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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PU SONGLING OS CONTOS MAIS ESTRANHOS DO MUNDO PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2552. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 17 de Fevereiro de 2012

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OS CONTOS MAIS ESTRANHOS DO MUNDO

PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2552. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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I D E I A S F O R T E S

Séculos XIII-XIVA Dinastia Yuan, de origem mongol, governa a China. O governador do distrito de Banyang, em Shandong, chama-se Pu Luhun. De origem turco-mongol, é o primeiro antepassado conhecido da família de Pu Songling, segundo uma árvore genealógica elaborada pelo próprio escritor em 1688. O seu túmulo situa-se a noroeste da cidade de Zichuan.Com a queda dos Yuan em 1368, os Pu refugiam-se perto dos seus familiares por aliança, os Yang, adoptando temporaria-mente o seu nome. Quando a situação política estabilizou, em finais do século XIV, retomaram o seu nome e instalaram--se a leste de Zichuan, na aldeia de Man-jingzhuan. O clã Pu é considerado um dos mais importantes da região, tendo em conta o número dos seus membros que entraram no mandarinato, sob o do-mínio Ming.

16405 de Junho, entre as 19 e as 21 horas Nasce Pu Songling, penúltimo de quatro filhos de Pu Pan, que tem na época cerca de 50 anos. O pai de Pu Songling não conseguira obter o bacharelato e dedicara-se ao comércio, o que lhe permitirá proporcionar algum conforto à família.Como era hábito entre os letrados, o escritor viria a adoptar o nome “público” de Liuxian (o Imortal Exilado)

1650Pu Songling estuda com os seus irmãos, tendo o pai como professor, certamente devido à ausência de condições financeiras para contratar um preceptor. Songling, o preferido de Pu Pan, demonstra ser o

mais dotado da família.Fica noivo de uma menina da família Liu, que tem na altura sete anos.

1657Casamento com a menina Liu.

1658Pu Songling classifica-se em primeiro lugar em todas as provas que lhe conferem o grau de bacharel.

1659Forma com alguns amigos um clube de poetas, o Yingzhongshe “Associação de Yingzhong” (antiga capital do reino de Chu, no Hubei, conhecido pelo florescimento de elevadas qualidades literárias).

1662Primeiro ano do reinado de Kangxi. Nascimento do primeiro filho de Pu Songling. Viria a ter mais três, dois dos quais fizeram carreira no manda-rinato.

1663Morte de seu pai Pu Pan. Pouco antes da morte decidira dividir os seus bens pelos quatro filhos, o que resultou em graves dificuldades financeiras para Pu Songling.

1666Nascimento do segundo filho de Pu Songling.

1670Reprovado nos exames provinciais e impedido de entrar na carreira de mandarim, Pu torna-se secretário de Sun Hui, também nativo de Zichuan, tendo de se deslocar para Baoying, na província

de Jiangsu, a cerca de 700 quilómetros da sua cidade natal.A sua actividade literária já devia existir pelo menos há dez anos, mas são deste ano os primeiros textos em verso e em prosa futuramente incluídos nas suas compilações.

1671Segue Sun Hui até ao seu novo posto em Gaoyoum as dois meses mais tarde abandona o emprego e volta a Zichuan.

1679Pu Songling redige o prefácio intitulado Liaozhai zizhi, do primeiro volume das suas Crónicas do Estranho. Segundo o costume da época, solicita aos notáveis letrados locais Gao Heng (1612-1697) e Tang Menglai (1627-1698) prefácios para a sua obra.Entra como preceptor ao serviço da rica família dos Bi, o que lhe permite um retiro de sonho no magnífico parque dos seus mecenas.Ocupará este lugar durante trinta anos, como secretário do seu amigo Bi Jiyou, cujo sobrinho Bi Yian se tornará um dos seus amigos mais próximos.

1680Morte da senhora Dong, mãe de Pu Songling.

1682Pu Songling obtém uma bolsa de bacharel, uma espécie de recompensa por antiguidade, atribuída devido à sua reputação local.

1687Reprovado no exame em Jinan, capital da província, por um erro venial. O mais

insignificante erro podia lecar à exclusão do candidato. Estes deviam, por exemplo, copiar as suas provas segundo regras estabelecidas. Pu Songling ter-se-á esquecido ou omitido uma destas cópias.

1688Pu Songling elabora e publica a ge-nealogia dos Pu.

1690Pu Songling adoece quando consegue o primeiro lugar na primeira série de provas do concurso oficial, não podendo competar as duas provas restantes.

1692Morte do seu irmão mais velho Pu Zhao Zhuan.

1704Depois de mais um fracasso nos exa-mes, Pu Songling volta a Jinan. No re-gresso depara com enormes fluxos de refugiados abatidos pela doença e pela fome. Dedica-se à redacção de obras destinadas estas populações: manuais de agronomia, medicina, escrita cor-rente, etc..

1710Com setenta anos, obtém por antiguidade o grau de licenciado.

1712Morte de sua esposa. Escreve em sua me-mória uma biografia, Liushi xingshi � Feitos e gestos da dama Liu.

1715Morre, apoiado na janela, a 25 de Fevereiro, entre as 17 e as 19 horas.

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PU SONGLING E AS CRÓNICAS DO ESTRANHO

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Pu Songling

ZHU ERTAN, de Lingyang(1), tinha tomado por nome pessoal Xiao Ming, “Pequena Claridade”. Tratava-se de um rapaz franco e corajoso por natureza mas simples e obtuso; o seu zelo nos estudo jamais tinha sido coroado do mínimo su-cesso.Um dia, quando os condiscípulos da mes-ma associação literária (2) estavam reuni-dos num banquete, um deles desafiou-o na brincadeira: “Tu tens a reputação de seres corajoso, não é? Se fores capaz de ir, em plena noite, à sala dos Dez Reis dos Infernos (3) e nos trouxeres o juiz que se encontra na galeria da esquerda nós quotizamo-nos para te oferecer uma fes-ta.”Na verdade, havia em Lingyang um pa-lácio, chamado dos Dez Reis, onde as esculturas em madeira de deuses e demó-nios pareciam cheias de vida sob as suas ricas vestes. Na zona leste, estava um juiz de face particularmente hedionda, verde e emoldurada por uma barba hirsuta. Em certas noites, pareciam ouvir-se os uivos dos supliciados interrogados nas galerias. Ao entrar no local, ficava-se de imediato com os cabelos em pé. E essa era a razão pela qual os camaradas de Zhu estavam certos de o humilhar. No entanto, este partiu a rir e sem demora. Pouco depois, estava de regresso e de voz segura dizia à porta: “Eis aqui o Senhor Inspector bar-budo (4), nosso convidado!”Todos se levantaram. No instante seguinte, Zhu entrou, com o juiz às costas, colocando-o mesmo no centro da mesa, oferecendo-lhe uma taça e espalhando três libações em sua honra. Os convivas miravam-no, tensos e mal sentados. Imploram-lhe que o levasse de volta o mais rápido possível. Zhu de novo aspergiu o solo: — Mestre eminente, este teu humilde discípulo é extravagante e inculto. Perdoa-lhe e não o queiras mal! A minha modesta habitação não fica longe e, se vosso coração o desejar, vinde desalterar-vos lá. Dai-me o privilégio de me não tratares como estranho ao vosso mundo!Pronunciada a invocação, tornou a pôr a estátua às costas e partiu.No dia seguinte, os seus condiscípulos convidaram-no para o banquete prometido. Zhu voltou para casa ao cair da noite, razoavelmente toldado. Como se a sua excitação ainda persistisse, ateou a mecha e serviu-se um cálice que se preparava para vazar a sós quando, subitamente, alguém afastou o estore e entrou. Voltou-se: era o juiz Lu!— Suponho que chegou a minha últi-ma hora(5) —, disse Zhu levantando-se, — ofendi-vos na noite passada: vindes decapitar-me.— Nem pensar, respondeu o juiz com o sorriso aflorando a sua espessa barba, uma vez que me convidas-te ontem e eu estou livre hoje, venho desfrutar da tua hospitalidade.Encantado com a visita, Zhu apressou-se a acolher o seu hóspede conduzindo-o pela veste e instando-o a sentar-se,

O JUIZ LU enquanto ia lavar os copos e reacender o fogo.— Está uma temperatura amena hoje, tomemos algo frio, sugeriu o juiz.Zhu colocou um jarro sobre a mesa e correu a preparar uns petiscos. Posta ao corrente, a sua mulher, aterrorizada, suplicou-lhe que não tornasse a sair. Zhu não ligou, esperando que os pratos estivessem prontos para os levar. Nada perguntou ao seu convidado senão após alguns momentos.— Chamo-me Lu e não tenho qualquer apelido.Puseram-se a discutir modelos literários clássicos. As respostas do juiz caíam com a rapidez estonteante do eco.— Sois versado na arte das composições regulamentadas (5)? —, perguntou Zhu.— Sei distinguir mais ou menos bem as boas das más. O sistema de estudos do mundo das trevas não difere muito do que é usado entre os vivos.O juiz Lu era grande bebedor, capaz de vazar dez taças de seguida. Zhu, que tinha folgado todo o dia, desmoronou-se como um monte de pedras de jade e começou a roncar estendido sobre a mesa. Quando acabou por acordar, o que restava da candeia espalhava apenas uma luz amarelada; o fantasmático convidado desaparecera.Mas, a cada dois ou três dias, o juiz regressava. A intimidade entre os dois cresceu ao ponto de dormirem de pés contra pés. Zhu mostrava-lhe incipientes composições feitas sob a janela e o juiz corrigia-as a tinta vermelha, repetindo invariavelmente que a cópia era má.Uma noite, quando o jovem, já embriagado, se tinha ido deitar, o juiz continuou a beber a sós. No meio-sono em que o havia mergulhado a embriaguez, Zhu sentiu de repente uma ligeira dor no ventre. Acordando, abriu os olhos e viu o seu companheiro sentado em frente ao leito, de busto erecto, ocupado a organizar as tripas que tinha retirado do interior do adormecido.— Porquê matar-me sem razão? —, gritava Zhu, apavorado.— Não temas —, replicou o juiz sorrin-do, — tudo o que faço é substituir o ór-gão para te tornar mais inteligente. (6)

Continuou tranquilamente a enfiar os intestinos e, concluído o trabalho, devolveu-os ao seu lugar; manteve a incisão fechada, envolvendo a cintura do jovem numa faixa de enrolar os pés. Terminada a operação, não ficou qualquer vestígio de sangue nas cobertas. Zhu apenas sentia um ligeiro formigueiro na região do ventre. Viu o juiz depositar um pedaço de carne sobre a mesa. Interrogado, este respondeu: — É o teu coração. A tua lentidão na escrita tem origem, numa obstrução das válvulas. Para ti descobri um esplêndido coração, o melhor dos milhares e dezenas de milhares disponível nos infernos. Substituí-o mas conservei o antigo para manter as contas.E levantou-se e partiu fechando a portada.Ao nascer do dia, Zhu removeu a ligadura e constatou que a ferida cicatrizara

No meio-sono em que o havia mergulhado a embriaguez, Zhu sentiu de repente uma ligeira dor no ventre. Acordando, abriu os olhos e viu o seu companheiro sentado em frente ao leito, de busto erecto, ocupado a organizar as tripas que tinha retirado do interior do adormecido.

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em redor, deixando apenas uma linha arroxeada. A partir de então fez espectaculares progressos no domínio das ideias literárias e na memorização de textos sobre os quais pousava os olhos apenas uma vez. Alguns dias mais tarde, mostrou os seus novos trabalhos ao juiz.— Está melhor. Mas a sorte não está do teu lado: não conseguirás as maiores honras, apenas a autorização ou habilitação para te submeteres a exame.— Quando?— Este ano. Tu deverás ser recebido em primeiro lugar.”Na verdade, pouco depois, Zhu encabe-çava os candidatos ao exame classificati-vo e era recebido nas provas de Outono (7). Os seus condiscípulos, que tinham o hábito de fazer pouco dele, entreolha-vam-se incrédulos quando viram a sua cópia entre o conjunto impresso a expen-sas da administração. Depois de o terem assolado com perguntas, acabaram por escutar a revelação dos estranhos acon-tecimentos. Todos solicitaram a Zhu o privilégio de serem apresentados ao juiz Lu. Este aquiesceu de bom grado. Foi--lhe oferecido um grande banquete. O juiz dos infernos apareceu no início da noite, de barba revolta, os olhos chispan-do. Os condiscípulos apenas gemeram e bateram os dentes de terror. Quiseram retirar-se: o que acabaram por fazer uns atrás dos outros. Zhu ficou reduzido a ter de levar o juiz a beber em sua casa; pôs-se a falar até os dois estarem razoavelmente animados: — Estou-vos já enormemente grato por me teres lavado os intestinos e limpado o estômago. Mas há mais uma coisa com que gostaria de vos importu-nar. Posso permitir-me?Como o juiz declarasse estar ao seu serviço, Zhu continuou: — Uma vez que o coração e as entranhas podem ser substituídas, presumo que também a face o pode ser. Trata-se da minha humilde esposa. Não é que seja mal feita, no que se refere à parte de baixo, mas não tem uma cabeça lá muito bela. Gostaria que a operasses, se não for pedir muito. Será possível?— Entendido — respondeu o juiz a rir — na condição de me dares tempo de encontrar uma peça de substituição.Alguns dias mais tarde, bateu à porta a meio da noite. Zhu levantou-se num ápice para o receber. Depois de ter acendido a candeia, reparou que o seu convidado trazia um embrulho junto ao peito. Questionado, o juiz explicou: — É a peça que me pediste. Não foi fácil de encontrar. Acabo de a obter, esta cabeça de jovem beldade, em respeitosa execução das tuas ordens.Zhu abriu o tecido que envolvia a cabeça e reparou que o pescoço estava húmido de sangue ainda fresco. O juiz apressou-o a entrarem nos aposentos interiores sem fazer barulho. Zhu preocupava-se com a tranca da porta mas o juiz removeu-a com uma só mão. Entrando no quarto de dormir, apercebeu a mulher deitada de lado, confiou a cabeça a Zhu, tirou da bota uma lâmina do tamanho de um punhal, aplicou-a ao pescoço da dama e,

exercendo uma pressão tão suave como para cortar coalho de soja, cortou a cabeça que caiu ao lado do leito. Recebeu de Zhu a cabeça da beldade ajustando-a cuidadosamente e massajando a junção. Feito isto desapareceu, não sem antes recomendar ao jovem que enterrasse a velha cabeça num lugar discreto.Ao acordar, a esposa de Zhu sentiu uma ligeira impressão no pescoço e crostas no rosto; ao coçá-las, deu-se conta que eram placas de sangue coagulado. Assustada, chamou a criada para lhe pedir que trou-xe-se água. Ao ver o rosto desalinhado da patroa o seu espanto foi enorme. A água da bacia ficou completamente verme-lha quando a mulher acabou de se lavar. Quando ergueu a cabeça, mostrando um rosto inteiramente diferente daquele que tinha tido até ali, o choque da criada já as-sustada foi ainda maior. A mulher pegou num espelho e ficou de boca aberta, in-capaz de explicar o que sucedera. O ma-rido entrou e contou-lhe, examinando-a de todos os lados: longas sobrancelhas arqueadas e umas sorridentes covinhas punham em evidência as maçãs do rosto, em fim, uma beleza só vista em pintura. Tocou-lhe o pescoço para verificar a jun-ção: uma linha vermelha o rodeava e a pele tinha uma tez bastante diferente em baixo e em cima. (8)

Voltemos atrás no tempo e no espaço; o censor Wu tinha uma filha belíssima que ainda não tinha casado, apesar de já ter atingido a idade de dezanove anos, pois perdera sucessivamente dois noivos. A donzela fora passear para os lados do palácio dos Dez Reis durante a última

festa da primeira lua cheia do ano Era a época em que a turba se encontra mais excitada. Na multidão, encontrava-se um meliante que a topou e, seduzido pelo seu encanto, a seguiu até casa discretamente, decidido a arrancar os seus favores à força. Aproveitando a noite, entrou com a ajuda de um escadote e, após ter forçado a porta e morto a criada que dormia aos pés da cama, atacou-a violentamente. A rapariga resistiu ferozmente gritando a plenos pulmões. Na fúria do momento, o bandido matou-a antes de fugir. Com o alarido, a senhora da casa chamou uma criada para ver o que se passava. À vista dos cadáveres a rapariga ficou paralisada. Em breve, toda a casa estava a pé. Depuseram o corpo da donzela na sala grande, com a cabeça decepada ao lado. Houve choros e lamentos toda a noite. Ao alvorecer, ao levantarem o lençol, repararam que a cabeça desaparecera. O chicote foi aplicado com generosidade aos servos acusados de falharem a vigilância do corpo e terem deixado desaparecer a cabeça, com toda a certeza, no ventre de um qualquer cão. O censor apresentou queixa na prefeitura, que instaurou as mais estritas diligências para a prisão do assassino. Três meses mais tarde, as investigações ainda prosseguiam.O rumor de uma estranha troca de cabe-ças entre os Zhu acabou por chegar aos ouvidos do censor Wu. Intrigado, este destacou uma velha mulher a averiguar. Recebida pela dona da casa, a velha fugiu aterrorizada, correndo a prevenir o seu mestre. Ora, como o corpo da sua filha não se mexera, o censor, estupefacto,

interrogava-se sobre que decisão tomar. Suspeitava que Zhu tivesse recorrido à magia negra para matar a sua filha e re-solveu partir para o questionar. Aquele simplesmente respondeu: — A minha esposa sonhou que lhe tinham mudado a cabeça. Porquê, como? Não faço ideia. Acusar-me de assassinato seria uma re-voltante falta de justiça.O censor não acreditou numa só palavra e denunciou-o. O prefeito começou por convocar as gentes de Zhu. Como todos os testemunhos concordavam com a deposição de Zhu, o magistrado encontrava-se na impossibilidade de tomar uma decisão. Descansado e de regresso a casa, Zhu solicitou a ajuda do juiz Lu, que lhe disse: — Nada de mais fácil. Bastará fazer falar a própria morta.O censor Wu sonhou com a filha nessa noite: — A tua criança foi agredida por Yang Danian de Suqi —, disse-lhe ela, — o licenciado Zhu nada tem a ver com o caso. Como a sua esposa não era suficientemente bela para o seu gosto, o juiz Lu serviu-se da minha cabeça para substituir a dela. Ainda que o corpo da tua filha tenha sido morto, a sua cabeça vive: peço-vos que não o persigas.Ao acordar contou o estranho sonho à sua esposa, que tinha tido um exactamente idêntico! Informou então as autoridades, que iniciaram um inquérito. De facto, existia um Yang Danian em Suqi. O homem foi preso e confessou o crime depois de interrogado.O censor dirigiu-se então a casa do li-cenciado e implorou-lhe que o deixasse ver a sua esposa. Passaram a considerar-

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-se sogro e genro. O corpo de uma foi a enterrar com a antiga cabeça da outra.Zhu apresentou-se por três vezes ao concurso do grau superior, mas, de cada vez, foi excluído por infracção aos regulamentos. Estes repetidos falhanços levaram-no a desistir. Acabara de completar trinta anos quando o juiz Lu lhe anunciou certa noite: — A tua vida não é eterna.Como se Zhu lhe perguntasse qual a duração, o juiz explicou que lhe restavam apenas cinco dias.— Não me poderás salvar?— O Céu é o único mestre dos nossos destinos. O homem não pode pôr e dispor a seu bel-prazer. Para o sábio, a vida e a morte equivalem-se. Para quê alegrar-se com a vida e temer a morte?Zhu concordou inteiramente. De imediato se dedicou à preparação do vinho, da mortalha e das vestes fúnebres. No fim do prazo, decidiu exalar o seu último suspiro no mais belo fato que possuía. No dia seguinte, enquanto a sua esposa carpia, apoiada no caixão, entrou lentamente na sala, causando-lhe um terrível susto; Zhu esforçou-se por sossegá-la: — Na verdade, sou um espectro, mas qual a diferença de quando me encontrava neste mundo? De qualquer modo, inquieto-me com a viúva e o orfão; ainda estou muito ligado a vocês.A senhora, muito emocionada, chorou espessas lágrimas que lhe rolaram pelo peito. Zhu fez o seu melhor para a consolar.— Desde tempos recuados que se põe a

questão da memória da alma. Uma vez que, mantiveste consciência e eficácia, porque não regressas à vida?— A cifra dos meus anos, tal como foi estabelecida pelo Céu, não pode ser alterada.— Quais são as tuas funções entre os mortos?— O juiz Lu recomendou-me para superintendente dos processos, um cargo que incluí honras de mandarim mas que nada tem de penoso.A senhora gostaria de ter feito outras perguntas, mas o seu marido interrompeu-a: — O juiz Lu veio comigo: poderias servir-nos uns petiscos e algo de beber?Dito isto, saiu bruscamente.Ela preparou o que lhe tinha sido pedido. Na sala contígua ouvia-se o barulho de copos entrechocando-se e de risos – a mesma atmosfera alegre de quanto Zhu era vivo. A meio da noite, a mulher foi espiá-los, mas reinavam as mais profundas trevas: tinham partido.Zhu regressava regularmente a cada três dias. Chegou mesmo a passar a noite com ela na mais perfeita intimidade. Continuou, assim, a gerir os assuntos de família. A cada uma das suas passagens, nunca se esquecia de abraçar o seu filho, que acabava de fazer cinco anos. Assim que o rapaz atingiu os sete ou oito anos, ensinou-lhe a ler à luz da candeia. O miúdo era inteligente: aos nove anos, sabia fazer composições. Aos quinze era bacharel e entrava para a escola da sub-prefeitura. Nem sequer se dava conta de que era órfão de pai, o qual, porém,

aparecia mais raramente: cerca de uma vez por mês.Uma noite veio anunciar à esposa: — Vamo-nos deixar para sempre, tu e eu.— Onde vais ?— Recebi ordem do imperador para exercer funções de ministro na montanha do Oeste (9), um posto que acarreta uma longa viagem. A distância e o número de afazeres não me permitem voltar.Mãe e filho agarraram-se a ele chorando.— Acalmem-se, peço-vos! O rapaz é crescido, tu tens de que viver. Nenhum casal pode ficar junto sem que soe a hora da separação algum dia.E, voltando-se para o filho: — Porta-te como homem de bem, não delapides o património que o teu pai deixou. Dentro de dez anos virei ver-te, mas não antes!Abriu a porta e foi-se. Nunca mais o viram.Wei, o seu filho, obteve de seguida o grau de “doutor”, ainda antes dos vinte e cinco anos, e foi nomeado delegado imperial. Foi assim que ficou encarregue de oferecer sacrifícios, em nome de Sua Majestade, na montanha do Oeste.Como o seu caminho passava por Huayin (10), viu de súbito galopar em sua direcção a escolta de um carro precedido de bal-daquinos emplumados. Surpreso, distin-guiu o homem que seguia no veículo. Era o seu próprio pai! Saltou do seu cavalo para se prosternar, em lágrimas, do lado esquerdo da estrada. O pai fez deter o carro.— A tua boa reputação na carreira permite-me fechar os olhos de alma em sossego —, disse-lhe.

Enquanto Wei permanecia prosternado, o pai partiu tão depressa que nem pode lançar um último olhar sobre o filho. No entanto, um pouco mais à frente deteve-se e tirou o sabre que fez chegar ao rapaz gritando-lhe de longe: — Usá-lo te conferirá grandes honras! Wei quis segui-lo mas os homens e cavalos da escolta tinham partido, velozes como o vento. Amargurado com tão rápida desaparição, Wei ficou imóvel muito tempo. Por fim, desembainhou o sabre e examinou-o: a lâmina era soberba; tinha uma inscrição de caracteres:Audácia e prudência são mães do saber e da acção.Wei chegou, algum tempo depois, às funções de condestável e teve cinco filhos: Chen, Qian, Wu, Hun e Shen. Uma noite, sonhou com o seu pai, que lhe recomendou que entregasse o sabre a Hun. Wei assim fez.Hun exerceu as funções de censor geral e adquiriu uma excelente reputação de administrador.

O cronista do estranho acrescenta:Cortar as patas da garça para alongar as do canário é uma ideia de louco que acredita poder corrigir a natureza. Enxertar flores na copa de uma árvore é ideia maravilhosa de criador. Tanto mais se se cortar e retalhar entranhas e manejar a lâmina em torno de um pescoço!Não será legítimo dizer do juiz Lu que a sua fealdade envolvia uma ossatura interna de enorme beleza? Desde o fim da dinastia Ming até hoje, o afastamento só se conta em anos: será que o juiz Lu ainda está entre nós? Será que ainda se manifesta através de acções tão eficazes? De bom grado me colocaria ao seu serviço, pondo nas suas mãos o chicote de cocheiro, tal é a minha admiração.

NOTAS1. Sub-prefeitura da província de Anhiu, no actual distrito de Taiping.2. O papel das escolas superiores públicas era o de controlar os conhecimentos. A preparação dos concursos mandarínicos fazia-se, em larga medida, nas associações de jovens letrados.3. Os infernos budistas, reconstruídos à chinesa por volta do século X, dispunham de dez tribunais de justiça especializados e presididos por um “rei” , de origem chinesa, à excepção de Yama, encarregado do quinto e importado da India.4. O juiz é aqui chamado zhongshi, o título honorífico de examinador geral de província.5. A prova principal dos concursos mandarínicos era uma dissertação estritamente regulada em termos de extensão e estrutura e dividida em oito partes, baguwen.6. Para os chineses, o saber reside no ventre.7. O concurso de “licença” realizava-se na oitava lua, Setembro-Outubro, o que permitia aos laureados apresentarem-se no concurso de “doutoramento” da primavera seguinte. Os dois concursos sucessivos tinham lugar, normalmente, a cada três anos e na época do ano em que a temperatura era mais amena.8. Que a cabeça seja considerada, na mulher, como um elemento puramente decorativo não deixa de ser surpreendente. O ventre era a sede do saber e o coração a residência do aspecto “mental”, sendo a cabeça despojada do papel capital que lhe dá a nossa tradição. Pu Songling evita assim ter de resolver o insolúvel enigma indiano das cabeças trocadas que Thomas Mann tratou no célebre livro Die vertauschen Kopfe.9. O Taihua, que se ergue a 2437 metros na província do Shanxi.10. No sopé da vertente norte da montanha.

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António GrAçA de Abreu

Não estava no programa, tão pouco sabia que em Nanquim existia um museu dedicado a recordar, com raiva, estupor e algum rigor histórico o massacre perpetrado pelas tropas japonesas na grande cidade do rio Yangtsé nos finais de 1937, início de 1938 que, segundo números oficiais chineses, aponta para trezentos mil mortos1. Mas calhou a visita ao museu na grande ronda pela cidade e a estada em tão doloroso lugar foi interessantíssima e inesperada. O vasto espaço é uma obra de arquitectura com rasgos de inquestionável qualidade inaugurada em 2007, em granito cinzento, mármore branco e estruturas negras em aço, tudo cores do luto. Antes de iniciar a viagem pelo museu, vamos tentar entender a História.O Japão iniciou a sua modernização galopante ainda no século XIX quando o clarividente imperador Meiji (1852-1912) abriu o país nipónico ao mundo e deu origem à construção do mais poderoso império da Ásia. Meiji enviou milhares de jovens para Inglaterra a fim de estudarem a Revolução Industrial e depois, regressados ao país, contribuírem para a industrialização e modernização das terras do Sol Nascente que contava com uma população quinze vezes inferior à chinesa.Mas ao Japão faltava, e continuam a faltar, matérias-primas como o carvão, o ferro, o petróleo, o algodão. A China, sobretudo as regiões da Manchúria no nordeste chinês geograficamente em frente do Japão, possuía quase tudo quanto os nipónicos precisavam para acelerar a sua industrialização e consequente domínio da Ásia que permanecia subdesenvolvida e atrasada.A partir de 1931, o Japão iniciou a sua gradual invasão do território chinês. Em 1937 bombardearam e instalaram-se em Xangai (veja-se o filme O Império do Sol de Steven Spielberg), e logo depois avançaram sobre Nanquim, então a capital da China, de onde Chiang Kai-shek já havia fugido com o seu governo a caminho do exílio no interior da província de Sichuan, na cidade de Chongqing. Encontraram alguma resistência e resolveram eliminar, massacrar dezenas e dezenas de milhares de pessoas inocentes. Um terço dos edifícios da cidade, então com 1,1 milhões de habitantes, foi arrasado e os massacres da população indefesa estenderam-se por seis semanas.O museu do Massacre de Nanquim é um grito angustiado a um holocausto esquecido, a mostra implacável de até onde pode chegar a crueldade humana, o retrato de uma tenebrosa câmara de horrores. Há esculturas, baixos relevos, cruzes, fotografias, filmes da época, diaporamas, testemunhos de sobreviventes dos massacres. Vêm-se os habitantes de Nanquim a ser mortos a tiro, decapitados com sabres, perfurados com baionetas, enterrados vivos. Há fotos de uma mulher chinesa grávida a ser violada por soldados japoneses que depois lhe abrem a barriga com a ponta dos sabres, a deixam em lenta agonia e regressam para lhe retalharem o ventre.Milhares e milhares de seixos castanhos espalhados pelos jardins recordam os ossos das pessoas vítimas dos massacres e há árvores secas que foram plantadas, no dizer dos chineses, num solo adubado com o sangue dos mártires. O museu é também um hino à paz e ao entendimento entre todos os seres humanos. Na própria arquitectura do edifício existem telhados com forma de espadas que em seguida se transformam em arados, para se lavrar a terra e produzir o pão, o arroz de cada

NO MUSEU DO MASSACRE DE NANQUIM, 1937

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dia. À saída encontramos a enorme estátua de uma mulher que segura uma criança no braço esquerdo e na mão direita tem pousada a pomba da paz. Todos os anos, umas tantas agremiações japonesas enviam delegações à China que neste museu prestam homenagem aos milhões de nipónicos e chineses mortos numa guerra injusta e cruel, como todas, que se prolongou até 1945.John Rabe, um alemão de Hamburgo que dirigia a fábrica da Siemens em Nanquim e escreveu um diário factual sobre os trágicos acontecimentos, salvou da morte certa milhares e milhares de chineses recolhendo-os, tal como fizeram outros estrangeiros, na chamada Zona de Segurança da cidade, guardada por uns poucos militares, sobretudo ingleses, e onde os japoneses preferiram não entrar. Calcula-se que 300.000 chineses tenham conseguido abrigo nesta Zona de Segurança e assim salvo as suas vidas.Existe um livro emblemático da autoria da escritora sino-norte-americana Íris Chang (1968-2004) intitulado The Rape of Nanking, um best seller nos Estados Unidos da América quando foi publicado em 1998. Íris Chang tinha avós em Nanquim que presenciaram o massacre de 1937 e, para a elaboração do livro, permaneceu durante meses na cidade, e fez exaustiva investigação. Ficou de tal modo marcada pelo que viu, ouviu contar e depois escreveu que acabou por se suicidar, em 2004, na Califórnia. Tinha apenas 36 anos. Os chineses homenagearam-na fazendo-lhe uma estátua em bronze que se encontra numa ala deste museu do Massacre de Nanquim.Em 2011, Zhang Yimou, o mais famoso realizador do cinema chinês, dirigiu o filme “As Flores da Guerra” ainda não estreado em Portugal e creio que também não em Macau, exactamente sobre o tema do massacre de Nanquim, em 1937. É uma superprodução, o filme mais caro da história do cinema chinês orçamentado em 70 milhões de euros e já foi acusado no Ocidente de ser uma película demasiado anti-japonesa. Foi a obra apresentada por parte da China como candidata aos óscares de 2012, mas não foi contemplada com a escolha final para melhor filme estrangeiro. O papel principal é desempenhado por Christian Bale, que já tivera a sua experência sínica ao dar corpo ao rapazinho inglês de O Império do Sol, de Spielberg, há 24 anos atrás. Bale é agora um aventureiro à solta por Nanquim, um cangalheiro de ocasião que, no início dos massacres japoneses, se disfarça de padre para poder salvar uns milhares de raparigas, estudantes e prostitutas que estavam na mira dos soldados japoneses.Concluindo. Com algumas excepções, é antigo o ódio entre chineses e japoneses. O massacre de Nanquim agudizou essa inimizade que continua a prevalecer entre vastos sectores da sociedade chinesa. São “povos irmãos” eternamente desavindos.

ANTÓNIO GRAÇA DE ABREU

1 - Estes números serão exagerados. Johnathan Spence, na sua clássica obra In Search of Modern China, Nova Iorque, W.W.Norton ed., 1990, pag. 445, apresenta os números indicados pelos observadores internacionais, na época. 20.000 mulheres violadas e mortas, 30.000 soldados chineses e 12.000 civis assassinados. Mas poderão ter sido muitos mais.

O museu do Massacre de Nanquim é um grito angustiado a um holocausto esquecido, a mostra implacável de até onde pode chegar a crueldade humana, o retrato de uma tenebrosa câmara de horrores.

NO MUSEU DO MASSACRE DE NANQUIM, 1937

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BAR AZUL

Pedro Lystmanna revolta do emir

O que é o Bar Azul ? É um bar num lugar lon-gínquo e frio, gloriosamente desconhecido, per-dido nas profundezas de um hotel cujo serviço, restaurantes, nome, prestígio e comportamento mereciam uma arquitectura melhor e um distan-ciamento mais eficaz dos horrores venezianos com que se vê obrigado a vizinhar.

Este é um lugar por onde não se passa mas que é necessário procurar, perdido na lonjura, que é azul como a dos mares, dos corredores do Hotel Four Seasons. A procura é razão bastante para que se estenda ao Bar Azul a consideração de uma vi-sita.

É quase bom este sítio, suficiente à promoção do esquecimento do tempo e das obrigações e ga-rantia quase total do anonimato. Sinto-me obri-gado a dispensar-lhe o meu patrocínio ocasional. Suficiente ao bebente solitário ou acompanhado, suficiente à partilha do segredo, ao começo do amor ou até à conclusão de essa outra forma de amor, ou de contrato (o que é o amor senão um contrato?) que pode ser o negócio.

Tomemos como um privilégio a obrigação do percórrio solitário destes corredores (será possível pensar em corredores sem pensar em Marienbad, mesmo que nem uma cena do filme tenha sido aí filmada?) ao fundo dos quais se desvenda este bar, azul, quase marítimo e cavernal, solitário e convi-dativo à contemplação.

Aparentemente não há aqui nada de novo. And yet. Este é um dos poucos bares de hotel, em Macau, que tem uma ideia de raiz e não se reduz apenas a um amontado de cadeiras e mesas. A esta

intenção vem juntar-se uma lista bem pensada, sem grandes quantidades mas com uma gradação inteligente que, por exemplo, nos gins, nos per-mite ir das figuras mais banais ao Hendrick’s ou ao London Blue (apropriadíssimo ao sítio e desde já obrigatório) ou nos vodkas dos irritantes Absoluts ao U’Luvka (só à garrafa). O argumento adensa--se. Encontram-se aqui 4 Patrón, incluindo a Pla-tinum. O mesmo cuidado foi posto na escolha do rum. Sirvam estes luminosos cuidados para fazer esquecer a pobreza da lista de vinhos e champag-nes. Uma garrafa de Krug Grand Cuvée seria, no entanto, bastante para esquecer estas insuficiên-cias.

O que aqui permanece, como sucede em mui-tos outros bares da cidade, é a impressão de que nada poderá acontecer. A hipótese de alguém ser alvejado a tiro neste sítio é tão baixa como a hi-pótese de alguém subir para cima de uma mesa e mostrar o rabo. Tudo permanece tão azul e si-lencioso como um cavalo de Franz Marc a pastar e, ao terceiro copo, este azul começa a tornar-se ameaçador e a insinuar a sua agressão de uma ma-neira cada vez mais desconfortável.

Esta cor pode ser a cor do fim como veremos no próximo texto - que não resistirá a alguns lugares comuns do cinema - mas também pode ser, como diz Gilbert Durand em As Estruturas Antropoló-gicas do Imaginário a propósito de K.Goldstein e O.Rosenthal (num livro tão irritante e perigoso como útil), uma cor que, como outras cores frias, promove o “afastamento da excitação” e propicia a tranquilidade e o recolhimento. Pouco estóico,

prefiro que me faça lembrar, principalmente de-pois da intromissão de uma outra Patrón, a morte e os cavalos de Franz Marc porque é mesmo dos cavalos dele e da florescência tão inocente e fu-gaz do Blaue Reiter (blue rider) que eu me lembro sempre que aqui consigo chegar. Também um dos seus “teóricos”, Kandinsky, via no azul uma dinâ-mica do afastamento – por oposição ao amarelo, que é uma cor que parece aproximar-se de nós – um afastamento que evoca uma imagem celes-tial e, como no sentir de Franz Marc, espiritual e masculina. A combinação destas duas cores, o azul e o amarelo (as duas únicas cores puras, segundo Goethe, que escreveu uma Teoria das Cores), de que resulta o verde, leva a um tipo de imobilida-de, algo que não me custa nada a acreditar. No seu livro Concerning the Spiritual in Art, Kandinsky exporá uma teoria elaborada sobre a percepção da cor. Fechar-mo-nos no bar do Four Seasons com o livro de Kandinsky ou o livro de Goethe é uma proposta só improvável devido à dificuldade em os encontrar. Não será esta a última vez em que esta obsessão pessoal encontrará forma de se insinuar nestas linhas.

Sempre que vou ao Bar Azul não sei bem o que é que lá vou fazer mas, por vezes, suspeito que seja para testemunhar uma grande impro-babilidade, a de que alguma vez aí aconteça alguma coisa. Se tal não acontecer posso sem-pre abandonar-me à contemplação desta cor misteriosa que me leva a pensar que talvez só enganosamente seja distante. Da próxima vez levo uma pistola.

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T E R C E I R O O U V I D O

UMA NOITE A 125 BATIDAS POR MINUTO

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São onze e meia da noite. Estamos na rua. Um homem diz algo vagamente perceptível, em inglês. Ouve-se a porta de um carro a fechar. Passos. Há mais pessoas a falar, em inglês e em mandarim, ho-mens e mulheres. “11:30 PM”. A festa está prestes a começar. Estamos em Xangai. Alguém pergunta: “Hello, B6, mate, how are you?” A resposta, como se fosse evidente e desnecessária, não chega e, em vez dela, há outra pergunta pronta a sair: “What’s up?”, que se ouve em eco até ser engolida pelo ritmo de “Days of the Weird Beginning”, a segunda faixa de “Post Haze”, o primeiro e, até à data, único longa--duração de B6, o mais interessante dos produtores da música electrónica “made in China”.

Lou Nanli (樓南立), nativo de Xangai, é hipe-ractivo à moda do século XXI, ou seja, está sempre a mexer-se, metido em alguma coisa.

Ainda adolescente, estabeleceu a sua própria edi-tora, Isolation Music. A partir daí dedicou-se a criar música electrónica experimental, instalações sono-ras, techno, downtempo, synth-pop e quejandos. Ao mesmo tempo, desenvolveu a actividade de de-signer gráfico, profissão que aliou à música sendo o autor de inúmeras capas de discos de outros artistas da imensa China alternativa.

Mas foi sempre a música que fluiu, de tal modo que, em 2006, B6 viu-se compelido a coligir o mate-rial que havia disperso em vários EP numa só edição – “B6 Box”.

No ano seguinte, juntamente com Wu Jianjing (吴建京), também conhecido por JJay Wu, B6 for-mou o projecto I-GO. Não foi a primeira colabora-ção de B6, mas foi, sem dúvida, a mais bem conse-guida.

Com apenas um disco, “Synth Love” (Modern Sky, 2007), os I-GO mostraram o que aprenderam (e bem) com mestres como Kraftwerk, Gary Nu-man, Depeche Mode ou, mais recentemente, Junior Boys, e como se fazem canções de forte apelo pop e de travo sintético e electrónico.

Em 2008, B6 publicou o seu primeiro LP a solo, “Post Haze”, uma vez mais através da editora de Pe-quim Modern Sky.

O disco está construído como os bons “DJ sets”, isto é, segue uma cronologia, uma sequência marca-da pelo compasso dos ritmos, mas também pela ca-dência dos rituais. Assim, é apenas natural que tudo comece ainda no exterior da festa, na tal rua onde estivemos no início deste texto, mesmo à porta do clube onde tudo se irá passar.

Depois de alguma contemporização inicial, ape-nas agitada pelo “acid” que se ouve em “Philo”, à quarta música o disco começa a levantar voo.

“Take You With a Sigh” é o primeiro tema apon-tado sem hesitações às pistas de dança. Techno do minimal encorpado por um “groove” tentador e hip-nótico. A seguir, “Night On Earth” é a deixa ide-al para os momentos de transição que os bons DJ sabem introduzir nas noites, espécies de interlúdios

que, normalmente, trazem a antecipação de mudan-ças profundas. Dito e feito.

“Blind Leading the Blissed” marca a entrada num período mais tardio da noite, alterado, inquieto, car-regado de linhas sintéticas que soam como alarmes desesperados por atenção. Mas a noite já vai longa.

Chegamos a “Red Sky”, o ponto alto do disco e da noite, um portentoso monumento “techno”, “deep” e progressivo, um crescendo irresistível até ao desejado clímax. “Everytime I close my eyes, I can see you, red sky”, ouve-se dizer uma voz que nos chega das alturas, de longe.

A noite vai demasiado longa. Talvez o dia já te-nha nascido e, em vez do céu escuro, haja um outro, um “red sky”. Tempo de abandonar o clube e enfren-tar a crua e cruel luz do dia. De volta à outra realida-de, perguntamo-nos: para onde vão as luzes que se apagam? Para onde vai a música quando acaba?

próximo oriente Hugo Pinto

De volta à outra realidade, perguntamo-nos: para onde vão as luzes que se apagam? Para onde vai a música quando acaba?

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gente sagrada José simões morais

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

Há seres humanos cujo es-pírito atingiu um estado de tal pureza que se encontram pron-tos para atingir a Iluminação mas, por misericórdia e com-paixão preferem prescindir da entrada no Nirvana e pela per-manência na Terra, ajudar os mortais a sair da Roda da Vida e conseguirem atingir a perfei-ção. Estas divindades virtuosas, conhecidos por Bodhisattvas, encontram-se num espaço si-deral e estão prontas a ajudar todos os que lhes pedem ajuda. Como ser de espírito é assexo.

O sobrenatural Kun Iam é conhecido em mandarim por Guan Yin, nome transcrito do sânscrito Avalokitesvara, que quer dizer olhando o grito do mundo. A lenda conta que, ao entrar no céu, parou na soleira da porta e contemplou o cla-mor do mundo.

O seu culto terá começado na Índia e era representado por um ser masculino que se encon-tra nas escrituras budistas no lado esquerdo de Amida (Ami-tabha, ou O Mi To Fu, ou Ami-tuo), o Buda da Luz Infinita.

Na China, a devoção ao deus da Misericórdia está liga-da tanto ao Budismo, como ao Tauismo e começou na dinas-tia Norte-Sul (420-589), ga-nhando força na dinastia Tang (618-907), quando o Budismo Mahayana se expandiu pelo país.

Kun Iam livra as pessoas de todo o tipo de problemas e de sofrimento. Diz-se que quem chamar pelo seu nome ou quem rezar ao Deus da Misericórdia, este atende as suas preces. Pas-sou na dinastia Tang, ou Song, a ser representado por uma imagem feminina.

A História do culto da di-vindade Kun Iam em Macau re-monta ao século XIII, no tempo da dinastia Yuan (1279-1368), mas é na dinastia Ming (1368-1644), que sai da lenda e fica registada com datas.

A imagem da deusa tem um manto de seda branco sobre um alto toucado e encontra--se sentada sobre uma flor de lótus, símbolo da pureza para os budistas, que serviu de barca quando a deusa se dirigiu à ilha

de Pou tó onde atingiu a perfei-ção. É representada em 32 for-mas diferentes, podendo ter nos braços uma criança ou, seguran-do uma pérola ou, agarrando uma jarra com água milagrosa de onde pode sair uma espiga, que permite alimentar todas as pessoas que habitam o planeta. Encontramos a deusa Kun Iam em todos os nichos e templos de Macau oferecendo compaixão ilimitada e atendendo às preces a quem chamar pelo seu nome ou a ela rezar. Para o imaginário religioso cristão será reconheci-da, ou comparada, com Nossa Senhora.

As comemorações a Kun Iam acontecem no dia 19 do segundo, sexto e nono mês lu-nar. O primeiro celebra o seu aniversário, o seguinte, o ter atingido a imortalidade e o terceiro, o chegar à Iluminação (Nirvana).

Uma história mitológica re-fere que o Imperador de Jade, para saber sobre os progressos de Iluminação em que Kun Iam se encontrava, enviou ao seu templo e ao mesmo tem-po, 500 Lohan (homens san-tos, iluminados) disfarçados de monges pedindo comida. Kun Iam abriu a sua dispensa e alimentou-os a todos e no fim ainda com a comida que restou, ofereceu aos crentes que no seu templo rezavam. Tal aconteceu no vigésimo sexto dia do ano no calendário lunar chinês e é por isso que, em Macau hoje, sexta-feira, se celebra a festivi-dade Kun Iam Hoi Fu, quando Kun Iam abre os cofres no Kun Iam tong, para que os devotos venham pedir-lhe empréstimos de fortuna.

Num mundo que apenas acredita na existência material, já que pela cisão definitiva en-tre espírito e matéria ocorrida no Ocidente há mais de 2000 anos, actos nobres de despojo como estes ficam fora do reco-nhecimento de quem pensa que tal prática altruísta é sinónimo de pessoa estúpida. Mesmo as-sim, há sempre uma tancareira a conduzir o barco que leva as almas através do mar da vida e da morte até ao descanso final na Terra Pura.

觀音KUN IAM,DEUSA DA MISERICÓRDIAE COMPAIXÃO

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L E T R A S S Í N I C A S

A COMPREENSÃO DOS MISTÉRIOSWEN ZI 文子KUN IAM,DEUSA DA MISERICÓRDIAE COMPAIXÃO E, assim, deixaram de surgir fénixes e os unicórnios deixaram de vaguear aqui e ali a bel prazer.

O texto conhecido por Wen Tzu, ou Wen Zi, tem por subtítu-lo a expressão “A Compreensão dos Mistérios”. Este subtítulo honorífico teve origem na renascença taoista da Dinastia Tang, embora o texto fosse conhecido e estudado desde pelo menos quatro a três séculos antes da era comum. O Wen Tzu terá sido compilado por um discípulo de Lao Tzu, sendo muito do seu con-teúdo atribuído ao próprio Lao Tzu. O historiador Su Ma Qian (145-90 a.C.) dá nota destes factos nos seus “Registos do Grande Historiador” compostos durante a predominantemente confucio-nista Dinastia Han.

A obra parece consistir de um destilar do corpus central da sabedoria Taoista constituído pelo Tao Te Qing, pelo Chuang Tzu e pelo Huainan-zi. Para esta versão portuguesa foi utilizada a primeira e, até à data, única tradução inglesa do texto, da autoria do Professor Thomas Cleary, publicada em Taoist Classics, Volume I, Shambala, Boston 2003. Foi ainda utilizada uma versão do texto chinês editada por Shiung Duen Sheng e publicada online.

CAPÍTULO 177

Lao Tzu disse:Os soberanos de idades degeneradas extraíram os minerais das montanhas, pilharam os metais e gemas, cortaram e poliram conchas, derreteram bronze e ferro; e, assim, nada floresceu. Abriram as barrigas de animais prenhes, queimaram os pra-dos, remexeram nos ninhos e partiram os ovos; e, assim, deixaram de surgir fénixes e os unicórnios deixaram de vaguear aqui e ali a bel prazer. Cor-taram árvores para fazer edifícios, puseram fogo a florestas para fazer campos, pescaram os lagos até à exaustão. Acumularam terra para puderem viver em cima de colinas e escavaram o solo para puderem beber de poços. Aprofundaram os rios para fazerem reservatórios, construíram muralhas de cidades que considerassem seguras, encurrala-ram animais e os domesticaram.E, assim, se confundiram yin e yang: as quatro estações perderam a sua ordem, trovões e re-lâmpagos causaram destruição, granizo e geada causaram dano. Muitos seres pereceram antes de tempo, as plantas e árvores feneceram no Verão, os rios principais pararam de correr. Montanhas, rios, vales e desfiladeiros foram divididos e for-çados a ter fronteiras; as dimensões dos grupos de pessoas foram calculadas e forçadas a ter nú-meros específicos. Maquinaria e barricadas foram construídas para defesa, as cores das roupas fo-ram objecto de regulação, de modo a diferenciar as classes sociais e económicas, recompensas e castigos foram distribuídos aos bons e aos vis. Os armamentos foram desenvolvidos e surgiram combates; a partir disto teve início o massacre dos inocentes.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

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