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    FALA SILO

    Recompilao de opinies, comentriose conferncias

    1969 - 1995

    Agradecimentos,

    A publicao desta primeira edio em portugus de Fala Silo foi possvel graas ao trabalho demuitas pessoas, que durante muitos meses, contriburam com seu talento traduzindo do idiomaEspanhol original e revisando os diferentes textos. Entre os muitos que colaboraram para estetrabalho, gostaramos de mencionar particularmente os esforos de Valdir Silveira, Andrea Medina,Rodolfo LoBianco, Tami Bresciani, Darym Dayan Zarate Aldana, Peter de S Ferreira, TatianaMariano, Monica Braga, Inara Cunha, Vanessa Marinho, Marcio Gonalves, Maximiliano Garca,Gilda Regalino, Lilian Severo e Mariana Ferreira, que fizeram que esta compilao de opinies,comentrios e conferncias de Silo esteja disponvel pela primeira vez integralmente em portugus.

    Os editores

    AO LEITOR

    Este livro d conta do exposto oralmente por Silo ao longo de quase trs dcadas.

    Permitimos-nos incluir algumas notas esclarecedoras. Uma destas aparece na primeira exposiode 4 de maio de 1969. Com ela pretendemos informar sobre as circunstncias que rodearam este atopblico no qual Silo assentou as bases de seu pensamento. A Segunda se encontrar encabeando aexposio de 27 de setembro de 1981. A terceira corresponde ao explicado por quem o precedera nouso da palavra em 6 de junho de 1986. O recurso das notas antepostas, e no ao p da pgina ou ao

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    final do livro, responde idia de apresentar ao leitor um contexto que, de outro modo, poderia seromitido.

    Exclumos todo o dito por Silo ante aos meios de difuso. Uma recompilao abundante dessetipo de material exige um tratamento diferente ao usado no presente trabalho.

    As explicaes que agora apresentamos so transcries de notas e gravaes de udio e vdeo.

    Os recompiladores

    OPINIES, COMENTRIOSE

    PARTICIPAO EM ATOS PBLICOS

    A CURA DO SOFRIMENTOPunta de Vacas. Mendoza, Argentina.

    4 de Maio de 1969

    Notas:

    1 - A ditadura militar argentina tinha proibido a realizao de todo e qualquer ato pblico nascidades. Por conseguinte, escolheu-se uma paragem desolada, conhecida como Punta de Vacas,nos limites do Chile e da Argentina. Desde muito cedo as autoridades controlaram as rotas de

    acesso. Distinguiam-se ninhos de metralhadoras, veculos militares e homens armados. Paraaceder ao local era necessrio exibir documentao e dados pessoais, o que criou alguns conflitoscom a Imprensa internacional. Num magnfico cenrio de montes nevados, Silo comeou a suaalocuo perante um auditrio de duzentas pessoas. O dia era frio e ensolarado. Por volta das12h. tudo tinha acabado.

    2 - Esta a primeira interveno pblica de Silo. Com uma envolvente mais ou menos potica,explica-se que o conhecimento mais importante para a vida (a real sabedoria) no coincide como conhecimento de livros, de leis universais, etc., mas sim que uma questo de experinciapessoal, ntima. O conhecimento mais importante para a vida est referido compreenso dosofrimento e sua superao.

    Em seguida, expe-se uma tese muito simples, em vrias partes: 1. Comea-se por distinguir

    entre a dor fsica e os seus derivados, sustentando que podem retroceder graas ao avano dacincia e da justia, diferena do sofrimento mental que no pode ser eliminado por elas; 2.Sofre-se por trs vias: a da percepo, a da recordao e a da imaginao; 3. O sofrimentodenuncia um estado de violncia; 4. A violncia tem como raiz o desejo; 5. O desejo tem diferentesgraus e formas. Atendendo a isto (pela meditao interna), pode-se progredir.

    Assim: 6. O desejo (quanto mais grosseiros so os desejos) motiva a violncia, que no ficano interior das pessoas, antes contamina o meio de relao; 7. Observam-se diferentes formas deviolncia e no somente a primria, que a violncia fsica; 8. necessrio contar com uma

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    conduta simples que oriente a vida (cumpre com mandamentos simples): aprender a levar a paz,a alegria e sobretudo a esperana.

    Concluso: a cincia e a justia so necessrias para vencer a dor na espcie humana. Asuperao dos desejos primitivos imprescindvel para vencer o sofrimento mental.

    Se vieste escutar um homem de quem se supe que transmite a sabedoria, enganaste-te nocaminho, porque a real sabedoria no se transmite por meio de livros nem de discursos; a realsabedoria est no fundo da tua conscincia como o amor verdadeiro est no fundo do teu corao.

    Se vieste empurrado pelos caluniadores e os hipcritas para escutar este homem, a fim de que oque escutas te sirva depois como argumento contra ele, enganaste-te no caminho, porque estehomem no est aqui para te pedir nada, nem para te usar, porque no precisa de ti.

    Escutas um homem desconhecedor das leis que regem o Universo, desconhecedor das leis daHistria, ignorante das relaes que regem os povos. Este homem dirige-se tua conscincia amuita distncia das cidades e das suas ambies enfermas. L nas cidades, onde cada dia um aftruncado pela morte, onde ao amor sucede o dio, onde ao perdo sucede a vingana; l nas cidadesdos homens ricos e pobres; l nos imensos campos dos homens, pousou um manto de sofrimento ede tristeza.

    Sofres quando a dor morde o teu corpo. Sofres quando a fome se apodera do teu corpo. Mas nosofres s pela dor imediata do teu corpo, pela fome do teu corpo. Sofres tambm pelasconsequncias das enfermidades do teu corpo.

    Deves distinguir dois tipos de sofrimento. H um sofrimento que se produz em ti merc dadoena (e esse sofrimento pode retroceder graas ao avano da cincia, assim como a fome poderetroceder, mas graas ao imprio da justia). H outro tipo de sofrimento que no depende dadoena do teu corpo, mas que deriva dela: se ests impedido, se no podes ver, ou se no ouves,sofres; mas ainda que este sofrimento derive do corpo, ou das doenas do teu corpo, tal sofrimento da tua mente.

    H um tipo de sofrimento que no pode retroceder frente ao avano da cincia nem frente aoavano da justia. Esse tipo de sofrimento, que estritamente da tua mente, retrocede frente f,frente alegria de viver, frente ao amor. Deves saber que este sofrimento est sempre baseado naviolncia que h na tua prpria conscincia. Sofres porque temes perder o que tens, ou pelo que jperdeste, ou pelo que desesperas alcanar. Sofres porque no tens, ou porque sentes temor emgeral... Eis os grandes inimigos do homem: o temor doena, o temor pobreza, o temor morte, otemor solido. Todos estes so sofrimentos prprios da tua mente; todos eles denunciam aviolncia interna, a violncia que h na tua mente. Repara que essa violncia deriva sempre dodesejo. Quanto mais violento um homem, mais grosseiros so os seus desejos.

    Gostaria de te propr uma histria que aconteceu h muito tempo.

    Existiu um viajante que teve que fazer uma longa travessia. Ento, atou o seu animal a umacarroa e empreendeu uma longa marcha rumo a um longnquo destino e com um limite fixo de

    tempo. Ao animal chamou-lhe Necessidade, carroa Desejo, a uma roda chamou-lhe Prazer e outra Dor. Assim ento, o viajante levava a sua carroa para a direita e para a esquerda, mas semprerumo ao seu destino. Quanto mais velozmente andava a carroa, mais rapidamente se moviam asrodas do Prazer e da Dor, ligadas como estavam pelo mesmo eixo e transportando como estavam acarroa do Desejo. Como a viagem era muito longa, o nosso viajante aborrecia-se. Decidiu entodecor-la, ornament-la com muitas belezas, e assim foi fazendo. Porm, quanto mais embelezou acarroa do Desejo mais pesado se tornou para a Necessidade. De tal maneira que nas curvas e nasencostas empinadas, o pobre animal desfalecia, no podendo arrastar a carroa do Desejo. Noscaminhos arenosos as rodas do Prazer e do Sofrimento enterravam-se no solo. Assim, desesperou

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    um dia o viajante porque era muito longo o caminho e estava muito longe do seu destino. Decidiumeditar sobre o problema nessa noite e, ao faz-lo, escutou o relincho do seu velho amigo.Compreendendo a mensagem, na manh seguinte desbaratou a ornamentao da carroa, aliviou-ados seus pesos e muito cedo levou o seu animal a trote, avanando rumo ao seu destino. No entanto,tinha perdido um tempo que j era irrecupervel. Na noite seguinte, voltou a meditar ecompreendeu, por um novo aviso do seu amigo, que tinha agora de acometer uma tarefa duplamente

    difcil porque significava o seu desprendimento. Muito de madrugada, sacrificou a carroa doDesejo. certo que ao faz-lo perdeu a roda do Prazer, mas com ela tambm a roda do Sofrimento.Montou o animal da Necessidade e, em cima do seu lombo, meteu-se a galope pelas verdespradarias at chegar ao seu destino.

    Repara como o desejo te pode encurralar. H desejos de diferente qualidade. H desejos maisgrosseiros e h desejos mais elevados. Eleva o desejo, supera o desejo, purifica o desejo, quehavers certamente de sacrificar com isso a roda do prazer, mas tambm a roda do sofrimento.

    A violncia no homem, movida pelos desejos, no fica s como doena na sua conscincia, antesatua no mundo dos outros homens, exercitando-se com o resto das pessoas. No creias que falo deviolncia referindo-me apenas ao fato armado da guerra, em que uns homens destroam outroshomens. Essa uma forma de violncia fsica. H uma violncia econmica: a violncia econmica

    aquela que te faz explorar outro; a violncia econmica d-se quando roubas outro, quando j nos irmo do outro, mas sim ave de rapina para o teu irmo. H, alm disso, uma violncia racial:achas que no exercitas a violncia quando persegues outro que de uma raa diferente da tua,achas que no exerces violncia quando o difamas por ser de uma raa diferente da tua? H umaviolncia religiosa: achas que no exercitas a violncia quando no ds trabalho, ou fechas asportas, ou despedes algum, por no ser da tua mesma religio? Achas que no violncia cercaraquele que no comunga os teus princpios por meio da difamao; cerc-lo na sua famlia, cerc-loentre a sua gente querida, porque no comunga a tua religio? H outras formas de violncia queso as impostas pela moral filistia. Tu queres impor a tua forma de vida a outro, tu deves impor atua vocao a outro... mas quem te disse que s um exemplo que se deve seguir? Quem te disse quepodes impor uma forma de vida porque a ti te apraz? Onde est o molde e onde est o tipo para quetu o imponhas?... Eis outra forma de violncia. S podes acabar com a violncia em ti e nos outros e

    no mundo que te rodeia pela f interior e pela meditao interior. No h falsas portas para acabarcom a violncia. Este mundo est prestes a explodir e no h forma de acabar com a violncia! Noprocures falsas portas! No h poltica que possa solucionar este af de violncia enlouquecido. Noh partido nem movimento no planeta que possa acabar com a violncia no mundo... Dizem-me queos jovens em diferente latitudes esto a procurar falsas portas para sair da violncia e do sofrimentointerior. Procuram a droga como soluo. No procures falsas portas para acabar com a violncia.

    Irmo meu: cumpre com mandamentos simples, como so simples estas pedras e esta neve e estesol que nos bendiz. Leva a paz em ti e leva-a aos outros. Irmo meu: alm, na Histria, est o serhumano mostrando o rosto do sofrimento, olha esse rosto do sofrimento... mas recorda que necessrio seguir adiante e que necessrio aprender a rir e que necessrio aprender a amar.

    A ti, irmo meu, lano esta esperana, esta esperana de alegria, esta esperana de amor, para queeleves o teu corao e eleves o teu esprito, e para que no te esqueas de elevar o teu corpo.

    A AO VLIDALas Palmas de Gran Canaria. Espanha.

    29 de Setembro de 1978

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    Conversa diante de um grupo de estudos.

    Qual a ao vlida? A esta pergunta se respondeu, ou se tratou de responder, de distintos modose quase sempre levando em conta a bondade ou a maldade da ao. Tratou-se de responder aovlido da ao. Quer dizer, deram-se respostas ao que desde antigamente tem sido conhecido como

    o tico ou o moral. Durante muitos anos nos preocupamos em consultar a respeito do que era omoral, do que era o imoral, o bom e o mau. Mas, basicamente, nos interessou saber o que era ovlido na ao. Foram nos respondendo de distintos modos. Houve respostas religiosas, houverespostas jurdicas, houve respostas ideolgicas. Em todas essas respostas nos diziam que aspessoas deviam fazer as coisas de um modo e tambm evitar fazer as coisas de outro modo. Parans era muito importante obter uma clara resposta sobre este ponto. Era de muita importncia emrelao atividade humana que, segundo tenha uma direo ou tenha outra, desenvolve tambmuma forma de vida distinta. Tudo se acomoda na vida humana segundo a direo. Se minha direoa futuro de um tipo, meu presente se acomoda tambm a ele. De modo que estas perguntas emtorno ao vlido, ao invlido, ao bom, ao mau, afetam no s o futuro do ser humano, mas tambmseu presente. Afetam no s o indivduo, afetam os conjuntos humanos, afetam os povos.

    Diferentes posturas religiosas davam sua soluo. Assim, para os crentes de determinadasreligies, havia que cumprir com certas leis, com certos preceitos inspirados por Deus. Isso eravlido para os crentes dessas religies. E mais: distintas religies davam distintos preceitos.Algumas indicavam que no se deviam realizar determinadas aes para evitar certo retorno dosacontecimentos; outras religies o indicavam para evitar um inferno. s vezes no coincidiamtampouco estas religies que a princpio eram universais; no coincidiam em seus preceitos e emseus mandatos. Porm, o mais preocupante de tudo isto, consistia em que ocorria em reas domundo onde muitssimos desses habitantes no podiam cumprir, ainda querendo de muito boa f,no podiam cumprir com esses preceitos porque no os sentiam. De maneira que os no crentes(que tambm para as religies so filhos de Deus), no podiam cumprir esses mandatos, como setivessem sido abandonados pela mo de Deus. Uma religio, se universal, deve s-lo no porqueocupe geograficamente o mundo. Basicamente, deve ser universal porque ocupe o corao do serhumano, independentemente de sua condio, independentemente de sua latitude. Assim, asreligies, em sua resposta tica, nos apresentavam certas dificuldades.

    Consultamos ento outros formadores de conduta: os sistemas jurdicos. Estes so formadores,so moldadores de conduta. Os sistemas jurdicos estabelecem de algum modo aquilo que se devefazer ou se deve evitar no comportamento de relao, no comportamento social. Existem cdigos detodo o tipo para regulamentar as relaes. H at cdigos penais, que prevem a punio paradeterminados delitos, ou seja, para comportamentos considerados no sociais, ou associais, ouantisociais. Os sistemas jurdicos tambm trataram de dar sua resposta conduta humana, no que serefere ao bom ou mau comportamento. E assim como as religies deram sua resposta, e est bempara seus crentes, tambm os sistemas jurdicos deram sua resposta, e est bem para um momentohistrico dado, est bem para um tipo de organizao social, mas nada dizem ao indivduo que devecumprir com uma determinada conduta. Porque as pessoas razoveis sem dvida advertem que

    interessante que exista uma regulamentao da conduta social a fim de evitar um caos total. Masesta uma tcnica de organizao social, no uma justificativa da moral. E por certo que segundoseu desenvolvimento e segundo sua concepo, as distintas comunidades humanas tm normas deconduta juridicamente regulamentadas, que s vezes se opem. Os sistemas jurdicos no tmvalides universal. Servem para um momento, para um tipo de estrutura, mas no servem para todosos seres humanos, nem servem para todos os momentos e todas as latitudes; e, o mais importante detudo, nada dizem ao indivduo sobre o bom e do mau.

    Tambm consultamos as ideologias. As ideologias so mais amigas dos desenvolvimentos ebastante mais vistosas em suas explicaes que os chatos sistemas legais, ou talvez os preceitos e as

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    leis trazidas das alturas. Algumas doutrinas explicavam que o ser humano uma espcie de animalde rapina, um ser que se desenvolve a custa de tudo e que deve abrir caminho apesar de tudo,apesar inclusive dos outros seres humanos. Uma espcie de vontade de poderio a que est por trsdessa moral. De algum modo essa moral, que pode parecer romntica, todavia s valoriza o xito, enada diz ao indivduo em relao ao fato de que as coisas lhe saiam mal em suas pretenses devontade de poderio.

    H outro tipo de ideologia que nos diz: porque tudo na natureza est em evoluo e o prprio serhumano produto desta evoluo, e o ser humano o reflexo das condies que se do em ummomento dado, seu comportamento vai mostrar o tipo de sociedade em que vive. Assim, uma classevai ter um tipo de moral e outra vai ter outro tipo de moral. Desta maneira, a moral est determinadapelas condies objetivas, pelas relaes sociais e pelo modo de produo. No h que preocupar-semuito pelo que algum faz o que mecanicamente est impulsionado a fazer, ainda que, por razespublicitrias, se fale da moral de uma classe e da moral de outra. Limitando-nos aodesenvolvimento mecnico, eu fao o que fao porque estou impulsionado em tal sentido. Onde esto bom e onde est o mau?... H somente um choque mecnico de partculas em marcha.

    Outras singulares ideologias nos diziam coisas como estas: a moral uma presso social queserve para conter a fora dos impulsos e esta conteno que efetua uma espcie de super-

    conscincia, esta compreenso que faz no caldeiro da conscincia permite que aqueles impulsosbsicos se vo sublimando, vo tomando certa direo...

    De modo que nosso pobre amigo, que v passar uns e outros com suas ideologias, senta-se rpidona calada e diz: o que que eu devo fazer, porque aqui me pressiona um conjunto social, eu tenhoimpulsos e parece que estes se podem aperfeioar, sempre quando for engenhoso. De outro modo,ou me coloco no sof do psicanalista ou terminarei neurtico. Assim, a moral, em realidade, umaforma de controle destas presses que, todavia, s vezes transbordam do caldeiro.

    Outras ideologias, tambm psicolgicas, explicaram o bom e o mau segundo a adaptao. Umamoral de conduta adaptativa, algo que permite encaixar em um conjunto e, na medida em quealgum se desencaixa desse conjunto, tem problemas. Assim que mais vale andar direitinho eencaixar-se bem no conjunto. A moral nos diz o que o bom e o que o mau de acordo com a

    adaptao que deve estabelecer o indivduo, de acordo com o encaixe que o indivduo tenha em seumeio. E est bem... outra ideologia.

    Mas nas pocas das grandes fadigas culturais, como ocorreu j repetidamente em outrascivilizaes, surgem as respostas curtas, imediatas, a respeito do que se deve fazer e do que no sedeve fazer. Estou me referindo s chamadas escolas morais de decadncia. Em distintas culturas(j em seu fim), surgem espcies de moralistas que muito rapidamente tratam de acomodar seuscomportamentos como melhor podem, a fim de dar uma direo a sua vida. Esto alguns que dizemmais ou menos isto: A vida no tem nenhum sentido, e como no tem nenhum sentido, posso fazero que quiser... se posso. Outros dizem: Como a vida no tem muito sentido, devo fazer aquelascoisas que me satisfazem, que me fazem sentir bem, s custas de todos os outros. Finalmente,alguns afirmam: J que estou em uma m situao e at a prpria vida sofrimento, devo fazer ascoisas guardando certas formas, certo desinteresse, certa impassibilidade. Devo fazer as coisas

    como um estico. Assim se chama esta ltima escola da decadncia: as escola esticas.Por trs destas escolas, ainda que sejam respostas de emergncia, h tambm ideologia. Esta,

    parece, a ideologia bsica de que tudo perdeu sentido e se responde de urgncia a essa perda desentido. Atualmente, por exemplo, pretende-se justificar a ao com uma teoria do absurdo, ondeaparece de contrabando o compromisso. Ocorre que estou comprometido com algo e portantodevo cumprir. Trata-se de uma espcie de coao bancria. difcil compreender que se possaestabelecer um compromisso se o mundo em que vivo absurdo e termina no nada. Por outro lado,isto no outorga nenhuma convico a quem declama tal postura.

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    Assim, as religies, os sistemas jurdicos, os sistemas ideolgicos, as escolas morais dadecadncia, trabalharam para dar resposta a este srio problema da conduta, para estabelecer umamoral, para estabelecer uma tica, porque todos eles alertaram para a importncia que tem ajustficativa ou no justificativa de um ato.

    Qual a base da ao vlida? A base da ao vlida no est dada pelas ideologias, nem pelosmandamentos religiosos, nem pelas crenas, nem pela regulamentao social. Ainda que todas estascoisas sejam de muita importncia, a base da ao vlida no est dada por nenhuma delas, senoque est dada pelo registro interno da ao. H uma diferena fundamental entre a valorizao queparece provir do exterior e esta valorizao que se faz da ao pelo registro que o ser humano temdo que precisamente faz.

    E qual o registro da ao vlida? O registro da ao vlida aquele que se experimenta comounitivo; aquele que d ao mesmo tempo sensao de crescimento interno e , por ltimo, aqueleque se deseja repetir porque tem sabor de continuidade no tempo.

    Examinaremos estes aspectos de modo separado.

    O registro de unidade interna por um lado e a continuidade no tempo por outro lado.

    Frente a uma situao difcil, posso eu responder de um modo ou de outro. Se sou provocado, por

    exemplo, posso responder violentamente e frente a essa irritao que me produz o estmulo externoe esta tenso que me provoca, posso distender-me, posso reagir violentamente e ao faz-loexperimentar uma sensao de alvio. Distendo-me. Assim pois, aparentemente, cumpriu-se aprimeira condio da ao vlida: frente a um estmulo irritante, tiro-o da frente, e ao faz-lodistendo-me, e ao distender-me tenho um registro unitivo.

    A ao vlida no pode justificar-se simplesmente pela distenso nesse instante, porque no secontinua no tempo, mas produz o contrrio. No momento A produzo a distenso ao reagir do modocomentado; no momento B no estou nada de acordo com o que fiz. Isto me produz contradio.Essa distenso no unitiva enquanto o momento posterior contradisser o primeiro. necessrioque cumpra, alm disso, com o requisito da unidade no tempo, sem apresentar fissuras, semapresentar contradio. Poderamos apresentar numerosos exemplos onde isto da ao vlida para

    um instante e no para o seguinte e o sujeito no pode, cabalmente, tratar de prolongar esse tipode atitude, porque no registra unidade, mas contradio.

    Porm, h outro ponto: o do registro de uma espcie de sensao de crescimento interno. Hnumerosas aes que todos efetuamos durante o dia, determinadas tenses que aliviamosdistendendo. Estas no so aes que tenham a ver com a moral. Ns as realizamos e nosdistendemos e nos provoca um certo prazer, mas a ficam. E se novamente surgisse uma tenso,novamente a descarregaramos como essa espcie de efeito condensador, onde sobe uma carga e, aochegar a certos limites, se descarrega. E assim, com este efeito condensador de carregar edescarregar, nos d a impresso de que estivramos metidos em uma eterna roda de repetio deatos, onde no momento em que se produz esta descarga de tenso, a sensao resulta prazerosa, masnos deixa um estranho sabor de perceber que se a vida fosse simplesmente isso, uma roda derepeties, de prazeres e dores; esta no passaria do absurdo. E hoje, diante desta tenso, provoco

    esta descarga. E amanh do mesmo modo... sucedendo-se a roda das aes, como o dia e a noite,continuamente, independentemente de toda inteno humana, independente de toda escolhahumana.

    H aes, todavia, que talvez muito poucas vezes realizamos em nossas vidas. So aes que nosdo grande unidade no momento. So aes que nos do, alm disso, o registro de que algomelhorou em ns quando fizemos isso. E so aes que nos do uma proposta a futuro, no sentidode que se pudssemos repeti-las algo iria melhorando. So aes que nos do unidade, sensao decrescimento interno, e continuidade no tempo. Esses so os registros da ao vlida.

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    Ns nunca dissemos que isto seja melhor ou pior, ou que se deva obrigatoriamente fazer: damosas propostas e os sistemas de registros que correspondem a essas propostas. Falamos das aes quecriam unidade ou criam contradio. E, por ltimo, falamos do aperfeioamento da ao vlida, pelarepetio desses atos. Como que para fechar um sistema de registros de aes vlidas, dissemos:Se repetes teus atos de unidade interna, nada poder deter-te. Este ltimo fala no s do registrode unidade, da sensao de crescimento, da continuidade no tempo. Isso fala do melhoramento da

    ao vlida. Porque, claro, nem todas as coisas nos saem bem nas tentativas. Muitas vezestratamos de fazer coisas interessantes e no saem to bem. Nos damos conta que essas coisas podemmelhorar. Tambm a ao vlida pode aperfeioar-se. A repetio daqueles atos que do unidade ecrescimento e continuidade no tempo, constituem o melhoramento da prpria ao vlida. Isto possvel.

    Ns, em princpios muito gerais, demos os registros da ao vlida. H um princpio maior,conhecido como A Regra de Ouro. Este princpio diz assim: trata os outros como gostaria de sertratado. Este princpio no coisa nova, tem milnios. Suportou o passo do tempo em distintasregies, em distintas culturas. um princpio universalmente vlido. Tem se formulado de distintasmaneiras; foi considerado por seu aspecto negativo, dizendo algo assim como: No faas a outroso que no queres que faam a ti. outro enfoque da mesma idia. Ou ento se disse: Ama a teuprximo como a ti mesmo. outro enfoque. Claro, no exatamente o mesmo que dizer trata osoutros como gostaria de ser tratado. E est bem, e h muito tempo se fala deste princpio. omaior dos princpios morais. o maior dos princpios da ao vlida. Mas, como quero que tratem amim? Porque se d por certo que ser bom tratar os demais como eu gostaria que tratassem a mimmesmo. E como quero que me tratem? Terei que responder a isso dizendo que se me tratam de ummodo me fazem mal e, se me tratam de outro, me fazem bem. Terei que responder a respeito dobom e do mau. Terei que voltar eterna roda de definir a ao vlida, segundo uma ou outra teoria,segundo uma ou outra religio. Para mim ser uma boa coisa, para outra pessoa no ser o mesmo.E no faltar algum que tratar muito mal a outro, aplicando o mesmo princpio; porque ocorre quegostaria que o tratassem mal.

    Est muito bem este Princpio que fala assim do tratamento do outro, segundo o bom para mim,mas ser melhor saber o que bom para mim. Desse modo, nos interessa ir base da ao vlida, e

    a base da ao vlida est no registro que se obtm dela.Se digo: devo tratar os outros como gostaria de ser tratado, imediatamente me pergunto: porque?. Haver algum processo em mim mesmo, haver alguma forma no funcionamento da menteque cria problemas em mim quando trato mal os outros. E como pode ser esse funcionamento? Seeu vejo algum numa condio muito ruim, ou vejo algum que levou um corte, ou uma ferido, algoressoa em mim. Como pode ressoar em mim algo que est ocorrendo a outro? quase mgico!Ocorre que algum sofre um acidente e experimento quase fisicamente o registro do acidente nooutro. Vocs so estudiosos desses fenmenos, sabem bem que a toda percepo corresponde umaimagem, e compreendem que algumas imagens podem tensionar certos pontos, enquanto outraspodem distend-los. Se a toda percepo vai correspondendo uma representao e dessarepresentao se tem, por sua vez, registro, isto , uma nova sensao, ento no to difcilentender como, ao perceber um fenmeno, e ao corresponder-se a imagem interna com esse

    fenmeno (ao mobilizar esta imagem), tenha por sua vez sensao em distintas partes de meu corpoou de meu intracorpo, que se modificaram por ao da imagem anterior. Sinto-me identificadoquando algum sofre um corte, porque percepo visual de tal fenmeno corresponde um disparode imagem visual, e correlativamente um disparo de imagens cinestsicas e tteis das quais, almdisso, tenho uma nova sensao que termina provocando em mim o registro do corte do outro. Noser bom que trate eu aos demais de maneira m, porque ao efetuar este tipo de atividade tenho ocorrespondente registro.

    Falaremos quase tecnicamente. Para isso vamos simular o funcionamento de circuitos por passos,ainda quando saibamos que a estrutura da conscincia procede como uma totalidade. Bem, uma

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    coisa o primeiro circuito que corresponde percepo, representao, nova tomada darepresentao e sensao interna. E outra o segundo circuito, que tem a ver com a ao, e quesignifica algo assim: de toda ao que lano ao mundo, tenho tambm registro interno. Essa tomadade realimentao , por exemplo, a que me permite aprender fazendo coisas. Se no houvesse emmim uma tomada de realimentao dos movimentos que estou fazendo, jamais poderia aperfeio-los. Eu aprendo a escrever mquina por repetio, isto , vou gravando atos entre acerto e erro.

    Posso gravar atos unicamente se os realizo. De tal modo que a partir do fazer que tenho registro.Permitam-me uma divagao. H um preconceito grande que s vezes tem invadido o campo da

    pedagogia. Segundo esta crena, aprende-se por pensar em vez de fazer. Certamente, aprende-seporque se tem a recepo de dados, mas tais dados no ficam simplesmente memorizados, mas quesempre correspondem a uma imagem que, por sua vez, mobiliza uma nova atividade: compara,rechaa, etc., e isto mostra a contnua atividade da conscincia e no uma suposta passividade naqual se alojam simplesmente os dados. Esta realimentao a que nos permite dizer: meequivoquei de tecla. Assim vou registrando a sensao do acerto e do erro; assim vouaperfeioando o registro do acerto, assim se vai fluidificando, e assim se vai automatizando acorreta ao do escrever mquina. Estamos falando de um segundo circuito. O primeiro se referia dor no outro que eu registro em mim; o segundo circuito fala do registro que tenho da ao queproduzo.

    Vocs conhecem as diferenas que existem entre os atos chamados catrticos e os atostransferenciais. Os atos catrticos referem-se basicamente s descargas de tenses e a ficam. Osatos transferenciais, diversamente, permitem transladar cargas internas, integrar contedos efacilitar o bom funcionamento psquico. Sabemos que ali onde h ilhas de contedos mentais,contedos que no se comunicam entre si, h dificuldades para a conscincia. Se se pensa em umadireo, por exemplo, mas se sente em outra e, finalmente se atua em outra diferente,compreendemos que isto no encaixa e que o registro no pleno. Parece que unicamente quandotemos pontes entre os contedos internos, o funcionamento psquico se integra e permite avanaruns passos mais. Conhecem-se tcnicas transferenciais muito teis que mobilizam e transformamdeterminadas imagens problemticas. Um exemplo desta tcnica est apresentada em forma literrianas Experincias Guiadas. Mas tambm sabemos que ao, e no s o trabalho das imagens, pode

    operar fenmenos transferenciais e fenmenos autotransferenciais. No ser o mesmo um tipo deao que outra. Haver aes que permitam integrar contedos internos e haver aestremendamente desintegradoras. Determinadas aes produzem no ser humano tal carga de pesar,tal arrependimento e diviso interna, tal profundo desasossego, que esta pessoa jamais gostaria devoltar a repeti-las. E, desafortunadamente, ficaram tais aes ligadas ao passado. Ainda que no serepetissem tais aes no futuro, seguiriam pressionando desde o passado sem serem resolvidas, semrendio, sem permitir que a conscincia translade, transfira, integre seus contedos e permita aosujeito essa sensao de crescimento interno da qual falamos anteriormente.

    No indiferente a ao que se realiza no mundo. H aes das quais se tm registro de unidadee aes que do registro de contradio, de desintegrao. Se se estuda isto cuidadosamente, luzdo que se sabe em matria de fenmenos catrticos e transferenciais, este assunto (da ao nomundo, no que se refere integrao e desenvolvimento dos contedos), ficar muito mais claro.

    Mas, desde logo, toda esta simulao dos circuitos para compreender o significado da ao vlida um tema complicado. Entretanto, nosso amigo segue dizendo: E eu, que fao?. Ns registramoscomo unitivo e valioso levar a esse que est sentado na calada (sem referncia em sua vida), estascoisas que minimamente conhecemos, mas em palavras e em fatos simples. Se ningum faz isto porele, ns o faremos (como tantas outras coisas que permitiro superar a dor e o sofrimento). Aoproceder assim, trabalharemos tambm para ns mesmos.

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    SOBRE O ENIGMA DA PERCEPOLas Palmas de Gran Canaria. Espanha.

    1 de Outubro de 1978

    Palestra informal ante um grupo de estudos.

    H 2.500 anos, em uma aula magistral de Psicologia Descritiva, Buda desenvolveu um dosproblemas mais importantes referidos percepo, conscincia observadora da percepo,baseando-se em um mtodo de registros. Este tipo de Psicologia muito diferente da Psicologiaoficial ocidental que trabalha mais com explicaes a respeito dos fenmenos. Tomem um tratadode Psicologia e vero como, dado um fenmeno, em seguida organizam uma quantidade deexplicaes sobre o fenmeno, mas quanto ao fenmeno mesmo no do seu correto registro. Assimsendo, as correntes psicolgicas (a medida que se modificam com o passar do tempo suas

    concepes e seus dados, medida que se ampliam ou se reduzem seus conhecimentos), voexplicando os fenmenos psquicos de modo diferente. Assim, se tomamos um tratado de Psicologiade 100 anos, vamos encontrar uma quantidade de ingenuidades ali, que hoje no se pode admitir.Este tipo de Psicologia sem centro prprio, depende em grande parte do aporte de outras cincias.Uma explicao neurofisiolgica dos fenmenos de conscincia interessante e um avano. Empouco tempo vamos nos encontrar com outra mais complexa. De todo modo, o conhecimentoavana quanto explicao; mas quanto descrio do fenmeno em si, tais explicaes no tiramnem somam nada. Sem dvida, uma correta descrio feita h 2.500 anos, nos permite assistir apario do fenmeno mental, exatamente como se tivesse acontecido hoje. Do mesmo modo, umacorreta descrio dada hoje, servir sem dvida para muito tempo mais adiante. Este tipo dePsicologia descritiva, no explicativa (salvo quando a explicao incompreensvel), se baseia emregistros similares para todos aqueles que seguem a descrio. como se estas descries tornaram

    contemporneos a todos os homens, ainda que estivessem muito separados no tempo e, assim, osfazem tambm conterrneos ainda que estejam muito separados em latitude. Tal tipo de Psicologia, alm disso, um gesto de aproximao a todas as culturas (por diferentes que elas sejam), porqueno enaltece as diferenas nem pretende impor o esquema prprio de uma cultura a todas as outras.Este tipo de Psicologia acerca dos seres humanos, no os diferencia. , portanto, um bom aporte compreenso.

    Chegando a nosso tema. Ao que parece, Buda estava reunido com um conjunto de especialistas ena forma de dilogo desenvolveu o que foi conhecido posteriormente como O enigma daPercepo.

    Prontamente, Buda levantou sua mo e perguntou a um de seus discpulos mais notveis: - Quevs, Ananda?

    Com seu estilo sbrio, Buda perguntava e respondia cada vez com preciso... Ananda era muitomais exuberante em seus desenvolvimentos. Por conseguinte, Ananda disse: -Oh!, Nobre Senhor,!Vejo a mo do Iluminado que est diante de mim e que se fecha.

    - Muito bem, Ananda. Onde vs a mo, e desde onde?

    - Oh!, Mestre, vejo a mo de meu nobre Senhor que se fecha e mostra o punho. Vejo-a, claro,fora de mim e desde mim

    - Muito bem, Ananda. Com que vs a mo?

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    - bviamente, Mestre, que vejo a mo exatamente com meus olhos.

    - Diga-me, Ananda, a percepo est nos seus olhos?

    - Com certeza, Venervel Mestre.

    - E diga-me, Ananda, que acontece quando fecha as plpebras?

    - Nobre Mestre, quando fecho as plpebras desaparece a percepo.- Isso, Ananda, impossvel. Por acaso, Ananda, quando se escurece este quarto e vai vendo cada

    vez menos, vai desaparecendo a percepo?

    - Exato, Mestre.

    - E por acaso, Ananda, quando esta habitao fica s escuras e, sem dvida, tu ests com os olhosabertos e no vs nada, desapareceu a percepo?

    - Oh!, Nobre Mestre, eu sou teu primo! Lembra que nos educamos juntos e que tu me queriasbem quando pequeno, de maneira que no me confundas!

    - Ananda: se escurece o quarto no vejo os objetos mas meus olhos continuam funcionando.Assim, se h luz atrs de minhas plpebras, vejo passar essa luz, e se h total escurido fica isto s

    escuras: de modo que no desaparece a percepo pelo feito de fechar as plpebras. Diga-me,Ananda, se a percepo est no olho, e tu imaginas que v minha mo, de onde a v?

    - Ser, Senhor, que vejo tua mo imaginando-a tambm desde meu olho.

    - Que queres dizer, Ananda? Que a imaginao est no olho? Isso no possvel. Se aimaginao estivesse no olho, e tu imaginaras a mo dentro de tua cabea, teria que dar volta em teuolho para trs para ver a mo que est dentro de tua cabea. Tal coisa no possvel. De maneiraque ters que reconhecer que a imaginao no est no olho. Onde est ento?

    - Ser - disse Ananda -, que tanto a viso como a imaginao no esto no olho mas esto atrsdo olho. E ao estar atrs do olho, quando imagino posso ver atrs, e quando vejo, quando percebo,posso ver o que h diante do olho.

    - No segundo caso, Ananda, no verias os objetos, mas verias o olho...E assim seguindo com este tipo de dilogo. Com O Enigma da Percepo, vo se complicando os

    registros, vo se apresentando aparentes solues, mas tambm vo se dando cada vez objees,mais fortes at que finalmente Ananda, muito comovido, pede a Buda uma adequada explicao decomo esta historia da viso, da imaginao, e da conscincia em geral. E se Buda muito restritonas descries, em suas explicaes comea a dar enormes voltas, e assim, vai se encerrando estecaptulo contido no Surangama Sutra, um dos tratados mais interessantes destes estudiosos.

    Quando mostramos a mo, vemos a mo fora e desde dentro. Quer dizer que o objeto nos aparecenum lugar diferente do ponto de observao do objeto. Se meu ponto de observao estivesse fora,no poderia ter noo do que vejo. Por conseguinte, o ponto de observao deve estar dentro e nofora e o objeto deve estar fora e no dentro. Mas se, ao contrrio, imagino a mo dentro da minhacabea, sucede que tanto a imagem como o ponto de observao esto dentro. No primeiro caso, namo que vejo fora desde dentro, pareceria que o ponto de observao coincidiria aproximadamentecom o olho. No segundo caso, quando a mo est dentro, o ponto de observao no coincide com oolho; j que se represento a mo dentro de minha cabea, posso v-la desde meu olho para dentro,desde a parte posterior da minha cabea para dentro. Posso tambm ver minha mo desde cima,desde baixo, e assim, desde muitos lugares. dizer, que tratando-se de uma representao e no deuma percepo, o ponto de observao varia. Portanto, o ponto de observao, no que arepresentao faz, no est fixo ao olho.

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    Se imagino agora minha mo que est no centro de minha cabea saindo para trs, sigoimaginando minha mo desde dentro de minha cabea, ainda que represente minha mo fora dela.Podia pensar-se que o ponto de observao em algum momento sai de minha cabea. Tal coisa no possvel. Se imagino a mim mesmo, por exemplo, me olhando desde minha frente, possorepresentar para mim a este que me olha, desde aqui, desde onde estou. Tambm posso chegar aimaginar meu aspecto como se fosse visto desde l, desde aquele que me olha. Sem dvida, ainda

    quando me coloque na imagem do que est a frente de mim, tenho o registro desde mim, desde ondeestou. No posso dizer do mesmo modo, que quando me olho no espelho, me vejo dentro doespelho ou me sinto dentro do espelho. Eu estou aqui olhando-me ali, e no estou ali, olhando-meaqui. Algum poderia confundir-se e crer que por enfrentar a representao de si mesmo, ali estposto o ponto de observao; e nem neste caso, tal coisa possvel. Em determinados casosexperimentais (cmara de silncio, por exemplo), ao diminuir certos registros perceptivos, se perdea noo do Eu. E ao perder-se a noo do Eu, ao no ter referncia do limite ttil se tem s vezes aimpresso de que se est fora daqui, e inclusive que desde ali se v a s mesmo. Mas secuidadosamente se toma o registro, vai observar que essa projeo ttil cenestsica, de todasmaneiras no pe o registro fora de ningum sem que essa pessoa no tenha exata noo do pontode registro pelo qual tenha perdido seus limites.

    Assim pois, vejo a mo fora de mim desde mim, ou bem, vejo a mo em mim e dentro de mim nocaso de imagin-la. Aparentemente, se trata do mesmo espao. H um espao no qual se posicionamos objetos que observo, ao qual posso chamar espao de percepo. Mas tambm h um espao deonde se posicionam os objetos de representao, que no coincide com o espao de percepo. Osobjetos que se posicionam nestes diferentes espaos, tm caractersticas diferentes. Se observo amo vejo que est a uma determinada distncia de meu olho. Vejo que est mais perto que outrosobjetos, e mais longe talvez que outros. Vejo que a mo, a sua forma, corresponde uma cor. E aindaque imagine outras coisas em torno da minha mo, a percepo se impe. Agora imagino a minhamo. Minha mo pode estar diante ou atrs de um objeto. Imediatamente posso mudar deposicionamento. Minha mo pode fazer-se muito pequena ou pode cobrir praticamente o campo deminha representao. A forma de minha mo pode variar e pode mudar sua cor. Assim pois, oposicionamento do objeto mental no espao de representao se modifica dependendo de minhasoperaes mentais, enquanto o posicionamento dos objetos no espao externo, se modifica tambmmas no dependendo de minhas operaes mentais. Por muito que eu pense que essa pilastra sedesloca, enquanto representao tal coisa possvel, mas perceptualmente tem sua permanncia.H, pois, diferenas grandes entre o objeto representado e o objeto percebido. E h grandesdiferenas tambm entre o espao de percepo e o de representao.

    Mas agora sucede que fecho as plpebras e represento minha mo. Est bem se represento minhamo dentro da minha cabea. Mas quando fecho as plpebras e lembro da minha mo que estavafora da minha cabea, de onde represento minha mo agora que me lembro dela? Represento-adentro da minha cabea?. No, represento-a fora da minha cabea. E, como ao recordar os objetosque vejo, como ao record-los, posso recordr-los agora ali de onde estavam, quer dizer, posicionar-los em um espao externo? Porque recordar um objeto externo que se posicione dentro da minhacabea aceitvel; mas isto de recordar um objeto que no est dentro da minha cabea seno fora

    dela, sendo que minhas plpebras esto fechadas e no as vejo, que tipo de espao estou vendo? Oubem os objetos que recordo esto dentro da minha cabea, e creio v-los fora, ou bem ao fechar asplpebras e recordar os objetos, minha mente vai para fora de meu espao interno e chega ao espaoexterno. Tal coisa no possvel. Distingo bem entre objetos internos e externos. Distingo bementre o espao de percepo e o espao de representao; mas os registros se confundem quandorepresento os objetos no lugar onde esto, quer dizer: fora de minha representao interna.

    Como distingo entre um objeto que est representado no interior da minha cabea, de um objetoque est representado ou lembrado fora da minha cabea? Distingo-o porque tenho noo do limiteda minha cabea. E o que que pe o limite? O limite est posto pela sensao ttil, e a sensao

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    ttil de minhas plpebras que me faz distinguir o objeto que est representado dentro, ou fora. Se assim, o objeto representado fora no necessariamente est fora, e sim posicionado na parte maissuperficial de meu espao de representao, o que me d o registro traduzido a imagem visual, deque est fora. Mas a diferena de limite tctil e no visual.

    To poderosa a representao que inclusive modifica a percepo. Se vocs vem este teloatrs e imaginam-o muito perto de seus olhos, vo ver que ao olhar novamente o telo real,precisam de um tempo para que se acomode a viso. dizer: vocs imaginam que o telo estmuito perto de seus olhos, e ao imagin-lo seu olho se acomoda ao telo imaginado e no ao real.Ou o contrrio, se vocs imaginam que vem atravs do telo um edificio que pudesse existir atrs,e logo olham o telo novamente, de novo o olho se acomoda; e se acomoda porque antes sedesacomodou; e se desacomodou porque o olho ps a distncia de acordo com a imagem e no coma percepo. A imagem, a representao, acomoda inclusive a percepo. Se isto assim, os dadosda percepo podem modificar-se seriamente de acordo com a representao que esteja atuando.Poderia, por exemplo, suceder que nosso sistema de representao acomodara ao mundo em geralde um modo no to exato a como ns cremos que . Sobretudo considerando que s vezes osfenmenos que se posicionam no espao de representao no coincidem com os fenmenos doespao de percepo. E sabendo que os fenmenos de representao modificam a percepo, apercepo pode estar alterada de acordo com o sistema de representao. E ao dizer alterada nofalo de casos particulares de alterao, e sim da percepo em geral. Isto de enormesconseqncias porque se minha representao corresponde a um determinado sistema de crenasseguramente estarei modificando minha viso e minha perspectiva sobre o mundo externo dapercepo.

    Posso orientar meu corpo at os objetos graas a percepo. Mas tambm posso orientar meucorpo at os objetos graas a representao. Se o objeto em lugar de estar representado fora,estivesse representado dentro da minha cabea, no poderia orientar minha atividade at o objeto.Quando estou em viglia e com os olhos abertos, meu ponto de observao coincide com o olho; eno s com o olho seno com todos os sentidos externos. Mas quando meu nvel de conscinciaabaixa, meu ponto de observao vai para dentro. Isto assim porque medida que diminui o nvelde conscincia, diminui o alcance de percepo dos sentidos externos e aumenta o registro dos

    sentidos internos. Portanto, o ponto de vista (que no seno estrutura de dados de memria e dedados de percepo, ao diminuir os dados de percepo externos e aumentar os internos), se deslocapara dentro. Este ponto de vista se desloca para dentro na queda dos nveis de conscincia,cumprindo com a funo de que a imagem do sonho no dispare sua carga e mova ao corpo at omundo externo. Se todas as imagems que surgem em meus sonhos mobilizassem atividade nomundo, o sonho no serviria para muita coisa no que diz respeito recomposio das atividades. Amenos que me encontre em uma situao sonamblica, ou de sonho alterado, de onde falo, memovo, me agito, por ltimo me levanto e me ponho a andar. Isto possvel porque o ponto de vista,em lugar de haver-se internalizado, se mantm avanando seguindo as representaes.

    Se por problemas com meus prprios contedos, meu ponto de vista expulso at a periferia, oupor estmulos externos meu ponto de vista chamado at a periferia (ainda que esteja em situaode sonho), minhas imagems tendem a estar posicionadas no ponto mais externo do espao de

    representao e, portanto, a disparar seus sinais at o mundo externo. Quando o sonho se fazprofundo, o ponto de observao cai para dentro, as imagems se internalizam e a estrutura em geraldo espao de representao se modifica. Deste modo, quando estou em viglia, vejo as coisas desdemim mas no me vejo a mim, enquanto que durante o sonho, imagino ver a mim mesmo. Emocasies, tambm nos sonhos, muitas pessoas no se vem a si mesmas, mas vem um modoparecido a como percebem o mundo na vida diria. Isto assim porque seu ponto de vista estdeslocado at os limites da representao. Seu sonho no tranquilo. Mas se o ponto de vista caipara dentro, me vejo a mim mesmo quando me represento em sonhos, desde fora. E no queminha imagem esteja fora da minha cabea. que meu ponto de observao correu para dentro e

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    observo na tela o filme da representao onde apareo eu mesmo. Mas no vou percebendo omundo desde mim como na viglia, e sim que me vejo realizando determinadas operaes. Istomesmo sucede com a memria antiga. Se vocs se recordam de vocs mesmos aos 2 anos de idade,ou aos 3, ou aos 4, no se recordan de vocs vendo os objetos desde vocs, mas se vem a vocsmesmos fazendo coisas ou entre determinados objetos. A memria antiga em relao a imagems,como a representao no nvel de sonho profundo, separa em profundidade o ponto de vista. Este

    ponto de vista no nada mais que o eu. O eu se move, o eu se posiciona em uma profundidade ouem outra do espao de representao, desde o eu se observa o mundo, desde o eu se observam asprprias representaes. O eu varivel, o eu adequa representaes e o eu modifica percepessegundo o exemplo que temos visto.

    Quando represento imagems que se posicionam em uma profundidade ou em outra profundidade,por exemplo, quando imagino que deso escadas at as profundidades, ou quando imagino que suboescadas se observo meu olho verei que meu olho abaixa, ou meu olho sobe. Quer dizer, ainda que oolho esteja de sobra, porque no tem que ver nenhum objeto externo, o olho vai seguindo asrepresentaes como as percebe. Se eu imagino minha casa que est l, meu olho tende a ir at l. Ese meu olho no fosse at l, de todos modos minha representao corresponde a esse lugar doespao. Inversamente, se imagino minha casa no outro ponto. Este olho que sobe e abaixa seguindoas imagems, vai se encontrando com diferentes objetos. Porque, segundo parece, essa tela derepresentao onde olha o eu, esto conectados todos os sistemas de impulsos do prprio corpo. Demaneira que em uma rea do espao de representao h impulsos de uma parte do corpo, em outrarea outros impulsos e assim sucessivamente. E vocs sabem que estes impulsos se traduzem, sedeformam, se transformam.

    En um exemplo muito conhecido se aponta o seguinte. Nosso sujeito comea a descer em suasimagems. O faz por uma espcie de tubo e em sua descida se encontra, rapidamente, com uma forteresistncia. Essa resistncia uma cabea de gato muito grande, que o impede de seguir descendono tubo. Para poder passar acaricia o pescoo do gato. Ele, nessa imagem, acaricia a pescoo dogato, e o gato rapidamente diminui. Simultaneamente, ele registra uma distenso em seu pescoo, eento, passa pelo tubo. Quer dizer que o gato no seno, nesse caso, a alegorizao de uma tensono pescoo do prprio sujeito. Ao produzir a distenso, ento o sistema de sinal dessa imagem

    alegorizada como gato, se modifica, diminui a resistncia, e nosso amigo desce. Em outro caso, umsujeito comea a descer em sua representao. L, nas profundidades, se encontra de repente comum senhor que lhe d uma pequena pedra escura. Nosso amigo comea a subir e chega at um planomdio, digamos, mais ou menos habitual, cotidiano, ainda que representado. Vem outro senhor e lhed um objeto diferente, mas de forma parecida ao objeto que viu l embaixo. Segue subindo at asalturas. Vai subindo em direo s montanhas, se perde nas nuvens, e l se encontra com umaespcie de anjo ou algo parecido, que lhe d um objeto mais radiante, mais claro, mas comcaractersticas similares. Nos 3 casos, nosso amigo observa o objeto em um ponto preciso do espaode representao. O mesmo objeto no aparece em um ponto aqui, em outro ali, em outro l, massegundo o plano pelo qual se desloca, o objeto aparece na metade do plano, um pouco corrido at aesquerda. E claro, nosso amigo tem, e logo o recorda, uma vrtebra artificial que d sinal, aindaque ele habitualmente no o perceba sempre do mesmo modo, e sempre traduzindo-se este sinal

    como uma imagem.De maneira que os sistemas de alegorizao, transformam os sinais do intracorpo e os traduzem

    como imagems em diferentes pontos do espao de representao. No que o olho ao subir eabaixar torne a observar o que sucede no intracorpo. No se meteu o olho dentro do esfago maschegou at a tela de representao o sinal de tenso, sem que o olho tenha chegado at este ponto.Assim pois, se descendo, vou tomando contato com tradues de diferente nvel do intracorpo. Istono quer dizer que meu olho vai se introduzindo em minhas vsceras, e traduzindo o que vejo.

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    A medida que se desce no espao de representao, este vai escurecendo. A medida que se sobeno espao de representao, este vai clareando, segundo conhecem vocs repetidamente. Estaescurido na descida e claridade para cima, tem a ver em realidade com dois fenmenos: um, odistanciamento dos centros pticos; outro, com o habitual sistema de idealizao e o habitualsistema de percepo onde temos associada luz do sol no cu, etc., a falta de luz nas profundidades.Isto, sem dvida se modifica em lugares em que a neve est quase continuamente caindo e o cu

    escuro, como descrevemos habitantes de zonas muito geladas e enevoadas. Por outro lado, hobjetos nas alturas que so escuros, ainda quando o espao de representao esteja mais iluminado eh objetos que so claros nas profundidades do espao de representao. Sem dvida, h pontoslimites tanto na subida quanto na descida no espao de representao. Mas isto, motivo de outrasdescries.

    Vimos 14 assuntos: o 1 tratou a respeito da colocao do ponto de vista com respeito ao objetoque estava fora; o 2, o ponto de vista se o objeto est dentro; o 3, se ponto de vista se colocavaatrs; o 4, tratou sobre o falso ponto de vista que parecia deslocar-se, se um se representava a simesmo desde sua frente; o 5 mostrou que passava com os objetos posicionados no espao derepresentao em sua parte mais externa. O 6, as diferenas entre o espao de representao do defora e do de dentro, destacadas por essa barreira tctil que colocavam olhos; o 7 ponto tratou arespeito da modificao da percepo pela representao; no 8 ponto vimos o que sucedia quandose posicionava um objeto no interior e se tratava de operar com o corpo; no 9 ponto vimos amodificao do espao de representao quando atuvamos a nvel viglico; o 10 ponto tratousobre a modificao do espao de representao quando atuvamos a nvel de sonho; no ponto 11vimos que sucedia com os objetos correspondentes ao espao interno; no ponto 12, falamos doespao de representao e vimos que este espao estava relacionado com distintos pontos dointracorpo e surgia esse espao de representao como uma espcie de tela no ponto 13 vimos quesubindo nas imagems no espao de representao, este tendia a iluminar-se; no ponto 14 vimos,finalmente, que descendo com as imagens no espao de representao, este tendia a escurecer, aindaque admita vrias excees.

    Daqui para frente, podem ser extradas uma infinidade de conseqncias.

    O SENTIDO DA VIDACidade de Mxico, Mxico.

    10 de Outubro de 1980

    Intercmbio com um grupo de estudos.

    Agradeo a oportunidade que me do de discutir com vocs alguns pontos de vista referentes aaspectos relevantes de nossa concepo sobre a vida humana. Digo discutir porque isto no ser umdiscurso, mas sim um intercmbio.

    Um primeiro ponto de vista a considerar aquele ao que aponta toda nossa proposta. Nossoobjeto de estudo o mesmo objeto que estudam as cincias? Se se tratasse do mesmo, as cinciasprecisamente teriam a ltima palavra.

    Nosso interesse est posto na existncia humana, mas no na existncia humana como fatobiolgico ou social (j que com respeito a esse ponto h cincias que lhe dedicam seu esforo), massim na existncia humana como registro cotidiano, como registro dirio pessoal. Porque ainda quealgum se pergunte pelo fenmeno social e histrico que constitutivo do ser humano, esse algumfar tal pergunta a partir de sua vida cotidiana; o far a partir de sua situao; o far impulsionado

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    por seus desejos, suas angstias, suas necessidades, seus amores, seus dios; o far impulsionadopor suas frustraes, seus xitos; o far a partir de algo anterior estatstica e teorizao; o far apartir da prpria vida.

    E, o que o comum e, ao mesmo tempo, o particular em toda existncia humana? A busca dafelicidade e a superao da dor e do sofrimento so o comum e o particular de toda existnciahumana. a verdade registrvel para todos e para cada um dos seres humanos.

    No entanto, que felicidade essa que aspira o ser humano? Ela o que o ser humano cr. Estaafirmao, um tanto surpreendente, se baseia no fato de que as pessoas se orientam em direo aimagens ou ideais de felicidade diferentes. mais, o ideal de felicidade muda com a situaohistrica, social e pessoal. Disso concluiremos que o ser humano busca o que cr que o far feliz, ede acordo com isso, o que cr que o afastar do sofrimento e da dor.

    Dado a aspirao de felicidade, aparecero as resistncias da dor e do sofrimento. Como poderovencer-se estas resistncias? Antes devemos perguntar-nos pela natureza das mesmas.

    A dor para ns um fato fsico. Todos temos experincias disso. um fato sensorial, corporal. Afome, as inclemncias naturais, a doena, a velhice, produzem dor. E esse o ponto em que nsdiferenciamos de fenmenos que nada tem a ver com o sensorial. Unicamente o progresso da

    sociedade e da cincia o que faz retroceder a dor. E esse o campo especfico no que podemdesenvolver seus melhores esforos os reformadores sociais, os cientistas e sobretudo os mesmospovos geradores do progresso do qual se nutrem tais reformadores e tais cientistas.

    O sofrimento, em troca, de natureza mental. No um fato sensorial do mesmo tipo da dor. Afrustrao, o ressentimento, so estados dos quais tambm temos experincia, e que no podemoslocalizar em um rgo especfico, ou em um conjunto deles. Como que embora sendo de naturezadiferente atuam entre si a dor e o sofrimento? certo que a dor motiva tambm ao sofrimento. Emtal sentido, o progresso social e o progresso da cincia fazem retroceder um aspecto do sofrimento.Mas especificamente, onde encontraremos a soluo para fazer retroceder o sofrimento?Encontraremos isto no sentido da vida, e no existe reforma nem avano cientfico que afaste osofrimento que d a frustrao, o ressentimento, o temor morte, e o temor em geral.

    O sentido da vida uma direo ao futuro que d coerncia vida, que permite enquadrar suasatividades e que a justifica plenamente. luz do sentido at a dor em seu componente mental e osofrimento em geral, retrocedem e se diminuem interpretados como experincias superveis.

    Ento, quais so as fontes do sofrimento humano? So as que produzem contradio. Sofre-sepor viver situaes contraditrias, mas tambm se sofre por recordar situaes contraditrias e porimaginar situaes contraditrias.

    Estas fontes de sofrimento tem sido chamadas as trs vias do sofrimento, e elas podem modificar-se de acordo com o estado em que se encontre o ser humano a respeito do sentido da vida. Teremosque examinar brevemente estas trs vias para em seguida falar do significado e da importncia dosentido da vida.

    (Pergunta pouco audvel na gravao)

    claro que os agrupamentos humanos, por exemplo, so estudados pela sociologia. Assim comoas cincias podem estudar os astros ou os microorganismos. Tambm a biologia, a anatomia e afisiologia, estudam o corpo humano a partir de diferentes pontos de vista. A Psicologia estuda ocomportamento psquico. Todos estes que estudam (os estudiosos e os cientistas), no estudam suaprpria existncia. No existe uma cincia que estude a prpria existncia. A cincia nada diz arespeito da situao que acontece a uma pessoa quando chega a sua casa e ali recebe uma porta nacara, um maltrato, ou uma carcia.

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    Ns nos interessamos, justamente, pela situao da existncia humana, e por isso no incumbncia nossa as discusses que possa ter a cincia. E tambm observamos que a cincia temsrios enganos, srias dificuldades para definir o que passa na existncia. O que ocorre na existnciahumana; qual a natureza da vida humana com respeito ao sentido; qual a natureza do sofrimentoe da dor; qual a natureza da felicidade; qual a natureza da busca da felicidade. Estes so objetosde nosso estudo, de nosso interesse. A partir desse ponto de vista se poderia dizer que ns temos

    uma posio frente existncia, uma posio frente vida, e no uma cincia referida a estascoisas.

    (Pergunta pouco audvel na gravao)

    claro que ns temos posto nfase nisto que as pessoas buscam, aquilo que crem que afelicidade. O ponto est no fato de que se cr em uma coisa e amanh se cr em outra. Seexaminarmos em ns mesmos o que acreditvamos que era felicidade aos doze anos e no dia dehoje, veremos a mudana de perspectiva; assim mesmo se consultamos dez pessoas, continuaremosvendo essa diversidade de ponto de vista. Na idade mdia se tinha uma idia geral da felicidadedistinta poca da revoluo industrial, e em geral os povos e os indivduos variam em sua buscapela felicidade. No est de nenhum modo claro a felicidade enquanto objeto. Parece que noexistiu tal objeto. mais um estado de nimo que se busca e no um objeto tangvel.

    s vezes isto se confunde numa determinada forma de propaganda que apresenta um sabo comoa prpria felicidade. Desde j, todos compreendemos que, na realidade, se est tratando dedescrever um estado, o estado de felicidade, mas no tanto o objeto porque no existe tal objeto quens saibamos. Por conseguinte, no est claro que coisa seja o estado de felicidade. Nunca se odefiniu convenientemente. uma espcie de escamoteio que se tem feito, e de nenhum modo ficouclaro para as pessoas. Bem, assim que seguiremos avanando assim a menos que haja algumaoutra pergunta...

    (Pergunta pouco audvel na gravao.)

    Esta ltima pergunta com respeito ao progresso da dor e do sofrimento. Como que se vaisuperando a dor com o progresso da sociedade e da cincia e o sofrimento no se superaparalelamente?

    Existem pessoas que sustentam que o ser humano no avanou para nada. bvio que o serhumano tem avanado na sua conquista cientfica, na sua conquista da natureza, no seudesenvolvimento. Est bem, h desenvolvimentos das civilizaes que so desiguais, de acordo,existem problemas de todo tipo, mas o ser humano e sua civilizao avanaram. Isso evidente.Recordem vocs outras pocas onde uma bactria fazia estragos, e hoje uma droga fornecida atempo soluciona o problema rapidamente. Meia Europa sucumbiu em um momento por umaepidemia de clera. Isso foi superado. Velhas e novas doenas so combatidas e seguramente seroderrotadas. As coisas mudaram e mudaram muito. Mas claro que em matria de sofrimento umapessoa de cinco mil anos atrs e uma pessoa da atualidade, registram e sofrem as mesmasdecepes, registram e sofrem temores, registram e sofrem ressentimentos. O registram e o sofremcomo se para eles no houvesse existido histria, como se nesse campo cada ser humano fosse oprimeiro ser humano. A dor vai retrocedendo com aqueles avanos, mas o sofrimento no semodificou no ser humano, no se tiveram respostas adequadas com respeito a isso. E nesse sentidoh uma coisa desigual. Mas, como poderamos dizer que o ser humano no avanou? Talvez porquetenha avanado o suficiente hoje se esteja fazendo este tipo de perguntas e tambm por isso se estejatratando de dar resposta a essas interrogaes que, provavelmente em outra poca, no haja sidonecessrio fazer. As trs vias do sofrimento no so apenas trs vias necessrias para a existnciahumana, mas que foram distorcidas em seu funcionamento normal. Tratarei de me explicar.

    Tanto a sensao do que agora vivo e percebo, como a memria do que vivi e a imaginao doque poderia viver, so vias necessrias existncia humana. Restrinjamos algumas destas funes e

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    a existncia se desarticular. Acabemos com a memria e perderemos at o prprio manejo de nossocorpo. Eliminemos a sensao e perderemos a regulagem do mesmo. Detenhamos a imaginao eno poderemos nos orientar em nenhuma direo. Estas trs vias que so necessrias a vida, podemser distorcidas em seu funcionamento convertendo-se em inimigas da vida, em portadoras desofrimento. Sim, sofremos cotidianamente pelo que percebemos, pelo que recordamos e pelo queimaginamos.

    Dissemos em outras oportunidades que se sofre por viver em uma situao contraditria tal comoa de querer fazer coisas que se opem entre si. Tambm sofremos pelo medo de no conseguir o quedesejamos no futuro, ou pelo medo de perder o que temos. E, a partir da, sofremos pelo queperdemos, pelo que no conseguimos, por aquilo que j sofremos antes, por aquela humilhao,aquele castigo, aquela dor fsica que ficou no passado, por aquela traio, por aquela injustia, poraquela vergonha. E esses fantasmas que chegam do passado so vividos por ns como se fossemfatos presentes. Eles, que so as fontes do rancor, do ressentimento e da frustrao, condicionamnosso futuro e fazem perder a f em ns mesmos.

    Discutamos o problema das trs vias do sofrimento.

    Se as trs vias so as que possibilitam a vida, como que se foram distorcendo? Supe-se que seo homem vai buscando a felicidade, devia ir adequando-se para ir manejando estas trs vias a seufavor. Mas, como que de repente essas trs vias so precisamente suas principais inimigas? Pareceser que no momento em que se ampliou a conscincia do ser humano, quando ainda no era um sermuito definido, parece ser que ali mesmo, ao ampliar-se sua imaginao, ao ampliar-se sua memriae sua recordao histrica, ao ampliar-se sua percepo do mundo em que vivia, nesse mesmomomento, ao ampliar-se uma funo surgiu a resistncia. Tal qual acontece nas funes internas.Como quando tratamos de mover-nos em uma atividade nova, encontramos resistncia. Do mesmomodo que se encontra resistncia na natureza. No mesmo instante que chove e cai gua e vai pelosrios e encontra resistncia a sua passagem, nessa vitria das resistncias chega finalmente aosmares.

    O ser humano em seu desenvolvimento, vai encontrando resistncias. E ao encontrar resistnciasse fortalece, e ao fortalecer-se integra dificuldades, e ao integr-las as supera. E ento todo este

    sofrimento que foi surgindo no ser humano em seu desenvolvimento, foi tambm um fortalecimentodo ser humano por cima de tudo isso. De modo que em etapas anteriores isto do sofrimentocontribuiu ao desenvolvimento, no sentido de criar condies justamente para super-lo.

    Ns no aspiramos ao sofrimento. Ns aspiramos a reconciliar-nos inclusive com nossa espcie,que tanto tem sofrido, e graas qual ns podemos fazer novos desdobramentos. No foi intil osofrimento do homem primitivo. No foi intil o sofrimento de geraes e geraes que estiveramlimitadas por essas condies. Nosso agradecimento para aqueles que nos antecederam contudoseu sofrimento, porque graas a eles podemos tentar novas libertaes.

    Este o ponto a respeito de como o sofrimento no nasceu subitamente, mas sim com odesenvolvimento e a ampliao do homem. Mas claro que ns no aspiramos, como sereshumanos, a seguir sofrendo, mas sim avanar sobre essas resistncias integrando um novo caminhoneste desenvolvimento.

    Mas dissemos que encontraremos a soluo para o problema do sofrimento no sentido da vida, edefinimos esse sentido como a direo ao futuro que d coerncia, que permite enquadrar atividadese que justifica plenamente a existncia. Esta direo ao futuro de mxima importncia posto que,segundo examinamos, se esta via da imaginao cortada, esta via do projeto, esta via do futuro, aexistncia humana perde a direo e isso fonte de inesgotvel sofrimento.

    claro para todos que a morte aparece como o mximo sofrimento do futuro. claro, nessaperspectiva, que a vida tem carter de algo provisrio. E claro que, nesse contexto, toda

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    construo humana uma intil construo rumo ao nada. Por isso, talvez, distanciar o olhar do fatoda morte tenha permitido mudar a vida como se a morte no existisse... Quem pensa que tudotermina para si com a morte, poder animar-se com a idia de que ser lembrado por suasesplndidas aes, que no se esquecero dele seus entes queridos ou, talvez, as geraes futuras. E,ainda que isto fosse assim, todos caminhariam finalmente rumo a um nada absurdo queinterromperia toda lembrana. Tambm se poderia pensar que o que algum faz na vida no nada

    mais que responder s necessidades do melhor modo possvel. Pois bem, j se acabaro essasnecessidades com a morte e haver perdido sentido toda luta por sair do reino da necessidade. E sepoder dizer que a vida pessoal carece de importncia na vida humana, que portanto a morte pessoalno tem significado. Se fosse este o caso, tampouco teria significado a vida nem as aes pessoais.No se justificaria nenhuma lei, nenhum compromisso, e no haveria, em essncia, maioresdiferenas entre as aes benficas e as malvadas.

    Nada tem sentido se tudo termina com a morte. E, se esse o caso, o nico recurso possvel paratransitar pela vida, animar-se com sentidos provisrios, com direes provisrias s quais aplicarnossa energia e nossa ao. Tal o que sucede habitualmente, mas para isso necessrio procedernegando a realidade da morte, necessrio fazercomo se ela no existisse.

    Se algum perguntado que sentido tem a vida para ele, provavelmente responder por sua

    famlia, ou pelo prximo, ou por uma determinada causa que segundo ele justifique a existncia. E,esses sentidos provisrios, havero de conferir-lhe direo para enfrentar a existncia, mas logo quesurjam problemas com os entes queridos, logo que se produza uma desiluso com a causa adotada,logo que algo se modifique no sentido escolhido, o absurdo e a desorientao voltaro por suapresa.

    Por ltimo, sucede com os sentidos ou as direes provisrias da vida que no caso de alcanar-sej perdem referncia e, portanto, deixam de ser teis para mais adiante e, no caso de no se alcanar,deixam de ser teis como referncia. certo que aps o fracasso de um sentido provisrio semprefica a alternativa de por um novo sentido provisrio, talvez em oposio ao que fracassou. Assim,de sentido em sentido se vai apagando, medida que passam os anos, todo rastro de coerncia ecom isso aumenta a contradio e, portanto, o sofrimento.

    A vida no tem sentido se tudo termina com a morte. Mas, certo que tudo termina com a morte? certo que no se pode conseguir uma direo definitiva que no varie com os acidentes da vida?,como se situa o ser humano frente ao problema de que tudo termina com a morte? Examinemos,logo aps discutir o que foi dito at aqui.

    (Intervalo e discusso)

    Assim como destacamos as trs vias do sofrimento observamos tambm cinco estados comreferncia ao problema da morte e a transcendncia. Nestes cinco estados se pode situar qualquerpessoa.

    Existe um estado em que uma pessoa tem evidncia incontestvel dada por prpria experincia,no por educao ou ambiente. Para ela evidente que a vida um trnsito e que a morte umescasso acidente.

    Outros tem a crena de que o ser humano vai a no sei que transcendncia, e esta crena a tmdada por educao, dada pelo ambiente, no por algo sentido, experimentado, no por algo evidentepara eles, mas sim por algo que lhes ensinaram e que eles aceitam sem experincia alguma.

    Existe um terceiro tipo de posio frente ao sentido da vida e o daquelas pessoas desejosas deter uma f ou ter uma experincia. Os senhores devem ter-se encontrado com muitas pessoas quedizem: Se eu pudesse acreditar em certas coisas, minha vida seria diferente. Existem muitosexemplos a mo. Pessoas s quais lhes ocorreram muitos acidentes, muitas desgraas, e quesuperaram esses acidentes, essas desgraas, porque ou tem f ou tem um registro de que tudo isto,

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    por transitrio ou provisrio, no o prprio esgotamento da vida mas em todo caso uma prova,uma resistncia que de algum modo faz crescer no conhecimento. Inclusive podem haverencontrado pessoas que aceitem o sofrimento como um recurso de aprendizagem. No queprocurem o sofrimento (no como outros, que parece que tiveram uma especial fixao pelosofrimento). Estamos falando daqueles que simplesmente, quando se d tal coisa, tiram o melhorpartido dela. Pessoas que no andam buscando o sofrimento, todo o contrrio, mas sim que dada a

    situao o assimilam, o integram e o superam.Bem. Existem pessoas, ento, que se situam nesse estado: no tem f, no tem nenhuma crena,

    mas desejaram ter algo que lhes desse nimo e desse direo a sua vida. Sim, essas pessoas existem.

    Existem tambm aqueles que suspeitam intelectualmente a possibilidade de que exista um futurodepois da morte, que exista uma transcendncia. Simplesmente o consideram possvel e no tmnenhuma experincia de transcendncia nem tampouco tm nenhum tipo de f, nem tampoucoaspiram a ter experincia nem a ter f. Seguramente conhecem essas pessoas.

    E h, por ltimo, aqueles que negam toda a possibilidade de transcendncia. Tambm os senhoresreconhecero aqui pessoas, e provavelmente entre vocs existem muitos, que pensam assim.

    De maneira que com diferentes variantes cada um pode efetivamente situar-se como aqueles que

    tm evidncia e para eles indubitvel isto da transcendncia, ou bem como aqueles que tm fporque assim a assimilaram quando pequenos, ou bem aqueles outros que quiseram ter umaexperincia ou uma f, ou aqueles outros mais que a consideram uma possibilidade intelectual semcausar-se maiores problemas, e estes outros que a negam.

    Mas aqui no terminamos com o ponto de localizao frente ao problema da transcendncia.Existe, ao que parece, diferentes profundidades nisto de situar-se frente ao problema datranscendncia. Existem os que inclusive dizem que tem uma f, o afirmam, mas isto que dizem nocorresponde ao que efetivamente experimentam. Ns no dizemos que eles mentem, mas sim queisto dito superficialmente. Dizem ter uma f, mas amanh podem no t-la.

    Assim que observamos diferentes graus de profundidade nestas cinco posturas e, portanto, namobilidade ou na firme convico com relao ao que se postula. Conhecemos pessoas que eram

    grandes devotas, crentes de uma f, e ao morrer um familiar, ao morrer um ente querido,desapareceu toda a f que diziam ter e caram no pior dos sem sentidos. Essa f era uma f desuperfcie, uma f de fachada, uma f perifrica. Por outro lado, aqueles outros que superaramgrandes catstrofes e afirmaram precisamente sua f, tudo lhes resultou diferente.

    Conhecemos pessoas que estavam convencidas da inexistncia total da transcendncia. Algummorre e desaparece. Dizendo assim, eles tinham f em que tudo se acabava com a morte. claroque em alguma ocasio, caminhando perto de um cemitrio apressaram o passo e se sentiraminquietos... como se compatibiliza tudo isto com a certa convico de que tudo termina com amorte? Desse modo, existem pessoas que inclusive na negao da transcendncia esto localizadasem uma situao muito superficial.

    Deste modo, algum pode situar-se em qualquer destes estados, mas tambm pode situar-se emdistintas profundidades. Em certas pocas de nossa vida acreditamos em uma coisa a respeito datranscendncia, e logo em outra. Mudou, isto instvel. Isto no algo esttico. No somente empocas distintas de nossa vida mas tambm em situaes. Muda nossa situao e muda nossa crenacom respeito ao problema da transcendncia. E mais: muda de um dia para o outro. s vezes pelamanh estou acreditando numa determinada coisa, e pela tarde no. E isto que parece ser de sumaimportncia porque orienta a vida humana, algo demasiado varivel. E ao fim provocar umdesconcerto na vida cotidiana.

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    Nesses cinco estados e graus se coloca o ser humano, mas qual deveria ser a correta colocao?Existe por acaso uma correta colocao, ou estamos simplesmente descrevendo problemas sem darsoluo? Podemos sugerir qual a melhor colocao frente ao problema?

    Alguns dizem que a f algo que est ou no est nas pessoas, que brota ou que no brota. Masobservem esse estado de conscincia. Algum pode no ter f em absoluto, mas tambm podedesejar, sem f e sem experincia, obter isso. Pode inclusive compreender intelectualmente que talcoisa interessante, que pode valer a pena orientar-se nessa direo. Pois bem, quando isso comeaa acontecer porque algo j est se manifestando nessa direo.

    Os que alcanam essa f ou experincia transcendente, ainda que no possam defini-la em termosprecisos como no se pode definir o amor, reconhecero a necessidade de orientar a outros nessesentido, mas jamais trataro de impor sua paisagem a quem no a reconhea.

    E assim, coerentemente com o enunciado, declaro ante vocs minha f e minha certeza deexperincia a respeito de que a morte no detm o futuro, que a morte, pelo contrrio, modifica oestado provisrio de nossa existncia para lan-la em direo transcendncia imortal. E noimponho minha certeza nem minha f, e convivo com aqueles que se encontram em estadosdiferentes a respeito do sentido, mas me obrigo a oferecer solidariamente a mensagem quereconheo fazer feliz e livre o ser humano. Por nenhum motivo descarto minha responsabilidade deexpressar minhas verdades ainda que estas fossem discutveis por quem experimenta aprovisoriedade da vida e o absurdo da morte.

    Por outro lado, jamais pergunto a outros por suas crenas particulares e, em todo caso, ainda quedefino com clareza minha posio a respeito deste ponto, proclamo para todo ser humano aliberdade de acreditar ou no em Deus e a liberdade de crer ou no na imortalidade. Entre milharese milhares de mulheres e homens que lado a lado, solidariamente, trabalham conosco, se somamateus e crentes, pessoas com dvidas e com certezas e a ningum se pergunta por sua f e tudo se dcomo orientao para que decidam por si mesmos a via que melhor esclarea o sentido de suasvidas.

    No corajoso deixar de proclamar as prprias certezas, mas indigno da verdadeirasolidariedade tratar de imp-las.

    O VOLUNTRIOCidade de Mxico, Mxico.

    11 de Outubro de 1980

    Comentrios (durante um intervalo) perante um grupo de estudos.

    Ao que parece, muitas pessoas que atuam em nosso movimento tm antecedentes devoluntariedade e no de voluntarismo, que so dois conceitos diferentes. Aparentemente existemmuitos assistentes sociais, enfermeiras, professores, pessoas que, embora desenvolvendo atividadesremuneradas, no se sentem de, modo nenhum, compensados com a remunerao que recebem pelaatividade que desempenham. certo que se lhes pagam mal iro protestar mais do que os outrospara que sejam melhor remunerados, mas a orientao bsica de suas atividades no termina nelesmesmos, mas direcionada para fora; depois vir, por problemas do cotidiano e outras razes, anecessidade de receberem remunerao por seu trabalho. Mas essas pessoas ainda que lhes paguemmal tm forte tendncia a ensinar coisas. O que que nos querem dizer? E os outros profissionais

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    que desenvolvem este tipo de atividade e no recebem nada por isso? No nosso Movimento existemmuitas pessoas com antecedentes deste tipo. H aquele que organizou um clube de bairro, aqueleque quando era novo montou uma equipe de qualquer coisa... Vm ao nosso Movimento e muitosdeles so os que pem tudo em marcha. Outros no. Outros vm em outras condies e buscandooutras coisas, mas quando entendem o significado deste trabalho, afastam-se. Assim muitos so osque atuam em nosso trabalho, extraindo dele um sentido de justia interna. Colocam-se em

    atividade com a mesma tendncia e experincias das atividades que j haviam executado antes.Pode observ-los, h muitos exemplos. No sei como ser aqui, mas em todas as partes do mundonumerosos amigos nossos tm essas caractersticas e coincidem, em geral, com os que pem emmarcha coisas. Eles tm na sua biografia antecedentes deste tipo.

    Mas porque razo algumas pessoas fazem as coisas transcendendo o efeito imediato da aodesinteressada? O que se passa em suas cabeas para agirem de modo to estranho? Do ponto devista das sociedades consumistas, essa uma forma atpica de agir. Todo aquele que nasceu ecresceu recebendo o impacto e a difuso de uma estrutura consumista, tende a ver o mundo nosentido da nutrio pessoal. Ele pensar que sendo um consumidor ter que tragar coisas. E comouma espcie de grande estmago que deve ser enchido. De forma alguma ele pensa que algumacoisa deva sair dele e dir: - j sai bastante de mim, para que tenha direito a muitos bens deconsumo. J no dedico tantas horas ao meu trabalho no escritrio, e pago com meu tempo todotempo em que deixo de consumir para trabalhar no sistema? Efetivamente, isso bem razovel. Ele, sua maneira, troca horas de trabalho, horas/homem, por remunerao. Ele no pe a tnica do seutrabalho na atividade que desempenha no mundo, considera isto um mal necessrio para que ocircuito acabe em si mesmo. Assim esto montados os sistemas de um signo e outro signo. A coisa a mesma: o consumidor.

    A populao est ficando neurtica, porque h um circuito de entrada e outro de sada. E secortarmos o circuito de sada iremos gerar vrios problemas. Mas o fato que a maioria das pessoasest nesta histria de receber e, ao propagar a ideologia do receber, no conseguem explicar comopodem existir pessoas que fazem as coisas sem receber nada em troca. Do ponto de vista doconsumismo, isto extremamente suspeito. Porque motivo algum iria atuar sem receber opagamento equivalente ao seu esforo? Essa suspeita, na realidade, revela um pssimo

    conhecimento do ser humano. Os que suspeitam disto, tm compreendido a utilidade em termos dedinheiro, e no a utilidade vital e psicolgica. Por causa disto no faltam pessoas que, com elevadonvel de vida e com todos os seus problemas resolvidos, se atiram pela janela ou vivem alcoolizado,drogado ou, em um momento de insanidade, assassina seu vizinho.

    Ns reivindicamos publicamente algo que est desprestigiado. Reivindicamos aquele que salta dasua cama porque se est incendiando uma casa prxima. Ele rapidamente pe a roupa, seu capacetee sai correndo para apagar o incndio. Quando volta (s seis da manh, cheio de fumaa,chamuscado, com feridas) sua mulher do corao atira-lhe pratos na cara, dizendo: Quanto tepagam por isso? Vais chegar tarde ao trabalho e criar-nos um problema por causa das tuas manias!.Saindo ele de casa, o apontaro dizendo: Sim, esse o bombeiro voluntrio. Uma espcie deidiota frente aos outros que sentindo-se to bem consigo mesmos, atiram-se pela janela.Normalmente, os bombeiros voluntrios no se atiram pela janela. Quer dizer que eles, do seu

    modo, empiricamente, encontraram uma forma de aplicar sua energia em direo ao mundo. Elesno s tem podido lanar-se catarticamente a certas atividades (tambm os outros podem faz-loatravs do esporte, atravs da confrontao, atravs de muitssimas operaes) como tambmpodem fazer algo mais. Eles podem, diferena de outras pessoas, fazer algo muito maisimportante: pr um significado interno no mundo. E nesse caso, cumprem uma funoempiricamente transferencial. Esto a compondo contedos que partem deles para o mundo e noesto respondendo a estmulos convencionais. muito diferente aquele que est obrigado a fazerdeterminadas coisas em troca de uma remunerao, do que este outro que parte do seu mundointerno para o mundo externo e nele se expressa. Nele, voluntariamente, plasma contedos que no

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    esto nada claros, nem para si mesmos e s vezes procura compreend-los com palavras comosolidariedade sem entender qual o significado profundo de tal vocbulo. E mais: este pobrevoluntrio, que cada vez que chega sua casa lhe atiram pratos e gozam-no, vai acabar por pensarque ele efetivamente uma espcie de estpido e vai concluir: sempre me acontece isto. E nemfalar se ao invs de um voluntrio for uma voluntria. Nesta sociedade, a coisa grave ainda.

    No fim estes voluntrios acabam humilhados e assimilados pelo sistema porque ningum lhesexplicou como tudo isto acontece. Eles sabem que so diferentes dos outros, mas no podem se darexplicaes sobre o que fazem. E se pegamos neles e lhes dizemos: bom, vamos l ver o que quevocs ganham, vo balbuciar e encolher os ombros como se tivessem que ocultar alguma coisavergonhosa. Ningum os esclareceu, ningum lhes deu as ferramentas suficientes para se auto-explicarem e explicarem a outros, porque o enorme potencial que tm verte ao mundo sem esperarretribuio. E isso, desde j, extraordinrio.

    ATO PBLICO

    Pavilho dos Sportes. Madri, Espanha.27 de Setembro de 1981

    Nota:

    Convidado pela Comunidade para o Desenvolvimento Humano de distintos pases, Siloempreendeu uma gira de difuso participando em vrios eventos pblicos. Suas exposies foromacompanhadas pelas de seus amigos Bittiandra Aiyyappa, Saky Binudin, Petur Gudjonsson, NicoleMyers, Salvatore Puledda e Danny Zuckerbrot.

    O ncleo das idias apresentadas por Silo em Madri se repetiu em Barcelona, Reykjavik,Frankfurt, Copenhague, Milo, Colombo, Paris e Cidade do Mxico. Neste livro se incluemsomente as intervenes nos atos pblicos de Madri e Bombaim.

    Faz tempo me disseram: por que no explicas o que pensas? Ento expliquei. Depois disso,outros disseram: no tens direito de explicar o que pensas, ento me calei. Passaram doze anos enovamente me disseram por que no explicas o que pensas? Assim que o farei novamente, sabendode antemo que outra vez se dir: no tens direito de explicar o que pensas.

    Nada novo se disse ento; nada novo se dir hoje

    E bem, que se disse ento? Se disse: sem f interna h temor, o temor produz sofrimento, osofrimento produz violncia, a violncia produz destruio; portanto a f interna evita a destruio.

    Nossos amigos falaram hoje sobre o temor, o sofrimento, a violncia e o niilismo como mximoexpoente de destruio. Tambm falaram sobre a f em si mesmos, nos demais e no futuro.Disseram que necessrio modificar a direo destrutiva que tomam os acontecimentos mudando osentido dos atos humanos. Alm disso, e como coisa fundamental, disseram como fazer tudo isto; demodo que nada novo se agregar hoje.

    Somente gostaria de fazer trs reflexes. Uma sobre o direito que nos assiste para explicar nossoponto de vista; outra sobre como chegamos a esta situao de crise total e por ltimo, aquela quenos permita tomar uma resoluo imediata e operar uma mudana de direo em nossas vidas. Estaresoluo deveria concluir com um compromisso em todo aquele que esteja de acordo com o dito.

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    Pois bem! Que direito nos assiste para explicar nosso ponto de vista e obrar em consequncia?Em primero lugar, nos assiste o direito de diagnosticar o mal atual de acordo com nossos elementosde juzo, ainda que no coincidam com os estabelecidos. Em tal sentido dizemos que ningum temdireito a impedir novas interpretaces baseando-se em verdades absolutas. E a respeito de nossaao, por que haveria de ser ofensiva para outros sendo que no interferimos em suas atividades? Seem algum lugar do mundo se impede ou se deforma o que dizemos e o que fazemos, ns poderemos

    dizer que a existe m f, absolutismo e mentira. Por que no deixar que a verdade corra livrementee que as pessoas livremente informadas possam elegir o que lhes parea razovel?

    E ento! Por que fazemos o que fazemos? Responderei em poucas palavras: fazemos comosupremo ato moral. Nossa moral se baseia neste princpio: trata os demais como queres que tetratem. E se como indivduos queremos o melhor para ns, estamos exigidos por este imperativomoral a dar a outros o melhor. Quem so os outros? Os outros so os mais prximos, e ali ondecheguem minhas possibilidades reais de dar e de modificar, ai est meu prximo; e se minhapossibilidade de dar e de modificar chegarem a todo o mundo, o mundo seria meu proximo. Mas,seria um despropsito preocupar-me declamativamente pelo mundo se minhas possibilidades reaischegarem s at meu vizinho. Por isso, h uma exigncia mnima em nosso ato moral e a deesclarecer ou agir cada qual em seu mbito imediato. E contrrio esta moral no faz-lo,asfixiando-se num individualismo sem sada. Esta moral d uma direo precisa s nossas aes e,alm disso, fixa claramente a quem esto dirigidas. E quando falamos de moral nos referimos a umato livre, possibilidade de faz-lo ou no faz-lo e dizemos que este ato est por cima de todanecessidade e toda mecanicidade. Este nosso ato livre, nosso ato moral: trata os demais comoqueres que te tratem. E nenhuma teoria, nenhuma desculpa est por cima deste ato livre e moral.No nossa moral a que est em crise, so outras morais que esto em crise, no a nossa. Nossamoral no se refere a coisas, a objetos, a sistemas, nossa moral se refere direo dos atoshumanos.

    Mas h outro ponto que devo tratar agora e se refere situao de crise a que chegamos. Comosucedeu tudo isto e quem foram os culpados? No farei disso uma anlise convencional. Aqui nohaver cincia nem estatstica. Colocarei em imagens que cheguem no corao de cada qual.

    Sucedeu h muito tempo que floresceu a vida humana neste planeta. Ento, e com o correr dos

    milnios, os povos foram crescendo separadamente e houve um tempo para nascer, um tempo paragozar, um tempo para sofrer e um tempo para morrer. Indivduos e povos, construindo, foramsubstituindo-se at que herdaram por fim a terra. E dominaram as guas do mar e voaram maisvelozes que o vento e atravessaram as montanhas e com vozes de tormenta e luz de sol mostraramseu poder. Ento viram de muito longe seu planeta azul, amvel protetor velado por suas nuvens.Que energia moveu tudo? Que motor ps o ser humano na histria, seno a rebelio contra a morte?Porque j desde antigo, a morte como sombra acompanhou seu passo. E tambm desde antigoentrou nele e quis g