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Guga, Um Brasileiro - Gustavo Kuerten

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É em junho de 1997 que Gustavo Kuerten inicia a maior virada de sua vida. O palco é Roland Garros, o torneio de tênis mais charmoso do mundo. Como personagem inicialmente coadjuvante e depois protagonista, o desconhecido cabeludo, surfista e boa-praça iria abalar as tradições do esporte refinado e entrar para a história mundial do tênis e do esporte brasileiro. Mas sua trajetória brilhante rumo ao topo do ranking tem início muito antes, quando ainda era criança em Florianópolis, onde seria preparado pela família, pelas tragédias e por um treinador que esteve ao seu lado em todos os grandes momentos. Em um relato absolutamente sincero, empolgante e emocionante, Guga revela através de seus sentimentos as passagens mais marcantes de sua vida. Ele descreve as memórias de sua infância e adolescência com o mesmo estilo modesto e divertido que o caracteriza como jogador. A forte base familiar, a inspiração no pai, a admiração pelo irmão tenista, o apoio irrestrito da mãe, a paixão pelo irmão caçula e a confiança inabalável do treinador são peças fundamentais em sua história, a base que o levou a superar a falta de incentivo, a descrença em si mesmo e os adversários mais temidos de sua época. Essa jornada sem igual, passando pelos torneios juvenis e profissionais, o tricampeonato de Roland Garros, a chegada ao topo do ranking mundial, entre outras conquistas, é contada a partir da visão única do menino que nasceu para ser campeão e cativou o coração de todos os brasileiros.

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    Copyright 2014 por Gustavo Kuerten

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    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA PUBLICAOSINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    C682g Kuerten, Gustavo

    Guga, um brasileiro [recurso eletrnico] / Gustavo Kuerten. Rio de Janeiro: Sextante, 2014.recurso digitalFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide WebISBN 978-85-431-0149-1 (recurso eletrnico)1. Kuerten, Gustavo, 1977-. 2. Tenistas - Brasil - Biografia. 3. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    14-14977 CDD: 927.96332CDU: 929:796.431

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  • PREFCIO,POR ALICE THMMEL KUERTEN

    Em toda a minha vida, jamais imaginei, nem no mais profundo dos meus sonhos, que algumdia fosse apresentar um livro que falasse sobre um filho meu e sobre toda a nossa famlia.

    Alis, eu nem saberia por onde comear tal sonho, raciocnio ou delrio de ter um filho quese tornasse nmero 1 do mundo e que tivesse o carisma que tem, que soubesse levantar umacriana da mesma forma que erguia uma taa ou um trofu, que, a partir de uma vida simples,com muito mais limitaes do que possibilidades, conseguisse montar este enorme quebra-cabea da sua carreira. Pois ele fez tudo isso atravs do seu talento, unicamente com as peasque estavam ao seu alcance, como vontade, determinao, disciplina, garra, alegria, tristeza,persistncia e, acima de tudo, f e esperana naquilo em que acreditava.

    Os anos se passaram e coisas inacreditveis aconteceram com ele e conosco. s vezessubamos a ladeira at o fim; outras, escorregvamos; de vez em quando caamos; mas nuncadesistimos...

    Em diversos momentos, achamos que estvamos assistindo a um filme e que ospersonagens eram muito distantes de ns. S com o tempo fomos acreditando que essa histriaera verdadeira e que at fazamos parte dela tambm.

    Ainda assim, nunca imaginamos fazer dessa histria um livro, cujo principal personagemse chama GUGA figurinha humilde que no conseguia falar de si mesmo para os outros eachava muito mais fcil outros falarem dele em reportagens.

    Porm na hora certa, solicitado e incentivado por muitos, resolveu rever sua vida e suatrajetria, escrevendo esta obra, que, tenho certeza, agradar a todos os leitores.

    E qual no foi a surpresa para Guga quando, ao comear a contar a sua histria, e aomesmo tempo ler a sua escrita, fosse dando ele mesmo um ressignificado a sua vida,valorizando ainda mais cada pessoa que faz parte dela e concluindo que, com certeza absoluta,jamais seria o que foi, e continua sendo, no fossem todos os por ele citados, e talvez aindaalguns annimos, a formar esta grande trajetria vitoriosa.

    Confesso me sentir orgulhosa pelo filho e pela famlia que tenho.Guga teve muita clareza nas suas escolhas, no caminho que achava certo, empenhado em

    fazer com excelncia tudo aquilo a que se props.Concluo dizendo que Guga deu o seu melhor, daquele sentimento que o contagiava a

    realizar algo que tambm alimentava a sua alma.

  • Espero e desejo a todos vocs, leitores, que, com este livro, consigam conhecer e entendero Guga, com ele chorar e rir, como ele lutar e amar e principalmente se espelhar naquilo queconsiderarem o melhor.

  • O MONSTRO4 DE JUNHO DE 1997

    De repente, a montanha pareceu alta demais. Por mais que quisesse continuar a escalada,no conseguia enxergar o caminho at o topo. Tinha desejo, vontade, garra, mo, perna, brao,tudo em ponto de bala, mas faltava o indispensvel para avanar: me convencer de que erapossvel.

    A trajetria de 1997 em Roland Garros tinha sido magnfica. Se o fim estivesse prximo,pelo menos j tinha boas histrias para contar pros netos. Em nove dias e quatro jogos, ganheide gente bem mais cotada do que eu. Na primeira rodada, venci o tcheco Slava Dosedel, que,poucos meses antes, ganhara duas partidas seguidas de mim. A veio Jonas Bjrkman, 24o domundo, um osso duro de roer. Na sequncia, superei o austraco Thomas Muster, atualmentequinto do ranking, nmero 1 do mundo no ano anterior e campeo de Roland Garros em 1995,numa partida que pode ser resumida como um drama com final feliz. E ainda, em outro jogosofrido, disputado em dois dias, tinha ganhado no quinto set de Andrei Medvedev, ucranianoapelidado de Urso, pelo seu tamanho e pela forma como esmagava seus oponentes.

    Mas agora, depois da arrancada sensacional, um monstro de filme de terror sematerializava na minha frente querendo acabar com a minha festa. Nas quartas de final, iaencarar Yevgeny Kafelnikov, campeo de Roland Garros no ano anterior na simples e emduplas. Apesar de falar ingls fluentemente e gostar de golfe e beisebol, na essnciaKafelnikov tinha caractersticas tpicas de um espio da Guerra Fria: calculista, mecnico,implacvel, uma pedreira. Eu nem sequer existia no mapa do tnis e ele j ganhava juvenil deGrand Slam. Trs anos antes, eu nem me classificava para os campeonatos que eleconquistava. Oito meses antes, num torneio em Stuttgart, na Alemanha, perdi dele sem amnima chance: 6-1, 6-4, em menos de uma hora.

    Talentoso e verstil como poucos, era somente uma questo de tempo at que ele chegassea nmero 1. Aos 23 anos, o russo j era o terceiro do ranking e estava louco para ganharRoland Garros pela segunda vez e com isso alcanar o posto de melhor do mundo. Eu, com 20anos, era o 66o do ranking, a zebra que nem sequer aparecia no seu radar. A pedrinha que, semesforo, ele j tinha chutado para longe em outra oportunidade.

    Eu estaria mais tranquilo se Kafelnikov tivesse perdido para o australiano MarkPhilippoussis nas oitavas de final. Nunca tinha jogado contra Philippoussis, e isso pelo menosera mais promissor do que encarar um sujeito que recentemente me dominara em quadra do

  • comeo ao fim. Mas Kafelnikov venceu e agora eu tinha que resolver um quebra-cabeacomplicado.

    O estilo do russo no era muito diferente do meu. Gostava de jogar no fundo da quadra,tomando a iniciativa, batendo forte, fazendo o adversrio correr o tempo inteiro. O problema que ele era muito melhor do que eu em tudo! Sacava com mais fora e preciso. Suadevoluo de saque era possivelmente a melhor do circuito. Contra-atacava nesse mesmonvel. Tinha uma esquerda excepcional: cruzada, paralela; fazia o que queria com a bola. Nodava espao nem deixava o adversrio se sentir confortvel em quadra. Trocando em midos,na minha cabea ele era o legtimo bicho-papo, pronto para me engolir.

    Nos dois dias que antecederam o jogo contra Kafelnikov, fiquei desnorteado. S pensavaem achar o fio da meada para super-lo. Trocava ideia com Larri, mas nada que meu tcnicodizia fazia efeito naquela situao. No havia nada que me fizesse acreditar. Sem meconvencer de que dava para ganhar, a chance era que eu casse ali mesmo. Mas ao mesmotempo era justo esse final que eu no queria. Por mais que o subconsciente me atormentasse,criando mais um monstro como se um s no fosse suficiente , a cabea trabalhava paraencontrar uma maneira de continuar escrevendo a histria. Deve ter um jeito de ganhar dessecara, tem que ter!, no mudava o disco na minha mente. Como conseguir? Como? Mas euno conseguia enxergar o caminho, no fazia ideia de como superar aquilo; dessa vez estavamuito alm da minha capacidade.

    A menos de 24 horas da partida, estava claro que Kafelnikov era um jogador de tnis deoutro nvel, muito melhor do que eu. No desespero, achei uma vantagem, ainda que bemfuleira: conhecia o jogo dele muito mais do que ele conhecia o meu. E tambm havia umdetalhe que talvez pudesse funcionar: Kafelnikov comeava devagar e demorava paraengrenar. Diante disso, Larri e eu traamos uma estratgia. Antes da partida, aqueceramos ato ltimo minuto para entrar em quadra fervendo, agressivo, partindo para cima dele com tudodesde a primeira bola. Depois era tentar manter o ritmo acelerado, forando, at o meu limite,de um jeito que nunca havia feito. Mais do que surpreso, ele tinha que ficar atordoado commeu volume de jogo logo nos primeiros games.

    Alm disso, o russo gostava de bola na altura da cintura. Quando ela vinha como elequeria, batia forte e reto, disparando torpedos para tudo que lado. Tenta mandar mais alto,perto do ombro, para tirar da altura do umbigo, a ele se complica, Larri sugeriu.

    Existia ainda uma ltima carta na manga, que estava com mais cara de blefe que qualqueroutra coisa. A direita (forehand) dele bastante dependente da confiana era ali que euprecisava for-lo a se atrapalhar. A probabilidade era pequena, mas em algum momento euteria que mostrar que tinha jogo e no estava blefando.

    O plano estava traado e parecia bom, ou pelo menos o melhor cenrio naquelascircunstncias. A questo que eu no me convencia de que era bom o bastante para derrotaralgum muito mais capacitado que eu. A batalha interior no terminava. A cabea repetiaVai, cara, acredita!, mas o inconsciente continuava sabotando.

  • Na noite anterior s quartas de final, eu, Larri, Rafa e Letcia fomos jantar no lugar desempre, a pizzaria Victoria, perto do hotel Montblanc, um duas estrelas simplesinho em quenos hospedvamos em Paris. Comi meu macarro com refrigerante, conversando sobrequalquer assunto menos o jogo do dia seguinte. Mais do que um pacto de silncio, era umacordo tcito que ajudava a manter a nossa tranquilidade.

    O jantar foi um momento de relaxamento no qual o Rafa contou o que tinha visto na cidadeenquanto eu treinava. s vezes, a gente fazia um ou outro comentrio sobre as partidas do dia,mas, na maior parte da refeio, Rafa narrava os passeios com a namorada. Em todos, fossemuseu, parque ou torre, havia uma multido de japoneses que filmava tudo, conhecendo ascoisas pela lente de cmeras em vez de olh-las diretamente. A gente achou isso curioso, semsaber que era o incio de um fenmeno global.

    Terminado o jantar, fui para o quarto e repassei a ttica pela bilionsima vez. Foramxima na largada. Devoluo funda e depois bolas altas, mantendo o jogo na direita dele. Sefizer isso, fao aquilo. Se inverter, vou por ali. Meu ritual era assim: antecipar a partida nacama, no chuveiro, no sonho, sempre buscando a to almejada confiana. Mas naquela noiteera diferente. Tinha um monstro debaixo do travesseiro que no parava de me atormentar.Mesmo assim, aps uma reza de agradecimento por tudo que eu tinha vivido at ento, dormibem e bastante.

    De manh, l pelas dez horas, sa da cama animado. O jogo estava marcado para a tarde.Tomei caf com Larri, conversamos, fomos para o complexo de Roland Garros, almoamos omacarrozinho de sempre para dar energia. Duas horas antes do jogo, colocamos o plano emao. Fomos aquecer com o turbo ligado para comear a partida com a adrenalina l em cima.

    Na quadra 4, Larri batia forte, simulando o estilo do russo, para que eu praticasse osgolpes na altura e na velocidade certas. No fazia nem vinte minutos que estvamos ali quandoKafelnikov chegou para aquecer com seu tcnico na quadra 3, bem ao lado. Apenas umamuretinha nos separava. No havia jeito de fingir que no tinha visto. Anatoly Lepeshin, otcnico do russo, era amigo de Larri havia mais de vinte anos. Os dois se cumprimentaramcom a maior animao. Eu e Kafelnikov trocamos um hello, hi, baixinho, meio de lado.

    Cada um retomou seu aquecimento e eu no sabia o que fazer, se batia mais forte paraimpressionar ou se escondia o jogo para aumentar a surpresa na hora derradeira. De vez emquando, olhava de rabo de olho para a quadra 3 e, desesperado, via que o russo no erravauma bendita duma bola. Quase uma hora depois, Kafelnikov e Anatoly foram embora. Eu eLarri continuamos ali, conforme o combinado, at praticamente a hora do jogo.

    Logo em seguida, ainda suado e ansioso, sentei num dos bancos de madeira do vestirio deRoland Garros para trocar de roupa. Nas fases anteriores do torneio, a qualquer momentohavia pelo menos umas sessenta pessoas ali, entre jogadores, tcnicos, massagistas,fisioterapeutas. Agora no havia nem quinze, e o ambiente mais calmo ajudava a concentrao.Olhei sem enxergar os vinte armrios de metal protegidos com cadeados minha frente, dezem cima, dez embaixo. Levantei, no queria ficar parado nem prestar ateno em nada que no

  • fosse um jeito de ganhar de Kafelnikov.Ao lado do vestirio h um corredor que muitos jogadores usam para se aquecer. Fui para

    l e comecei a dar umas corridas para elevar mais a temperatura do sangue e tentar espantar oconflito. Nessa hora, Larri chegou perto e falou alto, com o habitual vozeiro encorajador:

    Vamos l, Cavalo, chegou a hora. Pra cima dele. Vai, Cavalo!Fazia anos que, nesses momentos cruciais, meu tcnico s me chamava de Cavalo, segundo

    ele um animal elegante e viril que passa a imagem de fora e potncia. Sempre gostei doapelido, e tinha um aspecto carinhoso que me tranquilizava. Calado, passei por ele aindatentando encontrar um jeito de me convencer de que ia dar. No queria que ningumpercebesse que faltava alguma coisa em mim. Felizmente, se notou, Larri Antnio dos Passos,gacho que preza determinao e coragem, no se manifestou.

    Sa do vestirio e parei no comeo da passagem que conduz quadra central. Kafelnikovestava l, indiferente, ou simulando indiferena. Mal me olhou, como se quisesse passar amensagem de que eu no o incomodava. O tnis uma mistura de xadrez com teatro. De umlado, voc precisa ter clculo e pacincia para encaixar as bolas. Do outro, tem de ser artistapara controlar e esconder as emoes. Se o adversrio perceber que voc est nervoso,intimidado ou exausto, j era, tchau, acabou. Naquele instante, a partida j tinha comeado, eeu precisava me controlar.

    Era a primeira vez que eu ia jogar na quadra central, a estrela maior da constelao deRoland Garros. Vendo pela televiso, o negcio j grande. Mas ali na quadra, do ponto devista do jogador, gigantesco. Eu sonhava em jogar ali desde pequeno. Mas, na hora em queaconteceu, estava to envolvido no meu conflito interior que no saboreei o momento comodeveria. Por outro lado, tambm no fiquei intimidado pela grandeza da coisa. Tudo o que eusentia era necessidade de me convencer de que era possvel ganhar.

    Na hora em que meu nome foi anunciado nos alto-falantes, avancei e fui colocar minhascoisas no banco ao lado da quadra. A maioria das mais de 10 mil pessoas que estavam naplateia aplaudiu e comeou a gritar Allez, Gug!, o brado de guerra com o qual a torcidafrancesa me incentivava.

    Em busca de mais confiana e apoio, procurei na torcida meu irmo mais velho, a nicapessoa da famlia e um dos raros brasileiros que testemunhara minha escalada em RolandGarros. A presena de Rafael na plateia de certa forma personificava e sintetizava a surpresageral que era eu ter chegado s quartas de final. No ano anterior, em 1996, j comoprofissional, eu tinha jogado o Aberto da Frana pela primeira vez. Perdi logo na rodadainicial para o sul-africano Wayne Ferreira. Rafa no estava l.

    Quando ficou sabendo que eu participaria de novo, Rafa uniu o bom com o melhor.Combinou tirar frias com Letcia, sua ento namorada, hoje mulher e me dos seus quatrofilhos. Na poca, Letcia morava na Espanha e eles marcaram de se encontrar em Paris. Aideia era assistir ao meu primeiro jogo e, como a lgica dizia que eu ia perder logo, passeardepois pela Europa. Resumindo: ganhar uma partida j estaria de bom tamanho.

  • Mas ganhei do Dosedel e do Bjrkman. Diante do inesperado, Rafael e Letcia continuaramem Paris para me prestigiar. Nada que comprometesse demais o plano anterior deles, poisainda sobravam uns dias para seguir viagem. Mas venci tambm as partidas contra Muster eMedvedev. De novo, os dois ficaram do meu lado.

    Rafa era treinador de tnis, no tinha compromisso inadivel no Brasil, dava um jeito.Letcia, porm, devia voltar ao trabalho. Antes de sair de frias, ela tinha dito ao chefe que,alm de viajar com o namorado, iria assistir a um jogo do cunhado em Roland Garros. Erauma maneira de gerar assunto e atrair simpatia, uma vez que quase todo espanhol louco portnis.

    Letcia telefonou para o chefe: Pode me dar mais uns dias? O irmo do Rafa continua jogando...O homem estranhou: Mas seu namorado brasileiro, no tem como... Brasileiro nas quartas de final? Tem sim. o Gustavo Kuerten. Mas Kuerten alemo...Desfeito o engano, o homem entendeu a importncia do pedido. Disse que ela podia ficar

    em Paris enquanto a faanha perdurasse. O chefe da Letcia estava longe de ser o nico aachar que a zebra era alem. Antes de ganhar de Dosedel na primeira partida, rarosjornalistas, inclusive brasileiros, faziam ideia de quem era o tal do Gustavo Kuerten. medida que fui vencendo que descobriram que eu era de Santa Catarina, que o sobrenomealemo vinha do meu av paterno e que j fazia dois anos que eu competia como profissional.

    Depois que superei Muster, os reprteres se apressaram em obter mais notcias a meurespeito. Larri agia como um anteparo. Muitas vezes, dizia que no ia ter entrevista fora doestabelecido na programao, que eu precisava me concentrar para manter o desempenho.Ele no pode se dispersar, resumia numa frase o impedimento. Mas a gente no podiasimplesmente fechar a porta. Quando dava, eu me via cercado por gente de todo o mundoquerendo saber qualquer coisa. Embora feliz, eu ficava abismado, perplexo com aqueletratamento de celebridade.

    A me, em Florianpolis, tambm no estava entendendo nada. De uma hora para outra, otelefone tocava com insistncia na residncia e no trabalho de dona Alice Kuerten. Na rua, eraparada por desconhecidos que perguntavam como se sentia por ter um filho to especial.Gente que ela nunca tinha visto aparecia na frente de casa para dar parabns e desejar boasorte, tratando-a como se fosse me de ator de novela.

    Um dia ela chegou em casa e mal conseguiu entrar. A varanda, a sala e a cozinha tinhamvirado um acampamento de jornalistas com cmeras fotogrficas e filmadoras. Parecia que, sedeixasse, eles morariam l at a competio acabar.

    Na revista diria que circula no complexo de Roland Garros, eu era retratado como asensao do torneio, o talento desconhecido que, mesmo numa chave difcil, estavasurpreendendo tenistas consagrados. Na imprensa em geral, o destaque ia para as curiosidades

  • da jovem revelao. Num dia, contavam que o catarinense simptico, cabeludo edesengonado tinha sonhado em ser jogador de futebol. No outro, que torcia para o Ava,tocava violo, gostava de jogar fliperama e contar piada. Quando falei que pegava onda desdeos 9 anos, pronto, comearam a me chamar de surfista do saibro.

    Os organizadores de Roland Garros foram dos poucos que no se deixaram contagiar peladescontrao que me cercava. Incomodados com o uniforme de cores berrantes que eu usavanos jogos, chamaram Larri para uma conversa reservada um dia antes da partida contraKafelnikov. Pediram que, dali para a frente, eu entrasse na quadra de branco, bege ou algumtom sbrio em respeito conveno praticada nos torneios do Grand Slam.

    Aquele era um tempo em que roupa vistosa em Roland Garros era uma heresia s toleradanos raros campees que estavam acima do bem e do mal. Andre Agassi, por exemplo,costumava usar camisas rosa-choque e verde-limo. Para os demais, recomendava-se manter atradio. Meu uniforme, porm, era tingido de azul e amarelo chamativos que doam nosolhos. Parecia uma pilha Rayovac. Diante dele, o rosa e o verde de Agassi eram refresco. Masa ideia no foi minha.

    Fabricante italiana de roupas e equipamentos esportivos, a Diadora, que me patrocinavadesde 1995, criava trs ou quatro modelos de uniformes a cada temporada. Primeiroapresentava o pacote completo aos jogadores mais bem posicionados no ranking, para queoptassem pelo que mais gostassem. Como eu estava no fim da fila, sobrou o colorido paramim. Kafelnikov, ento o principal tenista patrocinado pela Diadora, usava modelos maisdiscretos, que misturavam branco com azul-marinho, embora tambm tivesse um azul eamarelo de reserva.

    Quando os organizadores do torneio fizeram o pedido da troca do uniforme, Larri nocedeu presso. Deu uma resposta sincera que retratava a minha falta de prestgio e recursosna poca:

    Desculpe, no vai dar. Ele no tem outro.Os organizadores preferiram no transformar aquilo em uma crise. Optaram por deixar pra

    l. Mais do que compreensivos, acharam que no valia a pena criar caso com algum que, aoque tudo indicava, ia durar pouco e logo o problema estaria resolvido. Para no medesconcentrar, Larri no comentou nada comigo. Ele s foi me contar isso semanas mais tarde,num tom brincalho e levemente indiferente, como se relatasse um fato pitoresco da minhatrajetria aos amigos.

    Seja pelo uniforme, pelos retratos favorveis na imprensa ou pelos resultados dos jogos, ofato que chamei a ateno. Nas ruas, os parisienses, geralmente recatados, me lanavamolhares curiosos, pediam autgrafo, vinham elogiar, dar fora. Alguns diziam que estavamtorcendo por mim. Faziam isso com o maior respeito e, mais impressionante ainda, com umasimpatia enorme. Fora do Brasil, era a primeira vez que os torcedores me tratavam com tantocarinho.

    Na hora em que sa da passagem de acesso e pisei na quadra central, vindo logo atrs de

  • Kafelnikov, os gritos de Allez, Gug! me despertaram. Foi a que procurei Rafael namultido. Ele estava l, ao lado de Letcia. Meu irmo olhava diretamente para mim. Na minhacasa, a conquista de um sempre foi a conquista de todos. At ento, nossos xitos eramimportantes para ns, mas modestos aos olhos do mundo. A gente sempre deu um passo decada vez. Mas aquilo era um salto extraordinrio, que j envolvia meu pas inteiro.

    O olhar do Rafael transmitia uma energia diferente da habitual. Dias atrs, pouco antes dojogo com Dosedel, a expresso dele era somente de amparo e carinho pelo irmo mais novo.Quatro vitrias depois, no entanto, Rafa havia mudado a maneira de me encarar. J tinha dadomostra de que acreditava. Mas agora ele parecia seguro de que eu ia chegar ao topo damontanha. Naquele instante, Rafa acreditava muito mais em mim do que eu mesmo.

    Ao lado dele, vi o Jos Neto, um amigo de infncia que morava na Finlndia e que tinhaviajado a Paris para torcer por mim. Ali tambm estava Jorge Salkeld, meu agente desde queeu tinha 17 anos. A dois assentos de distncia, de bon e com o mesmo uniforme amarelo eazul, Larri me olhava com solidariedade. Ele me conhecia como jogador mais do que ningumali. Punha f em mim, pois milagres existem para isso mesmo, e nesse dia eu ia precisar deuma dzia deles.

    Na plateia, os holofotes, os olhares e as cmeras estavam voltados para mim, a revelaopromissora do torneio, mas eu me sentia um coadjuvante esperanoso no grande show deKafelnikov na quadra central. Por mais que o grito de incentivo de Larri, Vamos, Cavalo!,se unisse aos brados de Allez, Gug! dos franceses, por mais que o Rafa e meus amigos mepassassem fora, eu no conseguia me convencer.

    Comecei a me aquecer em quadra batendo bola com Kafelnikov em meio a um turbilhoemocional, tentando domar nervosismo e ansiedade, eletricidade e adrenalina, excitao e friona barriga e mais dezenas de sensaes desencontradas. Tem um jeito, sei que tem, precisater, vou conseguir, no parava de repetir para mim a cada raquetada. Com bola pra c e bolapra l, deixei de ouvir os torcedores. Depois parei de enxergar o Z Neto e Jorge Salkeld.Olhei para o Rafa e no o vi mais. Nem Larri estava presente. Tudo e todos sumiram de vista.Restou apenas Kafelnikov do outro lado da rede, a bola indo e vindo e eu entrando no jogo decorpo e alma.

  • ACADMICOS UNIDOSDA RAQUETE

    De sada, minhas chances eram mnimas. S maluco apostaria na ideia de eu ser algum notnis mundial. Tudo jogava contra, da poca ao lugar em que nasci. Aos 6 anos, quandocomecei, Florianpolis, de ponta a ponta, do infantil ao profissional, no tinha a menortradio. Tirando uns quatro ou cinco catarinenses que remavam contra a mar, s davapaulista e gacho no cenrio nacional. A gente mal tinha onde treinar, bolinha nova era caadaa lao e comemorada com rojo. A ilha inteira tinha umas dez quadras de tnis, entre elas,umas trs no LIC, o Lagoa Iate Clube, trs na Astel, a associao dos funcionrios da Telesc, eduas no Lira Tnis Clube sendo que apenas Roland Garros tem dezoito.

    Mas, justia seja feita, Florianpolis no estava sozinha nesse esquema de trs quadraspara c e duas bolinhas para l. No comeo da dcada de 1980, tirando uma ou outra cidade, otnis praticamente no tinha espao no Brasil. Era visto como uma atividade elitista, hobbycaro de gente esnobe. At o placar espantava o pblico. Como que os pontos pulavam de 15para 30, para 40 e depois diminuam para 1? Mal havia uma palavra em portugus, era tie-break, set point, match point, game point, break point, forehand, backhand, spin, smash.

    Em um pas acostumado ao futebol, ningum entendia bulhufas, era coisa do outro mundo.Mesmo as mais importantes partidas do tnis mundial no passavam na televiso, comexceo da final de Wimbledon. Roland Garros, US Open, Aberto da Austrlia... esquece.Coisas de um tempo em que os canais a cabo eram uma realidade alm da imaginao.

    Com outras modalidades tambm no era muito diferente. Atletismo, natao, basquete, sem Olimpadas, e foi na de 1988 que descobri Oscar Schmidt, nosso querido Mo Santa, dequem at hoje sou f. No mximo, passava o circuito de Frmula 1, por causa de EmersonFittipaldi e, mais tarde, Nelson Piquet e Ayrton Senna. No vlei, comeava a surgir a geraode Bernard, William, Montanaro e companhia, que anos depois ganharia tudo, chamaria aateno das emissoras e mostraria ao pas que brasileiro podia ir longe mesmo com muitomenos recursos do que americanos e europeus.

    Desde que o tnis fora criado, na Inglaterra do sculo XIX, s dois brasileiros tinhampassagens ilustres em sua histria. No masculino, o destaque era o gacho Thomaz Koch,heri da Taa Davis que, em 16 anos, venceu 74 das 118 partidas que disputou, na simples eem duplas. Ganhou duas medalhas de ouro em 1967 nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg,no Canad. Em Wimbledon, foi campeo de duplas mistas em 1975.

  • Mas, por maiores que tenham sido suas glrias, Koch no chegou perto de Maria EstherBueno, o maior nome brasileiro no tnis. Uma lenda, ela ganhou 71 ttulos. Por dois anosconsecutivos, 1959 e 1960, foi a nmero 1 do mundo. Venceu 18 torneios do Grand Slam, nasimples e em duplas. Foi finalista no Aberto da Austrlia e em Roland Garros, tricampe deWimbledon e tetra no US Open. Ela , disparado, a maior tenista da nossa histria.

    Mas a falta de informao era tanta que at a adolescncia eu mal sabia que eles existiam.J tinha ouvido falar de Thomaz Koch, mas, aos 17 anos, durante o famoso jantar doscampees de Wimbledon, para o qual fui convidado por meu amigo Jimy Szymanski, vice-campeo juvenil, fiquei espantado quando homenagearam uma das maiores jogadoras dahistria do torneio e o apresentador chamou ao palco a brasileira Maria Esther Bueno.Aquilo ecoou na minha cabea: Brasileira? No possvel! Nunca ouvi falar! Mas como euia saber? Hoje voc liga a televiso e os canais esportivos esto transmitindo um ou mesmodois torneios simultneos. Se quiser, dia sim, dia no, v jogos de Roger Federer, NovakDjokovic e Rafael Nadal. Com essa proximidade, fica fcil saber quem quem e virar f.Naquela poca as coisas eram bem diferentes.

    Mesmo os melhores do mundo s apareciam umas duas vezes por ano na minha TV, e aindaassim jogando a final. Antes disso, era uma dificuldade saber o que tinha acontecido. A genteconhecia os dolos mais pelos jornais, revistas e, sobretudo, por ouvir dizer. Quando eu tinha10 anos, em 1986, fazia mais de uma dcada que brasileiros no brilhavam no saibro, nagrama ou nas quadras duras dos principais torneios. Os campees eram outros, nascidos naEuropa, na Austrlia ou nos Estados Unidos.

    No quarto de casa, onde eu dormia com o Rafa, tnhamos dois psteres de tenistaspregados na parede, extrados de uma revista que no existe mais, a Tnis Esporte. Ao ladoda cama do meu irmo ficava o sueco Bjrn Borg. Ao lado da minha, o americano JohnMcEnroe. Para preserv-los e ajudar a demonstrar a nobreza que lhes atribuamos, a me tinhamandado enquadr-los. No nosso santurio particular, Borg e McEnroe eram venerados eidolatrados como os caras que ns queramos ser, embora nunca tivssemos visto nenhumapartida deles ao vivo. O nico mundo do tnis que eu conhecia de perto comeava em casa eacabava no clube, sem quase nada no meio.

  • Acervo pessoal

    Guga (10 anos) e Rafael (13 anos) posam com uniforme da Schlsser ao lado de trofus emedalhas dos torneios juvenis e do pster do dolo John McEnroe.

    A gente cobia o que est perto. Em casa, desde que me entendo por gente, queria imitar oRafa, trs anos mais velho do que eu. At os 4 ou 5 anos, uma das frases que mais repeti foiIgual Fael. Se ele comia bolo, eu tambm queria. Se subia no encosto do sof, eu escalavaatrs, com a me de olhos arregalados desesperada de medo que eu casse. Se no conseguiarepetir os passos de meu irmo, comeava a chorar e tinham de me acalmar.

    Gu, tu ainda pequeno, o Rafa grande. No te desespera, pacincia, uma hora vai dar,tu vai fazer o mesmo que ele.

    Eu parava de chorar, mas a frase no me confortava por muito tempo. Se ele fazia naquelemomento, eu tambm tinha que fazer. At meus 5 anos, tudo o que eu queria era ser como omeu irmo.

    A me achava que, depois de um ms de vida, os filhos j estavam grandinhos paraacompanhar os pais ao clube o Gui, meu irmo caula, de beb conforto, eu de carrinho e oRafa com as prprias pernas. Antes mesmo que eu aprendesse a engatinhar, de um jeito ou deoutro, tinha uma quadra por perto. E, depois que ganhou uma raquete de aniversrio, quase

  • sempre o Rafa estava numa delas.amos sempre aos dois principais clubes da cidade, o Lira e o LIC, e, mais tarde, Astel, o

    clube da associao de funcionrios da Telesc, estatal que ento operava o sistema detelefonia de Santa Catarina. A me trabalhava ali desde 1972, era assistente social, uma dascriadoras e dirigentes da associao, que oferecia esporte e lazer s famlias dos funcionrios.A gente tinha passe livre l.

    A Astel contava com escolinhas de futebol, basquete e tnis. Rafa no ligava para cesta,drible ou gol, mas era vidrado em raquete e bolinha. Ele tinha talento, jeito, fora e tcnica.Nos torneios do clube era campeo e, nos regionais, ficava entre os cinco primeiros.

    Era s uma questo de tempo at acontecer. Se o Rafa jogava tnis, eu tambm tinha quejogar. Com 5 anos, eu me esforava para bater na bolinha igual Fael, ainda que, mesmo com asduas mos, no tivesse tamanho nem fora para segurar as raquetes de madeira, pesadas pracaramba. Em um Natal, Rafa ganhou uma de grafite da Head, toda preta, mais leve, umamodernidade que se tornou sonho de consumo dos tenistas da poca. Eu implorava para ele meemprestar, mas o Rafa tinha cime, no jogo nem ia muito em bolas baixas para no arranh-lano piso. Eu ficava indignado. Se ele jogava com ela, eu tambm queria uma.

    Com o tempo, s desejar a mesma raquete e compartilhar o mesmo esporte deixou de serum objetivo. Se o Rafa era bom, eu tambm tinha que ser. Na verdade, eu precisava ser.Queria que ele tivesse de mim o mesmo orgulho que eu tinha dele. Ento, aos 6 anos, meinscrevi na escolinha de tnis do LIC para ter aulas com o Ralf, meu primeiro professor. Napoca, o clube s tinha quadras de tnis fast, as mais comuns no incio dos anos 1980. O pisoparecia inteirio, mas, como um mosaico, era formado pela colagem de uma infinidade depedriscos minsculos.

    Por volta dos meus 10 anos, quando a Astel montou sua equipe infantil de tnis, me bandeeipara l e comecei a praticar com os melhores da cidade, sob o comando do Gelatina e, maistarde, do Carlos Alves, treinador referncia no estado, mais conhecido como Carlinhos.

    Eu precisava mesmo das aulas. Para os meus padres, o Rafa era forte demais, rpido,imbatvel. Eu era brigador, um alucinado em quadra, mas tambm desengonado, uma misturaaguerrida de gara e graveto. O Rafa era esbelto, eu era s muito magrelinho. Me atrapalhavacom as pernas, tinha muito mais mpeto do que coordenao. Para quem me viu jogando nessapoca, no existia ideia mais delirante do que pensar que um dia eu seria nmero 1 do mundopor 43 semanas.

    Comecei imitando o Rafa, mas logo a referncia passou a ser o pai. Inspirao e modelo,Aldo Amadeu Kuerten tinha um talento natural para os esportes e, em qualquer um deles, dabocha ao futebol, encontrava um modo de sobressair. Anos antes de eu nascer, chegou seleo estadual de basquete, foi campeo e mais tarde deu aula em um clube catarinense.

    Foi por influncia da me, que j jogava tnis nesse clube, que o pai se encantou peloesporte e passou a se destacar a tambm. Colocava bem a bola, batia forte, fazia jogadasimpossveis, tanto cruzadas quanto paralelas, era imbatvel e tambm inventivo. No incio,

  • sacava como todo mundo. Mas um dia viu na TV o levantador William, da seleo de vlei,dar um viagem ao fundo do mar, saque no qual o jogador joga a bola bem para cima, umpouco para a frente, e pula atrs dela. Resolveu adapt-lo ao tnis. Funcionou e isso virou umade suas marcas registradas nos jogos do clube.

    Alm de criativo para colocar a bola em jogo, tambm sabia ser um encrenqueiro decarteirinha. Com a mesma facilidade com que fazia amigos, metia-se em rolos nas quadras. Seachava que a bola tinha cado dentro e o adversrio falava que havia sido fora, no amolecia.Batia boca, ameaava parar, mostrava o punho, queria decidir de um jeito ou de outro. V-lojogar me deixava fascinado. Na minha cabea, ele no perdia nunca, ganhava tudo: discussese partidas. No meu imaginrio, mesmo McEnroe no dava nem para a largada contra o Super-Aldo. Se houvesse um confronto entre os dois, eu tinha certeza de que o pai seria o vencedor.Ser motivo de orgulho para o meu heri se tornou um projeto de vida para mim.

    O Rafael sabia o que fazer na quadra, tinha um jogo bonito, tcnica, recursos na manga,mas lhe faltava a gana que o pai possua de sobra. Ultracompetitivo, o pai, mais do que gostarde ganhar, detestava perder. No largava o osso, no desistia de bola, disputava at o ltimoinstante. Se o adversrio estava perto de fechar o set, virava um leo, tirava fora do alm efazia o impossvel para virar. Juntando as duas, a tcnica do Rafa e a raa do pai, semperceber eu tinha uma frmula de sucesso pronta em casa.

    Para o pai, tnis sempre foi um hobby. Para o Rafa, porm, era mais do que isso. Alm dedisputar torneios, ele ganhava dinheiro encordoando raquetes e treinando os mais jovens naAstel. Mas, apesar de amar o esporte, Rafa achava que seu futuro no estava no tnis. Aos 17anos, quando entrou na faculdade, continuou sendo treinador de tnis, mas parou de competirpara se dedicar ao estudo de Cincias da Computao na Universidade Federal de SantaCatarina, onde se formou.

    Eu ficava intrigado com a opo dele. Como podia abandonar uma coisa que lhe dava tantoprazer? Ser que no seria fisgado de novo? A resposta veio anos depois. Rafa desistiu dotnis, mas o tnis no desistiu dele. Como administrador da minha carreira, conseguiu unir asduas coisas de que mais gosta, tnis e nmeros.

    Rafa estava certo. Se eu entrava em quadra, era para ganhar, desde o tempo de Joo CarlosDiniz, um dos grandes incentivadores do tnis em Santa Catarina. Ele ia atrs de patrocnio epromovia torneios batizados em homenagem a quem tinha possibilitado aquilo. No contavampontos para nada e a premiao para o primeiro lugar s vezes era um perfume. Mas eudisputava aquilo como se fosse final de Copa do Mundo.

    Acabou que tanto eu quanto meu irmo iramos encontrar as funes mais adequadas snossas habilidades e aos nossos temperamentos. A minha paixo por competir e a gana devencer me fez ir at o nvel mais alto do tnis profissional. O conhecimento profundo doesporte aliado ao amor pelos nmeros e seriedade levaram o Rafa a administrarbrilhantemente a minha carreira, de forma que eu no precisasse me preocupar com outracoisa a no ser jogar. O tnis foi o que uniu nossa famlia l no incio e, desde ento, uma

  • parte importante da vida de todos ns.

  • VALENDO!

    O aquecimento terminou, a plateia se aquietou e a quadra central mergulhou no silncio,aguardando o primeiro lance das quartas de final de Roland Garros. Com o mesmo 1,90 metrode altura que eu, Yevgeny Kafelnikov parecia um gigante do outro lado da quadra. Precisoachar o caminho, deve ter um jeito, tenho que conseguir, eu no parava de pensar. Restava-me confiar no plano combinado com o Larri de acelerar com tudo para cima do russo, quecomeava em marcha lenta.

    No vi direito como aconteceu. Sei que coloquei fora mxima em todos os golpes, cadasaque, direita, esquerda, cruzada e paralela, um alucinado mirando no alvo e disparando emlinha reta sem se distrair. Quando percebi, o primeiro set tinha terminado. Conferi o placar eera aquilo mesmo: inacreditveis 6-2 para mim.

    Sentei no banco e mordi a toalha para manter a concentrao, mania que me acompanhavadesde o juvenil. Aqui e ali, algum gritava Allez, Gug!. Com o canto do olho, enxerguei denovo o placar; os nmeros continuavam l. Em menos de trinta minutos, conseguira um teroda tarefa.

    Eu tinha encaixado uma bela pea do quebra-cabea, mas o que aquilo queria dizer?Kafelnikov estava um pouco mais devagar do que de costume. Mas e quando esquentasse?Voltaria a ser o monstro que conquistara o ttulo do ano anterior? Ou eu tinha chance? Se noencontrasse a funda para acertar a pedra na testa do gigante, ele provavelmente no ia parar deavanar at me comer vivo.

    No levou dois minutos no segundo set para Kafelnikov mostrar que tinha despertado.Embalado, eu continuava indo para cima, jogando bem, acertando torpedos, a esquerdafuncionando. Mas, ao contrrio de antes, o russo agora respondia altura. A partida entrounum padro espetacular, os dois lados medindo foras. De fora, a impresso era que o jogoestava parelho, mas no era o que eu sentia. Havia, para mim, um desequilbrio nasentrelinhas. Eu tinha que usar toda a minha inspirao para me equiparar ao feijo com arrozdele. No demorou nada para aquilo ficar claro para todo mundo.

    L pela metade do segundo set, Kafelnikov passou a controlar a partida. Eu acelerava, eleme ultrapassava. Eu mal fazia garoar e ele vinha com um temporal; eu soltava rojo, eleaparecia com um foguetrio de Copacabana no rveillon. Nessa toada, o russo fez 5-3,precisando s de um game para empatar o jogo. Olhei para o Rafa: meu irmo parecia estar

  • assistindo a outra partida, os olhos brilhando de otimismo. Respirei fundo, saquei e engatei asexta marcha, forando o motor de um jeito que nunca tinha feito antes. Igualei em 5-5. Mas aKafelnikov engatou a stima. Acertou uma curtinha e depois umas trs bolas no fundo daquadra que no dava para acreditar. Ganhou dois games seguidos e fechou em 7-5. Jogoempatado. Um set a um.

    Voltei para o banco desconsolado, quase moendo a toalha com os dentes. Fiquei ali,olhando para o nada e pensando: No acredito. T indo alm do meu limite, jogando o mega-ultra-plus do mximo e o cara consegue me superar e ganhar desse jeito, p-pum. No temmais para onde correr. J era. No possvel algum jogar tanto.

    Nesse momento de total desespero, mal sabia que ia sentir na pele o que sempre ouvi domeu amigo Serginho Vianna: Calma. No comeo assim, depois piora. Voltei para oterceiro set e nem tive chance. Kafelnikov me trucidou e virou o jogo, dois a um para ele.Antes disso, eu ainda buscava um caminho, tentando me convencer de que devia haver umjeito de ganhar do russo. Mas, depois daquele banho de gua fria, a esperana se desgarrou eme vi perdido. Exausto, com o corpo dolorido e a pilha acabando, no enxergava mais nada nafrente a no ser a desoladora sensao de que aquele Roland Garros ia acabar no prximo set.

    H coisas que me fascinam no tnis. Uma delas que se trata de um jogo de detalhes emeterna alternncia e s vezes um deles se transforma em algo impondervel e muda a partida.Um pssaro sobrevoa a quadra e, quando vai embora, leva junto a concentrao e a vitria dotenista que acompanhou aquilo. Ou a pessoa escuta um ronco de avio, interpreta que sinaldos cus e vira um jogo perdido. Uma provocao do adversrio pode dar o estmulo certo oufazer o outro perder a cabea. Suspiro, gesto, jeito, piscada, qualquer coisa pode fazer comque o cenrio se alterne muito rpido, para o bem ou para o mal.

    Quando o quarto set teve incio, no planejei. No tracei nenhum caminho, apenas deixei avida me levar. Como tudo indicava que eu ia perder logo, quis desfrutar do momento esaborear cada instante. Nunca tinha ido to longe e aquele podia ser meu ltimo set em RolandGarros. Eu no fazia ideia do que ia acontecer com a minha carreira: se continuaria subindoou se j tinha batido no topo e agora ia declinar sem sentir o gostinho desses momentospreciosos em um Grand Slam.

    Vai l, Guga, agora que o fim est prximo, relaxa e aproveita, surfa essa onda com gosto falei para mim mesmo como forma de consolo e encorajamento nos meus ltimos metros deprancha, l embaixo s o mar e os tubares me cobiando.

    s vezes, o gatilho da alternncia de poderes pode ser acionado na hora em que o tenistadeixa pra l. Enquanto me debatia na areia movedia, s afundava. Quando parei deespernear, mudei a sintonia e passei a prestar ateno no caminho, sem pensar mais no fim daviagem, s apreciando a paisagem, sem pressa de chegar. Menos tenso, me senti menoscansado. Menos cansado, fui relaxando. Mais relaxado, voltei vida. Reencontrei meu eixo,passei a jogar bem. As bolas comearam a entrar. Me animei mais e soltei o brao. Meu graude acerto ficou elevado de novo; quebrei o saque de Kafelnikov. Fiz 3-0 no quarto set. Uma

  • parte de mim queria voltar a ter esperana, mas a sensao de que no ia conseguir nadar at apraia ainda era forte.

    Mas de repente olhei para a frente e, do outro lado da rede, vi um cara com sinais dedesgaste. No sei se a fisionomia dele tinha mudado ou se eu que queria enxerg-lo de outramaneira. O fato que, para mim, o brilho no olhar j no tinha o fogo dos indestrutveis. Naminha avaliao, o russo estava dando as primeiras mostras de que pulmo de monstrotambm cansa. Ah, isso, sim, era uma carta muito diferente na mesa. Finalmente estavaenxergando uma luz no fim do tnel, o claro que eu tinha passado dois dias tentandoencontrar.

    Ele no vai conseguir sustentar o mesmo volume de jogo; eu vou manter meu grau deinspirao no alto e dominar a partida, pensei com uma convico to grande que mal davapara crer que aquilo estava na cabea do mesmo jogador que, quinze minutos antes, j se viafazendo as malas no hotel.

    Mais do que um pensamento, aquela sentena tinha ares de um decreto particular que reuniadiagnstico da situao, plano de voo e soluo de um problema complicado. Me agarrando carta de intenes que acabara de redigir na mente, acelerei mais na quadra. Fiz 4-0. Em maisde duas horas de jogo, aquele foi o primeiro instante em que senti de verdade que estavacompetindo com Kafelnikov. Antes, por mais que tivesse momentos inspirados, eu era umsujeito acuado, na defensiva, usando todos os recursos para sobreviver. Por mais queparecesse aguerrido, o subconsciente continuava sabotando, travando algum elemento internoque faria a diferena se estivesse ativado. Mas agora eu tinha espantado o fantasma e aengrenagem funcionava como devia ser. Fechei o quarto set, 6-0. Empatei o jogo em 2 a 2,levando a partida para o set decisivo.

    No banco, tomei gua, comi um teco de banana e mordi a toalha com uma sensao muitodiferente da vez anterior. No tinha mais nenhuma dvida na cabea. Dali para a frente, s acerteza de que o controle do jogo estaria na minha mo. Sem nada para atrapalhar a viso,agora enxergava a situao claramente. Depois do 4-0 no set anterior, percebendo que eu tinharessuscitado com estilo, o russo colocara o p no freio para poupar energia e recomear comtudo nos games derradeiros. Uma deciso inteligente e possivelmente a melhor opo para ele.Mas agora a fora estava do meu lado e, pela primeira vez, eu acreditava de fato que podiaganhar.

    No quinto set, continuei grudado no pescoo dele. No primeiro game quebrei o saque, elogo em seguida fiz 2-0. Como eu queria ter conseguido jogar assim durante toda a partida!Aquela era mesmo uma combinao explosiva: a unio da minha mentalidade vencedora coma ttica inicial do Larri, de acelerar ao mximo para atropelar o adversrio. Voando baixo,batendo no limite da fora, eu me empolgava cada vez mais, com a chance da minha vida sematerializando, a possibilidade de ir semifinal de Roland Garros cada vez mais prxima.

    Mas, uma vez monstro, sempre monstro. Kafelnikov tinha uma estratgia. Experiente, ele seresguardava para dar o bote na hora certa. Sua inteno era me desgastar, drenar a energia que

  • me restava. No momento em que eu diminusse o ritmo, o leo daria o salto mortal e rasgaria azebra ao meio. Tudo o que ele tinha que fazer era no deixar que eu me distanciasse. Eutentava de tudo que era jeito, mas o russo ficava me segurando, s administrando para meconduzir ao ponto que ele queria. Tive um monte de oportunidades para deslanchar; elerefreou todas. Para Kafelnikov, quanto mais disso, melhor. O russo apostava que aquele vaino vai me deixaria nervoso, principalmente com ele encostando. Se empatasse, ento, a que eu degringolaria e ele acabaria comigo.

    O sujeito realmente fazia jus ao ttulo do ano anterior. Jogando como um mestre do xadrez,Kafelnikov diminuiu a vantagem e encostou. Mesmo assim, no me senti ameaado. Numa dastrocas de lado, com o placar mostrando 5-4 para mim, s existia uma questo a serdesvendada no mundo. Ganhar do russo no era mais uma misso impossvel. O problema, omesmo de sempre, se resumia a como ganhar.

    Vamos, Guga, fica tranquilo. s fechar falei para mim mesmo, tentando espantar aansiedade e manter a calma. Se concentra, mantm a ateno nas jogadas, ponto a ponto.

    No tnis de alto nvel, mesmo que o jogador esteja com uma boa vantagem perto da linhade chegada, a supremacia relativa. Finalizar a partida um captulo parte, o momento maiscrtico, o jogo dentro do jogo. presso que no termina mais, vinda de todos os lados. Oadversrio vai fazer de tudo para evitar a derrota. O jogador, por sua vez, alm do oponente,tem de enfrentar seus demnios, imaginrios e reais, passados e presentes. O medo dedesperdiar a oportunidade depois de chegar to perto pode virar uma gosma paralisante. Ea, se isso acontecer, no tem acordo, o cara perde mesmo. Por isso o tnis depende tanto dafora mental. Depois de certo patamar no ranking, as habilidades se equivalem e, na hora dovamos ver, a concentrao e o sangue-frio decidem mais do que a tcnica.

    Um tenista que no sabe lidar com a presso da hora derradeira nunca vai ser campeo. Jo campeo dos campees ser aquele que se acostumar com esses momentos crticos a pontode no deixar que eles interfiram em sua determinao e sua concentrao. Enquanto houverum embate entre dvida e convico, sempre haver o risco de a convico serabalada pela dvida. Convencimento e controle, eis a chave para o sucesso no tnis, o quedecide os jogos mais importantes.

    Com 5-4 para mim no quinto set, fiz 30/15. Faltavam s dois mseros pontos para eu passar semifinal. Do jeito que eu vinha jogando, no precisava de mais nada, era s permanecer namesma toada. A eu e Kafelnikov disputamos um ponto duro, pancada pra c, martelada pra l,um apostando no erro do outro. Vi, ento, a chance de ousar e fazer uma jogada indefensvel.Arrisquei e cometi um erro gritante. Cedi o empate de graa para ele, 30/30.

    Era tudo o que Kafelnikov queria. Fiquei nervoso e a dvida engoliu a minha convico.Perdi o controle do fluxo dos pensamentos. Em segundos, a retrospectiva dos meus pioresmomentos passou inteira na minha mente. A saudade do meu pai. O guri de quem estavaganhando, mas fraquejei e perdi com 10 anos de idade. O menino que eu vencia at ficar compena, amolecer e perder aos 12. O adolescente que me enrolou. Todos os caras, em qualis,

  • challengers e torneios da ATP, que eu estive prximo de vencer, mas de quem perdi por causadas minhas vaciladas. Era uma avalanche de derrotas seguidas que no acabava mais, anos defrustrao em um segundo, na hora crucial de um set decisivo diante do adversrio maistemido.

    No tinha jeito, eu precisava ignorar o espetculo interno de terror e me recompor.Respirei fundo, tomei meu tempo e saquei da melhor forma que pude. Mas no teve jeito. Comos nervos flor da pele, joguei a primeira bola mais de dois metros fora. Resultado: Kuerten30, Kafelnikov 40. Break point para ele. O monstro, habitualmente frio, deu um discretosorrisinho de triunfo.

    Parecia que eu tinha cado na teia de vez. Na estratgia do russo, diante daquela situao,eu devia ficar mais nervoso. Mas, de certa maneira, Kafelnikov errou sua previso. No fiqueinervoso, e sim absoluta e totalmente desesperado. Pela lgica, o desespero deveria terimplodido minha resistncia. Mas, em vez de sucumbir, me inflamei. Meu grau de indignaocomigo mesmo ficou to monumental que superou os outros sentimentos.

    Guga, que que tu t fazendo? Isso inadmissvel. Tava com o jogo na mo, correndopara o abrao, e agora t entregando. Foi para fazer essa lambana que tu remou tanto? P, ano d. Tu no tem a mnima noo do que tem que fazer eu bradava em silncio para mimmesmo, completamente apavorado.

    Se soubesse portugus, o russo compreenderia que Larri gritava desesperadamente para eusacar na direita. Apesar de o meu melhor saque ser o aberto na esquerda dele, era ali queKafelnikov j estava esperando com a faca nos dentes, sabendo que na hora ag aquele era omeu salvador da ptria. Embora eu e Larri tivssemos praticado muito nos treinos, sacar nadireita no era nem jamais seria minha opo.

    Na direita, Cavalo, saca na direita! Larri se esgoelava.Como a minha cabea j no servia para nada, segui a dele. Nunca fui de quicar muito a

    bola antes do saque, mas ali prolonguei a coisa. Tu vai acertar, Guga, tu tem que acertar eu ficava tentando me convencer, ao mesmo

    tempo que apelava aos cus: Por favor, ele precisa errar, meu Pai amado, me ajuda. Aindaquicando a bola, eu orava com todas as foras.

    Estava to tenso, to dominado pelas emoes, to apavorado que, se Kafelnikovdevolvesse dentro, no me enxergava em condies de dar continuidade ao ponto. Caso a bolavoltasse para o meu lado, j me via paralisado, sem ao, s observando minha runa. Tudobem que ainda podia ter mais jogo pela frente, mas, se eu j me sentia destrudo naquelemomento, de onde tiraria fora para ir alm?

    O russo ficava me encarando com uma expresso provocativa, querendo dizer Vai, cara,manda, voc est to nervoso que t bvio que no vai acertar. Saquei na direita dele. Queriamuito dizer que dei um ace fulminante. Mas no foi nada disso. Com o brao encolhido, osaque saiu muito lento, supostamente fcil para o russo. S que demorou tanto para chegar queele se atrapalhou e rebateu torto com o aro da raquete, isolando a bola uns trs metros para

  • fora da quadra. Por dentro, eu dava pulos de alegria. Empatei, 40/40.Nessa hora, em mais uma legtima e arrebatadora esquizofrenia de tenista, sa do fundo do

    poo e fui direto para a estratosfera. Ganhei o jogo! Agora no tem mais jeito. O cara no aproveitou a chance dele e ele que

    se lasque. Este jogo meu decretei, os olhos cintilando, a convico espantando as dvidase, com elas, todos os meus fantasmas e demnios.

    A sensao da vitria era to profunda que retomei o desempenho do primeiro set, um caramirando no alvo e disparando em linha reta at acertar na mosca. Quando finalizei o game,ganhando a partida e concretizando o inimaginvel, urrei como se tivesse conquistado o ttulo.Ainda com adrenalina saindo pelos olhos, Rafa exultava, berrava, vibrava. Em lgrimas,Letcia, a namorada dele, quase esmagava meu irmo no abrao de comemorao. Larri estavaeufrico e emocionado. A plateia foi ao delrio e aplaudia, sorrindo com o ar de satisfao dequem presencia um fenmeno raro, o cometa flamejante que s cruza o cu a cada duzentosanos.

    Caramba, o que tinha sido aquilo? Depois de estar perdendo por 2 sets a 1, como que euhavia mudado o roteiro da histria? Como tinha sido possvel ganhar do Kafelnikov, o nmero3 do mundo?! Como aquele absurdo tinha acontecido?

    Apesar de ter sido o protagonista da histria, naquela hora eu no tinha resposta paranenhuma das perguntas. Ainda mal acreditava que tinha vencido, que aquele carnaval natorcida era todo para mim. No entanto, era real. Eu tinha superado o monstro e a escalada damontanha continuava. Eu estava na semifinal de Roland Garros.

    Enquanto guardava a raquete na bolsa, olhei de novo para o lugar em que meu pessoalficava. Larri ainda estava arrebatado. Ele no era disso, no costumava se prolongar nascomemoraes, acabava um jogo e j estava pensando no seguinte. Larri s estaria naqueleestado de esprito por alguma coisa muito inusitada e grandiosa. Caminhando para sair daquadra, tentando compreender o episdio, olhei mais uma vez para ele e ele olhou para mim.Nessa troca de olhares, sem nenhuma palavra ou gesto, eu entendi. Sem margem para dvida,nascia ali entre ns a convico de que o ttulo de Roland Garros seria nosso.

  • Paulo Cleto

    Guga em momento de pura convico ao desbancar ofavorito Yevgeny Kafelnikov nas quartas de final de RolandGarros, em 3 de junho de 1997.

  • UMA GRANDE DUPLA

    O primeiro tenista premiado da famlia foi a me. Na juventude, Alice Thmmel, seu nomede solteira, foi vice-campe estadual de duplas. Pegou o gosto por esportes de sua me, OlgaSchlsser Thmmel, minha querida oma (av em alemo), que jogou vlei na juventude.

    Nascida em maro de 1949 em Blumenau, a me no teve uma infncia comum. Numapoca em que no havia desquite e divrcio, seus pais se separaram quando ela tinha 4 anos.Sem terem como se sustentar sozinhas, a oma e a me foram morar em Brusque, na casa dospais da oma, Adolfo e Maria Gertrudes Schlsser. Na poca, ali tambm morava Kurt, outrofilho do casal, por quem a me sempre teria muito carinho.

    Adolfo, o av da me, era scio e um dos herdeiros da indstria de tecidos Schlsser,fundada pelo pai dele. No incio da dcada de 1950, ainda dava expediente na empresa, mas,na prtica, quem tocava o negcio eram dois de seus filhos, Horst e Kurt, irmos da oma. Eraum tempo mais simples, em que quase tudo era adquirido na base da permuta. A faxineira erapaga com retalhos de tecido. Batata, feijo, farinha, arroz, leite eram trocados por peas defazenda. A famlia levava uma vida confortvel, mas sem luxo.

    A rotina da casa primava pela retido e pela parcimnia. Se quatro pessoas iam se sentar mesa, havia quatro batatas cozidas, arroz e salada para quatro e quatro bifes ou quatropedaos de frango para satisfazer o estmago e no desperdiar nada. A rigidez germnicaensinou a me, desde cedo, a valorizar o que tem e a fazer muito com pouco.

    Minha bisav tinha muitas crises de depresso, tratadas com eletrochoques medievais. Ascrises tinham comeado anos antes, quando ela perdera um filho com seis meses de vida. Como avano da idade, o transtorno mental se agravou, alterou seu comportamento e mudou seutemperamento. Queixava-se de tudo sem ter razo em quase nada. Se antes ela dava poucocarinho aos filhos, agora ficara ainda mais distante. Apesar de casada com um empresrio,convenceu-se de que, se tinha nascido pobre, tinha que morrer pobre. Embora tivesse recursospara comprar, nem televiso a famlia tinha em casa.

    Muitas dcadas mais tarde, trs anos depois da morte do marido, aos 92 anos, minhabisav no suportou a saudade e tambm se foi. Em 1985, o pai, a me, eu e meus dois irmostnhamos ido passar o domingo do Dia das Mes com ela e a oma em Brusque. No comeo danoite, fomos embora, mas a oma ficou l. No meio do caminho para Florianpolis, na altura deBiguau, nosso carro passou a apresentar um problema intermitente: pifava de trs em trs

  • quilmetros. Foi uma complicao voltar para casa: o que devia durar uma hora levou quatro.Pouco depois de termos chegado, por volta das dez horas, o telefone tocou. Era a oma

    dando aquela notcia triste. No enterro da minha bisav, em maio de 1985, o pai comentoucom a me:

    Que tristeza, a famlia est diminuindo, as pessoas esto morrendo. Quem ser oprximo, Alice?

    Doze dias depois, em meio a um torneio de tnis, a gente teria a resposta, a ltima que euqueria, a que eu gostaria que nunca tivesse existido.

    Meu bisav Adolfo era um pai e av exemplar, atencioso e afetuoso com a filha e a neta.Ele comprava vestidos, levava ao mdico, perguntava como tinha sido na escola. De noite,colocava msica clssica numa eletrola e chamava Alice para ouvir junto. Aos sbados,falava para a neta:

    No tem ningum no escritrio, os trabalhadores esto sozinhos na fbrica, vamos lfazer uma visita a eles.

    E ento meu bisav levava a me a um por um dos teares, cumprimentando e conversandocom todos os funcionrios. Nessa poca, ele j tinha passado sua participao na empresapara os filhos, mas mesmo assim no deixava de fazer uma gentileza e valorizar quem tinhaajudado a construir a companhia. Esse respeito, essa considerao pelas pessoas maishumildes influenciaram muito a me.

    Desde cedo, Alice Thmmel queria ser professora. Depois de se formar na escola normalem Brusque, fez uma especializao em ensino de crianas com deficincia intelectual. Emmeados de dcada de 1960, o melhor curso desse tipo ficava no Rio de Janeiro. Ento, com 17anos e financiamento dos tios, foi morar num pensionato carioca com outras 49 moas. Passouum ano no Rio e fez uma srie de cursos gratuitos na Espeg, Escola de Servio Pblico doEstado da Guanabara. Aprendeu ingls, aprimorou o alemo e estudou psicologia social, entreoutras coisas. Com um currculo incomum para as mulheres daquele tempo, a me decidiuvoltar para casa. Teve uma ajudinha do namorado para resolver isso e, no retorno a Brusque,ela encaixou mais uma pea do seu destino.

    Por uma dessas coisas que ningum explica, a me sempre achou que ia casar, ter um filhodeficiente e ficar viva cedo. Era uma certeza to grande que me preparei para isso, ela noscontou um dia. Fui atrs de conhecimento para cuidar de crianas especiais e do meuemprego para no depender nem de marido. A me sempre foi meio vidente, com umaintuio do outro mundo. Tinha umas premonies impressionantes, embora nunca hajapassado por sua cabea que um dia teria um filho campeo.

    Quando ela ainda estava no colgio, comeou a jogar tnis na Sociedade EsportivaBandeirantes, um clube de Brusque. Era talentosa e vencia torneios. Virou o orgulho dafamlia quando foi vice-campe estadual. Seu instrutor dizia que ela podia ir alm e sedestacar em nvel nacional. Mas, para chegar l, tinha que corrigir um problema de postura efortalecer o seu brao esquerdo, muito aqum do direito. Sugeriu ento que praticasse tambm

  • outro esporte, um em que usasse as duas mos ao mesmo tempo. Tentou vlei, mas no teve oresultado esperado. Ento foi para o basquete.

    Com 15 anos, inscreveu-se em um curso dado por um jovem talento. Nascido em BraoNorte, cidade do sul de Santa Catarina, Aldo Amadeu Kuerten jogava basquete desde os 12anos e tinha sido campeo estadual. Com 21 anos, participou de um torneio em Brusque,chamou a ateno da cidade e foi convidado a integrar o time local. Como tinha gostado de l,decidiu aceitar. Filho de um dentista prtico que fez carreira na poltica, Aldo foi trabalhar noescritrio do DER, Departamento de Estradas de Rodagem, e nos fins de semana dava aulasde basquete para meninos e meninas no Clube Bandeirantes.

    Nos treinos, entre um arremesso e outro, Alice se encantou pelo professor e vice-versa.Seis anos mais velho do que a me, com mais de 1,80 metro de altura, magro, forte,desenvolto, espirituoso e com fama de namorador, Aldo Kuerten era o gal do clube.Comearam a conversar depois das aulas, tomavam sorvete juntos, perceberam que seafinavam. Passaram a se encontrar em festas, bailes, na igreja ou no cinema, nunca sozinhos.Deram incio a um namorico. Mas a a me foi morar no Rio e a coisa esfriou um pouco.Mesmo assim, o pai no perdia a chance de rev-la quando ela voltava a Brusque para visitara me e os avs.

    Dois anos mais tarde, quando soube que a me estava quase concluindo os cursos no Rio,ele pegou um nibus e foi visit-la. Passearam, foram aos pontos tursticos, jantaram juntos.Foi a primeira vez que andaram de mos dadas sem ter algum vigiando. O pai gostou daexperincia e fez um pedido:

    Volta, Alice, vamos ficar mais perto.Foi assim que a me deixou o Rio, atropelou a concorrncia feminina e comeou a namorar

    o pai. Em Brusque, ela no tinha mais a ajuda financeira dos tios. Precisava se virar. Fezvestibular e passou em primeiro lugar na faculdade de Servio Social da UniversidadeFederal de Santa Catarina. Estudava de manh e fazia estgios de tarde ou de noite. Em umano, como funcionria da prefeitura, prestou servio numa comunidade carente da Lagoa daConceio. Em outro, deu assistncia associao de lixeiros. No final do expediente,faltando quinze para a meia-noite, ia de carona para casa num caminho de lixo. No ltimoano da faculdade, estagiou no Senac, Servio Nacional de Aprendizagem Comercial. Quasesem tempo livre, os torneios de tnis foram deixados de lado.

    Assim que se formou em Servio Social, a me recebeu um convite para se mudar para SoPaulo e trabalhar na Bombril. Seria um belo impulso na carreira dela, mas o pai no gostou daideia de ver a namorada longe outra vez. Decidiu fazer uma contraoferta. Num dia em quevisitava a me em casa, em dezembro de 1971, fez-lhe um convite para um passeio estranho:

    Alice, vem comigo pegar um terno que deixei para lavar no tintureiro.A inocente aceitou. Assim que ela entrou no carro, ele tirou uma caixinha do bolso. D o dedo, pe essa aliana, vamos casar.

  • Acervo pessoal

    Aldo e Alice Kuerten casam-se em 8 de julho de 1972.

    O pai sempre foi mais objetivo do que romntico. Apaixonada, a me nem sentiu falta dejantar luz de velas num momento to importante. Aceitou na hora. Logo na sequncia, os doisentraram de novo na residncia dos Schlsser e o pai pediu a me oficialmente em casamento oma. Com receio de que a me voltasse a pensar na proposta da Bombril, o pai queria casaro quanto antes. O noivado foi rpido, de seis meses, e s no foi mais ligeiro porque nohavia vaga antes na igreja.

    Enquanto cuidava dos preparativos do casamento, a me buscava um emprego melhor. Napoca, ganhava 490 cruzeiros no Senac. Era pouco, mas suficiente para uma moa solteira quemorava na casa dos avs. No entanto, na iminncia de casar e ter uma famlia, precisava demais. Fez um concurso pblico em maro, o resultado saiu em abril e em maio de 1972comeou a trabalhar como assistente social na Telesc. De sada, seu holerite subiu para 2.250cruzeiros, uma fortuna para ela, quatro vezes e meia o que ganhava antes.

    Dois meses depois de a me entrar na Telesc, em 8 de julho de 1972, Alice e Aldo Kuertense casaram, ela com 23 anos, ele com 29. Com seu primeiro salrio, ela pagou parte da festade casamento, toda a lua de mel e ainda sobrou dinheiro. O casal foi morar em Florianpolis,ao lado da ponte Herclio Luz, que o carto-postal da cidade, numa casa que pertencia ao

  • pai de Aldo. Em vez de alugar, decidiram compr-la. Acertaram que dariam uma entrada e queo restante seria dividido em doze parcelas mensais. Enquanto a me pagava as contasdomsticas, o pai se dedicava a levantar dinheiro para quitar a casa.

    Moraram uns trs anos ali, de 1972 a 1975. Nessa casa, o pai deu uma agitada na sua vidaprofissional. Com curso incompleto de Administrao e formado em Economia, ao mesmotempo que trabalhava no Departamento de Estradas de Rodagem, criou um negcio prprioperto de casa. No comeo de 1973, junto com um scio, abriu uma empresa para confeccionarpeas de acrlico, material chique na poca. Especializou-se em placas de consultrio eluminosos para o comrcio. Gostou de ser empreendedor. Pouco depois, separou-se do scio,pediu demisso do DER e inaugurou uma serralheria para fazer grades e portes de ferro.

    A me seguia no seu emprego na Telesc. Todo dia pegava nibus, atravessava a ponte paraa ilha e ia para o escritrio no centro de Florianpolis. Mas a aconteceram duas coisas queacabariam por se interligar e modificar a rotina do casal. Em outubro de 1973, nasceu Rafael,primeiro filho dos Kuerten. Depois, a Telesc mudou a sede do centro da cidade para o bairrodo Itacorubi. Essa transferncia no era boa para a me, que, com filho pequeno, tinha quegastar mais tempo para ir de casa para o trabalho.

    A melhor soluo seria mudar de casa para um local mais prximo da Telesc. Isso trariaum triplo benefcio: a me no precisaria mais se locomover pela cidade, poderia almoar emcasa e tambm brincar um pouco com o Rafa, que ento ficava sozinho com a bab, a Dete,Maria Bernardete Schaerfert, que at hoje, quase quarenta anos depois, ainda trabalha com ame.

    Assim, no segundo semestre de 1975 a famlia se mudou para uma casa alugada no bairrode Trindade, a quatro quilmetros da nova sede da Telesc. Foi a, meses depois de o pai, ame e o Rafa se instalarem na nova moradia, que vim ao mundo, em setembro de 1976. Aideia era que esse fosse o nosso canto por muito tempo, mas no cheguei a passar um ano ali.Sem mais nem menos, a proprietria pediu a casa de volta. Sem negociao, tivemos de mudarnovamente.

    O pai no gostou dessa histria de trocar de endereo por causa da vontade alheia e achouque o melhor era construir a prpria casa para a famlia. Fazia pouco tempo que ele tinha feitoum servio grande em troca de um terreno ngreme e pedregoso com 25 metros de frente, 560de fundo e quase 60 graus de inclinao. Apesar de ser uma pirambeira, ficava no mesmoItacorubi para onde a Telesc tinha se mudado. Decidiu que em breve ia dar um jeito delevantar nossa moradia ali.

    Enquanto pensava no que fazer, a famlia se mudou para outra casa alugada ali perto, nobairro do Crrego Grande. Passaram-se poucos meses e, por volta de fevereiro de 1979, ame ficou grvida de novo. Foi o peteleco que faltava para que o pai decidisse levar adiante oplano de construir a casa definitiva dos Kuerten. O problema que no tinha muito dinheiro.Mas o pai, dentro e fora das quadras, se iluminava diante de um desafio, no descansavaenquanto no o superava.

  • Para viabilizar o projeto, desenhado pela me, trabalhou em dobro. A me, por sua vez,resgatou o fundo de garantia e vendeu duas frias acumuladas. O carro da famlia, umaBraslia, tambm foi vendido e transformado em cimento e tijolo. Quase tudo que tinha valorera passado para a frente para financiar o sonho da casa prpria.

    As obras comearam mais ou menos na mesma poca em que a famlia ficou completa. Opai e a me sempre quiseram ter trs filhos, com uma diferena de trs anos de um para outro.Selando o plano, em novembro de 1979 nasceu meu irmo caula, Guilherme Kuerten, o Gui.

    Estava tudo indo conforme o planejado at que, quando a construo no Itacorubi estavapela metade, em maio de 1980, o proprietrio da casa alugada de Crrego Grande tambm apediu de volta. O contrato de um ano tinha terminado e o homem se negou a renovar. O pairogou para ele esperar mais um pouco, falou que a concluso da obra no demorava, que tinhadois filhos pequenos e um recm-nascido em casa, mas no teve jeito. E a a famlia se viunuma sinuca.

    Faltavam trs, quatro meses no mximo para o sobrado do Itacorubi ficar pronto. Masquase todo mundo s alugava com contrato mnimo de doze meses. Que proprietrio deCrrego Grande aceitaria locar sua casa ou apartamento por um tero disso? O pai percorreutodas as imobilirias da regio, mas no teve sucesso. A soluo restante foi alugar uma casade veraneio, cujos donos locavam por temporada.

    Assim, em junho de 1980 fomos parar num casinha de madeira na Lagoa, que era o que afamlia podia pagar enquanto quase todos os seus rendimentos iam para levantar a novapropriedade. A construo era velha, estava se esfacelando, com frestas que deixavam o ventogelado do inverno transformar os quartos em geladeiras com paredes. Era um esquema bemimprovisado, no tinha cobertor que desse conta e o Gui chorava a noite toda, a ponto de osvizinhos acharem que tinha alguma coisa errada com a gente.

    Bateu o desespero para mudar logo, mas a obra no terminava. A casa nova ficava no altode um morro ngreme. Para chegar l, pessoas e carros tinham de escalar um ladeiro de terra.Aquilo precisava ser cimentado, mas custava caro e todo o nosso dinheiro estava sendo usadopara terminar a obra. O acesso fica para depois, vamos concluir a casa e ento a gente vcomo sobe at l, o pai decidiu. Nossas reservas j estavam na raspa do tacho, mesmo comele fazendo uma srie de permutas e, para economizar mais, confeccionando e instalando todasas esquadrias, janelas e portas corredias do imvel. Seu servio ficou bom como sempre,mas dessa vez no combinou muito com o estilo da casa.

    A construo tinha um estilo mais rstico e o prateado do alumnio a deixava com umaaparncia meio Frankenstein. O pai teve ento uma ideia que, primeira vista, soou comoaberrao, mas, mais tarde, se revelaria providencial. Pintou todo o alumnio de verde paraparecer madeira. Ficou timo. Hoje, existe alumnio de tudo quanto cor, brilhante ou fosco,mas, naquele tempo, aquilo era uma inovao de outra galxia. Depois que tudo ficou pronto,vira e mexe o pai levava cliente l para ver como era, transformando nossa casa nummostrurio habitado e num manancial de oportunidades de negcio.

  • Os operrios trabalhavam duro, mas, com ou sem ideias magnficas, sempre aconteciaalgum imprevisto. O fornecedor prometia e no honrava. Quando cumpria o prazo, chovia e ocaminho de entrega no conseguia subir a pirambeira de lama. O que era para acontecer emuma semana levava trs. Um dia o pai foi l pressionar o mestre de obras. Pediu que eleacelerasse, que j no aguentava mais ficar no casebre congelante da Lagoa.

    Olha, seu Aldo, prometo que o senhor pode providenciar a mudana para a metade deagosto.

    O pai se insurgiu: De jeito nenhum. Agosto ms de cachorro louco, no d boa sorte. Precisa ser antes. Eu

    paro tudo no trabalho e venho aqui ajudar vocs. De julho no passa.O pai prometeu e cumpriu. Arranjou algum para cuidar da serralheria e passou dez dias se

    dedicando a finalizar a casa. Enquanto a baguna continuava, chegou a moblia. O pai tinhafeito um grande trabalho para a fbrica de mveis Formaco e, como pagamento, em mais umapermuta, eles forneceram sofs, mesas, cadeiras, camas e armrios de banheiro e cozinha. Nodia 31 de julho, enquanto os pintores terminavam de passar a ltima demo de tinta nafachada, finalmente mudamos para a casa em que eu moraria por 21 anos. Por essa e poroutras que meu pai sempre foi meu heri. No havia problema que ele no resolvesse.

  • UM PERIQUITONA MUDA

    Posso viver cinco sculos e no haver para mim ano mais atpico, mais fabulosamenteestranho do que 1997, com passagens to surpreendentes que custo a entender at hoje comoaquilo aconteceu. Para comear, eu tinha conseguido minha primeira vitria em um GrandSlam, e contra um adversrio muito superior, um dos quarenta melhores do mundo.

    Quando entrei em quadra para enfrentar o sueco Mikael Tillstrm no Aberto da Austrlia,em janeiro, tinha mais esperana do que segurana na vitria. O cara batia forte, tinha um anode experincia a mais do que eu. Mas eu queria muito, eu precisava vencer.

    Alm de matar a fome de leo que Larri me ensinou a ter, desejava mostrar a meu novopatrocinador que valia a pena apostar em mim. Desde o dia 1o de janeiro, o Banco Real tinhapassado a me patrocinar, juntando-se Diadora. Foi a primeira vez que no tivemos quecorrer atrs de parceria, que uma empresa nos procurou com o objetivo de associar a marca minha imagem. Assinei um contrato de dois anos que me rendia algo como 100 mil reais porano, o que, pela primeira vez na vida, pagava o Larri, os custos das viagens e ainda deixavauma sobra. Depois de dez anos de clculos e apertos financeiros, a me podia aposentar aplanilha de despesas com a qual sabia quanto custava por ms ou ano a minha participaonos torneios.

    O grande responsvel pelo acordo que aliviou as contas familiares foi Carvalhinho,apelido pelo qual Paulo Carvalho mais conhecido. Em 1996, ele era funcionrio da agnciade marketing esportivo Koch Tavares, empresa de Luis Felipe Tavares, ex-jogador de CopaDavis e entusiasta do tnis. Na poca, o Banco Real, um dos parceiros da Koch, buscava umtenista promissor para patrocinar. Carvalhinho indicou meu nome, argumentando que eu erajovem, tinha talento e potencial para grandes conquistas. A sugesto foi aceita.

    Ex-rbitro que passou a ganhar a vida organizando torneios, Carvalhinho era amigo deLarri. Ele me via jogando desde pequeno e conhecia bem minha carreira. Com o tempo, fomosnos aproximando e, em 2001, eu o convidei para trabalhar conosco. Enquanto Jorge Salkeldbuscava acordos no exterior, Carvalhinho passou a me representar no Brasil, numa parceriavitoriosa que durou muitos anos.

    Voltando ao Aberto da Austrlia, tive que ir para l sozinho. Com compromissosassumidos com outros tenistas que ele treinava, Larri no pde me acompanhar a Sydney, ondeeu jogaria um quali antes de seguir at Melbourne, cidade que sedia o primeiro Grand Slam do

  • ano. Acho que Larri j sabia a roubada que vinha pela frente. Eram dois dias inteiros deviagem, um negcio interminvel. Sa de Florianpolis na quarta, fui para So Paulo, dormi,acordei, entrei no avio, cheguei em Los Angeles, esperei doze horas, embarquei para a NovaZelndia, aguardei mais um tempo, subi de novo num avio e, at que enfim, cheguei aSydney.

    Pouco antes do pouso, o comandante deu boas-vindas aos passageiros pelo sistema desom:

    Senhoras e senhores, estamos nos aproximando de Sydney. Espero que tenham gostadodo voo e que aproveitem sua estada na Austrlia. O cu est limpo e a temperatura de cercade 30 graus neste sbado ensolarado.

    No mesmo segundo, pensei: O comandante falou sbado? Mas que sbado? Era para sersexta. Assim que pousamos, chamei a aeromoa e perguntei:

    Que dia hoje? sbado ela respondeu, sorrindo com ternura; devia estar acostumada com isso.No possvel, falei comigo mesmo. Estou at torto de tanto avio. Sa de casa na

    quarta. Quarta, quinta, sexta, tem muito dia no meio at chegar no sbado, no pode ser.Ningum tinha me dito que o viajante perde um dia quando vai para aquela banda do

    mundo. Resultado: junto com as 24 horas, perdi o quali do torneio. Na hora em que o avioaterrissou, a primeira rodada j tinha comeado. Mal pisei no pas e j fiz uma lambanavlida por uma temporada inteira, um papelo daqueles que o cara conta e ningum acredita.Sem opo, injuriado, fui para o hotel, louco para tomar um banho e esticar o corpo.

    Cheguei recepo, confirmei a reserva, estava no meio do check-in quando me dei conta:cad minha pochete? Olha daqui, remexe dali, revira os bolsos, abre mala, procura naraqueteira. Nada, sumiu, desapareceu com tudo dentro: passaporte, dinheiro, documentos,carto de crdito. Toca a telefonar para o aeroporto, para a polcia, fazer boletim deocorrncia, acionar as autoridades, providenciar um novo passaporte. Que espetculo deestreia em solo australiano!

    Guga, no d para te deixar sozinho. S no perde a cabea porque est grudada nopescoo. A me e a oma repetiram essa frase centenas de vezes durante a vida inteira.

    De fato, eu era desligado. Herdei isso do pai. Na infncia, perdia agasalho, guarda-chuva,dinheiro, chave. Esquecia at raquete no clube. Mais tarde, cheguei ao cmulo de esquecer unscinco ou seis trofus em quarto de hotel. Se eu conseguia isso, imagina ento com uma pocheteao sair meio zonzo do avio.

    Ento eu estava perdido e aturdido na recepo do hotel quando vi chegar Luis Lobo,duplista argentino que eu conhecia havia muitos carnavais. Expliquei a situao e o carasalvou minha pele, me deixando ficar no quarto dele. Instalado ali, eu passava o dia treinandocom os jogadores que disputavam o torneio de Sydney, esperando o milagre de conseguir meupassaporte de volta. Sem isso, no ia nem ter como embarcar para Melbourne e jogar noAberto da Austrlia. Depois de trs dias de aflio, telefonaram do aeroporto avisando que

  • haviam encontrado minha pochete.Eu j perdera toda a esperana de recuper-la. E mesmo quando foi achada no punha a

    menor f em que minhas coisas ainda estivessem l. Mas ela estava intacta, com toda adocumentao, os cartes e uns 1.500 dlares que eu tinha levado para a viagem. Era toinacreditvel que interpretei o resgate do dinheiro e dos documentos como um sinal de que aminha sorte tinha comeado a mudar. Feliz da vida, com o passaporte na mo, peguei o aviopara Melbourne.

    Deixei as coisas no hotel e fui direto para o lugar da competio verificar se meu nomeestava na relao dos competidores do Aberto da Austrlia. Sim, olha eu l na lista. Beleza, jeram duas coisas seguidas dando certo. Pouco depois, mais uma prova de que o vento sopravaa favor. Conforme prometido, a entrega tinha chegado. Como ocorria desde 1995, recebi oprimeiro lote do ano dos uniformes da Diadora. Magnfico. Dois dias antes, estava perdido,sem um centavo para comer, sem carto de crdito para pagar hotel, sem passaporte paraviajar, e agora tinha tudo de volta e ainda uniforme tinindo de novo para estrear em um GrandSlam.

    Abri a sacola na maior empolgao. Era enorme, fui tirando tudo de dentro, colocando emcima da cama. Mas, pera, tudo azul e amarelo?! Nunca poderia imaginar que seria algo tochamativo, to fora do padro de qualquer conveno do esporte. Impressionante como apenasduas cores podiam se combinar de maneira to espalhafatosa.

    O calo era azul escandaloso. A camisa, azul e amarela, bem mais amarela do que azul.Podia jurar que tinham me dado a possibilidade de optar entre tnis azuis ou amarelos, masnaquele pacote s tinha os amareles. Vesti o traje completo, tnis, meias, calo e camisa,me olhei no espelho de alto a baixo e, rapaz, me deu uma vergonha! Eu parecia um periquitona muda.

    Fui me adaptando ao novo modelo aos poucos. No primeiro dia de treino, pus s o calo.No segundo, acrescentei os tnis. No terceiro ou quarto, vesti o traje completo e sa correndodo vestirio para no dar tempo de ningum falar nada. Mas era s dar brecha que vinhagozao de tudo quanto era lado. Fernando Meligeni, o Fininho, se escangalhava de rir. Maseu ia reclamar do qu? Era o 88o do mundo, estava l na porta dos fundos do ranking e mesmoassim a Diadora, uma referncia na Europa, estava me apoiando. Alm de levar na boa, eutinha obrigao de agradecer a ela por permitir que eu representasse a marca nas quadras.

    Estreei no Aberto da Austrlia contra Mikael Tillstrm, um dos poucos que eu conheciapor l. Tillstrm tinha feito parte da mesma equipe que eu no Interclubes alemo de 1996.Sabia que ele gostava de piso rpido e que chegara s quartas em Melbourne um ano antes. Osueco entrou em quadra pronto para exterminar o franco-atirador brasileiro e tentar defenderos pontos da temporada anterior. Estava to concentrado que nem olhou para sua torcida, vinteou trinta compatriotas com pintura de guerra no rosto e chapu de viking.

    Fiz meu primeiro ponto. Aplausos efusivos. Mandei uma paralela certeira. A plateiavibrou. Acertei uma bola bonita. A galera dos vikings urrou de satisfao. A coisa foi indo

  • assim at quase o final do segundo game, eu no entendendo bulhufas. At que finalmente caiua ficha e os suecos se tocaram de que estavam torcendo para o cara errado, que o brasileiroestava jogando de azul e amarelo, a cor da bandeira deles, e o compatriota, de branco. A essaaltura, at Tillstrm ria da situao.

    Debaixo de um sol de deserto, os dois primeiros sets foram parelhos, com artilhariapesada dos dois lados, ele pressionando, eu salvando, ele se esquivando, eu batendo. Vencios dois apertado, 7-5 e 7-6. O cara no se conformou. No terceiro, virou bicho, no tinha outracoisa a fazer: ganhou o set. No comeo, achei que tinha poucas chances, mas, agora que estavana frente, no ia deixar barato. Invocado, voando baixo para c e para l, tirei foras erecursos sei l de onde, fiz 6-4 no quarto set e liquidei a partida com o corpo todo dodo, naminha primeira, magnfica, inesperada, histrica vitria num Grand Slam.

    Mesmo que fosse madrugada no Brasil, achei um orelho e telefonei para a me. Guga, est tudo bem? Aconteceu alguma coisa para tu ligar a esta hora? Ah, me, fiquei com saudade, t meio chateado... Que aconteceu? ela perguntou, j imaginando o que viria numa poca em que eu mais

    perdia do que ganhava. Ah, me, partida dura... E a falei a frase de sempre: No deu... No fica assim, filho, tu sabe que perder faz parte, mantm a f que uma hora vai dar...A no me aguentei e parei de fingir e enganar a me. Explodindo de felicidade, dei a

    notcia mais inesperada do ano: No, me, desta vez deu, sim. Eu ganhei, tu acredita?! Teu filho ganhou uma partida de

    Grand Slam!A me no sabia se ria ou chorava; eu fiquei do mesmo jeito, emocionado, s falando

    coisas desencontradas e querendo que ela estivesse ali para ter me visto vencer. Numa tacadas, aquilo tinha sido uma faanha dupla. Alm da vitria em si num dos maiores torneios domundo, eu havia superado Tillstrm, que estava quase cinquenta posies acima de mim. Oespecialista em quadra dura era ele, no eu. Em 1996, um ano antes, o sueco tinha ido longe noAberto da Austrlia, enquanto eu perdia para um italiano na primeira rodada do challenger dePunta del Este. Pela primeira vez na vida, me senti um jogador completo e realizado, umtenista que tinha mesmo condies de honrar o plano de seu treinador e continuar subindo,quem sabe chegando aos cinquenta melhores do mundo no futuro.

    Eu perderia a partida seguinte em quatro sets para um sul-africano, mas a vitria sobreTillstrm no saa da minha cabea. Este ano promete, pensei. Depois da Austrlia, volteiao Brasil. Nem tive tempo de dar um beijo na me em Florianpolis. Fui direto para RibeiroPreto, no interior de So Paulo, jogar contra os Estados Unidos na Copa Davis, na primeirarodada depois de o Brasil retornar ao grupo mundial. Com Paulo Cleto no comando, nossaequipe era a mesma do ano anterior, comigo, Fernando Meligeni, Jaime Oncins e RobertoJbali.

    Eu estava superconfiante, jogando o melhor tnis da minha carreira. A gente treinava como

  • se fosse o confronto de nossas vidas e eu via que estava desempenhando num nvel diferente.Tinha certeza de que ia fazer bonito. Mas, dois dias antes da minha primeira partida, com acabea na lua, fui pegar o jantar no micro-ondas. Esqueci que o prato estava pelando edescobri que o crebro leva um tempinho at registrar que a mo est pegando fogo. Parapiorar, em vez de me livrar logo daquilo, levei o prato at uma bancada. Fiquei com umabolha enorme no dedo da mo direita.

    Paulo foi loucura com a minha tontice. E a ligava para mdicos, colocava dedo na guafria, passava pasta de dentes, furava bolha, punha pomada, enfaixava esparadrapo, relaxavatreino para poupar a mo. Nunca tive calo ou nada parecido e jogar com um treco enrolado nopolegar comprometia a atuao. Logo no treino seguinte, apesar de continuar competitivo, jdeu para notar que no era a mesma coisa. Com dor eu at sabia lidar, mas a falta desensibilidade gerada pelo esparadrapo que me matava.

    Na minha estreia na simples da Davis, perdi para MaliVai Washington. Embora eleestivesse acima de mim no ranking, na 24a posio, era um tenista que no saibro eu teria totaiscondies de vencer. Ganhei o primeiro set, mas perdi os seguintes. Um a zero para osamericanos.

    No segundo jogo da simples, contra o ex-nmero 1 Jim Courier, Fininho foi um heri, fezuma partida espetacular, incomodou o adversrio, lutou at o final, incendiou a torcida, masno conseguiu vencer. Dois a zero para os americanos.

    Na partida de duplas, eu e Jaime enfrentamos Alex OBrien e Richey Reneberg, ento umadas parcerias mais matadoras do mundo. Os caras entraram em quadra com aquele jeito dequem no ia precisar de muita fora para nos despacharem logo. Erraram feio. Joguei bem,mas nada que chegasse perto do Jaime, que, num dia inspiradssimo, virou uma mquinadevoradora de oponentes. Escovamos os caras e vencemos por 3 sets a 0. No placar geralagora estava 2 a 1. Os americanos continuavam na frente, mas estvamos encostando.

    A foi a minha vez de confrontar Courier, um dos gigantes do saibro, o cara que se tornoubicampeo de Roland Garros no mesmo ano em que eu rezava para tentar conseguir sentar naplateia. Relaxado, ele ganhou os dois primeiros sets com uma facilidade constrangedora.Caramba, tudo bem que era o Courier, mas aonde tinha ido parar aquele jogador confiante queacreditava que tinha condio de encarar os melhores do mundo?

    Voltei para o terceiro set pronto a jogar o mximo. Funcionou. Comecei a me encontrar, ajogar de igual para igual, vibrando, pressionando, sem me intimidar com o fato de que dooutro lado da rede estava um exterminador. A partir dali, aquela se tornou uma legtimapartida de Copa Davis, com a competio num grau elevado, provocao da torcida, osadversrios se digladiando e o jogo pegando fogo. Quando venci o terceiro set, a torcidaquase veio abaixo.

    O quarto set comeou e Courier j no estava mais com um ar relaxado. Parecia o gniomatador de sempre, o cara que despachava um rival atrs do outro. A partida prosseguiu, masagora, mesmo diante de um dos maiores, eu jogava num nvel excelente, com chances reais de

  • ganhar o jogo. S que ningum bicampeo de Grand Slam toa. Depois de um monte deameaas da minha parte, Courier conseguiu me encurralar no tie-break. Perdi em quatro sets.A rodada estava definida; os Estados Unidos avanaram. No entanto, mesmo com a sensaoruim de derrota, o que experimentei naqueles dois ltimos sets foi a grande conquista do fimde semana.

    Com a seleo dispensada, voltei rotina. Apesar do resultado adverso na Copa Davis,tinha um forte pressentimento de que estava nos trilhos para chegar mais longe. O segredo daliem diante era manter o patamar de excelncia dos dois ltimos sets da partida contra Courier.Se conseguisse isso, era s ter pacincia que a oportunidade viria, mais cedo ou mais tarde.

    Larri tinha decidido que a bola da vez seriam os torneios grandes nos Estados Unidos. Noquali da Filadlfia, descobri que quadra central enfeitada e com holofote era s para finalista.Para aspirantes como eu, s uma rede grudada na outra, sem bolas novas e com juiz escondidono canto, luz ruim, meia dzia na plateia. Era um negcio to desestimulante quantodesesperador. Quase no dava vontade de jogar.

    A recompensa por ter pagado esse mico no demorou. Em Memphis, depois de vencer umamericano na primeira rodada, enfrentei Andre Agassi pela primeira vez. Embora ele noestivesse na sua melhor fase, ainda era o 12o do mundo e, mesmo se nem estivesse no ranking,no deixaria de ser lendrio, um dos melhores entre os melhores. Dormindo, sonmbulo,acordado, jogando muito ou pouco, nada disso importava; para mim o Agassi era o Agassi, ocara que eu admirava tanto que quando criana comprava camiseta igual dele achando quepor isso fosse jogar naquele mesmo nvel.

    Antes do jogo, fiquei uma hora aquecendo com Luis Lobo, o duplista que me salvou nohotel em Sydney. Lobo s dava porrada, eu rebatendo cada vez mais forte para ficar em pontode bala para encarar o americano. Encharcado de suor, fui para o vestirio me trocar. Larriestava me esperando l. A quatro ou cinco metros, Agassi era o extremo oposto: com extrematranquilidade, arrumava suas coisas. A ocorreu uma das cenas de bastidores mais inesperadasde todos os tempos.

    Larri tinha me alertado que Agassi poderia me intimidar, mas nunca imaginei que pudesseser daquele jeito. De repente, ele se levantou do banco, veio