Upload
trankhue
View
212
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
Há uma guerra na fase silenciosada infecção do parasita da maláriaCientistas portugueses descobriram, em ratinhos, que metade dos parasitas da malária é logomorta no fígado pelo sistema imunitário. Mecanismo pode ajudar a produzir uma vacina eficaz
Saúde
Nicolau Ferreira
Janeiro de 1948 ainda não tinha ter-minado quando uma descoberta re-velou uma peça do puzzle da infecçãoda malária. Já tinham passado quase70 anos desde que o francês CharlesLaveran observara pela primeira vezparasitas da malária no sangue hu-
mano, pelo que no final da décadade 1940 era um dado adquirido de
que o parasita se transmitia pela pi-cada de mosquitos e que infectavaos glóbulos vermelhos. Mas entre a
picada e a infecção no sangue haviaum período de dez dias que o para-sita desaparecia em combate.
"Os últimos resultados obtidos por
nós na malária de macacos, [para o
parasita] Plasmodium cynomolgi, fo-ram impressionantes e, pensamosnós, inequívocos", arrancava o artigona Nature de 24 de Janeiro de 1948,escrito pelos parasitólogos inglesesHenry Shortt e Cyril Garnham, noqual descreveram que é no fígadoque ocorre esta "fase silenciosa" dociclo, como lhe chama a investigado-ra portuguesa Maria Mota.
Nas décadas seguintes pensava-seque na fase hepática "o parasita nãoera reconhecido pelo hospedeiro",explica ao PÚBLICO Maria Mota, es-
pecialista em malária, líder de umaequipa no Instituto de Medicina Mo-
lecular, em Lisboa, e Prémio Pessoa2013 pelo seu trabalho. Mas tal nãoé verdade: 55 anos depois da desco-berta publicada na Nature, a equi-pa de Maria Mota mostra agora, emratinhos, que o sistema imunitáriodetecta a presença dos parasitas logono fígado e mata cerca de metade.
Há, por isso, uma guerra, essa sim
silenciosa, no início da infecção, con-clui o artigo da equipa de Maria Motana última edição da revista NatureMedicine.
Hoje conhecem-se melhor os para-sitas da malária que causam infecçõesnos humanos. Há quatro espécies do
género Plasmodium responsáveis
pela doença no mundo. De todas,o Plasmodiumfalciparum é o pior,causando a maior parte das cerca de
um milhão de mortes anuais.É a fêmea do mosquito anófeles
que injecta os parasitas da malárianas pessoas. Já no sangue, os para-sitas dirigem-se para o fígado, onde
penetram algumas células até, cada
um, se instalar finalmente numa de-las (em hepatócitos). Na célula, o pa-rasita protege-se e fica dentro de umavesícula chamada "vacúolo". Assim,está protegido mas mantém-se emcontacto com o ambiente exterior.
Nos dias seguintes, vai sugandonutrientes do hepatócito e multipli-ca-se, originando milhares de parasi-tas. Estes, com uma forma diferente,libertam-se do hepatócito e vão paraa corrente sanguínea infectar glóbu-los vermelhos. Nesta fase, quando os
parasitas voltam a multiplicar-se erebentam com as células do sangue,os sintomas da malária aparecem:febre alta, tremores, dores.
Pensava-se que durante a fase do
fígado, o sistema imunitário não de-tectava o parasita. Mas em experiên-cias passadas detectaram-se célulasdo sistema imunitário no fígado deratinhos infectados pelo parasita.Além disso, observou-se também emtestes com ratinhos, alterados geneti-camente para não produzirem umaproteína muito importante para o de-senvolvimento da malária - a heme-
oxigenase-1 -, que a fase de infecçãono fígado é, neste caso, logo bloquea-da devido a uma resposta inflamató-ria agressiva. O parasita é morto e a
infecção pára aqui, o que demonstra
que o sistema imunitário do hospe-deiro consegue atacar o agressor naprimeira fase da infecção.
Por isso, os investigadores foramtentar compreender que respostainflamatória era essa. Descobriram
que, de facto, existia. "O hospedeirodetecta e é capaz de matar os parasi-tas", explica Maria Mota.
A equipa começou por comparar a
actividade genética em ratinhos queeram infectados com o parasita Plas-modium berghei - que causa malárianestes roedores - e ratinhos que nãoo eram. E viu que os hospedeiros in-fectados com os parasitas activavam
muitos genes relacionados com a res-
posta inflamatória.Depois, os cientistas verificaram
que o ARN do parasita, um ácidonucleico parecido com o ADN, eraresponsável pela activação de umsensor que iniciava a resposta infla-matória na própria célula do fígadoonde o parasita se encontrava. "Des-cobrimos qual é o sensor que acciona
o alarme", diz Maria Mota.Com a activação desse sensor, a
célula do fígado infectada liberta mo-léculas inflamatórias importantes, os
interferões. Estes interferões activamuma cascata celular inflamatória se-
melhante nos hepatócitos à volta dacélula infectada pelo parasita, apesarde estes hepatócitos em redor não es-
tarem infectados com o Plasmodium.Esta resposta inflamatória continuae acaba por se propagar "como umaonda" pelo fígado, diz Maria Mota.
O resultado desta onda é o cha-mamento de glóbulos brancos queacabam por se dirigir para o fígadoe matam parte das células infectadas
com o parasita.Há muitas perguntas que ficam por
responder sobre esta sequência de
acontecimentos, diz Maria Mota. Não
se sabe como os leucócitos detectam
os hepatócitos com o parasita, nempor que razão os parasitas, dentrodos hepatócitos, começam por mos-trar o seu ARN à célula hospedeira,provocando a resposta imunitária.
Em ratinhos, o ataque do siste-ma imunitário tem consequências,matando metade dos parasitas nofígado - o que faz com que muitosmenos parasitas vão para o sanguecontinuar a infecção. Mas tambémnão se sabe por que é que a outrametade sobreviveu à resposta imu-nitária no fígado.
Há outro dado curioso. Quandoa equipa induziu uma resposta in-flamatória nos ratinhos duas horasantes de os infectar com o parasita,a resposta imunitária no fígado foimuito mais forte, e cerca de 99% dos
parasitas não sobreviveu à fase de
infecção nos hepatócitos. SegundoMaria Mota, estas observações in-dicam que este método pode servircomo "um adjuvante para uma po-tencial vacina da malária". Isto per-mitiria reduzir o número de doses deuma vacina tão ambicionada, já queas vacinas que se testaram em fases
experimentais só resultaram quandoeram aplicadas várias vezes.
Maria Mota, em cima, é líder deuma equipa de investigaçãoque estuda as relações entreo parasita da malária e ohospedeiro humano
Em baixo, uma célula do fígadoinfectada com os parasitas averde (ao meio da imagem), comum aglomerado de células dosistema imunitário à sua volta