoria crtica, direitos

    humanos e acesso terra.

    Nos debates entre direitos humanos e acesso terra, fica ainda mais evidente

    os efeitos perversos de uma legitimao filosfica dos direitos humanos vinculada

    modernidade, concentrando-se na retrica de uma imagem de homem superior e

    racional que sufoca formas dissonantes de subjetividades e legitima uma prtica

    hegemnica de vida, (neo)liberal e eurocntrica. Esta forma reduzida da imagem dos

    direitos humanos est esvaziada, sobretudo, da capacidade de transformao social e

    emancipao dos sujeitos envolvidos.

    Por outro lado, no mais alentador, assistimos certa substituio do debate

    sobre os direitos humanos por outro sobre direitos fundamentais, acentuando os

    critrios de racionalidade e sistema, com nfase na dimenso concretizadora dos

    direitos fundamentais, de apelo mais pragmtico e dogmtico. Destarte, ao reduzir o

    debate aos tribunais, evidenciamos ainda mais a necessidade de alternativas de

    legitimao, j que as respostas institucionais apontam para uma evidente

    11

    Os encontros necessrios com a tica da alteridade esto tambm evidenciados pelas observaes jurdico-psicanalticas de Agostinho Ramalho Marques Neto (2010) e scio-jurdicas de Jos Carlos Moreira da Silva Filho (2007).

  • 14

    criminalizao dos movimentos de lutas e resistncias dos excludos, sobretudo em

    relao ao direito de acesso terra.

    Portanto, se em seu nascedouro a teorizao dos direitos humanos j precisa

    enfrentar paradoxos irrealizveis, como a sustentao de uma subjetividade universal

    e racional, os desdobramentos concretos de uma fragmentao entre direitos

    humanos e direitos fundamentais distancia ainda mais a teorizao dos direitos

    humanos das lutas locais de emancipao e construo de novas formas de vida.

    Importa em denunciar os paradoxos de uma concepo posta de direitos

    humanos - moderna e liberal, esvaziada de seu potencial emancipador e criativo, para

    explorar outras cartografias que permitam reinventar o acesso terra como um direito

    humano capaz de promover resultados significativos, na realizao de formas de vida

    digna, pautadas tambm pela igualdade material e de oportunidades.

    Neste sentido, as contribuies de uma teoria crtica dos direitos humanos,

    conforme proposta por Flores, Dussel, Santos, Sanchez, se mostram como alternativa

    ao discurso institudo, inclusive aquele sobre os direitos fundamentais, e mais

    adequadas, a nosso ver, a recolocar as questes de acesso terra, reforma agrria e

    lutas campesinas ou urbanas, em sintonia com o direito moradia, vida digna de ser

    vivida.

    Mais alm, tais referenciais, porque consideram que os direitos humanos esto

    no plano imanente da ao, reforando o seu carter histrico e contextual, podem,

    qui, constituir contraste com os discursos neoliberais de esvaziamento de direitos,

    que reduz o sujeito de direitos, poltico, jurdico, a mero consumidor.

    Ou seja, necessrio encarar as insuficincias de uma concepo tradicional de

    direitos humanos, compreender os movimentos do neoliberalismo na supresso de

    direitos e criminalizao de lutas contra-hegemnicas, acatar as proposies de uma

    teoria crtica dos direitos humanos para que o acesso terra ganhe reconhecimento

    como direito e faa, de seus protagonistas, sujeitos empoderados de direitos.

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