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Cinema ‘Jia Zhang-ke é um cineasta que não julga’ P ara uma série sobre o maior traficante da história da huma- nidade, “Narcos” es- tá se tornando uma bela dis- cussão sobre linguagem. Ao longo da última semana, a internet foi bombardeada de comentários, posts, maté- rias e artigos sobre as esco- lhas linguísticas da produ- ção original do Netflix. Os colombianos estão (obvia- mente) revoltados com o fa- to de que o brasileiro Wag- ner Moura, com seu sotaque perceptível, interpreta a len- da do tráfico Pablo Escobar. Graças aos brasileiros envol- vidos na produção (além do ator, o seriado é produzido por José Padilha, de “Tropa de Elite”), o Brasil sente que tem a obrigação de fazer sua análise crítica. O coleti- vo de 200 milhões de pes- soas que anteriormente se identificava co- mo “técnico de futebol” assu- miu sua faceta “especialista em linguística” e tomou as do- res dos vizi- nhos. Nos redu- tos brasileiros, não há quem hesite em criti- car o “espanhol sofrível” de Wagner Moura – mesmo sem falar a língua ou ter o ouvido treinado o bas- tante para escu- tar Moura soltar vogais ana- saladas, próprias do portu- guês, que deveriam ser aber- tas, como prega o bom caste- lhano. Curiosamente, o debate linguístico de “Narcos” não morre nas redes sociais bra- sileiras. Transformando fronteiras em meras linhas em um mapa, a discussão atingiu os Estados Unidos. Por lá, porém, o fato de que Wagner Moura “nasceu fa- lando português” não passa de uma anedota. Para eles, o real cerne da discussão é a engenhosidade dos criado- res da série. Afinal, eles con- tam uma história colombia- na, na qual os EUA fazem uma participação para lá de especial, com uma nar- rativa em inglês e persona- gens norte-americanos fa- lando inglês, fazendo o es- pectador da terra do Tio Sam esquecer que está sen- do “obrigado” a escutar diá- logos em espanhol. Moran- do em um país que normal- mente aposta no inglês com sotaque ao retratar es- trangeiros, os críticos nor- te-americanos ficaram im- pressionados com a “auten- ticidade” da série. É difícil saber como os executivos do Netflix estão encarando a repercussão linguística de uma série so- bre cocaína, mas, levando em conta que a empresa es- tá ampliando seus investi- mentos para atrair novos públicos e tem dados secre- tos sobre o que seus clien- tes estão realmente assis- tindo, é segu- ro dizer que a decisão de misturar os ta- lentos brasilei- ros de “Tropa de Elite” com uma história colombiana e uma narrativa norte-america- na foi bem cal- culada. Consi- derando que toda essa polê- mica só ga- nhou desta- que porque es- tá todo mun- do assistindo a série, a decisão também foi acertada. Felizmente para os fãs desse novo Wagner Moura barrigudo, quieto e mortal, “Narcos” foi renovada para a segunda temporada. Quem sabe possamos, en- fim, superar o debate so- bre o sotaque do ex-Capi- tão Nascimento e finalmen- te conversar sobre a mania de narrativa de Padilha, se é possível ou não sentir em- patia pelos personagens da série ou até mesmo sobre o ponto central da produ- ção: tráfico violento e de- senfreado que a guerra às drogas tem se mostrado in- capaz de conter. ¬ MANOELLA BARBOSA ESPECIAL PARA O TEMPO ¬ Neste trecho da entrevis- ta, Walter Salles fala sobre o que chama mais a sua atenção no cineasta docu- mentado em “Jia Zhang- ke, um Homem de Fenyang”, seu mais recen- te filme, sobre o livro que sai junto com o longa e de outros projetos. Quais sãos os paralelos entre “Jia Zhang-ke, um Homem de Fenyang” e seus projetos anteriores? De que forma o filme dialoga com seus outros filmes? A exemplo dos personagens que escolhi para meus do- cumentários anteriores, o que me move é o interesse por pessoas que estão en- tre culturas; e, de uma for- ma mais ampla, por aquilo que diz, antes de mais na- da, respeito ao humano. O que interessa a Jia é o im- pacto das transformações da sociedade no homem. O que torna a sua obra ainda mais surpreendente é que, no meio desse fluxo urgen- te de transformações, ele é um cineasta que não julga, que consegue relativizar aquilo que vê. Não há fra- ses ou verdades prontas, e sim dúvidas, perguntas e o uso constante da palavra “talvez”. O documentário é acompa- nhado de um livro. O projeto foi concebido desde o início para ser um duo documentá- rio e livro? Sim, a ideia de um documentário e de um livro já existiam no ponto de partida, em 2007, quan- do comecei a esboçar o pro- jeto. Principalmente, por- que um filme documental tem cem minutos, e eu sa- bia que teríamos mais de 30 ou 40 horas de entrevis- tas com o cineasta que, pa- ra muitos, é o melhor tradu- tor do seu tempo, aquele que talvez tenha melhor en- tendido as consequências do processo de globaliza- ção sobre o homem comum. Poder ter feito o livro a qua- tro mãos com Jean-Michel Frodon (jornalista francês e crítico de cinema, que conduziu as entrevis- tas para o documentário juntamente com Walter), com o apoio da Mostra de São Paulo e da Cosac Naify, foi um presente e tanto. Gostaria de falar sobre proje- tos futuros, para encerrar. Você assina a produção do fil- me “Paulina”, uma coprodu- ção entre Brasil, Argentina e França. O filme foi o gran- de vencedor da Semana da Crítica, mostra paralela de Cannes de 2015. O filme se- gue agora as rotas dos festi- vais? Há previsão de lança- mento comercial no Brasil? O filme foi convidado por uma série de festivais de- pois de Cannes, e deverá ser visto pela primeira vez no Brasil na Mostra de São Paulo deste ano. Para nós, “Paulina” faz parte de um interesse e admiração que temos há tempos pela cine- matografia argentina. A fil- magem de “Diários de Moto- cicleta” me aproximou de ci- neastas argentinos, que em vários casos se torna- ram amigos próximos. Fo- mos coprodutores de três fil- mes de Pablo Trapero, do documentário que Gustavo Santaolalla produziu sobre o Tango, dirigido por Mi- guel Kohan; de “Habi, a es- trangeira” que competiu em Berlin em 2013. E, ago- ra, de “Paulina”, do talento- so Santiago Mitre. Essas co- produções com Argentina são uma maneira de lem- brar que os nossos países e a nossa cinematografia são, na verdade, muito mais pró- ximas do que aparentam.. Falando a língua de “Narcos” ParaWalterSalles,ocineastachinêsconsegue,emsua obra,revelarmaisperguntasdoquerespostasprontas O coletivo de 200 milhões de pessoas que anteriormente se identificava como “técnico de futebol” assumiu sua faceta “especialista em linguística” HÉLVIO FLÁVIA DENISE [email protected] A decisão de misturar os talentos brasileiros de “Tropa de Elite” com uma história colombiana e uma narrativa norte-america na foi bem calculada Cena. Documentário também deu origem a um livro, que usa as mais de 40 horas de entrevistas com Zhang-ke VIDEO FILMES/DIVULGAÇÃO Continuação da capa 2 M O TEMPO Belo Horizonte SEGUNDA-FEIRA, 7 DE SETEMBRO DE 2015

HÉLVIO ParaWalterSalles,ocineastachinêsconsegue,emsua ... · ramuitos, é omelhor tradu-tor do seu tempo, aquele quetalvez tenha melhor en-tendido as consequências do processo

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Cinema

‘Jia Zhang-keé um cineastaque não julga’

Para uma série sobreo maior traficanteda história da huma-nidade, “Narcos” es-

tá se tornando uma bela dis-cussão sobre linguagem. Aolongo da última semana, ainternet foi bombardeadade comentários, posts, maté-rias e artigos sobre as esco-lhas linguísticas da produ-ção original do Netflix. Oscolombianos estão (obvia-mente) revoltados com o fa-to de que o brasileiro Wag-ner Moura, com seu sotaqueperceptível, interpreta a len-da do tráfico Pablo Escobar.Graças aos brasileiros envol-vidos na produção (além doator, o seriado é produzidopor José Padilha, de “Tropade Elite”), o Brasil sente quetem a obrigação de fazersua análise crítica. O coleti-vo de 200 milhões de pes-soas que anteriormente seidentificava co-mo “técnico defutebol” assu-miu sua faceta“especialistaem linguística”e tomou as do-res dos vizi-nhos. Nos redu-tos brasileiros,não há quemhesite em criti-car o “espanholsofr ível” deWagner Moura– mesmo semfalar a línguaou ter o ouvidotreinado o bas-tante para escu-tar Moura soltar vogais ana-saladas, próprias do portu-guês, que deveriam ser aber-tas, como prega o bom caste-lhano.

Curiosamente, o debatelinguístico de “Narcos” nãomorre nas redes sociais bra-sileiras. Transformandofronteiras em meras linhasem um mapa, a discussãoatingiu os Estados Unidos.Por lá, porém, o fato de queWagner Moura “nasceu fa-lando português” não passade uma anedota. Para eles,o real cerne da discussão é aengenhosidade dos criado-res da série. Afinal, eles con-tam uma história colombia-na, na qual os EUA fazem

uma participação para láde especial, com uma nar-rativa em inglês e persona-gens norte-americanos fa-lando inglês, fazendo o es-pectador da terra do TioSam esquecer que está sen-do “obrigado” a escutar diá-logos em espanhol. Moran-do em um país que normal-mente aposta no inglêscom sotaque ao retratar es-trangeiros, os críticos nor-te-americanos ficaram im-pressionados com a “auten-ticidade” da série.

É difícil saber como osexecutivos do Netflix estãoencarando a repercussãolinguística de uma série so-bre cocaína, mas, levandoem conta que a empresa es-tá ampliando seus investi-mentos para atrair novospúblicos e tem dados secre-tos sobre o que seus clien-tes estão realmente assis-

tindo, é segu-ro dizer que adecisão demisturar os ta-lentos brasilei-ros de “Tropade Elite” comuma históriacolombiana euma narrativanorte-america-na foi bem cal-culada. Consi-derando quetoda essa polê-mica só ga-nhou desta-que porque es-tá todo mun-do assistindo

a série, a decisão tambémfoi acertada.

Felizmente para os fãsdesse novo Wagner Mourabarrigudo, quieto e mortal,“Narcos” foi renovada paraa segunda temporada.Quem sabe possamos, en-fim, superar o debate so-bre o sotaque do ex-Capi-tão Nascimento e finalmen-te conversar sobre a maniade narrativa de Padilha, seé possível ou não sentir em-patia pelos personagens dasérie ou até mesmo sobre oponto central da produ-ção: tráfico violento e de-senfreado que a guerra àsdrogas tem se mostrado in-capaz de conter.

¬ MANOELLA BARBOSA

ESPECIAL PARA O TEMPO

¬Neste trecho da entrevis-ta, Walter Salles fala sobreo que chama mais a suaatenção no cineasta docu-mentado em “Jia Zhang-k e , u m H o m e m d eFenyang”, seu mais recen-te filme, sobre o livro quesai junto com o longa e deoutros projetos.

Quais sãos os paralelosentre  “Jia Zhang-ke, umHomem de Fenyang” e seusprojetos anteriores? Deque forma o filme dialogacom seus outros filmes? Aexemplo dos personagensque escolhi para meus do-cumentários anteriores, oque me move é o interessepor pessoas que estão en-tre culturas; e, de uma for-ma mais ampla, por aquiloque diz, antes de mais na-da, respeito ao humano. Oque interessa a Jia é o im-pacto das transformaçõesda sociedade no homem. Oque torna a sua obra aindamais surpreendente é que,no meio desse fluxo urgen-te de transformações, ele éum cineasta que não julga,que consegue relativizaraquilo que vê. Não há fra-

ses ou verdades prontas, esim dúvidas, perguntas e ouso constante da palavra“talvez”.

O documentário é acompa-nhado de um livro. O projetofoi concebido desde o iníciopara ser um duo documentá-rio e livro? Sim, a ideia deum documentário e de umlivro já existiam no pontode partida, em 2007, quan-do comecei a esboçar o pro-jeto. Principalmente, por-que um filme documentaltem cem minutos, e eu sa-bia que teríamos mais de30 ou 40 horas de entrevis-tas com o cineasta que, pa-ra muitos, é o melhor tradu-tor do seu tempo, aqueleque talvez tenha melhor en-tendido as consequênciasdo processo de globaliza-ção sobre o homem comum.Poder ter feito o livro a qua-tro mãos com Jean-MichelF r o d o n ( j o r n a l i s t afrancês e crítico de cinema,que conduziu as entrevis-tas para o documentáriojuntamente com Walter),com o apoio da Mostra deSão Paulo e da Cosac Naify,foi um presente e tanto.

Gostaria de falar sobre proje-tos futuros, para encerrar.Você assina a produção do fil-

me “Paulina”, uma coprodu-ção entre Brasil, Argentinae França. O filme foi o gran-de vencedor da Semana daCrítica, mostra paralela deCannes de 2015. O filme se-gue agora as rotas dos festi-vais? Há previsão de lança-mento comercial no Brasil?O filme foi convidado poruma série de festivais de-pois de Cannes, e deveráser visto pela primeira vezno Brasil na Mostra de SãoPaulo deste ano. Para nós,“Paulina” faz parte de uminteresse e admiração  quetemos há tempos pela cine-matografia argentina.  A fil-magem de “Diários de Moto-cicleta” me aproximou de ci-neastas argentinos,  queem vários casos se torna-ram amigos próximos. Fo-mos coprodutores de três fil-mes de Pablo Trapero, dodocumentário que GustavoSantaolalla produziu sobreo Tango, dirigido por Mi-guel Kohan; de “Habi, a es-trangeira” que competiuem Berlin em 2013. E, ago-ra, de “Paulina”, do talento-so Santiago Mitre. Essas co-produções com Argentinasão uma maneira de lem-brar que os nossos países ea nossa cinematografia são,na verdade, muito mais pró-ximas do que aparentam..

Falando a língua de “Narcos”

ParaWalterSalles,ocineastachinêsconsegue,emsuaobra,revelarmaisperguntasdoquerespostasprontas

O coletivo de200 milhões de

pessoas queanteriormentese identificavacomo “técnico

de futebol”assumiu sua

faceta“especialista

em linguística”

HÉLVIO

FLÁVIADENISE

[email protected]

A decisão demisturar ostalentosbrasileiros de“Tropa deElite” comuma históriacolombiana euma narrativanorte-americana foi bemcalculada

Cena. Documentário tambémdeu origem a um livro, queusa as mais de 40 horas deentrevistas com Zhang-ke

VIDEO FILMES/DIVULGAÇÃO

Continuação da capa

2 MO TEMPO Belo HorizonteSEGUNDA-FEIRA, 7 DE SETEMBRO DE 2015