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HENRIQUE CARMONA DUVAL
BENS MATERIAIS E SIMBLICOS: condio camponesa e estratgias
familiares em assentamentos rurais na regio central do Estado de So Paulo
CAMPINAS
2015
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HENRIQUE CARMONA DUVAL
BENS MATERIAIS E SIMBLICOS: condio camponesa e estratgias
familiares em assentamentos rurais na regio central do Estado de So Paulo
ORIENTADORA: Profa. Dra. Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco
Tese de Doutorado apresentada ao
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas,
para obteno do Ttulo de Doutor em
Cincias Sociais.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE VERSO FINAL DA TESE
DEFENDIDA PELO ALUNO HENRIQUE CARMONA DUVAL E
ORIENTADA PELA PROFESSORA DOUTORA SONIA MARIA
PESSOA PEREIRA BERGAMASCO.
CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS IFCH
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Resumo
A presente tese tem como objetivo investigar as estratgias das famlias assentadas em
uma regio dominada pelo complexo canavieiro. Envolve a caracterizao do processo
agrrio regional, da concentrao fundiria e dos modelos de desenvolvimento pautados
no plantio de cana-de-acar, como aspectos que influenciam as famlias assentadas nas
relaes de poder a que esto submetidas. Por outro lado, foram traadas as origens das
famlias e suas trajetrias de lutas sociais organizadas, da proletarizao imposta s
formas de vivenciar uma condio camponesa de produo e reproduo social no
interior dos assentamentos.
Palavras-chave: Reforma agrria, Assentamentos rurais, Reproduo social,
Campesinato, Sociologia Rural.
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Abstract
This thesis aims to investigate the strategies of families settled in a region dominated by
sugarcane complex. It involves the characterization of the regional agrarian process of
land concentration and guided development models in planting sugarcane, as aspects
that influencing families settled in power relations. Furthermore, were traced the origins
of families and their trajectories of organized social struggles, the proletarianization
imposed and ways to live a peasant condition of social production and reproduction in
the settlements.
Key-words: Land reform, Rural settlements, Social reproduction, Peasantry, Rural
Sociology.
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SUMRIO
APRESENTAO ........................................................................................................... 1
INTRODUO ................................................................................................................ 8
CAPTULO 1 ESTRATGIAS FAMILIARES NO CAMPO CIENTFICO DE
PIERRE BOURDIEU ..................................................................................................... 63
1.1 Estruturas sociais e simblicas ............................................................................. 63
1.2 Representaes e Prticas de Pesquisa ................................................................. 73
1.3 Transformaes no habitus, imposies da racionalidade urbano-industrial e o
trabalho etnogrfico .................................................................................................... 77
1.4 A noo de estratgia e alguns pressupostos metodolgicos ............................... 83
1.5 Estratgias matrimoniais no Barn: precedncia masculina e o jogo com as ms
cartas ........................................................................................................................... 89
1.6 Questes de gnero: invertendo posies? ........................................................... 97
1.7 Transformaes no Habitus na Arglia colonial ................................................ 106
1.8 A Questo do Sabir Cultural .............................................................................. 116
CAPTULO 2 A GNESE DO CAMPESINATO BRASILEIRO: UM RESGATE DE
DILEMAS .................................................................................................................... 123
2.1 Sobre o uso da teoria do campesinato na contemporaneidade ........................... 123
2.2 Resgatando algumas noes clssicas ................................................................ 132
2.3 Diferentes correntes do campesinato: entre a ortodoxia, as adaptaes e as recusas
ao Estado .................................................................................................................. 141
2.4 Fazendas e plantations no Novo Mundo ............................................................ 149
2.5 Escravido, Dominao e Resistncia como Herana ........................................ 156
2.6 Chayanov e a lgica da unidade agrcola familiar .............................................. 169
2.7 O Campesinato, o Mercado e o Estado: uma relao harmnica? ..................... 177
2.8 Dimenses Simblicas: autoconsumo e a cosmoviso camponesa .................... 188
2.9 O campesinato brasileiro como classe social? .................................................... 201
2.10 Novos Camponeses, Novos Desdobramentos .................................................. 221
CAPTULO 3 O UNIVERSO EMPRICO ............................................................... 237
3.1 Modelo Agroexportador e Categorias Sociais .................................................... 237
3.2 Caracterizao da Regio Central do Estado de So Paulo ................................ 245
3.3 Apresentando brevemente as trajetrias dos assentados investigados ............... 250
3.4 A trajetria da cana nos assentamentos .............................................................. 260
3.5 Mudanas na Gesto: o INCRA Assume a Reforma Agrria? ........................... 276
3.6 Assentamento da Barra: as peculiaridades de um PDS e a inovao no campo da
poltica de assentamentos ......................................................................................... 296
xii
CAPTULO 4 AS MARCAS DO SISTEMA PRODUTIVO NOS
ASSENTAMENTOS DA REGIO CENTRAL ......................................................... 311
4.1 Um retrato dos sistemas de produo vegetal .................................................... 312
4.2 Criaes Animais ................................................................................................ 318
4.3 Diviso do trabalho e renda nos sistemas produtivos ......................................... 326
4.4 Condies no Lote: autoconsumo e acesso aos alimentos ................................. 328
4.5 As vrias formas e problemas de acesso gua para a produo....................... 330
CAPTULO 5 ETNOGRAFIAS MULTISSITUADAS: DIFERENTES POSIES E
REPRESENTAES NOS ASSENTAMENTOS ...................................................... 339
5.1 Uma breve apresentao dos casos analisados ................................................... 339
5.2 Invisibilidade do trabalho feminino: expresso da masculinizao do mundo rural
.................................................................................................................................. 343
5.3 A importncia das mulheres nos sistemas produtivos: contestado invisibilidades
.................................................................................................................................. 346
5.4 Mudanas possveis de papis por meio do poder local ..................................... 357
5.5 O grupo da padaria AMA: experincia de sucesso nos assentamentos de
Araraquara ................................................................................................................ 360
5.6 Dona Regina: uma assentada separada e suas perspectivas de trabalho no
assentamento ............................................................................................................. 371
5.7 Dona Maria Aparecida, viva: continuidades e conflitos familiares.................. 376
5.8 Dona Mrcia: trajetria urbana e enraizamento por meio de atividades no-
agrcolas .................................................................................................................... 380
5.9 Grupo da cozinha: as descontinuidades de um grupo de mulheres .................... 386
5.10 Associao do ncleo III, assentamento Monte Alegre: o vai e vem da cana e das
polticas pblicas ...................................................................................................... 390
5.11 Dona Neusa: a cana que vira acar mascavo e rapadura ................................ 397
5.12 Sr. Edson, produtor da Cachaa do Horto: transformando a matria-prima
industrial em produto artesanal para o mercado externo .......................................... 406
5.13 Lote do Sr. Bellintani e dona Teresa: aspectos da dinmica familiar no
assentamento ............................................................................................................. 409
5.14 Lote de Maria Trovatti: de famlia sitiante da regio ao comando da integrao
avcola ....................................................................................................................... 418
5.15 Lote de Maria Terro: a viva que deu a volta por cima .................................. 428
5.16 Lote Sr. Antonio, ncleo VI: desvendando a converso alimentar na produo de
frango industrial ........................................................................................................ 436
5.17 Lote do Anderson (filho do Jos Roberto), em processo inicial de produo de
frango em parceria com agroindstria ...................................................................... 439
5.18 PDS da Barra: a primeira aproximao do assentamento no Ncleo Mrio
Lago ........................................................................................................................ 442
5.19 As especificidades do ncleo ndio Galdino: o ncleo dos excludos .......... 447
xiii
5.20 Novas divises possveis: avanos e constrangimentos na organizao do
assentamento ............................................................................................................. 456
5.21 Cooperativa da Agrobiodiversidade: uma proposta para o assentamento ........ 463
CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 469
REFERNCIAS ........................................................................................................... 481
xiv
xv
Dedico este trabalho s famlias assentadas da reforma agrria brasileira.
xvi
xvii
Agradecimentos
Primeiramente, eu agradeo a Deus a concluso desta etapa do trabalho.
Agradeo toda a minha famlia, em especial Regina, Jlia, Felipe, Vilma, Eneida e ao
meu pai Rogrio (in memorian), pelo amor incondicional.
Ana Helena, pelo carinho evidentemente, mas tambm por compartilhar momentos
decisivos na concluso da tese.
minha orientadora Sonia Bergamasco, pela acolhida no Doutorado em Cincias
Sociais no IFCH um dos nicos redutos para quem quer fazer doutorado em
Sociologia Rural em So Paulo. Agradeo a parceria no s para a orientao da tese,
pela pacincia e cobranas em relao aos prazos, mas tambm por abrir a possibilidade
de participar de sua equipe em valiosos projetos de pesquisa e de extenso.
professora Vera Botta, pelos mais de dez anos de uma convivncia repleta de
afetividade, bons trabalhos e aprendizagens. Muito obrigado pela oportunidade de fazer
parte dessa trajetria.
Aos professores da minha banca, Fernando Loureno, Maria Helena Antuniassi e
Marilda Menezes, pela generosidade e por compartilharem de anlises enriquecedoras
para a continuidade dos trabalhos. Me sinto privilegiado por ter contado com uma banca
com pesquisadores to singulares e comprometidos com os agentes sociais do campo.
Estendo os agradecimentos ao professor Franois Bonvin, cuja excelente contribuio
em meu exame de qualificao foi fundamental para a construo do campo terico
fundamentado em Bourdieu.
Aos meus amigos do Ncleo de Pesquisa e Documentao Rural: Csar Gmero, Daniel
do Amaral, Thauana Gomes, Silvani Silva, Ana Flvia Flores e Fbio Grigoletto. Aos
amigos do grupo da Feagri: Wilon Mazalla Neto, Ana Luisa de Arajo e Kellen
Junqueira.
Aos amigos da linha de pesquisa do rural e do Programa de Doutorado: Vilenia Porto
Aguiar, Bernard Alves, Tiago Jacana e Joyce Gotlib.
Aos amigos de sempre, de prosa e de vida: Ri, Jeane, Michel, Celso, Camila, Joo,
Val, Fernando, Kamila, Oscar, Raquel e Luciane.
Ao corpo docente e aos funcionrios do Doutorado em Cincias Sociais do IFCH,
especialmente aos queridos Maria Rita Gandara e Reginaldo Alves.
Ao corpo docente e funcionrios do PPG em Desenvolvimento Territorial e Meio
Ambiente da Uniara, com os quais convivo cotidianamente, pelo excelente ambiente de
trabalho e aprendizagem: Ivani Urbano, Silvia Correa, Fernanda Tsedak, Dulce
Whitaker, Osvaldo Aly Jr., Manoel Baltasar da Costa, Oriowaldo Queda, Paulo
Kageyama, Helena De Lorenzo, Maria Lcia Ribeiro, Guilherme Gorni, Zildo Gallo,
Luiz Manoel Almeida, Flvia Sossae, Janana Cintro, Marcos Csar de Castro, Lo
Rios.
xviii
xix
LISTAS DE FIGURAS
Figura 1 Assentamentos Federais no Estado de So Paulo at 2009 ...........................55
Figura 2 Cana-de-acar colhida no Brasil (1980-2009) ..........................................247
Figura 3 Marcela (filha) e D. Sueli (me), mostrando seus bordados .......................352
Figura 4 Produo da rapadura ..................................................................................406
Figura 5 Marido da D. Neusa contribuindo para a produo ................................... 406
Figura 6 Almoo na casa do Sr. Bellintani ................................................................417
Figura 7 Famlia toda reunida (da esquerda para a direita: Amlia, esposa do Andr
com o nenm, Sr. Bellintani, Vanusa, Patrcia, dona Teresa, Bruna e Selma ..............417
Figura 8 Fragmento e fragmentos de reserva legal na Fazenda da Barra ..................445
Figura 9 O milharal e, ao seu final, o capim colonio e a reserva .............................446
Figura 10 Feijo guand e milho para autoconsumo e alimento das criaes ..........446
Figura 11 Criao de coelhos da dona Sara ...............................................................446
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LISTA DE GRFICOS
Grfico 01 Produtos agroindstria .............................................................................348
Grfico 02 Quem faz Agroindstria .......................................................................348
Grfico 03 Destinao da produo Agroindstria ................................................349
Grfico 04 Renda mensal (salrios mnimos) Agroindstria .................................350
Grfico 05 Quem realiza a atividade no agrcola ....................................................351
Grfico 06 Renda mensal Atividade no agrcola ..................................................351
Grfico 07 Acesso a crdito instalao ......................................................................353
Grfico 08 Valor acessado .........................................................................................355
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Subdiviso da regio Central .......................................................................56
Quadro 2 Distribuio de famlias por ncleo e municpio dos PAs Monte Alegre e
Bueno de Andrada ..........................................................................................................56
Quadro 3 Desembolsos do BNDES por atividade produtiva para o setor
sucroalcooleiro no perodo 2004-2010 (em R$ milhes) .............................................248
Quadro 4 Amostragem Regio Central .....................................................................249
Quadro 5 Famlias assentadas em So Paulo, em projetos criados pelos governos
federal (PA + PDS) e estadual (PE) (2002, 2006, 2010) ..............................................280
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LISTA DE TABELAS
Tabela 01 Tipos de culturas produzidas nas regio Central ......................................312
Tabela 02 Destino da produo Regio Central ........................................................313
Tabela 03 Acesso Financiamento Regio Central ...............................................316
Tabela 04 Origem financiamento Regio Central ..................................................316
Tabela 05 - Criao Animal ..........................................................................................319
Tabela 06 Destinao da produo Bovinocultura de leite ....................................322
Tabela 07 Destinao da Produo Aves ................................................................323
Tabela 08 Destinao da Produo Sunos .............................................................324
Tabela 09 Origem do Recurso Bovinocultura de Leite ..........................................324
Tabela 10 Origem do Recurso Aves .......................................................................325
Tabela 11 Origem do Recurso Sunos ....................................................................325
Tabela 12 Quem cuida das culturas Regio Central ...............................................326
Tabela 13 Pessoas trabalhando no lote Regio Central ..........................................327
Tabela 14 Renda mensal do trabalho realizado no lote (baseada no salrio mnimo)
Regio Central ..............................................................................................................327
Tabela 15 Melhora na alimentao no assentamento ................................................329
Tabela 16 Gasto mensal com produtos comprados fora do assentamento ................330
Tabela 17 Origem gua para produo ......................................................................330
Tabela 18 Suficincia da gua para produo ...........................................................332
xxvi
1
APRESENTAO
A presente tese d continuidade ao meu estudo de mestrado e tem ntima ligao
com um ciclo de pesquisas sobre as tenses sociais que envolvem a criao e o
desenvolvimento dos assentamentos rurais na regio central do estado de So Paulo. De
forma geral, os principais objetivos tratam de analisar diferentes conjunturas e as
estratgias familiares a partir do momento em que h os assentamentos. O fato de
participar de um grupo de pesquisa o Ncleo de Pesquisa e Documentao Rural
(Nupedor) h mais de dez anos colaborou imensamente para que o trabalho fosse
realizado.
Por isso, antes de entrar nas problemticas especficas da tese, se faz necessrio
contextualizar os projetos de pesquisa dos quais participo no mbito do Nupedor. Minha
participao em tais projetos enquanto pesquisador estimulou a continuidade da
pesquisa de mestrado defendida no Programa em Agroecologia e Desenvolvimento
Rural (UFSCar)1, na qual foi feita uma investigao qualitativa acerca da produo do
autoconsumo alimentar dentre as famlias do assentamento Monte Alegre
(Araraquara/SP). O autoconsumo foi estudado como algo inerente aos modos de vida e
como expresso do habitus das famlias assentadas, demonstrando as formas prprias
que as famlias vo encontrando de organizar sua produo e reproduo social. Tais
formas de organizao no esto ligadas, no caso dessas famlias agricultoras, apenas a
aspectos de uma economia de tipo capitalista. Na verdade, conclu na pesquisa de
mestrado que o autoconsumo evidencia elementos de uma economia no capitalista no
modo de vida nos assentamentos no livre do sistema capitalista, conforme destacou
Chayanov em sua teoria sobre o campesinato , pois trata-se de uma produo de bens
de uso ligada a aspetos no monetrios e qualidade de vida das pessoas. Nesse tipo de
produo trabalha a famlia, um pouco mais livre das necessidades do mercado, mas em
funo de seus gostos, preferncias e necessidades de reproduo fsica, ou seja,
necessidades materiais e simblicas. Livres, no sentido da livre deliberao acerca das
prticas agrcolas, da organizao do territrio quanto ao que e como produzir, como
destinar, os modos de preparo. Liberdade que vai encontrar restries em outros espaos
da vida desses agentes.
1 DUVAL, H.C. Da Terra ao Prato: um estudo das prticas de autoconsumo em um assentamento rural.
2009. Dissertao (Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural). Universidade Federal de So
Carlos, Araras, 2009.
2
No mestrado, verifiquei que o autoconsumo ainda envolto em invisibilidades,
por ser uma produo que se mede em metros-quadrados, em pequenos espaos nos
quais tudo fica junto e misturado e que, portanto, no aparece nas estatsticas
oficiais. Com nfase nas produes comerciais e nos ndices de produtividade,
pesquisadores, tcnicos e os prprios agricultores tendem a desconsiderar o
autoconsumo como parte da renda das famlias ou a associ-lo ao atraso produtivo. O
estudo de mestrado foi focado nos sistemas agrcolas de produo de alimentos e na
alimentao cotidiana das famlias assentadas, relacionando os desenhos agrcolas dos
lotes aos pratos de comida. Foi justamente essa a principal contribuio da pesquisa, em
termos da metodologia utilizada, com a qual combinei desenhos dos lotes produzidos
pelas famlias e seus cardpios de alimentao cotidiana para dimensionar
qualitativamente a produo de autoconsumo. Tal metodologia me permitiu adentrar at
cinco escalas de diversificao ocasionadas pelo assentamento e que possuem como
ponto fulcral a organizao da produo para o autoconsumo. As escalas de
diversificao so em relao ao entorno homogeneizado pela cana-de-acar industrial
e internamente ao assentamento: entre os diferentes lotes, entre os diferentes sistemas
agrcolas no interior de cada um, com a utilizao de policultura e variedades distintas
do mesmo cultivo para alimentao das famlias.
Apesar de encontrar diferentes perfis de famlias assentadas, a maioria delas
declarou que sua alimentao cotidiana provm de produo prpria e, em razo disso, a
discusso empreendida passou pela considerao sobre a sanidade, a confiabilidade do
alimento e uma alimentao mais saudvel; por ocupar pequenos espaos no interior dos
lotes e favorecer a diversificao e as prticas de agricultura de base ecolgica; por sua
prtica denotar a livre deliberao acerca do que e como produzir, quando comparada
aos sistemas de integrao agroindustrial; por possuir forte protagonismo das mulheres
em sua produo da terra ao prato; por atingir diretamente a dimenso econmica dos
lotes, uma vez que elimina custos com alimentos de fora e gera excedentes
comercializveis em feiras, no varejo e em programas como o PAA; igualmente, so
objetos de trocas e doaes entre as famlias assentadas, aumentando a sociabilidade
entre elas e diminuindo a possibilidade de haver fome e misria. A produo de
autoconsumo valoriza a satisfao cultural, que to importante quanto a satisfao
nutricional, pois a alimentao um dos aspectos que forma a identidade de um grupo
social, relacionando-se com a soberania alimentar e com os processos de produo e
reproduo social no interior de um assentamento. Tais resultados foram
3
exaustivamente apresentados crtica acadmica em congressos especializados e
sintetizados em um artigo (DUVAL, FERRANTE, BERGAMASCO, 2012).
Aps o mestrado, houve quatro projetos de pesquisa na mesma linha temtica da
relao assentamentos e desenvolvimento, no interior dos quais dei continuidade s
investigaes. O primeiro deles, o projeto Assentamentos Rurais e Desenvolvimento:
integrao, diversificaes, contrapontos e complementaridades (FERRANTE,
2010), teve como um dos objetivos analisar as principais alternativas de produo
agropecuria nos assentamentos de Araraquara e do Pontal do Paranapanema. Por um
lado, a integrao dos assentamentos a diferentes complexos agroindustriais enquanto
fornecedores de matria-prima, o que se d por meio de contratos de produo e
fornecimento ou de maneira informal. Analisamos a integrao dos assentados para
plantio de cana-de-acar e criao de frango industriais na regio de Araraquara e os
contrapontos com a produo de leite no Pontal do Paranapanema. Por outro lado,
investigamos a diversificao da produo, sobretudo da produo de alimentos, as
agroindstrias caseiras e/ou artesanais e a mediao das polticas pblicas de aquisio
de alimentos para a insero dessas produes aos mercados urbanos.
Apesar de algumas vezes possibilitar um bom retorno financeiro s famlias
assentadas, consideramos as formas de integrao agroindustrial geradoras de relaes
assimtricas entre parceiros com distintos interesses e capitais polticos, econmicos e
sociais. Afora uma investigao minuciosa dessa relao assimtrica, por meio da
anlise de contratos, do aspecto monetrio e dos sistemas produtivos cuja principal
expresso a aplicao de pacotes tecnolgicos, que acabam por representar as amarras
a que os assentados ficam submetidos, cabe destacar o quanto o assdio dos complexos
agroindustriais coloca barreiras ou no para a produo de alimentos nos lotes
familiares, interferindo em suas condies em termos de segurana alimentar. Podemos
afirmar que, desde a instalao dos primeiros ncleos de assentamentos na regio de
Araraquara, o complexo canavieiro vem exercendo tal assdio para instalar canaviais
nos lotes familiares, sob a alegao de que esse seria o nico caminho para a
dinamizao econmica dos assentamentos. Durante a dcada de 1990, foram
documentadas e analisadas vrias formas de consrcios e arrendamentos propostas por
um conjunto de agentes para a integrao das usinas de cana e os assentados
(FERRANTE, BARONE, 2011; FERRANTE, ALMEIDA, 2009).
Esse discurso acabou sendo aceito pela maioria dos agentes externos, sejam
rgos gestores ou das prefeituras locais e governo do Estado, mas tambm por parte
4
dos prprios assentados, diante de um quadro de amplo endividamento e de falta de
outras opes produtivas. Tanto que no incio da dcada de 2000 foi forjado o
instrumento legal que regulamentou aquilo que os agentes tcnicos costumam chamar
de parceria entre agroindstrias e assentamentos no estado de So Paulo. Trata-se da
Portaria Itesp 075/2002, substituda pela Portaria 077/2004, que estabeleceu as normas e
as obrigaes do plantio de culturas agroindustriais nos assentamentos paulistas.
J a diversificao da produo agrcola vem sendo mediada principalmente por
polticas pblicas de aquisio de alimentos nos mbitos federal, estadual e municipal.
Minhas pesquisas sobre o autoconsumo se inserem sobretudo nesse eixo temtico do
projeto, uma vez que a produo dos prprios alimentos sugere uma cesta diversificada
de itens para as famlias. As polticas pblicas vm cumprindo o objetivo da compra
para abastecimento municipal desses mesmos alimentos que so produzidos
primeiramente para atender a demanda das famlias assentadas, o que vem representado
um caminho diferente para o desenvolvimento dos assentamentos em relao ao que era
priorizado at meados dos anos 2000.
Outros dois projetos seguem a mesma linha temtica e tambm em uma
perspectiva comparativa dos assentamentos de Araraquara e do Pontal do
Paranapanema, porm com recorte de gnero. O projeto Os Assentamentos Rurais Sob
a Perspectiva de Gnero: diviso sexual do trabalho e polticas pblicas em anlise
(FERRANTE, 2009) props problematizar a vida das mulheres nos assentamentos e as
recentes conquistas das polticas pblicas, notadamente aquelas voltadas temtica de
gnero. Nesse projeto, acompanhamos a diviso sexual do trabalho nos lotes familiares
e a formao de grupos de mulheres assentadas em busca de gerao de trabalho e
renda, com foco nas atividades agrcolas, na agroindustrializao caseira e/ou artesanal
e na comercializao de seus produtos nos mercados urbanos, iniciativas que apontam
novas perspectivas de desenvolvimento a esses grupos. Buscamos compreender e
analisar essas situaes, nas quais, apesar de no ser propriamente invertida a lgica da
diviso sexual do trabalho, h conquista de espao pelas mulheres nas agendas polticas.
A principal contribuio desse projeto para a tese foi possibilitar o
acompanhamento de grupos produtivos de mulheres nos assentamentos de Araraquara e
de como o papel das mulheres nos lotes, voltados mais para a reproduo social das
famlias, no se alterou tanto no momento em que elas passaram a investir em
atividades coletivas de agroindustrializao caseira/artesanal de seus produtos e adentrar
mercados urbanos. Os resultados desse projeto apontam para as dificuldades enfrentadas
5
por essas mulheres na trajetria de constituio de seus grupos, trajetria permeada pela
desigualdade nas relaes de gnero, tanto no interior dos assentamentos, na relao
com outras famlias assentadas e com os assentados (homens, inclusive seus maridos),
quanto na relao com os agentes da assistncia tcnica e os gestores municipais para a
conquista e manuteno dos espaos produtivos e de comercializao.
O terceiro projeto, Da Invisibilidade ao Protagonismo: relaes de gnero nos
assentamentos, nos projetos de desenvolvimento sustentvel e nos territrios da
cidadania (FERRANTE, 2013), uma continuao do projeto anterior e tem como
proposta aprofundar a anlise nos papis das mulheres rurais e das polticas pblicas
voltadas a elas. Alm disso, como as pesquisas anteriores tiveram foco nos
assentamentos constitudos nos primeiros tempos da poltica de reforma agrria, em
assentamentos da modalidade PA (Projeto de Assentamento), uma nova conjuntura
poltica e a criao de uma srie de novos assentamentos ao longo da dcada de 2000,
no estado de So Paulo, nos impuseram como exigncias de parmetros analticos o
tempo de constituio e a modalidade de assentamento. Por isso, nesse projeto houve a
insero de assentamentos mais recentes e da modalidade PDS (Projeto de
Desenvolvimento Sustentvel), alm de assentamentos inseridos no Territrio da
Cidadania do Pontal do Paranapanema, o que foi ao encontro de nosso propsito de
realizar uma pesquisa comparativa que levasse em conta conjunturas diferentes na
implementao dos assentamentos.
Pretendemos, neste projeto, analisar as diferentes situaes das assentadas com
relao a trabalho e renda; a importncia de seu trabalho na composio da renda
familiar; seu papel nos sistemas produtivos dos lotes e no autoconsumo; os saberes,
prticas e redes de sociabilidade das mulheres; a formao de grupos produtivos formais
ou informais; como se d o acesso ao financiamento daquilo que de seu interesse. Por
outra via, o projeto se dispe a investigar algumas das recentes polticas pblicas com
foco nas mulheres rurais e avaliar o que isso tem ocasionado em termos de mudanas no
cotidiano e nas relaes de gnero no interior dos assentamentos. Alm desses
objetivos, que sero abordados no decorrer da tese, analisam-se as dificuldades
enfrentadas pelos grupos de mulheres no mbito das polticas pblicas, ou seja, na
relao com os agentes pblicos na execuo de aes voltadas a elas. Cabe esclarecer
que esse projeto possibilitou idas a campo e continuidade da pesquisa da tese no
assentamento PDS Fazenda da Barra, em Ribeiro Preto, bem como ofereceu a
6
possibilidade de que pudesse ser realizada uma anlise comparativa de grupos de
mulheres nesse assentamento em relao ao demais.
Em meio aos projetos do Nupedor, tive a oportunidade ainda de integrar a
equipe da Feagri no projeto Agroindstrias Rurais no Estado de So Paulo:
construo de um modelo de investigao de eficcia e de indicadores de
aprimoramento para assentamentos rurais (BERGAMASCO, 2008). Este projeto
esteve focado na anlise de agroindstrias familiares em assentamentos rurais no estado
de So Paulo e, mais especificamente, na construo de um modelo de investigao de
tais agroindstrias. A investigao foi estruturada em trs eixos temticos: a formao
de redes de relacionamento em assentamentos rurais, por meio de agroindstrias; a
valorizao dos espaos locais e da produo dos assentamentos; a capacidade de ao
dos agentes a presentes nos processos de gerao de alternativas para o
desenvolvimento econmico, social e ambiental. O projeto abrangeu agroindstrias
familiares em vrios assentamentos rurais, de diferenciadas regies do estado de So
Paulo, tais como Andradina, Promisso, Araraquara, Araras, Itapeva e o Pontal do
Paranapanema. Minha participao se deu na pesquisa de campo e no acompanhamento
de duas agroindstrias no assentamento Monte Alegre, uma de mulheres voltadas
panificao que j vinha sendo objeto de pesquisa nos projetos com recorte de gnero
e outra voltada produo de cachaa como produto derivado da cana-de-acar. Esse
projeto trouxe a possibilidade para que eu explorasse, na tese, de forma mais
aprofundada, as alternativas de agroindustrializao da produo no interior dos
assentamentos conforme os recortes temticos supracitados.
Por fim, cabe destacar minha participao no projeto Servios de Auxlio em
Desenvolvimento, no mbito da aplicao de polticas pblicas de desenvolvimento
com justia social (FERRANTE et al., 2011), que, mais do que um projeto de pesquisa,
tratou-se de um contrato de prestao de servio do Nupedor, bem como de boa parte do
corpo docente e discente do Mestrado em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente
(Uniara) ao INCRA/SP. Contrato esse que teve como objetivo principal atuar no
desenvolvimento dos assentamentos e das comunidades quilombolas no estado de So
Paulo. Os servios prestados, objeto da parceria entre as duas instituies, foram
divididos em trs reas: Pesquisa, Ensino e Informao. Na Pesquisa, foram realizados
dois diagnsticos por regio: um dos setores produtivos regionais e outro dos
assentamentos e comunidades quilombolas. A delimitao das regies seguiu conforme
definio do INCRA/SP: Oeste A (Pontal do Paranapanema); Oeste B (Andradina e
7
Promisso); Leste (Eixo Anhanguera, Vales do Ribeira e do Paraba); Central
(Araraquara-Ribeiro Preto-Bauru); Territrios Quilombolas. Com relao ao Ensino,
foram desenvolvidas atividades de capacitao de agricultores(as) assentados(as) e
quilombolas em temas como produo animal e vegetal, viveiro de mudas, horticultura
orgnica, biodigesto e biodigestores, sade e gnero, entre outros, e atividades de
assessoria ao INCRA em temas especficos, como sistemas produtivos,
comercializao, gnero e ambiental. Em Informao, foram elaborados vdeos-
documentrios sobre aspectos do modo de vida nos assentamentos e sobre as polticas
pblicas.
Minha participao nesse contrato foi de fundamental importncia no s para
conhecer assentamentos das duas modalidades (PAs e PDSs) em outras realidades
regionais, mas, sobretudo, por se tratar de uma pesquisa estatisticamente representativa
em termos do Estado de So Paulo. Os dados da pesquisa de campo referentes regio
Central, que foi empreendida entre os meses de junho e setembro de 2011, esto
organizados no quarto captulo da tese, de forma a fornecer subsdios quantitativos para
a anlise dos sistemas produtivos e das polticas pblicas para o desenvolvimento dos
assentamentos nessa regio. So destacadas as principais marcas dos sistemas de
produo agropecuria constitudos nos assentamentos. Para nortear essa discusso,
foram considerados os seguintes elementos: os principais cultivos e criaes animais
encontrados, o estgio produtivo, a destinao da produo e formas de
comercializao, a diviso do trabalho familiar no sistema produtivo, a renda e o
autoconsumo nos lotes, a existncia e o tipo de financiamento, acesso gua e o tipo de
manejo agropecurio empreendido.
Assim, no quinto captulo, pude explorar os aspectos qualitativos por meio de
etnografias multissituadas nos assentamentos de Araraquara e de Ribeiro Preto, tendo
por base as experincias de pesquisa adquiridas nos demais projetos. As etnografias me
permitiram aprofundar a anlise em termos das estratgias produtivas e tambm
ultrapass-las, no intuito de captar diferentes posies e estratgias polticas e
matrimoniais das famlias assentadas, que esto imbricadas s produtivas. Foram vistos
casos de famlias individualmente e com diferentes perfis, entre os quais procurei
explorar as relaes de gnero. Tambm procurei dar continuidade ao acompanhamento
de grupos produtivos, formalizados enquanto associaes e/ou cooperativas ou no,
durante o perodo em que foi possvel realizar trabalho de campo.
8
INTRODUO
A idia inicial de minha pesquisa de doutorado era investigar polticas pblicas
para os assentamentos rurais e a constituio do mercado institucional na regio de
Araraquara, por meio do Programa de Aquisio de Alimentos - PAA e do Programa
Nacional de Merenda Escolar - PNAE. Tinha a inteno de investigar esses programas
voltados comercializao da produo de alimentos na sua relao com o
desenvolvimento das famlias assentadas, tendo em vista a dimenso que eles esto
tomando, principalmente a partir de pesquisas sobre a quantidade de famlias assentadas
que podem ser por eles beneficiadas e sobre o aumento do volume de recursos
direcionados aos programas de combate fome nos ltimos anos no Brasil. Tinha como
objetivo principal investigar se eles estavam favorecendo a diversificao da produo
de alimentos e as formas prprias das famlias organizarem essa produo ou se, ao
contrrio, impunham modelos produtivos que impedem as famlias de alcanar
autonomia em seus processos organizacionais. Pretendia, tambm, aprofundar a anlise
sobre a categoria social do assentado rural, principalmente no que toca as relaes das
famlias assentadas com a produo de seu prprio alimento. Com isso, daria
continuidade minha pesquisa de mestrado, investigando se as polticas pblicas
afastariam das famlias a lgica da produo do autoconsumo ou a favoreceriam.
A anlise estaria mais relacionada s polticas pblicas, no intuito de verificar
suas efetividades para as famlias e se elas resolveriam o gargalo da comercializao da
produo dos alimentos prioritariamente destinados ao autoconsumo com a criao do
mercado institucional. Tambm queria avaliar, comparativamente, se as polticas
voltadas comercializao da produo teriam mais eficcia do que aquelas de
financiamento da produo nos assentamentos analisados, haja visto o elevado grau de
endividamento das famlias assentadas. As polticas pblicas que estariam em anlise
seriam o PAA, o PNAE, o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura
Familiar), alm de outras para financiamento da produo, como os crditos iniciais e
crditos para as mulheres, programas municipais para a comercializao, como feiras,
sendo que o foco estaria mais na mediao entre as famlias assentadas e agentes da
assistncia tcnica na efetivao desses programas e seus efeitos sobre a organizao da
produo familiar.
Um dos objetivos especficos era investigar o papel das mulheres assentadas, j
que elas tm forte participao na produo do autoconsumo e na alimentao das
famlias, mas como ficaria essa situao se a produo de alimentos fosse incorporada
9
nas prioridades de comercializao das famlias? Interessava investigar se tais situaes
serviriam para alterar papis familiares no trabalho agrcola, se contribuiriam para
superar a invisibilidade do trabalho feminino ou exclu-las ainda mais do processo
produtivo agrcola nos lotes. Esse objetivo estava relacionado anlise de uma possvel
abertura s mulheres do campo na agenda das polticas pblicas.
No entanto, durante os primeiros anos do curso de doutorado, o projeto foi se
alterando, ao passo que aumentava minha inteno de mudar o foco de anlise das
polticas pblicas para as estratgias familiares e o desenvolvimento (das famlias) nos
assentamentos de uma forma geral. bom esclarecer que na presente tese o
desenvolvimento ser entendido mais como a dinmica de organizao das famlias
assentadas e a conquista da cidadania, superando a idia de desenvolvimento econmico
simplesmente ideia que ser discutida no decorrer da introduo. O foco central no
estaria mais nas polticas pblicas, embora elas sejam uma das alternativas ao
desenvolvimento.
O enfoque nas estratgias familiares passou a abranger um leque muito mais
amplo de possibilidades para a produo e a reproduo social das famlias, em um
continuum que vai das situaes de maior subordinao aos grandes complexos
agroindustriais s situaes de maior autonomia, por meio da diversificao da
produo de alimentos. Alm disso, no h dvidas de que esse leque se abre a muitas
outras possibilidades, dentre as quais interessam tambm as estratgias produtivas
coletivas, a opo das famlias em se juntar em grupos de produo formais ou
informais, formas organizativas que constituem redes de relaes que articulam famlias
agricultoras no interior de suas comunidades e com os municpios do entorno, as
diferentes maneiras de processamento da produo e a comercializao direta, o carter
pluriativo das famlias e seus fluxos migratrios, as influncias dos agentes tcnicos e
regionais. Em suma, faz-se necessrio considerar vrios aspectos do modo de vida das
famlias em um campo social especializado.
Com foco nas estratgias familiares de produo e reproduo social para o
desenvolvimento das famlias assentadas, definiu-se como caminho possvel a essa
pesquisa a integrao terica em torno de Bourdieu (2004a; 2004b) e Bourdieu e Sayad
(2006), sobretudo a noo de estratgia, conforme sugesto da banca, na ocasio da
apresentao do projeto na disciplina Seminrios de Teses, supervisionada pelo Prof.
Dr. Fernando Antonio Loureno. Assim, as estratgias familiares so tomadas no
sentido de colocar em ao as escolhas polticas, produtivas e matrimoniais das
10
famlias assentadas no fazer-se dos assentamentos. A opo por alterar o enfoque das
polticas pblicas para as estratgias familiares procura evitar um estudo sobre as aes
do Estado em si mesmas, como se elas pudessem reger a produo e a reproduo
social no interior dos assentamentos a partir da criao de mercados institucionais, ou
como se esse fosse o nico ou ideal caminho para o desenvolvimento nos
assentamentos. Ou seja, optei por no realizar o estudo com um referencial terico sobre
polticas pblicas e descrever como elas funcionam nos casos investigados, mostrando
se elas so importantes ou no para as famlias assentadas em relao organizao da
produo e da comercializao, de segurana alimentar, de agricultura ecolgica e
tambm seus desafios no mbito da gesto pblica. Mas sim compreender o que
considerei o inverso desse procedimento, que a investigao das estratgias das
famlias, considerando que uma das possibilidades de insero produtiva se d por meio
de polticas pblicas. A tese deixou de ser um estudo sobre um aspecto que anima a
dinmica de organizao das famlias para um estudo sobre a vida social das famlias
assentadas, os aspectos culturais e subjetivos e tambm suas relaes com os demais
agentes sociais.
Com a alterao das prioridades da pesquisa, foram investigados outros
elementos da reproduo social das famlias, que contriburam para mostrar que a opo
por programas como o PAA e o PNAE uma das atuais possibilidades mais relevantes
nas complexas tramas de tenses nas quais os assentamentos se inserem. A poltica
pblica entendida como um elemento externo ao assentamento, da estrutura social,
que a famlia tem a possibilidade de participar ou no. Ao mesmo tempo, a poltica
pblica um elemento estruturante das formas de organizao da produo nos
assentamentos, no s para a comercializao, mas que molda tanto o desenho de um
lote em particular como a organizao das famlias em associaes e cooperativas, para
possurem contratos de fornecimento com os municpios e com a Conab (Companhia
Nacional de Abastecimento) com foco comercial em determinadas produes.
Certamente, os objetivos anteriores ligados anlise das polticas pblicas no
deixaram de ter importncia, uma vez que elas so vitais para as estratgias familiares.
Da a opo de tomar as polticas pblicas mais como um dado da pesquisa, ou
analisadas em termos de suas efetividades para as famlias assentadas, com a hiptese
de que, recentemente, a conjuntura das polticas pblicas para a agricultura familiar
avanou com a criao do mercado institucional e no atendimento de uma parte da pauta
das polticas para as mulheres do campo, embora na prtica elas tenham apresentado
11
problemas de continuidade e permanecido masculinizadas, ou seja, voltadas para o
agricultor e no para a famlia. Nesse sentido, h que se ter em vista que entre os
princpios das polticas pblicas e seus resultados efetivos para os beneficirios, no caso
as famlias assentadas, existe uma relao de mediao com diferentes agentes que
ocasionam, alm de benefcios, tambm rupturas, descontinuidades e expresses de
paternalismo.
Compartilhei uma preocupao existente na principal referncia terica do
trabalho, que (...) de evitar tomar como princpio da prtica dos agentes a teoria que
se deve construir para explic-la (BOURDIEU, 2004a, p.78-79), que poderia se
expressar em uma teoria sobre as polticas pblicas. No final das contas, isso significou
procurar superar um paradigma estruturalista sem cair no subjetivismo, ou seja,
reconhecer que a realidade vivenciada pelas famlias assentadas no associada nem
determinao econmica a priori nem ao sujeito livre e indeterminado em suas aes.
Em torno disso est a discusso das origens e trajetrias das famlias, das lutas sociais
organizadas, inclusive aquelas por polticas pblicas, numa perspectiva histrica das
estratgias familiares, bem como a situao a partir da conquista do direito de acesso
terra e o desenvolvimento das famlias entre o habitus, a rede de relaes com os demais
agentes sociais e as diferentes conjunturas polticas desde ento.
Procurei estudar o que significam as estratgias familiares segundo Bourdieu,
porm localizando-as em um quadro terico-conceitual mais amplo. Nessa
contextualizao passei pelas noes de campo social, de representao, de senso
prtico e de habitus, e ressaltei que as inovaes conceituais de Bourdieu partem de
seus estudos etnogrficos em sociedades rurais na Frana e na Arglia. Os trabalhos
etnogrficos de Bourdieu mostram a condio objetivada de unificao dos mercados de
bens materiais e simblicos ocasionada pelo avano da racionalidade da sociedade
burguesa. Esses trabalhos falam sobre um processo social pelo qual a moral camponesa
foi destruda, com o progressivo avano de novas racionalidades urbano-industriais
sobre os agentes sociais em sua totalidade, degradando as condies objetivas e
subjetivas do modo de vida rural. Trata-se de condies que foram um progressivo
esvaziamento do meio rural, que passou a ser sinnimo de atraso social, de cultura e
trabalho rsticos em relao vida moderna nos grandes centros urbanos. No interior
desse processo, os camponeses so privados do orgulho de si mesmos e passam a ter
vergonha de suas condies materiais e simblicas, em funo do olhar das classes
dominantes. Bourdieu mostra que essa depreciao atribuda ao poder e aos efeitos
12
que a ao dos agentes sociais, sobretudo do Estado e do mercado, tm sobre o
campesinato.
Os exemplos sobre o mercado matrimonial do campesinato francs,
especificamente no sul da Frana na regio do Barn, e os reassentamentos na Cablia
dos camponeses argelinos se referem mais ao modo como Bourdieu construiu
inicialmente seu campo terico-conceitual por meio de trabalhos etnogrficos. No
tenho a pretenso de apresentar esses exemplos como realidades imutveis e aplicveis
a qualquer lugar, embora a unificao material e simblica vivenciada, esta sim, pode
ser considerada presente pelo mundo todo nos processos de passagem de sociedades
rurais para urbanas.
Tal discusso se liga ao tema da produo e da reproduo social nos
assentamentos pelo fato de que essa condio objetivada se impe, ainda hoje, sobre as
famlias agricultoras que vivenciam dois tipos de racionalidades distintas e que poderia
ser sintetizada a partir da polarizao autonomia versus subordinao. Por exemplo,
pelo fato delas possurem alternativas produtivas mais autnomas em relao a como
produzir e destinar a produo, mas condicionadas ao isolamento, ao atraso e
tendncia ao xodo em direo s cidades. Por outro lado, serem subordinadas e
sofrerem assdios de agroindstrias, usinas e outras empresas de um tipo de economia
capitalista, bem como por parte do Estado, em nome de uma suposta modernizao. Nos
dois casos, ou mesmo transitando e extrapolando entre essas racionalidades, podemos
afirmar que as famlias rurais sofrem violentas crises de identidade. As suas condies
de vida pressupem processos que cada vez mais as empurram para a subordinao e/ou
para a expropriao da terra e, consequentemente, para o abandono do meio rural como
lugar de moradia e trabalho. Mas, igualmente, podemos pressupor que existem
estratgias pela prpria sobrevivncia das famlias contra essa tendncia mais geral, por
parte daquelas famlias que insistem em permanecer no campo.
A realidade contraditria vivenciada pelas famlias assentadas me levou a
associar a investigao ao processo histrico de constituio do campesinato brasileiro.
Mas, no que diz respeito ao uso da teoria do campesinato, tambm no a uso de maneira
genrica. Se existem vrios exemplos que do conta de que o campesinato existente
outrora em pases europeus de fato se extinguiu, como na Inglaterra, isso talvez
justifique no ser apropriado usar o termo pelo risco que representa nomear uma
situao que existia em tempos mais remotos sobre o que significa ser campons. No
entanto, a persistncia do campesinato na contemporaneidade est associada ao fato de
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existirem, atualmente, grupos sociais que vivem no meio rural com certas caractersticas
que os aproximam a uma condio camponesa, expressa em modos de vida, reproduo
social e cultural, sistemas agropecurios e outras formas de insero produtiva
singulares, que suscitam fortes relaes campo-cidade. Para Wanderley (2003), uma
suposta passagem conceitual do campesinato para a agricultura familiar deve ser vista
em suas rupturas e continuidades. Dessa forma, existem modos de vida de famlias
assentadas que podem ser vistos como formas continuadas e adaptadas do campesinato
brasileiro no contexto da ps-modernidade.
importante ressaltar que no decorrer da tese questionei definies como a de
agricultura de subsistncia, noo que carrega forte conotao pejorativa, no sentido
de atribuir ao meio rural o lugar do atraso e da misria. Muito pelo contrrio, ao julgar
que a consecuo da subsistncia marca, juntamente com outros fatores, como o local
de moradia, certo grau de autonomia das famlias agricultoras frente ao mercado de
commodities agrcolas, entendo que sua persistncia indica a possibilidade de no haver
misria. Mais do que isso, a realizao da produo de subsistncia pode ser
considerada uma parte da histria econmica do Brasil, embora uma parte secundria,
conforme afirma Delgado (2004). A constituio dos assentamentos relevante
exatamente por isso, em um primeiro plano, porque neles famlias conquistam direitos
como um local para moradia e para produzir sua prpria alimentao, que so
habilitadores de outros direitos, como possuir um modo de vida especfico no meio rural
e uma atividade produtiva na agricultura integrada s necessidades urbanas.
Outra noo a ser questionada a prpria agricultura familiar, no sentido de que
com ela pode-se retirar o carter poltico da discusso, primeiro em relao estrutura
agrria e depois em relao estrutura produtiva: deve-se ter em vista as disputas entre
grande e pequena agricultura no Brasil e que a forma de organizao da produo nos
latifndios sempre influenciou a organizao da pequena produo. Existem, de fato,
diferenas e correlaes de fora entre esses dois tipos de organizao da produo,
embora no interior de cada um deles haja tambm muita diferenciao. Mesmo nas
aes do Estado so observveis as correlaes de poder os incentivos polticos,
fiscais, financeiros etc. entre grandes proprietrios de terra e (em detrimento dos)
camponeses. Questiono mais especificamente se a noo de agricultura familiar,
transformada em lei (n. 11.326, de 24 de junho de 2006) pode ser considerada mais
como uma necessidade do Estado e das polticas pblicas, trazendo consigo uma
dualidade entre campons (atrasado) e agricultor familiar (moderno), e retirando parte
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de uma discusso histrica sobre a estrutura fundiria e as relaes subjacentes entre a
grande e a pequena produo no Brasil em favor da modernizao conservadora.
Nesse sentido, h que se considerar se a noo de agricultura familiar carrega
uma herana que prioriza aquelas famlias agricultoras mais capazes de modernizar
sua produo em detrimento de outras, incapazes, fundada em uma mentalidade
produtivista que se expressa na formao dos agricultores e na sociedade orientada para
o mercado e para o consumo. Com isso, em termos de estrutura produtiva, tal
mentalidade pode reproduzir uma lgica que exclui grande parte das famlias
agricultoras que so malogradas nos planos de modernizao da produo, cabendo a
elas uma ao em termos assistencialistas nas agendas polticas o que no pouco,
embora repleta de preconceitos2. Uma contradio bsica disso est no fato de que a
estrutura produtiva convencional que visa sobretudo ao lucro, embora nem sempre ao
lucro das famlias agricultoras e sim o de corporaes empresariais, convive no interior
do stio campons com as particularidades e os aspectos no-monetrios do modo de
vida e de produo das famlias rurais.
Para tentar superar esses problemas, procurei considerar os avanos tericos e
empricos de estudos acerca do campesinato, sobretudo aqueles que se referem
realidade brasileira. Embora sem a pretenso de simplesmente aplicar a teoria do
campesinato aos assentamentos de forma anacrnica, muito menos de abarcar todos os
estudos do gnero, esse exerccio se tornou bastante importante para resgatar elementos
que nortearam o processo de construo da gnese da populao rural no Brasil, cujas
famlias assentadas so produto direto. Essa afirmativa est apoiada no fato de que as
famlias assentadas, em sua imensa maioria, so oriundas das relaes de subordinao
decorrentes da estrutura agrria concentrada e organizada por meio das plantations no
Brasil. Elas participam de fluxos migratrios pas afora e sofrem de relaes precrias
de vida e de trabalho no campo e na cidade; com isso, esto permanentemente sujeitas a
fragmentaes culturais, seja na relao com a terra, dos conhecimentos advindos dessa
relao e da sociabilidade tpica da populao rural. Elas possuem uma histria
camponesa.
Muito embora, ao ser assentada, a famlia tenha a possibilidade de resgatar
condies que lhe garantem uma margem de autonomia em suas prticas sociais, tal
2 Algumas abordagens podem ver essas famlias no mais como agricultura familiar, porque suas
estratgias passaram a ser os programas de transferncia de renda e trabalhos ocasionais renumerados fora
dos espaos rurais. No entanto, ao fazer isso retira-se o processo histrico da anlise sociolgica.
15
como ocorre a uma infinidade de categorias sociais do meio rural brasileiro que sempre
viveram mais ou menos dependentes das plantations. justamente por vivenciarem
essa realidade contraditria que eu argumento que nos assentamentos as famlias
possuem uma condio camponesa, por mais controverso que seja esse argumento, que
persiste atualmente e que se d na tensa relao entre pequena e grande agricultura no
Brasil, na qual estratgias para a produo e reproduo social so tomadas. Mais do
que uma mudana semntica, resgatar a condio camponesa na presente tese contribui
para problematizar a noo de agricultura familiar, no sentido de que a transformao de
uma parte dos camponeses em produtores modernos de mercadorias no explica a
permanncia da populao no meio rural como um todo na contemporaneidade. Nem
sempre o que se entende por desenvolvimento, definido primordialmente como
econmico, se aplica no caso do rural como moradia e trabalho.
Por isso, a noo de desenvolvimento das famlias nos assentamentos na
presente tese est associada expanso de suas liberdades individuais (SEN, 2000), que
implica considerar os aspectos culturais do modo de vida das famlias assentadas na
criao e recriao de possibilidades que elas possuem. O desenvolvimento, nesse caso,
est associado dinmica e evoluo de organizao das famlias assentadas. Isso nos
leva a considerar a trama de tenses (FERRANTE, 2007), noo que deriva do conceito
de campo social, conforme Bourdieu (1989), constituda no amplo quadro de influncias
que vai da ao do Estado em diferentes momentos ao do conjunto de agentes
regionais que animam essa trama de relaes na qual as famlias assentadas esto
inseridas. Junto ao quadro conceitual de Bourdieu, a dita expanso das liberdades das
famlias assentadas pode ser pensada de forma relacional, a partir de suas posies em
um campo social que ao mesmo tempo estruturado e estruturante dos esquemas de
percepo e avaliao dos agentes ali envolvidos. A ao, nesse sentido, est associada
s trajetrias e experincias das pessoas enquanto grupo social e s suas relaes com
outros grupos e com o Estado, de forma que a tomada de decises tem a ver com aquilo
que os agentes percebem como possvel e necessrio em seu determinado campo social.
Teoricamente, o estudo situa uma categoria especfica no interior das categorias
sociais que povoam o meio rural brasileiro, que so os assentados rurais oriundos dos
movimentos sociais e das polticas de reforma agrria. A partir da discusso da nova
categoria social criada nos assentamentos, pretendo analisar a capacidade dela em
(re)estabelecer processos de desenvolvimento em relao aos demais agentes
locais/regionais. Tais processos foram investigados em uma perspectiva histrica que
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vai da luta pela terra luta pelo desenvolvimento nos assentamentos, enquanto partes
indissociveis da trajetria de famlias inseridas em um contexto de transformaes
sociais, nos quais elas assumem protagonismos sobre sua prpria histria ao passarem
da condio de trabalhadoras assalariadas a assentadas. Contam, nas estratgias das
famlias assentadas, formas prprias de organizao social e produtiva, especficas
formas de empregar a mo de obra familiar, a criao de novos mercados, a opo pela
integrao agroindustrial contratual e/ou pela inovao tecnolgica, dentre outros
aspectos que permitem s famlias a produo e a comercializao de produtos
agropecurios in natura e processados. Bem como contam outras estratgias, no
necessariamente agrcolas, igualmente necessrias para a reproduo social da famlia,
tais como situaes de assalariamento agrcola e urbano, a constituio da parentela no
assentamento, a opo por permanecerem ligados a movimentos sociais e grupos
produtivos ou no. Esses foram alguns elementos norteadores da pesquisa de campo.
O objetivo central da presente tese captar e analisar como so os processos de
organizao das famlias assentadas em um espao social especializado, o assentamento,
e a diversidade de possibilidades de estratgias em seu interior. Procurei explorar a
diversidade nas investigaes de campo, obviamente sem a pretenso de esgot-la em
sua totalidade, mas abordando algumas posies possveis na implantao e na evoluo
dos assentamentos rurais. Com isso, procurei mostrar a complexidade e o carter
multidimensional do fazer-se dos assentamentos: como diferentes grupos sociais vo
desenvolvendo maneiras de organizar sua produo e reproduo social, no campo
social dos assentamentos da reforma agrria na regio central do estado de So Paulo.
Os assentamentos selecionados esto localizados nos municpios de Araraquara
(os assentamentos Monte Alegre, Horto Bueno de Andrada e Bela Vista do Chibarro) e
de Ribeiro Preto (o assentamento PDS Fazenda da Barra), nos quais o estudo emprico
foi aprofundado. Tentei conectar as origens, as trajetrias e as formas pelas quais as
famlias chegaram a esses assentamentos ao processo agrrio regional, da concentrao
fundiria e dos modelos de desenvolvimento pautados no plantio de cana-de-acar e
suas recentes mudanas, no sentido da concentrao da produo e das mudanas
tcnicas. Ou seja, condies estruturantes da vida das famlias assentadas rurais desde
antes dos assentamentos propriamente. Essa escolha possibilitou que fossem
investigadas diferenas entre assentamentos de diferentes conjunturas polticas,
assentamentos mais novos e mais antigos, de diferentes modalidades e sob a influncia
dos dois rgos gestores, o INCRA/SP e a Fundao Itesp.
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Foram investigadas as alternativas para o desenvolvimento das famlias
assentadas, sobretudo as consequncias da integrao junto aos complexos
agroindustriais no modo de vida das famlias assentadas. Por outro lado, aquilo que
produzido primeiramente numa escala familiar, ora denominada a produo para o
autoconsumo familiar, um aspecto que considero bsico enquanto princpio gerador do
desenvolvimento nos assentamentos, vital para a organizao da produo e da
reproduo social das famlias nos lotes conforme seus interesses e necessidades.
Estratgias familiares voltadas ao assalariamento rural e urbano, a situao dos filhos no
envolvimento no trabalho no lote, os casamentos e a constituio de novas unidades
familiares tambm estiveram em pauta. Em meio a isso, esto as aes do Estado em
diferentes tempos, seja por meio da assistncia tcnica prestada, dos crditos e
financiamentos concedidos, dos programas de comercializao, da infra-estrutura criada
nos assentamentos, o vai e vem das formas associativas em grupos produtivos e a
atuao dos movimentos sociais ligados luta pela terra.
A pesquisa se justifica na necessidade de um olhar sobre o meio rural que o
valorize como objeto de pesquisa. Na medida em que h, nas Cincias Sociais, um forte
alerta para os cuidados com os juzos de valor em suas anlises, h que se ter em conta
certa falta de preocupao com seus prprios objetos. Nesse sentido, as Cincias Sociais
podem at participar da desvalorizao do meio rural, quando sua nfase contempornea
est no estudo da modernidade, no modo de vida urbano e suas transformaes que
atingem inexoravelmente todas as instncias reguladoras da vida. Os estudos rurais
podem parecer superados, mas onde foram produzidos os alimentos que abastecem os
centros urbanos? Ser que no existem mais aquelas famlias que conseguiramos
imaginar enquanto camponesas? Quais so as origens e por onde passam as histrias das
pessoas que esto nos grandes centros urbanos? Ser que elas so desconectadas ou o
mundo rural se faz presente tambm nos lugares de maior modernidade, interconectando
o rural e o urbano? Quais so os processos sociais que ocorrem no meio rural e suas
perspectivas de futuro?
A pesquisa procurou situar isso nas experincias de reforma agrria, entre os
movimentos da globalizao e da modernizao e as perspectivas mais individuais, de
grupos sociais que se fazem presentes no meio rural. Sem a crena de que seja
inevitvel o fim do campesinato, nem de que todo espao agrcola deva ser ocupado
pela produo intensiva de commodities, acredito em processos de recriao da
categoria, aquilo que Van der Ploeg (2008) chama de recampenizao. Wanderley
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(2003) situa as perspectivas do campesinato entre a globalizao e a individualizao,
respectivamente, por meio de suas relaes entre a dependncia e a autonomia, porm,
sem polarizar essas dualidades, a autora mostra que as estratgias transitam em um
continuun entre a produo de commodities e a produo de autoconsumo mais
diversificada que atende a uma esfera familiar mais imediata.
Nesse sentido, existem algumas dimenses do rural que devem ser destacadas no
debate atual. Primeiro, contra as tendncias de desqualificar o rural como agrcola, pois
a produo agrcola extensiva e moderna supostamente daria conta das necessidades
humanas. Contra essa idia, alm de qualificar o rural como agrcola, h que se investir
na idia de comunidade de produo e de modo de vida, porm em uma nova
espacialidade. Se em outros momentos a ruralidade parecia homognea e as categorias
sociais do meio rural supostamente desapareceriam com o avano da modernizao
agrcola e agroindustrial, em contrapartida podemos dizer que nas ltimas dcadas
emergiram novas dinmicas que mudaram tais concepes, sobretudo tendo-se em vista
novos processos de dominao entre os agentes do meio rural, do Estado e das empresas
dos setores agroalimentar e energtico.
Ao mesmo tempo em que aumentam as preocupaes com a produo de
alimentos saudveis e energia limpa, tambm com a segurana e a soberania alimentar,
com a proteo ao meio ambiente e diversidade cultural, estudos sociais sobre o rural
contemporneo se recriam. Avanam as investigaes acerca das polticas ambientais e
territoriais sobre o meio rural. Questes como a gastronomia, o turismo e o
patrimonialismo recolocam o rural como objeto cultural. O rural tambm passa a ser
visto como lugar de moradia para se ter mais qualidade de vida, que no isolado dos
fluxos de informaes da ps-modernidade, mas um rural que possui dinmica e uma
grande variedade de categorias sociais, cujos modos de vida expressam a
multifuncionalidade e a pluriatividade. Sobretudo, o mundo rural como categoria
sociolgica um campo privilegiado para o estudo das relaes homem natureza e
local global, bem como da subjetividade dos indivduos e das famlias no meio rural.
Enfim, notvel o crescente interesse da comunidade acadmica, da sociedade
civil e dos gestores pblicos por uma nova concepo social e ecolgica do
desenvolvimento de forma geral, sobretudo tendo-se em vista as crises (ambientais,
hdricas, de abastecimento etc.) e as mudanas climticas. Nesse sentido, ganham
notoriedade os assentamentos e os demais agentes sociais do meio rural. No
poderamos discutir questes como a distribuio da riqueza, a reduo de
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desigualdades, a fome e a misria sem passar pela reforma agrria, pela agricultura
familiar e pela produo de alimentos. Tampouco podemos discutir a preservao de
recursos naturais e a agroecologia sem falar do modo de vida dos camponeses e das
comunidades tradicionais. Por outro lado, assumir os enormes desafios que o meio rural
tem pela frente implica considerar onde esto os maiores desafios da sade, da
educao, da moradia, dos transportes, da comunicao, do saneamento, da infra-
estrutura em geral, ou seja, no meio rural, que possui acesso muito precrio a todos
esses servios. Se entendidos tambm como desafios para as polticas pblicas, seria
conveniente acrescentar os desafios das polticas transversais da questo ambiental, de
gnero, juventude, envelhecimento e sucesso familiar.
A contribuio da presente tese propor uma anlise que possa ressignificar as
experincias de reforma agrria, contextualizada nos assentamentos investigados, feita a
partir das estratgias de produo e reproduo social de famlias rurais, com a qual a
prpria noo de desenvolvimento possa ser ressignificada. Procurei realizar um estudo
emprico e quali-quantitativo para dar conta de abordar algumas dessas questes na
realidade investigada, a partir de uma sociologia rural relacional, com foco em
processos sociais e com menos dicotomias entre espaos rurais e urbanos, procurando
fundir a questo agrria e questes ambientais e alimentares.
Marco sobre o desenvolvimento
Por que estudar o desenvolvimento nos assentamentos? Por que essa viso
desenvolvimentista? Cabe se esclarecer, j que desenvolvimento um conceito muito
discutido e discutvel nas Cincias Sociais. Na presente tese, ele pode ser entendido
como a evoluo da dinmica e da organizao das famlias nos assentamentos.
Primeiro, pela necessidade de se retomar a discusso sobre qual
desenvolvimento estamos falando, sobre os papis do Estado e dos grupos sociais
levando-se em conta as questes sociais e ambientais, superando a idia de
desenvolvimento econmico. uma discusso ligada ao fato de que, a partir do
momento que as famlias so assentadas, h uma tendncia de se buscar o
desenvolvimento econmico, sobretudo por meio de atividades agrcolas, e isso se d a
partir dos prprios incentivos governamentais. Ou seja, a criao de assentamentos pode
ser entendida em parte como uma poltica pblica para se dinamizar economicamente as
regies, apoiada na suposta reestruturao agrria e na luta dos movimentos sociais.
Pode-se associar ainda o desenvolvimento ao progresso material das famlias
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assentadas, j que elas tambm esto em busca de melhores condies de vida por meio
do aumento da renda advinda do lucro de suas lavouras ou de atividades no-agrcolas e
com salrios de servios fora do lote. Seja fonte de trabalho agrcola, seja produtiva
apenas por vender a fora de trabalho, desse ponto de vista pode persistir uma idia de
que o desenvolvimento das famlias assentadas se restringe ao aspecto da reproduo
econmica.
Porm, como ser tratado na tese, tambm contam, nas estratgias familiares
para o desenvolvimento nos assentamentos, dimenses simblicas de sua reproduo
social, ou seja, porque elas querem continuar no meio rural como um local digno de
moradia e para terem melhores condies de criarem seus filhos, querem continuar
tendo um determinado padro alimentar, entre outros aspetos ligados mais qualidade
de vida, por estarem prximos natureza, se sentirem de alguma forma integrados a ela
e se representarem enquanto cultivadores da terra e produtores de alimentos. Para as
categorias sociais que habitam no meio rural, de forma geral, h uma tendncia de
existirem outras relaes com a terra e com a produo, de forma que no existe uma
completa concepo de que a terra seja apenas um fator de produo de valores de troca,
mas tambm de valores de uso. Ento, no s a questo da monetarizao e
modernizao da produo, mas elas usam aquele espao do assentamento para
desenvolverem atividades que no geram renda diretamente, como, por exemplo, a
produo do autoconsumo e a prtica da ajuda mtua, bem como podem ficar margem
de qualquer atividade produtivista mesmo tendo terra e trabalho disponveis, em funo
de como se do as suas condies objetivas de participar de determinados mercados.
Tais elementos foram documentados em falas de assentados sobre como eles
possuem o clima de roa, pela dificuldade ou recusa em se adaptar ao ritmo frentico
e catico das cidades, por se sentirem mal na cidade e quererem voltar rapidamente ao
assentamento logo aps realizarem atividades que necessariamente devem ser feitas nas
cidades, como ir ao banco, ao cartrio, comercializar a produo etc. Ou tambm por se
recusarem a realizar uma colheita de frutas quando o preo no recompensa o prprio
trabalho, ao relatarem que preferem deixar as frutas para os passarinhos ou deixar que
caiam no cho para que reproduzam o ciclo natural, ao invs de serem explorados por
atravessadores. Outros assentados criticam a quantidade de agrotxicos que devem ser
jogados na terra para se forar a produo, pois isso contamina todo o territrio onde se
encontram. So alguns exemplos de que a vida e o trabalho nos assentamentos nem
sempre esto ligados necessidade de desenvolvimento econmico.
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Para discutir a noo de desenvolvimento nesses termos, a idia de expanso das
liberdades individuais de Sen (2000) emblemtica de uma perspectiva relacional e
propcia ao estudo dos assentamentos. A partir do momento que a pessoa teve acesso ao
direito terra, quais so efetivamente as possibilidades, com base nas estratgias, das
pessoas adquirirem expanso de liberdades? Pretendo localizar quais so essas
liberdades, em uma determinada conjuntura poltica e econmica, do ponto de vista das
famlias assentadas. Por exemplo, o avano da reforma agrria e a conquista dos
assentamentos esto ligados ao direito moradia, alimentao adequada, ter uma
atividade produtiva e acesso a uma renda monetria, ou seja, o assentamento passa a ser
um espao que possui abertura para esse tipo de expanso de liberdades. Mas isso se d
em meio a uma trama de tenses, constituda por diversos agentes que se dispem e
disputam as possibilidades que as famlias assentadas efetivamente tm em termos de
estratgias produtivas e reprodutivas e interferem nos rumos desse processo. Como usar
o solo, como comercializar sua produo, como se organizar no interior dessa regio,
como a casa ser construda, onde e como ser a escola dos filhos e como elas iro se
reproduzir socialmente so decises que se tomam por meio de informaes que advm
de um espao social constitudo e especializado. No interior desse espao, as vontades e
os interesses das famlias tm possibilidade de alterar a realidade vivenciada, muito
embora ele seja constitudo objetiva e subjetivamente por constrangimentos estruturais.
As estratgias de diversificao da produo de alimentos, por exemplo, podem
gerar autonomia para as famlias assentadas, em pelo menos alguns aspectos: no
depender da comercializao de um nico produto agrcola e tambm de um nico canal
para produzi-lo; a agricultura praticada assume caractersticas tradicionais, com o uso
dos recursos disponveis localmente, de forma que os assentados podem deliberar sobre
a melhor prtica a ser utilizada e reduzir seus custos; uma produo que promove
segurana alimentar para as famlias e que tambm pode entrar, sem tantos entraves, no
circuito da comercializao. So pontos que certamente contribuem para a expanso da
liberdade das famlias assentadas, que lhes do possibilidades para agir sem se
subordinar diretamente a um sistema de controles e de poderes, levando-se em conta
seus interesses.
Portanto, o desenvolvimento nos assentamentos visto sob a tica de uma trama
de tenses, na qual diversos agentes sociais se dispem e disputam as possibilidades e
os rumos que as famlias efetivamente tm em termos de estratgias produtivas. Vrios
interesses movem tais agentes, mas nem sempre eles coincidem e isso gera uma trama
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de tenses na qual as aes de cada um esto sempre em relao uns aos outros. A trama
de tenses (FERRANTE, 2007), utilizada como instrumento analtico de compreenso
da realidade, tem se mostrado til na reconstituio de aspectos crticos da realidade dos
assentamentos, uma vez que esto em disputas distintos projetos de desenvolvimento,
que tm motivaes e consequncias sociais diferentes. A noo de trama de tenses
implica analisar o desenvolvimento na trajetria dessas experincias de reforma agrria,
frente aos constrangimentos estruturais que a sociedade lhes impe, sobretudo atravs
dos agentes do mercado e do Estado, como tambm frente necessria reelaborao da
prpria trajetria pessoal e familiar desses agricultores, igualmente agentes sociais de
suas prprias histrias (FERRANTE, 2010).
Para Amartya Sen (2000), o desenvolvimento no pode ser dissociado da
expanso das liberdades individuais. No caso dessa investigao, isso se reflete na
possibilidade dos assentados terem as rdeas de suas iniciativas em suas mos, o que
contrariado, por exemplo, pelos constrangimentos impostos atravs da integrao com
setores agroindustriais e pela poltica de assistncia tcnica, pelos controles e medidas
restritivas da autonomia dos assentados. Trata-se de uma abordagem relacional de
assentamentos e desenvolvimento que no seja ditada por uma lgica externa, nem
implique uma subordinao a um sistema de controles e de poderes (FERRANTE,
2010). a expresso do querer a terra no apenas como ponto de partida para a
produo de valores de troca e pela lgica de monetarizao da produo, mas tambm
pela garantia da segurana alimentar e do respeito s suas singularidades, ao fato de
serem portadores de saberes, de iniciativas de cooperao que podem acarretar um
caminho distinto daquele que lhes imposto pelos mediadores internos e externos.
Para Sen (2000), a liberdade central para o processo de desenvolvimento, no
sentido de que pode ser medido se tal processo trouxe aumento da liberdade para as
pessoas. Para isso, deve ser considerado se as pessoas so agentes de seu prprio
desenvolvimento. Ento, o desenvolvimento no se confunde com o crescimento
econmico, que pode ser medido com o aumento da industrializao, do PNB (Produto
Nacional Bruto) ou rendas individuais que, embora sejam indicadores importantes, no
explicam sozinhos as questes sobre o aumento da liberdade das pessoas. S o aumento
da renda no garante acesso a bons servios em educao, sade, moradia ou
alimentao, como tambm no garante a possibilidade das pessoas participarem dos
processos decisrios em termos de direitos cveis ou sobre o progresso tecnolgico que
afeta diretamente suas vidas. Existem liberdades de diferentes tipos.
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Ser agente de seu prprio desenvolvimento possibilita fortalecer outras
condies de liberdade: a ligao entre liberdade individual e realizao de
desenvolvimento social vai muito alm da relao constitutiva (...) o que as pessoas
conseguem positivamente realizar influenciado por oportunidades econmicas,
liberdades polticas, poderes sociais e por condies habilitadoras como boa sade,
educao bsica e incentivo e aperfeioamento de iniciativas (SEN, 2000, p.19). Um
exemplo disso est no fato de que o assentamento propicia moradia e alimentao como
condies habilitadoras para outras liberdades. Outro exemplo seria o caso das polticas
pblicas com fruns participativos, nos quais as pessoas beneficirias tm voz e poder
decisrio para participar das redefinies de investimentos pblicos em espaos locais.
Falar de liberdades individuais, bem como de aspectos simblicos do
desenvolvimento, no significa excluir ou diminuir a importncia do mercado como
mediador da vida social, apenas faz-se necessrio reconhecer que mercantilizar todas as
relaes sociais obscura outras dimenses da vida. No se faz aqui uma crtica
generalizada ao mercado, pois ele gera crescimento econmico e isso tambm pode
trazer liberdade s pessoas. Mas esse no absolutamente o nico indicador para o
desenvolvimento. A crtica ao mercado direcionada s possveis privaes que ele
impe insero de grupos sociais, por exemplo, que impedem as pessoas participarem
de um mercado de trabalho mais amplo, vide os casos dos trabalhadores volantes ou dos
jovens no meio rural. Tambm a capacidade de pequenos agricultores familiares
inserirem seus produtos em mercados mais abrangentes limitada, pois existem
restries sistemticas e poderes exercidos por grandes corporaes no sistema
agroalimentar, como a imposio de pacotes tecnolgicos e as exigncias
intransponveis da vigilncia sanitria.
So esses aspectos do mercado que criticamos aqui, sobretudo seus efeitos na
persistncia de privaes sofridas por certos grupos sociais excludos dos benefcios da
sociedade orientada para o mercado, e os juzos, inclusive as crticas, que as pessoas
podem fazer sobre diferentes estilos de vida e valores associados cultura dos
mercados (SEN, 2000, p.22). Seria preciso, a partir dos exemplos que venho dando,
que o grande contingente de trabalhadores volantes migrasse para os canaviais em busca
de trabalho e renda se tivesse meios dignos de viver e trabalhar em seus locais de
origem?3 Ou que as famlias assentadas na regio do presente estudo fossem foradas a
3 Esse aspecto ser retomado no captulo 2 com o exemplo da etnografia empreendida por Menezes
(2002) sobre as condies de vida e trabalho dos migrantes nos seus locais de origem e nos canaviais.
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alternativas produtivas que lhes restringem a liberdade, expressas sobretudo nas amarras
que a integrao agroindustrial representa?
A idia de desenvolvimento como liberdade integra dimenses econmicas,
sociais e polticas. A considerao de cada uma delas envolve as demais, de forma que
esto interligadas. Permite apreciar o papel de vrios agentes e instituies, governo em
vrios nveis, partidos polticos e movimentos sociais, sistema educacional, mdia, entre
outros. Por outro lado, permite que os valores sociais e os costumes, ou seja, dimenses
da cultura do grupo analisado sejam valorizados no processo de desenvolvimento, pois
esto relacionados liberdade que as pessoas desfrutam e sua livre deliberao em
termos de modo de vida por exemplo, na considerao sobre igualdade entre os sexos,
cuidados com os filhos, padres alimentares e de sociabilidade, preocupaes com o
meio ambiente.
Nesse sentido, esto em anlise relaes como renda versus realizaes pessoais;
riqueza econmica versus viver como gostaria; produzir mercadoria versus gerar
capacidades. O que vai de encontro quela idia de que o aumento da renda, ou o
dinheiro propriamente, por si s no garante sade, educao, felicidade e realizao.
Para uma famlia agricultora, o simples fato de se tornar produtora de mercadorias e se
inserir em mercados modernos no lhe garante ser geradora dessa nova capacidade,
seno como aplicadora de pacotes tecnolgicos e como forma de submisso a uma
cadeia produtiva4. A expanso das liberdades pode ser considerada um meio para se
viver como gostaria, mas no pode se desvincular da subordinao e da coero
liberdade que as pessoas esto historicamente submetidas, como o caso do agricultor
expulso da terra, mas tambm daquele que adota um pacote tecnolgico ou da negao
da liberdade poltica para quem vende sua lealdade ou seu voto em troca de favores,
melhores posies, uma cesta bsica etc. A ideia de liberdade envolve tanto os
processos que permitem a liberdade de aes e decises como as oportunidades reais
que as pessoas tm, dadas as suas circunstncias pessoais e sociais (SEN, 2000, p.31).
Outra idia-chave do desenvolvimento na presente tese uma referncia de
Furtado (2000), na qual ele deve ser avaliado no apenas em termos do incremento da
eficcia do sistema social de produo, mas tambm da satisfao das necessidades
4 Para Sen (2000), a persistncia da fome em diversos pases est associada falta de liberdade: os dois
pases que parecem liderar a liga da fome no mundo so a Coria do Norte e o Sudo ambos
exemplos notrios de governo ditatorial (SEN, 2000, p.31). Outros exemplos, segundo o autor, se do
em pases colonizados governados por influncia externa, cujos mandatrios so desinteressados dos
interesses daquele povo, que controlam um sistema agroalimentar voltado aos interesses da circulao
mundial de commodities agrcolas em detrimento ao abastecimento interno.
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elementares da populao e da consecuo de objetivos a que almejam grupos
dominantes de uma sociedade e que competem na utilizao de recursos escassos
(FURTADO, 2000, p.22). Esta concepo remete a uma anlise mais integrada de
desenvolvimento, que imbrica aspectos sociais e ambientais alm de econmicos, o que
aproxima o conceito ao desenvolvimento sustentvel, assim como o concebe Sachs
(2002). Este autor indica que existem vrias dimenses a serem avaliadas no processo
de desenvolvimento, sendo consideradas dimenses bsicas: social, econmica e
ambiental. No menos importantes, o autor considera tambm as dimenses cultural,
energtica e ecolgica, entre outras.
So idias que vo ao encontro da preocupao em investigar as estratgias
familiares para o desenvolvimento nos assentamentos por meio das motivaes sociais e
pr-disposies culturais, ou seja, no apenas em termos de retorno financeiro e de
crescimento econmico. Da que sua avaliao leve em considerao as escolhas e o
bem-estar das famlias assentadas, o fato delas serem portadoras de saberes e prticas
culturais, poderem coloc-los em prtica no intuito de deter uma parcela de controle e
autonomia sobre os processos produtivos em seus lotes agrcolas; ou no, em situaes
nas quais as decises sobre o que produzir ficam inteiramente subordinadas aos
condicionantes estruturais que lhes so impostos.
Para dar