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h ARTES, LETRAS E IDEIAS PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2641. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE AI MEU RICO S. J0ÃO...

h - Suplemento do Hoje Macau #48

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Suplemento h - Parte integrante da edição de 29 de Junho de 2012

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PARTE INTEGRANTE DO HOJE MACAU Nº 2641. NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

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Podemos esperar grandes bens desta victoria; porq`vendo os chinas com seus olhos q`os Por-tuguezes são homens de guerra, quando senão queirão valer delles na que trazem com o Tarta-ro, pello menos os tratem com respeito, querendo mais por amigos, q`por inimigos(Rellação da Vitoria q`a Cidade de Ma-cao na China teve dos Hollandezes aos 24 de Junho no anno de 1622)

Trago a estas páginas uns apon-tamentos sobre o significado e importância da comemoração do dia de S. João Baptista em

Macau, já que o seu desconhecimento pode permitir, por vezes, o surgimen-to de mal-entendidos desnecessários. A data transcende em muito o seu signifi-cado religioso, pois a resposta dada pelas gentes de Macau à invasão holandesa, proporcionou um reconhecimento, pela China, que assinalou o princípio de uma autonomia, sem a qual Macau não seria o que hoje é.O dia do Padroeiro de Macau, São João Baptista (24 de Junho), foi comemora-do como Dia da Cidade, e oficialmente como tal assinalado, desde 1622 – quan-do foi instituído pelo Senado para lem-brar a vitória sobre os holandeses, tida como um milagre – até 1999. Uma tra-dição macaense que perdurou por mais de três séculos.Milagre porque à época Macau estava desprovida de gente, de organização de defesa, não apenas humana, mas tam-bém pela ausência de muralhas e baluar-tes defensivos seguros e armados.Os ataques que se vinham sucedendo desde o princípio do século, obriga-ram a que começasse a ser construído um sistema defensivo, contra a vontade das autoridades chinesas que viam nessa empresa uma ameaça pela imposição de poder português em Macau.Assim, a invasão de 1622, que se iniciou no dia 22 de Junho com o desembarque de 800 soldados na praia de Cacilhas, veio encontrar Macau com cerca de 200 homens com alguma competência para pegar em armas, e três baterias – uma no sitio onde depois foi construído o Forte de Santiago da Barra, outra em S. Fran-cisco, e outra no Bomparto.A cidadela do Monte tinha começado a ser construída em 1616 não estando

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Fernando Sales Lopes

SÃO JOÃO BAPTISTA PADROEIRO DA CIDADE DE MACAU

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concluída, ainda, e a ermida da Guia não estava fortificada nem preparada para qualquer acto de defesa. Era este o panorama defensivo de uma Macau que apenas poderia contar com actos de va-lentia, vantagens no conhecimento da terra, ou milagres…A esquadra holandesa, comandada pelo almirante Reijerson, era composta por 15 navios, dois dos quais ingleses, e as forças de desembarque por 800 homens sendo 600 europeus e 200 japoneses, in-dianos e malaios, segundo descrições da época.Reijerson escolheu o dia 24 para o de-sembarque mas, como manobra de di-versão, no dia anterior destacou três navios para bombardearem ao longo da costa na intenção de confundir a defesa quanto aos seus objectivos e intentos. Um dos navios bombardeou, no dia 23, S. Francisco que respondeu à altura, e outros dois navios continuaram a bom-bardear o forte logo pela manhã de 24. A guarnição defendeu-se bem, atacando quanto pode e conseguindo inutilizar um dos navios atacantes – o Gallias – que viria, mais tarde a afundar-se, na se-quência da bombarda o ter atingido por 25 ou 26 vezes.O desembarque começou pelo lado da praia de Cacilhas a seguir ao nascer do Sol. Para os receber estava Antó-nio Rodrigues Cavalinho, emboscado

num banco de areia, com 60 portugue-ses e 90 filhos da terra. Há combates, o Almirante holandês é ferido. Antó-nio Rodrigues recua. Os holandeses sobem a Guia perseguindo os nossos. No meio da confusão da praia, vem resposta dos jesuítas do Monte que, lá do alto, disparam três bombardas para a frota inimiga.Sorte, talvez! O princípio do milagre?Uma das bombas cai no navio paiol que se incendiou ferindo e matando mem-bros da guarnição. O feito ficou sendo atribuído ao padre italiano Rho, mate-mático que, sem ter tido tempo para fa-

zer as contas, começou aí a resolver o grande problema que então se vivia.A confusão que se seguiu entre as hostes holandesas – os da praia, os dos navios e os que por terra tentavam subir a Guia ou avançar sobre a cidade – e a força que a façanha de Rho deu aos de Macau, em cargas de fogo aqui e ali, resultou na retirada holandesa que deixava caídos por terra, segundo cronistas da época, metade dos homens que haviam desem-barcado.Muitas histórias se contam em redor deste feito, onde não faltam escravos da frota holandesa a perseguirem, despoja-

rem e deceparem holandeses, ou gente do povo de Macau a ter papel relevan-te na luta, como uma “padeira de Alju-barrota” macaense que com um espeto, dizem uns, ou uma alabarda, dizem ou-tros, terá mandado para o outro mundo uma mão cheia de invasores.

MACAU DEPOIS DA VITÓRIA SOBRE OS HOLANDESES

Milagre ou não, pois para além da coin-cidência do Dia do padroeiro com a vitória, também se diz que o manto do Santo terá desviado os tiros inimigos salvando a cidade da invasão, a verdade é que, o Senado ao declarar que daí para a frente aquele seria o Dia da Cidade, estava, sem o saber, certamente, a mar-car o nascimento de uma nova Macau.Depois da vitória sobre os holandeses Macau passou a ser visto com outros olhos por parte das autoridades chine-sas, ganhando o direito a preparar con-dignamente a sua própria defesa. Assim, a cidade foi rodeada de muralhas, ba-lizadas por seis baluartes guarnecidos com artilharia.Um ano depois, em Junho de 1623, era nomeado o primeiro Governador de Macau, D. Francisco de Mascarenhas, demonstrando uma maior preocupação de Portugal em relação a Macau. No en-tanto o poder local continuou a residir

O desembarque começou pelo lado da praia de Cacilhas a seguir ao nascer do Sol. Para os receber estava António Rodrigues Cavalinho, emboscado num banco de areia, com 60 portugueses e 90 filhos da terra. Há combates, o Almirante holandês é ferido. António Rodrigues recua. Os holandeses sobem a Guia perseguindo os nossos.

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nos homens-bons do Leal Senado que governavam a cidade com grande auto-nomia.Em 1871 foi inaugurado o monumento da Vitória que deixa marcado na pedra, para a posteridade, o feito heróico das gentes de Macau.

COMEMORAÇÕES DA DATA – OFICIAIS E POPULARES

Dizem os escritos da época que, vito-riosos, foram os vencedores dar graças à Sé Catedral, onde o Senado e o povo prometeram que fosse feita uma come-moração idêntica na véspera da festa de S. João Baptista. Ficou pois o Leal Senado de Macau obrigado a celebrar anualmente, nos dias 23 e 24 de Junho, a festa de São João Baptista em homenagem aos heróis de Macau, que defenderam a Cidade do ataque estrangeiro.Durante muitos anos realizou-se a pro-cissão em honra do Padroeiro da Cida-de, onde sobressaía a imagem de S. João Baptista em andor transportado por membros do Senado. Saía da Sé e per-corria as ruas do centro, acompanhada pelos fiéis, tendo por fundo a música da banda. Outro ponto alto da celebração religio-sa era a chamada Missa da Vitória.Parece ter-se mantido sem interrupções a tradição do culto a São João Baptista em Macau, mesmo quando, com vigor, se separavam as águas entre o que era secular e religioso, nos primeiros passos das jovens repúblicas portuguesa e chi-nesa.O Boletim do Governo Ecclesiastico da Diocese de Macau, números 119 e 120 (Maio e Junho de 1913), a páginas 168 e 169, referia-se, à festa de S. João do seguinte modo: “A festa do Padroeiro da cidade, o glorioso Precursor, tambem não decahiu do seu tradicional esplen-dor, apezar das vicissitudes do tempo.A procissão, que se faz na melhor or-dem, em nada desmereceu, sob o ponto de vista religioso, das de outros annos, em que o elemento official lhe dava grande luzimento. A devoção dos ma-caenses para com o seu Santo Protector não diminuiu (…) Antes da procissão pregou o muito Revdo. Chantre Mora-es Sarmento um bello sermão em que recordou as honrosas tradições d`esta terra, a que anda ligada a celebração d`estes cultos em honra do Santo Pre-cursor.”Claro que se realizavam festejos popu-lares, para além dos religiosos, já que, para além da comemoração da vitória sobre os holandeses, o S. João é um Santo Popular ligado à diversão e aos folguedos.Leonel Barros (Jornal Tribuna de Macau, 21/6/2008) escrevia: “Depois do acto religioso, a música e o folhedo domi-navam o ambiente festivo, semelhante ao típico arraial português, que invadia vários pontos da cidade. Durante mais de três séculos, os festejos do Dia da

Cidade, foram celebrados com todo o esplendor. A cidade enchia-se de ale-gria e animação, com as comemorações a prolongarem-se até às primeiras horas da madrugada seguinte”.Até princípios dos anos 90 do século passado, o S. João festejava-se com ar-raial popular em Coloane, na praia de Hác-sá. Era festa portuguesa, à moda dos bairros populares embora com as adaptações que sempre têm as coisas de matriz por-tuguesa que viajam pelo mundo.Arraial. Marchas populares e desfiles a cavalo. Tasquinhas de comes e bebes, onde não faltava a sardinha e o fran-go assados. Barracas de tirinhos e rifas, de lançamento de argolas, não para os gargalos das garrafas, mas para os pescoços de patos! E, fogueiras, claro. A organização era dos Reformados da PSP que mantinham no local um pe-queno estabelecimento de comes e be-bes durante todo o ano. Houve depois uma versão mais citadina das come-moração dos Santos Populares, organi-zada pelos Serviços de Turismo, duran-

te alguns anos, integrada no programa das Comemorações em Macau do 10 de Junho. Realizava-se - aproveitando normalmente os artistas que vinham de Portugal para as comemorações do Dia de Camões - uma festa nas arca-das do Fórum Macau que juntava to-dos os santos populares.Mas a tradição do arraial em honra de S. João Baptista, voltaria a Macau em 2007 por vontade de algumas associa-ções de matriz portuguesa. Ainda não foi na rua mas sim na Escola Portugue-sa. No ano seguinte o arraial assenta arraiais no tradicional e patrimonial Bairro de S. Lázaro. E, até hoje, com a benção do Bispo D. José Lai.Tem sido a unidade da Casa de Por-tugal m Macau, Associação dos Ma-caenses, Associação dos Aposentados, Reformados e Pensionistas de Macau, Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e Instituto Internacio-nal de Macau, que tem permitido, des-de então a realização anual do Arraial de S. João Baptista, o Padroeiro da Ci-dade de Macau.

Aos 17 dias do mes de Ju-nho do anno de 1758 nesta Cidade do nome de Deos de Macao na China na Caza da Camara della juntos os Ministros, e officiaes que no dito anno servem neste Senado estando em meza de VereaçãoHouve reprezentar o Pro-curador deste Senado João Antunes, em como o Rd.º Sñor Bispo, quer que a Missa que se costu-ma dizer, no dia do Snor Sam João, em o Campo ao mesmo Santo, no lugar onde os Portuguezes, e mais moradores desta Cid.e alcançarão o bom sucesso da batalha que tiverão com os olandezes; que se não diga a dita Missa sem o seu beneplacito e licença, se asentou a vista da dita reprezentação que se man-dasse dizer a d.ª Missa na Hermida da Fortaleza de Nossa Sñr.ª da Guia, por razão de haver Cento e tantos annos passados, que nelles sempre se disse a dita Missa no dia do d.º Santo sem que este Senado, mandasse pedir licença a nenhum dos Prelados, que tem havido nesta Cid.e-1

1 Transcrição de um assento da Verea-ção do Leal Senado de 17de Junho de 1758, in Arquivos de Macau, 3.ª Série – Vol. XXIII, n.º 3, Março, 1975, Im-prensa Nacional, Macau

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SALOMÉ QUERE-LHE A CABEÇA MAS O SANTO É DO POVO

A BANCA ALEMÃ É A GRANDE BENEFICIÁRIA DO RESGATE ESPANHOL

Vicenç Navarro

Uma das causas da atual crise de Espanha é a explosão da bolha imobiliária. O casamento en-tre o capital financeiro (ban-

ca, caixas de aforro, companhias de se-guros e outras instituições financeiras) e o setor imobiliário criou essa bolha. Nos últimos dez anos construíram-se mais habitações no nosso país que em França, Grã-Bretanha e Alemanha em conjunto. E apesar desta enorme construção que significou quase 9% do PIB espanhol, os preços dispararam 150%, subindo muito mais rapidamente que os salários, e isso em resultado de uma abusiva especula-ção. Não há dúvida que a banca, as cai-xas, o Banco de Espanha e as autoridades públicas, tanto espanholas como euro-peias, estavam conscientes disto. Bastava ver um gráfico no qual se comparasse a

evolução dos preços das casas e dos salá-rios (a grande maioria dos compradores de casas dependem dos rendimentos do trabalho), para ver que os primeiros cres-ciam muito mais rapidamente que os se-gundos. A distância entre os dois preços era preenchida pelo crédito. Daí o enor-me endividamento das famílias.Tudo isto era previsível. Podia ver-se e poderia ter sido evitado. Mas, nem o Banco de Espanha (apesar do aviso dos técnicos dessa instituição), nem o Esta-do espanhol tomaram qualquer medida. A chanceler Angela Merkel tem razão, quando indicou recentemente que as autoridades espanholas atuaram de ma-neira irresponsável nos últimos dez anos ao não terem prevenido a bolha imobi-liária, baseada na mera especulação, e a sua explosão.No entanto, Merkel esqueceu-se de um detalhe chave, esquecimento que lhe

permitiu não incluir o governo e a ban-ca alemães nesta crítica do que se passou em Espanha. Grande parte do dinheiro que alimentava a bolha imobiliária pro-vinha da banca alemã. Na realidade, a explosão da bolha imobiliária ocorreu quando a banca alemã interrompeu o crédito à banca e às caixas de aforro espanholas, em consequência da ban-ca alemã ter paralisado todo o fluxo de crédito, atemorizada pela sua contami-nação com produtos financeiros tóxicos procedentes da banca norte-americana. E foi aí que o crédito foi interrompido e a bolha imobiliária espanhola explodiu criando uma enorme queda da ativida-de económica e das receitas do Estado (tanto central, como autonómico) que criou o défice público do Estado. Este défice não foi criado pelo crescimento das despesas públicas, mas sim pela des-cida das receitas do Estado. Na realida-de, quando se iniciou a crise, no ano de

2007, o Estado espanhol tinha supera-vit. O défice público em Espanha não é a causa da crise, como Rajoy tem dito, mas pelo contrário o défice público é a consequência do escasso crescimento económico e das escassas receitas do Estado.Todas as medidas de austeridade, cor-tes incluídos (que representam o ataque mais frontal ao escassamente financiado Estado Social em Espanha), destinam-se a pagar a dívida dos bancos alemães e de outros países (França, Grã-Bretanha e Bélgica), que tinham alcançado gran-des lucros durante a bolha imobiliária, enormes lucros que continuam a ter. Na realidade, a crise bancária dos países pe-riféricos (Espanha, Grécia, Portugal e Irlanda) está a correr muito bem para a banca alemã, pois há um fluxo de capi-tais (isto é, dinheiro) destes países, que fogem da crise para o centro e muito em

particular para a Alemanha. E os dados falam por si. Segundo Josef Ackermann, presidente do Deutsche Bank, os lucros deste banco alcançaram a impressionan-te quantidade de 8.000 milhões de euros no ano 2011 (com 8 milhões de euros em bonificações a este senhor). Na re-alidade, enquanto o desemprego alcan-çava números mais que alarmantes em Espanha (e noutros países periféricos), cerca de 50% da juventude está desem-pregada e a saúde e a educação sofrem cortes brutais (e não há outra forma de o dizer), os lucros do Deutsche Bank subiram cerca de 67% em três anos (2009-2011), tal como assinala Conn Hallinan na revista CounterPunch (15 de junho de 2012) (“Greed and the Pain in Spain”).Todos os dados mostram claramente que a banca alemã beneficiou forte-mente da bolha imobiliária espanhola (e também da irlandesa), assim como

da crise financeira dos países periféri-cos. Os enormes sacrifícios das classes populares são impostos a Espanha e aos outros países periféricos para que se possa pagar à banca alemã (e de outros países). E o famoso resgate financeiro de 100.000 milhões de euros tem como objetivo salvar a banca espanhola, não para garantir crédito, que não está ga-rantido nem se espera que esteja, mas sim para que possa pagar as suas dívi-das, também à banca alemã. E o instru-mento que a banca alemã utiliza para impor as suas políticas é o Banco Cen-tral Europeu, que como indiquei em vá-rias ocasiões (ver secção Política Eco-nómica no meu blogue vnavarro.org), não é um Banco Central, mas sim um lóbi da banca alemã e do Banco Central alemão, o Bundesbank.O resgate financeiro é a última de mui-tas outras intervenções que os econo-

mistas da Comissão Europeia, ao serviço do sistema financeiro europeu liderado pela banca alemã, estão a impor a Es-panha. Como bem disse o Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble (contrariando Rajoy), o resgate finan-ceiro implicará uma supervisão direta por parte do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia e do Fundo Mone-tário Internacional, das reformas finan-ceiras, assim como das políticas fiscais e macroeconómicas espanholas, conver-tendo assim Espanha numa colónia ale-mã. E tudo isso com a colaboração do governo conservador “super patriota” espanhol.E porque é que este governo colabora com estas políticas que significam uma clara perda de soberania? A resposta é clara. Porque utiliza este mandato exter-no (argumentando que não há alternati-vas) para conseguir o que a direita sem-pre desejou em Espanha, isto é, debilitar

o mundo do trabalho e privatizar o Esta-do de Bem Estar. Este governo coincide com o objetivo do resgate que foi muito bem definido pelas declarações do pre-sidente do Banco Central alemão, Jens Weidmann, que em declarações ao “El Pais” não pôde ser mais claro quando in-dicou que as reformas deveriam acentu-ar mais as reformas laborais (o que quer dizer baixar os salários) e a privatização de serviços (o que quer dizer o desman-telamento do Estado de Bem Estar). Pois claro.

Catedrático de Ciências Políticas e Sociais, Universida-de Pompeu Fabra (Barcelona, Espanha). Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona. É também professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA), onde exerceu docência durante 35 anos. Dirige o Programa em Políticas Públicas e Sociais patrocinado conjuntamente pela Universidade Pompeu Fabra e pela Universidade Johns Hopkins. Dirige também o Observatório Social de Espanha.

Todos os dados mostram claramente que a banca alemã beneficiou fortemente da bolha imobiliária espanhola (e também da irlandesa), assim como da crise financeira dos países periféricos.

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António Graça de Abreu

NOS MEUS PRIMEIROS quatro anos de vida em Pequim, de 1977 a 1981, tive uma bicicleta a pedal, grande, verde, pesadona mas funcional. Tal como os seis milhões de chineses então habitantes do burgo, contava com duas excelen-tes rodas para pedalar por dentro da imensa, e na altu-ra calma, capital da China. Entrava no infindável pe-lotão de velocípedes – em 1978 existiam três milhões de bicicletas em Pequim --, e deixava-me rolar na com-panhia dessa vasta mole humana que dia e noite circulava por dez mil ruas e avenidas.Deixava Haidian, o gran-de bairro da cidade onde então vivia, e partia à des-coberta dos lugares de que ainda hoje mais gosto, a ve-lhíssima Pequim, os becos, as ruelas compridas entre os 胡同 houtong, os vetustos quarteirões de casas baixas com pátios quadrados no interior e muros cinzentos a tudo rodear. No final dos anos setenta do século passado começa-vam a surgir, timidamente, os primeiros arranha-céus que mudariam o horizonte da capital mas esses bair-ros, os houtong mantinham – mantêm, por bem, até hoje, pese embora alguma destruição -- toda a cor dos séculos, a pequena arqui-tectura, os cheiros, os quo-tidianos da velha Pequim das dinastias Ming e Qing (1368 a 1911), como pude comprovar uma vez mais no Verão de 2011.Na parte norte da capital, na cidade tártara ou man-chu onde os carros quase não entravam, nem entram, havia sempre recantos a descobrir. Dois terços dos espaços da Pequim impe-rial estavam ali. Eram as vielas em redor do Gulou, as torres do Tambor e do Sino, os Shichahai, os pe-

EM北京PEQUIM, NA MANSÃO DO PRÍNCIPE GONG (I)quenos lagos a norte do parque Beihai onde então, no Verão de 1980, os habi-tantes dos houtong, apesar do muito lixo a boiar nas águas, faziam praia e to-mavam banho, e que hoje, mais limpos, se encontram rodeados de restaurantes, discotecas e de animada vida nocturna. Por detrás dos muros altos, bordejan-do as ruas pequenas, adivi-nhavam-se residências de gente importante do Par-tido Comunista, Guo Mo-ruo, o intelectual famoso, Soong Qiling, a viúva de Sun Yat-sen, Hua Guofeng, o breve sucessor de Mao Zedong, afastado do poder por Deng Xiaoping. Apercebi-me nessa altura da existência, logo ali qua-se na margem dos lagos, da grande mansão do prín-cipe Gong e fixei o lugar. Estava fechada, durante a Revolução Cultural fora parcialmente aproveitada para fábrica de aparelhos de ar condicionado. Não era possível visitá-la mas adivinhavam-se grandes obras para breve e lá den-tro sabia-se da existência de mil maravilhas. Com as aberturas registadas na so-ciedade chinesa, com o fim da catalogação pejorativa de muitos monumentos an-tigos até então associados a um passado considera-do reaccionário e feudal, a mansão do príncipe Gong acabou por ser impecavel-mente reconstruída e res-taurada.Numa noite de Verão de 1995, -- longe iam os tem-pos da minha bicicleta pedalando pelo meio dos houtong --, o programa a acontecer era ópera de Pe-quim a ter lugar exactamen-te no teatrinho de finais do século XVIII da mansão do príncipe Gong. Que fascí-nios! Os tons verdes, creme, dourados e rubros da deco-ração dos espaços interio-

res, as lanternas, a música estridente e sincopada, o canto, a voz de falsete dos actores, as máscaras, as pin-turas, os trajes coloridos de seda e brocado, os saltos acrobáticos, e três excer-tos de óperas, as aventuras de Sun Wukong, o macaco que provocava distúrbios no céu, a formosa menina da Bracelete de Jade, e a Fada das Flores salpicando a terra com pétalas. Do outro lado do teatro, junto ao lago e aos pavilhões havia holofo-tes, gruas, câmaras de cine-ma suspensas no ar e sobre tripés. Toda uma equipa de produção e realização de ci-nema trabalhava, filmando, com actores impecavelmen-te maquilhados e vestidos ao modo do século XVIII. O cenário natural era mag-nificente, o lago bordado a folhas e flores de lótus, as rochas perfuradas, os mon-tes artificiais, os terraços on-dulantes, os corredores de madeira pintada, os jardins debruados a bambu, o Pátio das Peónias, o pavilhão da Neve Perfumada. Mais um extravagante jogo de luzes e de sombras. Eu saltitava entre a ópera de Pequim e o cinema, as filmagens, com os actores, de um e de outro lado, todos reinventando magias em cenários falsos e reais.Solitário entre os encan-tos da ópera e as fantasias do cinema, passeei-me de-pois sereno pela mansão do príncipe Gong. A lua a faiscar no céu e o teatro do mundo, aqui, a borbulhar no meu ser sensível, e dian-te dos olhos. Uma saudação ao príncipe. Em breve, pelos caminhos do nada, pelos atalhos do Céu, viajarei ao seu encontro.

MAS AFINAL QUEM FOI O PRÍNCIPE GONG (1832-1898)? O príncipe Gong foi o sex-to filho do imperador Dao

Guang (1782-1850), nas-ceu em Pequim, no actual Palácio de Verão no ano de 1832. Inteligente, estu-dioso e determinado, irmão do imperador Xian Feng, sucessor de Dao Guang, estavam-lhe destinados im-portantes cargos governati-vos. Desempenhou, a par-tir de 1861 um posto algo semelhante ao de ministro dos Negócios Estrangeiros e, até falecer em 1898, era tido como um dos mais há-beis negociadores e gover-nantes do império.A sua mansão, a Lanyunyuan, em Pequim, de que falámos a semana passada, tem uma longa história que começa em He Shen, o gelao, o grande secretário imperial que em 1777, nos finais do reina-do do imperador Qianlong (1711-1796), a mandou construir. He Shen, pri-meiro proprietário deste esplendoroso palácio, é uma das figuras mais curio-sas da história moderna do Império do Meio. Em 1774, Qianlong (leia-se Chien--lung) havia descoberto en-tre os pequenos oficiais da sua guarda pessoal o jovem He Shen, então com vinte e cinco anos. O imperador perfazia sessenta e quatro anos. Uma paixão súbita in-flamou o coração ainda pu-jante do soberano chinês. Qianlong adivinhou em He Shen uma reencarnação da primeira mulher que parti-lhara o seu leito, uma con-cubina de seu pai chamada Xiangfei, a Concubina Per-fumada, que decidira iniciar o rapaz nos segredos de alcova, conceder excelsos prazeres ao filho mais sim-pático e brilhante do impe-rador Yongzheng. Desco-berta a relação incestuosa -- o jovem Qianlong tinha por amante uma concubi-na que pertencia ao pai --, a imperatriz-mãe sugeriu a Xiangfei que se suicidasse.

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Dias depois a bela concu-bina enforcava-se com um laço de seda.Qianlong jamais esqueceu a companheira da sua adoles-cência que lhe desvendara, pela primeira vez, mil se-gredos do sexo. Reencon-trava-a agora reencarnada na figura de He Shen. Rapidamente o oficial da guarda imperial foi promo-vido a general das tropas manchus, comandante da guarnição de Pequim, mi-nistro dos Assuntos Civis, vice-ministro das Finanças com a responsabilidade de controlar as taxas e impos-tos a pagar por muitas das mercadorias que circula-vam no império. Logo de-pois era gelao, um dos qua-tro grandes secretários, na prática política quotidiana a desempenhar funções de primeiro-ministro.Como costuma acontecer

nestas situações, o relacio-namento sexual entre o im-perador e o favorito sempre careceu de comprovação, mas era voz comum na épo-ca e tem sido referido por quase todos os historiado-res chineses e ocidentais.Nos últimos quinze anos de vida de Qianlong, com o velho soberano debili-tado pela avançada idade, He Shen tornou-se, mais do que “os olhos e ouvidos” do imperador, o verdadeiro centro do poder. Venal, corrupto e deso-nesto, He Shen era senhor de uma fortuna fabulosa que ultrapassava a do erá-rio imperial. Durante vin-te e cinco anos, a gestão dos negócios da corte, as promoções, as nomeações para os cargos mais im-portantes do aparelho de Estado, a gestão dos exér-citos haviam passado pe-

las mãos e pela cabeça do grande secretário. E tudo tinha um preço, elevado. Foi com esse dinheiro que He Shen, logo nos primei-ros anos de poder, mandou construir o seu sumptuoso palácio, hoje conhecido apenas como mansão do príncipe Gong.O imperador Qianlong fa-leceu a 7 de Fevereiro de 1799. Cinco dias depois da morte do pai, o novo im-perador Jia Qing mandou prender He Shen. “Benevo-lente e justo”, considerando que o império estava de luto, concedeu ao gelao, o grande secretário favorito de seu pai, o especial privi-légio de se suicidar.Toda a corte sabia que o crime de alta traição de que He Shen era acusado tinha a ver com o facto de o amante do falecido monarca haver acumula-

do uma enorme fortuna, dinheiro que o imperador precisava agora para si e para revigorar a economia. Não por acaso, nesta altura foi inventado um oportuno e esclarecedor trocadilho He Shen die dao, Jia Qing chi bao, isto é,“He Shen cai, Jia Qing enche-se.” É difícil imaginar o que são 60 milhões de onças de pra-ta, 27 milhões de onças de ouro, 9 mil ceptros em ouro pesando cada um quarenta e oito onças, 3.900 ceptros em jade, 18 estátuas de dis-cípulos de Buda em ouro maciço, um serviço de mesa em ouro com 4.283 peças, 144 sofás decorados a ouro e laca, 744 rubis, 4.283 sa-firas, 10 árvores de coral, 140 relógios de ouro, 38 re-lógios de parede europeus cobertos de pedras precio-sas, 1.907 peles de raposa, 67 mil outras peles, 28 mil

EM北京PEQUIM, NA MANSÃO DO PRÍNCIPE GONG (I)

peças de joalharia de dife-rentes dimensões, etc., etc. São alguns dos números re-censeados após a prisão de He Shen, no primeiro in-ventário feito aos seus bens. He Shen possuía tudo isto e muito mais, uma fortuna avaliada em 900 milhões de taéis. Cada tael são 37,5 gramas de prata. A riqueza colossal de He Shen corresponde a uma imagem depurada da abas-

tança, luxo e privilégios dos grandes do império.1 Entendê-la-emos melhor se considerarmos a quase miséria em que vivia a es-magadora maioria do povo, se pensarmos no mundo chinês -- para citar Fernand Braudel -- como “uma so-ciedade onde a pobreza era latente, omnipresente.” Hoje quem se lembra de He Shen, ou sabe sequer da sua existência quando visita a mansão do prínci-pe Gong? Eu próprio só há meia dúzia de anos soube mais sobre a história deste excelente complexo e pa-lácio e fui capaz de o as-sociar a He Shen. Tenho, no entanto, quase a certeza de que é um lugar com um bom feng shui, associado à boa sorte e à fortuna. Lá dentro existe um pequeno lago emm forma de morce-go e também um pavilhão do Morcego. Ora morce-go em chinês diz-se fu 幅 que é homófono de outro fu 偪 que significa “felici-dade, fortuna”. Na mansão do príncipe Gong, no pa-vilhão do Morcego, no an-tigo palácio do riquíssimo He Shen vendem-se bem cópias do ideograma fu, na caligrafia da imperador Kangxi( 1654-1722). Mas os morcegos “fu”, homófo-nos de fu “fortuna”, voam por toda a parte. Eu gosto mais do conjunto de pavilhões, telhados de porcelana, torreões, terra-ços, corredores, varandins, balaustradas, escadarias de mármore, pátios, jardins, pontes, lagos, árvores e flores, gosto da harmonia dos espaços, gosto mais da mansão do príncipe Gong ao entardecer, quase vazia, gosto da serena solenidade do sinuoso lugar.

1 John K. Fairbank, China, a New History, Harvard, Harvard University Press, 1992, p.182, calcula que, em termos actuais, a fortuna de He Shen na época seria superior a mil milhões de dólares “probably an all-time record.”

A lua a faiscar no céu e o teatro do mundo, aqui, a borbulhar no meu ser sensível, e diante dos olhos

P R I M E I R O B A L C Ã Oh829

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luz de inverno Boi Luxo

COMO NÃO HÁ FILMES japoneses sem comboios, também não há filmes portugueses sem criadas. Exceptuem-se os muitos filmes recentes sobre bairros periféricos e habitantes destituídos, curtas de João Salavisa ou compridas de Pedro Costa ou João Canijo. Admita-se o exagero mas são as criadas criadas por Isabel Ruth em Os Verdes Anos, Vale Abraão ou O Estranho Caso de Angélica, as criadas de Uma Abelha na Chuva ou de O Delfim (ainda Isabel Ruth) de Fernando Lopes, ou de Brandos Costumes, as causadoras de tudo isto.Faz lembrar Agustina Bessa Luís quando diz (cito de cor) ²em Portugal os comunistas batiam nas criadas², e não nos livramos delas. Se esta circunstância aponta para uma extrema hierarquização da sociedade portuguesa ou para a permanência na intelligensia portuguesa de uma nostalgia por uma ideia de uma ruralidade abastada e vagamente aristocrática será para outros avaliarem. Neste caso foi a Isabel Ruth (ainda ela) de O Delfim que me fez lembrar que pode ser assim. Os mais interessados poderão, ao estudar a história do cinema português, sentir melhor como o cinema de Fernando Lopes se desenvolve a partir da nova energia que este congrega durante os anos 60 e 70, aqueles em que a estagnação a que o regime condenara o país obrigou, em conjunto com o exemplo europeu livre, à criação de um cinema novo. É neste ambiente cultural e artístico que os seus filmes se começam a desenvolver. Mas Fernando Lopes tem, sempre, uma tendência para se centrar obsessivamente

em volta de uma figura, muitas vezes masculina, e para criar desvios de vária ordem. Este tipo de focalização é um dos desvios que o torna um caso particular. Mas há outros, de outro tipo, que têm de ver com a divagação do olhar. E é essa uma das impressões que fica sempre dos seus filmes, de que houve um desvio do olhar e da atenção, um desvio que sai do filme como se um filme fosse uma sala e ele pudesse entrar e sair sem qualquer respeito pelas graças sociais que devem presidir ao saber estar numa sala.Por vezes é necessário que alguém exótico ao país nos venha lembrar que o cinema português é um corpo extraordinário. Que venha lembrar que o cinema deste pequeno país é um corpo alto e elegante, por vezes arrogante, quase sempre sincero e bem parecido e carregado de uma capacidade infinita para surpreender. Vem esta consideração a propósito de um texto de Dennis Lim na edição de Verão da revista Artforum. Não um texto dedicado a alguma das suas figuras mais internacionais, como Oliveira ou Paulo Rocha, não dedicado a Pedro Costa ou João Pedro Rodrigues, de fama mais recente, mas, surpreendentemente, dedicado a dois autores que se tornaram conhecidos por retratos de uma terra granítica e longínqua que só experimentada, na sua rudeza e nas incompreensões mágicas que suscita, se pode pretender conhecer – António Reis e Margarida Cordeiro. Dennis Lim afirma que “… o cinema português pode frequentemente parecer um mundo em si mesmo, um território semiautónomo que evoluiu segundo o seu próprio ritmo e graças a um produtivo afastamento do

resto do continente. Os anos perdidos da ditadura de Salazar e as energias enclausuradas em décadas de repressão e letargia; as arreigadas tradições agrárias e a chegada adiada da industrialização; o vasto manancial de mitos e história local e a vibrante atmosfera de cinemateca que se seguiram aos anos de Salazar – conspiraram para criar em Portugal uma das mais distintas e ricas culturas fílmicas do mundo. ”Ao ler estas observações, justíssimas, lembro o cinema de um outro país que se tem distinguido por uma singularidade, uma qualidade e uma coragem que o tem coberto de um vasto afecto – o cinema iraniano. Penso sempre que o cinema iraniano é um milagre. O que está para lá do ordinário, num cinema tão pequeno como o português, é este ter-se ramificado num conjunto tão grande de vectores excêntricos. E excêntricos também a vagas ou modas internacionais. Entre eles conta-se o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro (revisto e homenageado recentemente nos Estados Unidos da América), mas também o de Paulo Rocha ou Pedro Costa, de Manoel de Oliveira ou João César Monteiro. Se pensarmos respectivamente em Ana, A Ilha de Moraes, No Quarto da Vanda, Amor de Perdição ou Branca de Neve perceber-se-á em que pode consistir essa diversidade. O cinema de Fernando Lopes, e estas linhas não escondem uma intenção homenageante a este realizador recentemente falecido, situa-se um pouco ao lado daquele que possamos considerar mais excêntrico ao gosto do grande público, mas não deixa de exibir marcas bem distintas, uma das quais, a que mais

me agrada, a tendência para o desvio a que em cima se alude.Uma marca definidora das suas histórias é a forte concentração no desenho de uma figura, geralmente masculina. Essa atenção causa uma voragem que pode ser engolidora mas é ela que dá por vezes uma grandeza épica suave aos seus quadros. Assim acontece com o seu primeiro filme de maior metragem, Belarmino, com Nós por Cá Todos Bem (centrado na mãe), Matar Saudades, O Fio do Horizonte, ou com este filme que aqui nos traz, O Delfim. Neles encontramos a permanência de uma violência, ou, pelo menos, de uma enorme teimosia masculina. Mas, a par, existe a divagação do olhar de que se falava antes (e que pode fazer lembrar Apichatpong Weerasethakul).O que percebo agora é que a extensão que estas linhas ganharam atirarão com a apreciação de O Delfim para outra semana. De qualquer modo não constitui este desenvolvimento causa para frustração, apenas causa para lembrar, inesperadamente, aquele que poderá ser o seu filme mais extraordinário, um em que a linha da narração se vê frequentemente interrompida pela exibição de traços inesquecíveis e aparentemente desneces-sários, traços de uma atenção ao que não é imediato, uma recusa constante em levar o espectador por um caminho fácil e previsível. Este filme terá de ser aqui alvo de apreciação e este filme é Uma Abelha na Chuva. Não é a primeira vez que isto acontece. Não é a primeira vez que a intenção de falar de um filme se esbate noutras prioridades. E tudo isto por causa das criadas.

O DELFIM E FERNANDO LOPES

ARATA ISOZAKI iniciou o seu percurso, em 1954, no atelier de Kenzo Tange, seu antigo professor. Enquanto a arquitectura de Tange, o personagem mais influente na arquitectura japonesa do pós-guerra, se apresentava radical em termos con-ceptuais, foram os seus projectos urbanos que mais influenciaram a nova geração de arquitectos, incluindo Isozaki. O Pla-no de Tange para Tóquio, delineado em 1960, é disso mesmo exemplo. Ao pro-curar conciliar a densidade intrincada do tecido urbano de Tóquio com a rápida expansão e reformulação das modernas estruturas sociais, a proposta de Tange definia uma construção urbana multi-ní-vel em camadas sobre a cidade existente e os seus canais.Mas as novas e radicais visões da cida-de não se limitaram ao Plano de Tange para Tóquio. Entre outros exemplos, destacam-se o Projecto Nova Babiló-nia que Constant Nieuwenhuis iniciou na década de 50, o Plano Espacial para Paris de Yona Friedman, de 1958, bem como o trabalho desenvolvido pelo colectivo Archigram, na década de 60, que defendia a transformação ur-bana como um meio para alcançar a mudança social. Em Cidade no Ar de Arata Isokaki, projecto desenvolvido em 1960 para a cidade de Tóquio, as

várias camadas da cidade pairam sobre a cidade tradicional. Estradas e núcleos de estacionamento surgem implantados entre torres maciças que suportam blo-cos de escritórios e de habitação. Os pisos mais próximos do solo são recon-figurados em níveis ajardinados acima e no interior dos blocos.Concebido como uma contraproposta ao plano que estava em curso para a im-plantação dos arranha-céus que hoje do-minam a linha do horizonte de Tóquio, em Shinjuku, o conceito defendido por Isozaki encontrou na noção prevalecente de divisão do espaço urbano em secções rectangulares horizontais limitadas em perímetro e em altura, o maior problema. Em oposição, a proposta de Arata Isozaki sugeria a necessidade urgente que novos tipos de arquitectura urbana pudessem ser encontrados através de formas de cresci-mento interligadas, horizontalmente, no ar. Todavia, quando os arranha-céus que hoje preenchem a linha do horizonte na área de Shinjuku de Tóquio foram pro-postos, uma alternativa ao sistema foi prevista. O plano, balbuciante, apontava a divisão da área em grelhas comuns e a implantação de edifícios em altura nesses espaços delimitados. Mais uma vez, Iso-zaki sentiu que um novo tipo de arquitec-tura urbana precisava de ser desenvolvido

– edifícios elevados e interligados acima do nível do solo que podiam ser amplia-dos de modo sistemático.As infra-estruturas da Cidade no Ar, in-cluindo os elevadores, estavam contidas no interior de cilindros denominados de núcleos comuns. Estes núcleos comuns estavam estruturalmente ligados por lon-gas treliças que acomodavam área para escritórios. A série de projectos identifi-cados com o nome Cidade no Ar baseou--se sempre neste sistema. A intenção pri-mordial era fazer expandir a arquitectura para uma escala urbana e reconsiderar to-dos os tipos de construção através da in-trodução de factores urbanos no planea-mento arquitectónico. O mesmo sistema foi utilizado no projecto Tóquio 1960, elaborado pelo atelier de Kenzo Tange, na concepção do centro de negócios, co-ordenado por Isozaki.Isozaki, nascido em 1931, tinha idade suficiente para recordar a Segunda Guer-ra Mundial. Assim como Tange, Arata Isozaki fazia parte de uma geração parti-cularmente vulnerável ao trauma da des-truição atómica de Nagasaki e Hiroshi-ma. Com efeito, estes momentos foram imortalizados pelo arquitecto japonês no Labirinto Eléctrico, apresentado em 1968, na Trienal de Milão. A noção da destruição da arquitectura em Isozaki

diz respeito, em uma das suas interpre-tações possíveis, a esta exposição. Os traumas da guerra, sem necessariamente terem sido reprimidos, foram integrados na narrativa cultural da entrada do Ja-pão, no espaço de quatro gerações, no mundo moderno. Na literatura, o ciclo dessa transformação foi eloquentemente tratado desde o início, enquanto que na arquitectura nunca houve no Japão um Wren ou um Schinker ou um Viollet-le--Duc. Em vez disso, os objectivos semi--programáticos da arquitectura moderna japonesa dos anos de 1950 e início de 1960, parecem ter-se desvanecido de-pois de 1968.O projecto Cidade no Ar de Isozaki foi realizado em 1960, no mesmo ano em que um conjunto de arquitectos mais jovens, quase todos eles com ligações a Kenzo Tange, publicaram o Manifesto Metabolista. Enquanto Isozaki nunca foi formalmente um membro do grupo, o seu Projecto e o trabalho produzido pelos Metabolistas ao longo da década, reflec-tem, em grande medida, a descrição que Kenzo Tange faz do seu próprio trabalho de urbanista: “Ao incorporar elementos de velocidade, espaço e mudança drástica na ambiente físico, criámos um método de estruturação procurando obter elasti-cidade e mutabilidade”.

CIDADE NO AR

C I D A D E S I N V I S Í V E I S

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LU BAN, chamado também Gongshu Ban, nasceu em 507 a.C. e viveu no reino de Lu, hoje Shandong. Era um inventor e um hábil artesão, que aprendeu o ofício com o pai. Diz a lenda que quando nasceu, um grupo de aves pernaltas (grous) voava à volta da casa. A família era pobre e por isso não houve dinhei-ro para colocar a criança a estudar. Aos 15 anos de idade teve Zi Xia, um discípulo de Confúcio, como educador. Este ensinou-lhe o básico sobre confucio-nismo (Ru Jia) e como estudante inteligente, rapida-mente percebeu os ensinamentos. Estava-se no fim do Período Primavera-Outono e os muitos reinos existentes combatiam entre eles, o que deixava Lu Ban triste e zangado. Por isso re-solveu viajar por diferentes reinos oferecendo os seus conhecimentos aos governantes. No entanto, ninguém o escutava, tantas eram as pessoas que fa-ziam o mesmo e mais famosas como Confúcio e Mo Zi que foi contemporâneo de Lu Ban. Por isso foi viver numa pequena montanha, Xiaoheshan, a Sul de Taishan, onde um dia encontrou-se com o seu mestre de ofício, Bao Lao Dong. O professor ficou muito agradado com o empenho de Lu Ban e o seu trabalho minucioso e cuidado. Por isso, ensi-nou-lhe tudo o que sabia, desde escultura a pintu-ra, desenhar e construir edifícios, carros e barcos. Assim rapidamente se tornou um melhor artesão que o seu mestre. Começou a inventar instrumen-tos para trabalhar a madeira, como planador, espá-tula, serrote, furador (sovela), verruma, esquadro e muitos outros utensílios que ainda hoje se usam na marcenaria. Ajudou o reino Chu, quando este combatia pela pri-meira vez com o reino Yue, criando um instrumento para ser usado em combate naval, o que deu a vitória ao reino Chu. Quando o reino Chu combateu com o reino Song, Lu Ban criou as escadas para subir as muralhas, o que levou de novo o reino Chu a vencer.Uma vez Lu Ban criou um papagaio de madeira que conseguia voar, o lhe deu muito orgulho e come-çou a gabar-se das suas qualidades. Quando Mo Zi ouviu foi ter com ele e disse-lhe: este pássaro pode voar, mas não trabalha para o ser humano. Prefiro um artesão que não trabalhe tão bem, mas que faça coisas, que sejam úteis para o ser humano. Isso é que é engenhoso e utilitário. Quando Lu Ban ouviu tal, decidiu passar a fazer utensílios e objectos que fossem utilitários.Com um trabalho tão louvável e perfeito ganhou a consideração de todos os que o conheceram, que se referiam a ele como prendado pelos deuses. A partir daí todos os artesãos o colocaram como protector e quando começavam qualquer obra, iam ao seu templo pedir a bênção para conseguirem resolver os problemas que pudessem surgir durante o trabalho e criar uma boa obra.Durante a dinastia Ming, o imperador Yong Le (1403-1424) deu-lhe o título de Mestre Assistente do PaísAs festividades em honra de Lou Pan, como é co-nhecido em cantonense, realizam-se no 13 dia da 5 Lua e no 21 dia da 7 Lua, situando-se na Rua da Cal o Lou Pan Si Fu Miu, um dos quatro templos existentes em Macau.

鲁班 LU BAN, O ANTEPASSADO DOS ARTESÃOS

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gente sagrada José simões morais

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As leis e convenções são instrumentos de governo, mas não são aquilo que constitui o governo.

HUAI NAN ZI 淮南子 O LIVRO DOS MESTRES DE HUAINAN

Huai Nan Zi (淮南子), O Livro dos Mestres de Huainan foi composto por um conjunto de sá-bios taoistas na corte de Huainan (actual Provín-cia de Anhui), no século II a.C., no decorrer da Dinastia Han do Oeste (206 a.C. a 9 d.C.).Conhecidos como “Os Oito Imortais”, estes sá-bios destilaram e refinaram o corpo de ensina-mentos taoistas já existente (ou seja, o Tao Te Qing e o Chuang Tzu) num só volume, sob o patrocínio e coordenação do lendário Príncipe Liu An de Huainan. A versão portuguesa que aqui se apresenta segue uma selecção de extrac-tos fundamentais, efectuada a partir do texto ca-nónico completo pelo Professor Thomas Cleary e por si traduzida em Taoist Classics, Volume I, Shambhala: Boston, 2003. Estes extractos en-contram-se organizados em quatro grupos: “Da Sociedade e do Estado”; “Da Guerra”; “Da Paz” e “Da Sabedoria”.O texto original chinês pode ser consultado na íntegra em www.ctext.org, na secção intitulada “Miscellaneous Schools”.

DO ESTADO E DA SOCIEDADE – 11

Certa vez, alguém perguntou a um sábio qual de seis generais seria o primeiro a perecer. O sábio nomeou um deles e, quem havia perguntado, quis saber porquê. O sábio disse: “Na sua administra-ção, a dureza é tida por preparação, o prazer é tido por iluminação e a crueldade para com os subordinados é tida por lealdade”.É por isto que Lao-Tzu disse: “Quando o governo não constitui obstáculo o povo é puro; quando o governo se intromete, o povo vive em falta”.

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Aquilo que tenha sido inapropriado nas políticas de antigos regimes deve ser abandonado, enquan-to que aquilo que tenha sido bom nas práticas de

tempos recentes deve ser adoptado. Nunca houve qualquer constante fixa nos comportamentos e na cultura, por isso, os sábios formulam os comportamentos e a cultura sem serem regidos por comportamentos e cultura.

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Recitar os livros de antigos reis não é tão bom quanto escutar as suas palavras. Escutar as suas palavras não é tão bom quanto atingir aquilo que levou tais palavras a serem proferidas. Atingir aquilo que levou tais palavras a serem proferidas é algo que não pode ser posto em palavras. Como tal: “Uma via que possa ser dita não é a Via eterna”.

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Quando um pais muda de líderes repetidamente

e as pessoas usam a situação para fazerem o que querem e esse poder para alimentar os seus desejos, querendo ao mesmo tempo adaptar-se aos tempos e lidar com a mudança de modo uniforme e através de leis fixas, é obvio que não têm capacidade de gerir a responsabilidade. Assim, aquilo que os sábios seguem se chama Via e aquilo que fazem é chamado o seu trabalho. A Via é como metal e pedra, imutável; o seu trabalho é como um instrumento musical, que deve ser afinado de cada vez.

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As leis e convenções são instrumentos de gover-no, mas não são aquilo que constitui o governo.

Tradução de Rui Cascais Ilustração de Rui Rasquinho

O SOL, A LUA E A VIA DO FIO DE SEDA

FERNANDA DIASU m a l e i t u r a d o

YI JING

A nova tradução do livro que há milénios ilumina a civilização chinesa