HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. Trad. João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011

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Nesta resenha, iremos abordar as idéias centrais que permeiam a obra O enigma do capital, de David Harvey. Nela, o autor apresenta uma leitura geográfica (empírica) das crises e do movimento do capital em busca de sua reprodução e evidencia questões relevantes como o papel da natureza e do espaço na dinâmica capitalista à luz da teoria do desenvolvimento geográfico desigual.HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. Trad. João Alexandre Peschanski. São Paulo: Boitempo, 2011.José Arnaldo dos Santos Ribeiro [email protected]

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  • AGRRIA, So Paulo, No. 14, pp. 140-145, 2011

    HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. Trad. Joo

    Alexandre Peschanski. So Paulo: Boitempo, 2011.

    Jos Arnaldo dos Santos Ribeiro Junior

    [email protected]

    Nesta resenha, iremos abordar as idias centrais que permeiam a obra O enigma

    do capital, de David Harvey. Nela, o autor apresenta uma leitura geogrfica (emprica)

    das crises e do movimento do capital em busca de sua reproduo e evidencia questes

    relevantes como o papel da natureza e do espao na dinmica capitalista luz da teoria

    do desenvolvimento geogrfico desigual.

    O gegrafo britnico, professor emrito de Antropologia no Centro de Ps-

    Graduao da City University of New York (CUNY-EUA), tem se destacado como um

    dos maiores intelectuais do nosso tempo cujas contribuies tem se expandido para

    alm das fronteiras cientficas da Geografia. Harvey tem buscado construir uma teoria

    da relao sociedade-espao tomando como base a teoria marxiana.

    No prembulo do Enigma1, partindo de uma analogia com o fluxo de sangue,

    Harvey se prope a compreender os mecanismos do fluxo do capital, a analisar a crise

    do subprime do mercado imobilirio, as condies para a continuao da acumulao de

    capital e a superao de barreiras espaciais. A obra est dividida em oito captulos: (1)

    A Crise; (2) O Capital Reunido; (3) O Capital vai ao Trabalho; (4) O Capital vai ao

    Mercado; (5) O Capital Evolui; (6) A Geografia disso tudo; (7) A Destruio criativa da

    Terra e (8) Que fazer? E quem vai faz-lo?. A obra conta ainda com um eplogo e dois

    apndices: Principais Crises e Ajudas Estatais a Empresas 1973-2009 e Inovaes

    Financeiras e Ajudas Estatais a Empresas 1973-2009.

    Harvey inicia o Enigma analisando como a crise desencadeada em 2006 pelas

    hipotecas subprime tiveram conseqncias sociais drsticas. Os dados econmicos e

    sociais que Harvey apresenta demonstram que os bnus em Wall Street continuam

    bastante compensadores apesar da quebra de instituies de crdito como foi o caso do

    Lehman Brothers.

    No segundo captulo, Harvey define o capital como um processo que objetiva a

    perpetuao da acumulao de dinheiro. Harvey faz essa discusso com o intuito de

    1 Daqui em diante irei me referir obra em questo apenas como Enigma.

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    destacar o poder que o capital tem de superar limites devido a sua fluidez e

    flexibilidade. Esses limites, como bem colocou Marx, aparecem como barreiras a serem

    superadas. Assim Harvey identifica seis barreiras potenciais acumulao: (I) capital

    inicial sob a forma de dinheiro insuficiente; (II) escassez de oferta de trabalho ou

    dificuldades polticas com esta; (III) meios de produo inadequados, incluindo os

    chamados limites naturais; (IV) tecnologias e formas organizacionais inadequadas;

    (V) resistncias ou ineficincias no processo de trabalho; e (VI) falta de demanda

    fundamentada em dinheiro para pagar no mercado.

    O papel desempenhado pela acumulao original e a ascenso da burguesia na

    influncia e reconstituio das formas de Estado, foram dois fatores fundamentais em

    que se baseou a constituio do nexo Estado-finanas2. Neste sentido, Harvey salienta

    a criao de instituies internacionais com carter de Estado como o Banco

    Mundial, Fundo Monetrio Internacional, Organizao de Cooperao e de

    Desenvolvimento Econmico e o recurso acumulao por despossesso3, a exemplo

    das hipotecas subprime, bem como, aos ajustes espaciais4 perpetrados com o objetivo

    de resolver o problema de absoro do capital excedente.

    Os elementos necessrios para que a produo ocorra so analisados no captulo

    terceiro. O exrcito industrial de reserva e a acumulao por despossesso so

    importantes; no obstante, a reduo da mortalidade infantil na China de Mao, por

    exemplo, tambm desempenha papel fundamental na reproduo da fora de trabalho, 2 Um bom exemplo que pode ser citado o caso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (BNDES). O BNDES tem apoiado os chamados campees nacionais, que se concentram no setor de commodities (soja, minrio de ferro, etc.). O BNDES, que foi criado para potencializar a industrializao brasileira, est hoje mais voltado para o financiamento de empresas produtoras de matrias-primas. O banco tem escolhido os setores de papel e celulose, alimentos, frigorfico, petroqumico, petrleo e minerao para receber seus vultuosos emprstimos. No final de 2010, por exemplo, a Suzano Papel e Celulose recebeu um aporte financeiro no valor de 2,7 bilhes de reais do BNDES para a construo da unidade industrial do Estado do Maranho e, dentre outros, a implantao da infraestrutura e apoio necessrio operao desta unidade, construo de planta de cogerao de energia de biomassa, capital de giro e aquisio de mquinas e equipamentos nacionais (Cf. SUZANO. Relatrio de Sustentabilidade 2010. Disponvel em www.suzano.com.br. Acesso em 27 de agosto de 2011). 3 O conceito de acumulao por despossesso (ou por espoliao) foi trabalhado por Harvey no seu livro O novo imperialismo, 4ed. Loyola: So Paulo, 2010. A ideia central que alm dos mecanismos tradicionais da acumulao primitiva (mercadificao da fora de trabalho, privatizao da terra, expropriao dos camponeses, comrcio de escravos, sistema de crdito, dvida pblica) foram criados uma srie de novos mecanismos de acumulao por espoliao, a saber: Acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), biopirataria, mercadificao da natureza, regresso dos estatutos regulatrios destinados a proteger o trabalho, o patenteamento e licenciamento de material gentico, privatizao de bens pblicos antes administrados pelo Estado. 4 A noo de ajuste espacial (spatial fix) est presente em seu livro A produo capitalista do espao, 2 ed. So Paulo: Annablume, 2006. Com este conceito, David Harvey quer salientar que a funo do spatial fix capitalista mobilizar capital e fora de trabalho em virtude da presso exercida pelo excedente destes fatores numa determinada regio econmica.

  • Resenha do livro HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. Trad. Joo Alexandre Peschanski. So Paulo: Boitempo, 2011., pp. 140-145.

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    ao lado da reduo salarial, proletarizao de camponeses e ataques ao poder

    organizacional da classe trabalhadora.

    Alis, interessante notar, o esforo que Harvey (2011, p. 66) faz buscando

    tensionar a categoria natureza: to ampla e to complicada que pode abranger

    praticamente tudo o que material (incluindo, claro, a chamada segunda natureza

    produzida pelas atividades humanas [...]). Para Harvey (2011, p.66) a discusso de uma

    primeira e segunda natureza no importante posto que mesmo o conceito de recursos

    naturais5 , por exemplo, uma avaliao tcnica, social e cultural, de tal modo que

    qualquer escassez natural aparente pode, em princpio, ser mitigada, se no totalmente

    contornada por mudanas tecnolgicas, sociais e culturais. No obstante ele questiona

    o prprio termo natureza qualificando-o como simples demais para dar conta da

    imensa diversidade geogrfica de formas de vida e da complexidade infinita dos

    ecossistemas interligados (HARVEY, 2011, p.67).

    No quarto captulo, O Capital vai ao mercado, Harvey (2011, p. 91) aborda a

    particularidade da mercadoria de ser convertida em dinheiro. Numa perceptvel aluso

    ao fetiche da mercadoria de Marx, ele mostra que algum tem de necessitar, querer ou

    desejar a mercadoria, mas tambm precisa ter o dinheiro para compr-la. Harvey

    (2011, p.92) retoma noes de subconsumo, quando no h suficiente demanda efetiva

    para absorver os produtos produzidos, e a soluo de Rosa Luxemburgo na

    pressuposio da existncia de uma demanda mobilizvel extra fora do sistema

    capitalista.

    Para o autor, a explicao das crises tem vindo de trs grandes campos do

    pensamento: o esmagamento do lucro (os lucros caem porque os salrios reais

    aumentam); a queda da taxa de lucro (mudanas tecnolgicas que poupam trabalho se

    voltam contra o capitalista e a concorrncia ruinosa derruba os preos); e as tradies

    do subconsumo (a falta de demanda efetiva e a tendncia para a estagnao associadas

    com a monopolizao excessiva).

    5 Na mesma linha de raciocnio se enquadra a elucidao feita por A. C. R. Moraes (Meio Ambiente e Cincias Humanas. 4ed. So Paulo: Annablume, 2005, p.118): (...) recurso natural um conceito do campo das cincias sociais, que nomeia uma apreenso de objetos da natureza que qualificam-se por sua potencialidade de utilizao nos processos produtivos de uma sociedade. Trata-se, portanto, de uma viso social dos fenmenos e elementos naturais, isto , tomados enquanto natureza para o homem. No se trata de um conceito-ponte entre as cincias naturais e sociais, mas est claramente assentado nesse ltimo campo. No h recurso natural sem que a possibilidade de sua apropriao esteja dada, e esta implica a existncia de sujeitos dotados de meios para seu consumo. Enfim, o recurso natural objetiva-se atravs de seu potencial de uso social.

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    O captulo 5 do Enigma retrata os inmeros paradoxos da saga capitalista: crise

    de um lado, conhecimentos mdicos de outro; degradao ambiental e aumento dos

    padres de vida material; espiral da pobreza e revolues nas comunicaes. De fato o

    capital evolui, mas este processo requer estruturas de conhecimento, normas culturais e

    sistemas de crenas compatveis com a acumulao do capital. E isso leva ao que ele

    chama de sete esferas de atividade a um contnuo processo de evoluo a partir delas

    mesmas e na relao com as outras. So elas: tecnologias e formas de organizao;

    relaes sociais; arranjos institucionais e administrativos; processos de produo e de

    trabalho; relaes com a natureza; reproduo da vida cotidiana e da espcie; e

    concepes mentais do mundo.

    Em verdade, o captulo uma tentativa, por vezes direta, outras, indiretamente,

    de estabelecimento de um dilogo entre Darwin e Marx. Harvey cita o exemplo de Marx

    que faz referncia teoria da evoluo das espcies de Darwin: a tecnologia revela a

    relao ativa do homem com a natureza, o processo direto da produo de sua vida e,

    assim, define tambm o processo de produo das relaes sociais de sua vida e das

    concepes mentais que fluem dessas relaes (HARVEY, 2011, p.106). Dessa forma,

    Harvey reintroduz a questo da natureza pontuando que ela evolui independentemente,

    assim como as outras seis esferas de atividade, configurando uma totalidade

    socioecolgica.

    Harvey busca geografizar o movimento do capital ao redor do mundo no sexto

    captulo. Se a crise comeou localizada nos Estados Unidos, ela se espalhou velozmente

    por todo o mundo. Harvey aponta as diferenas de manifestao da crise em pases

    como China, Islndia, Holanda, Alemanha. Isso mostra que a crise, para alm de ser um

    fracasso estadunidense, um problema sistmico do capitalismo cujas respostas

    polticas e econmicas advm de determinados contextos geogrficos. A teoria do

    desenvolvimento geogrfico desigual6 mostra que uma causa igual (a crise das

    hipotecas subprimes) pode ter efeitos diferentes nos mais diversos pases e continentes.

    A produo do espao algo central na reproduo do capitalismo. Depois de

    citar a famosa afirmao de Marx presente nos Grundrisse da destruio do espao pelo

    tempo, Harvey alerta para a importncia psicolgica da dominao do espao e 6 Alm de David Harvey, mrito de Neil Smith (1954-2012) a construo da referida teoria. Em 1984, nos Estados Unidos, publica seu principal livro Desenvolvimento Desigual (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988). Procurando demonstrar o carter geogrfico do desenvolvimento desigual e partindo de uma anlise marxista, Neil Smith atrela o conceito filosfico de produo do espao ao mecanismo analtico-geogrfico das escalas com o intuito de espacializar a economia poltica capitalista. Nesse sentido constata uma dialtica entre diferenciao e equalizao geogrficas.

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    conquista da natureza e mercado mundial. O resultado dessa psique coletiva das

    sociedades capitalistas a mobilidade ampliada do capital que resulta no que Harvey

    chamou de compresso do tempo-espao7.

    No captulo que trata de destruio criativa da terra, Harvey (2011, p.152)

    retoma a questo da influncia humana sobre a natureza, apontando que a destruio

    criativa era em geral conceitualizada em termos de uma dominao humana triunfalista

    sobre a natureza. O autor salienta que o homem no domina a natureza haja vista as

    conseqncias ambientais e extines de espcies e habitats.

    O gegrafo em tela aponta ainda a importncia de se analisar o Estado moderno

    como uma forma territorial de organizao social. Harvey (2011, p.157) nos diz que:

    foram as principais potncias capitalistas que dividiram grande parte da superfcie da

    terra em reas coloniais e imperiais, especialmente no perodo de 1870 a 1925.

    Harvey (2011, p.172) enxerga tambm a existncia de um novo imperialismo

    definido pela hegemonia financeira. Isso porque no desenvolvimento geogrfico

    desigual do capitalismo, as lgicas polticas que atravessam estados e rgos supra-

    estatais cuja atuao tem marcado carter financeiro, tm demonstrado nos ltimos

    trintas anos que a lngua do imperialismo e do colonialismo tem sido menos relevante

    do que a luta pela hegemonia.

    Ao final, quando se pergunta sobre o que fazer e quem vai faz-lo, Harvey

    sintetiza as suas principais contribuies advindas dos captulos anteriores e analisa as

    possibilidades de movimentos alternativos ao capitalismo surgirem num momento de

    crise e de manuteno de crescimento composto. Para ele, os movimentos

    anticapitalistas devem ser classistas e evitar subjetividades polticas como raa, gnero,

    etnia e religio. Alm disso, Harvey pontua a importncia de uma aliana entre o

    proletariado e os camponeses que leve em conta uma poltica de despossesso sob a

    gide do socialismo e do comunismo. Est claro que um dos nossos objetivos unificar-

    nos em torno do Partido da Indignao e derrotar o Partido de Wall Street.

    7 Sobre a compresso do tempo-espao assim se pronunciou Harvey em sua Condio ps-moderna (19ed. So Paulo: Edies Loyola, 2010, p.7, grifos meus): Vem ocorrendo uma mudana abissal nas prticas culturais, bem como poltico-econmicas, desde mais ou menos 1972. Essa mudana abissal est vinculada emergncia de novas maneiras dominantes pelas quais experimentamos o tempo e o espao. Embora a simultaneidade nas dimenses mutantes do tempo e do espao no seja prova de conexo necessria ou causal, podem-se aduzir bases a priori em favor da proposio de que h algum tipo de relao necessria entre a ascenso de formas culturais ps-modernas, a emergncia de modos mais flexveis de acumulao do capital e um novo ciclo de compresso do tempo-espao na organizao do capitalismo.

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    Finalmente, no Eplogo, Harvey destaca como o neoliberalismo busca

    individualizar os custos da reproduo social sob a gide de um discurso falacioso de

    antiestatismo e defesa da liberdade individual. O assalto ao bem-estar social e as

    polticas de austeridade se mostraram contraproducentes e a conformao de blocos

    hegemnicos nos leva uma necessidade poltica de desvendar o enigma do capital e,

    assim, preparar a transio para o comunismo.