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mais vidas para da morte de um edifício Na Dinamarca e Alemanha, edifícios inteiramente construídos com materiais reciclados. Em Portugal, ainda se faz "muito pouco". Arquitecta quer começar pelo prédio Coutinho, em Viana Arquitectura Mariana Correia Pinto Quando Aline Guerreiro aconselha alguém a fixar mecanicamente uma placa de cortiça em vez de a colar, para facilitar o trabalho de descons- trução posterior, as reacções dos interlocutores são quase sempre de espanto e incompreensão. Mas por que razão iriam desconstruir um edifício, questionam. "Porque um dia ele vai acabar", responde a arquitecta como quem faz uma de- claração de princípios. A narrativa de um ciclo de vida que pode ser circular em vez de ter um ponto fi- nal está ainda muito crua entre ar- quitectos e demais ofícios ligados à construção. Mas quem esteja a tentar escrevê-la. E se em vez de implodir um edifício o desconstru- íssemos? A ideia andava a ser marinada muito tempo. Em 2010, Aline e dois amigos arquitectos constatavam que a informação sobre materiais amigos do ambiente era escassa e puseram mãos à obra. O Portal da Constru- ção Sustentável pretendia ser "uma coisa puramente informativa". Mas, ao trabalhá-10, os amigos descobri- ram, "por acaso, um negócio": se o portal se empenha na educação, com a promoção de palestras e aulas abertas em universidades, a Ecotec- Em resposta a um desafio do ministro do Ambiente, a Ecotectura vai apresentar um projecto de desconstrução do prédio Coutinho

Há mais vidas para lá de edifício - ULisboa · 2018-03-13 · Há mais vidas para lá da morte de um edifício Na Dinamarca e Alemanha, há edifícios inteiramente construídos

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Page 1: Há mais vidas para lá de edifício - ULisboa · 2018-03-13 · Há mais vidas para lá da morte de um edifício Na Dinamarca e Alemanha, há edifícios inteiramente construídos

Há mais vidas para lá da mortede um edifício

Na Dinamarca e Alemanha, há edifíciosinteiramente construídos com materiaisreciclados. Em Portugal, ainda se faz"muito pouco". Arquitecta quer começarpelo prédio Coutinho, em VianaArquitecturaMariana Correia PintoQuando Aline Guerreiro aconselha

alguém a fixar mecanicamente umaplaca de cortiça em vez de a colar,para facilitar o trabalho de descons-

trução posterior, as reacções dosinterlocutores são quase semprede espanto e incompreensão. Mas

por que razão iriam desconstruirum edifício, questionam. "Porqueum dia ele vai acabar", responde a

arquitecta como quem faz uma de-

claração de princípios. A narrativade um ciclo de vida que pode sercircular em vez de ter um ponto fi-

nal está ainda muito crua entre ar-

quitectos e demais ofícios ligadosà construção. Mas há quem estejaa tentar escrevê-la. E se em vez de

implodir um edifício o desconstru-íssemos?

A ideia andava a ser marinada hámuito tempo. Em 2010, Aline e dois

amigos arquitectos constatavam quea informação sobre materiais amigosdo ambiente era escassa e puserammãos à obra. O Portal da Constru-ção Sustentável pretendia ser "umacoisa puramente informativa". Mas,ao trabalhá-10, os amigos descobri-

ram, "por acaso, um negócio": se

o portal se empenha na educação,com a promoção de palestras e aulasabertas em universidades, a Ecotec-

Em respostaa um desafiodo ministro doAmbiente, aEcotectura vaiapresentar umprojecto dedesconstruçãodo prédioCoutinho

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tura nasceu como um atelier ondea sustentabilidade é premissa obri-gatória.

As pesquisas constantes à volta de

novos modelos de sustentabilidadee construção levaram Aline Guer-reiro, 47 anos, a viagens virtuais àDinamarca e à Alemanha. Nessas ge-

ografias, encontrou "edifícios quaseinteiramente construídos com ma-teriais reciclados de outras obras"e culturas onde o conceito estava jáimpregnado. Bem diferente do quese passa em Portugal, onde há "mui-to pouco" a ser feito e a lei obrigaà incorporação de 5% de materiaisreciclados em obras públicas. Pa-

rece bom? Não se olharmos para a

meta europeia para os resíduos de

construção e demolição: a partirde 2020, será obrigatório que essa

percentagem seja de 70%. E seráviável? "A verdade é que é quaseimpossível."

Quando há não muito tempo fezum comunicado através da Quercus- organização que integrou em 2003como voluntária e onde já exerceuvários cargos - para requerer umaincorporação de 25% de recicladosem obras públicas sentiu estar a

pedir o impossível: "Todos os jor-nalistas me perguntavam: 'mas isso

não é completamente disparatadose agora só temos 5%?'", recorda."Eu dizia: sim, é difícil, mas daquia dois anos é obrigatório que sejam70%."

A vontade de fazer ainda maispelo tema ganhou asas quando umdia se cruzou com um anúncio napágina do Fundo Ambiental: tinhamaberto candidaturas a apoios paraprojectos de economia circular. Fal-tavam apenas dois dias para o prazofinal de entregas, mas Aline decidiutentar na mesma. E a sua propostade "implementação de projectos de

construção selectiva", num "modelo

que nunca foi implementado atravésde casos reais" em Portugal, deu nasvistas.

O trabalho foi aprovado em No-vembro de 2017 e está em andamen-to desde o início de 2018, com doiscasos práticos, a duração de seis a

dez meses e o apoio da Quercus: a

desconstrução de um edifício em

Castelo Branco para uma obra de

reabilitação posterior e a descons-

trução - em alternativa à simplesdemolição - do famoso prédio Cou-

tinho, em Viana do Castelo.São dois modelos diferentes. No

primeiro caso, a equipa de AlineGuerreiro quer aproveitar para fazeruma "demonstração" daquilo quepode ser um projecto deste género.O edifício pertence à Quercus e vaiser transformado num turismo denatureza. A ideia do Coutinho veio,

curiosamente, do ministro do Am-biente quando, durante a cerimóniade assinatura dos contratos com oFundo Ambiental, elogiou o projec-to de Aline e em conversa com elalhe disse em tom coloquial: "Veja láse começa pelo prédio Coutinho."

Betão para encher estradasEla agarrou a ideia. Já solicitou umareunião e acesso às plantas do edifí-cio à câmara vienense. A partir domomento em que as tenha, podeiniciar um estudo sobre os mate-riais com os quais o prédio foi feito:"Avaliamos um piso, os outros serão

parecidos. Idealmente entraríamosnum deles." Aline Guerreiro sabe

que o assunto é sensível. A demoli-

ção - que está prevista desde 2000-já foi adjudicada por quase 1,2 mi-lhões de euros e o presidente da au-tarquia, José Maria Costa, avançouque tal deverá acontecer no primei-ro trimestre deste ano. Se assim for,nota Aline Guerreiro, é apenas umaquestão de semântica: se o prédio

for implodido "não se salva nada",se for desconstruído sim.

Mas, afinal, como se organiza umprojecto desses? Depois de seremverificados os materiais utilizados.

É economiacircular. Portugalestá ainda a anos-luz do resto daEuropa nestamatériaAline GuerreiroArquitecta

é feita uma avaliação do que é reci-clável: a cortiça pode, por exemplo,ser desfeita e reintroduzida noutros

processos produtivos; a madeira po-de ser reutilizada para várias coisas;até o betão pode ser aproveitado pa-ra "encher estradas".

"Os produtos devem ser vistosatendendo ao seu ciclo de vida: deonde foram extraídos, como vão serfabricados, transportados, utilizados

e, no fim da vida útil, como podemser reintroduzidos", explica Aline."É economia circular." Portugal estáainda "a anos luz do resto da Europa"nesta matéria: "Esta coisa da susten-

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tabilidade ainda não entra bem na ca-

beça das pessoas", lamenta Aline. Emesmo quando há vontade junta-se,muitas vezes, o desconhecimento co-

mo perigoso inimigo: "Muitas vezesacham que estão a usar coisas susten-táveis e na verdade não estão."

É comum, por exemplo, que seusem materiais com a justificaçãode que eles promovem poupança de

energia, achando que, só por isso,são sustentáveis. É o caso de vários

componentes de plástico, que têmmais valias do ponto de vista de efi-ciência energética mas cujo reapro-veitamento é quase nulo. E não há

razão plausível para a sua utilização:"Temos alternativas, como a cortiça,que tem tudo o que precisamos: saide uma árvore que se regenera denove em nove anos, o processo defabrico é inócuo para o ambiente, o

combustível são resíduos da própriacortiça, a própria cortiça liberta umlíquido que o faz aglomerar. E no fimda vida útil é desfeito e reintroduzi-do em novos processos, combustí-vel, novas placas..."

Contra novas construçõesFalta ainda uma educação parao assunto. Nas universidades - e

nos cursos de arquitectura em par-ticular - o caminho está por fazer,avalia Aline Guerreiro. Quando em2008 deu aulas no Instituto Supe-rior Técnico, em Lisboa, percebeuque os alunos já se interessavam pe-lo tema, mas que a sustentabilidadenão era "uma coisa incutida". Hácadeiras específicas, explica, masfalta que seja "uma ideia transver-sal a todo o curso".

Aline costuma dizer que é "umaarquitecta contra as novas cons-

truções". Os dados do InstitutoNacional de Estatística, sublinha,apontam para a existência de duas

casas por família. E isso é exces-sivo: "Temos muito mais casas do

que necessitamos em Portugal" e,em contrassenso, continua a haver"muita gente com carências habi-tacionais". Solução? "O ideal seriareabilitar. Não precisaríamos deconstruir [de raiz] durante muitos

anos".Tanto uma aposta em (recons-

trução sustentável como a escolhada desconstrução em detrimentoda demolição são opções financei-ramente viáveis, garante a arquitec-ta natural de Lisboa e com atelierem Braga. 0 seu projecto apoiadopelo Governo quer provar isso mes-mo. E pôr em cima da mesa queeste modelo pode, em acréscimo,ser uma forma de "promover no-vos postos de trabalho, dos maisaos menos especializados, e criarnovas plataformas de materiais e

valorizações de resíduos".Pode até ficar mais caro para um

empreiteiro que prefere apostar emmateriais mais baratos. Mas com-pensa sempre para quem compra.Fica uma sugestão extra que talvez

possa fazer escola: "Os projectosdeveriam passar a ser entreguescom um projecto de desconstru-ção."[email protected]