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Henry Marsh NÃO FAÇAS MAL Do No Harm Stories of Life, Death and Brain Surgery Traduzido do inglês por Ana Pedroso de Lima

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Henry Marsh

NÃO FAÇAS MAL

Do No HarmStories of Life, Death and Brain Surgery

Traduzido do inglês por

Ana Pedroso de Lima

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CONTEÚDOS

PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA 11

PREFÁCIO DO AUTOR 15

> Capítulo 1 :: PINEOCITOMA 17

> Capítulo 2 :: Aneurisma 27

> Capítulo 3 :: Hemangioblastoma 48

> Capítulo 4 :: Melodrama 59

> Capítulo 5 :: Tic Douloureux 71

> Capítulo 6 :: Angor animi 82

> Capítulo 7 :: Meningioma 93

> Capítulo 8 :: Papiloma do Plexo Coroide 111

> Capítulo 9 :: Leucotomia 114

> Capítulo 10 :: Trauma 123

> Capítulo 11 :: Ependimoma 134

> Capítulo 12 :: Glioblastoma 144

> Capítulo 13 :: Enfarte 153

> Capítulo 14 :: Neurotemese 163

> Capítulo 15 :: Meduloblastoma 173

> Capítulo 16 :: Adenoma Pituitário 177

> Capítulo 17 :: Empiema 182

> Capítulo 18 :: Carcinoma 188

> Capítulo 19 :: Mutismo Acinético 195

> Capítulo 20 :: Húbris 201

> Capítulo 21 :: Fotopsia 208

> Capítulo 22 :: Astrocitoma 223

> Capítulo 23 :: Tirosina-cinase 232

> Capítulo 24 :: Oligodendroglioma 240

> Capítulo 25 :: Anaesthesia dolorosa 249

> Capítulo 26 :: Coda 266

AGRADECIMENTOS 279

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PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA

Qualquer texto sobre a doença e seus contracenantes, tanto os que dela padecem como os que por vocação e desígnio profissional se dedicam ao seu tratamento, são sempre relatos que nos impressionam de forma marcada. A proximidade da doença é uma realidade do quo-tidiano bem como os dolorosos reflexos da sua presença no indivíduo doente.

Henry Marsh é um reputado neurocirurgião britânico agora refor-mado. O seu livro é um relato pungente da sua realidade profissional, vivido e descrito por um observador de eleição, ainda que de visão interessada, porquanto interveniente direto como defensor da saúde do doente.

Usando uma panóplia variada de quadros de doença que afetam o sistema nervoso central e periférico, ou seja o cérebro, a medula, os nervos e também a coluna, Marsh descreve -nos de uma forma relati-vamente enxuta, mas não menos carregada de emoções, as inúmeras dúvidas, anseios e temores com que ele, cirurgião, se viu confrontado ao longo da sua vida empenhada em lutar contra estas temíveis doen-ças. Como pano de fundo o autor relata -nos o quadro correspondente, vivido por quem sofre da doença e incorre nos riscos do seu trata-mento, e também pelos seus familiares. São episódios de verdadeira tragédia, física, psíquica, emocional que só devem ser aflorados com uma grande dose de humildade e pudor.

Um dos traços prevalecentes do texto de Marsh é alguma crueza de apreciação em relação à sua própria atuação nalguns dos casos que descreve, referindo -se com frequência a erros que entende ter come-tido. É evidente que estes comentários autocríticos se fazem acompa-nhar de outros tantos em que, noutros casos, a sua intervenção foi correspondida com o melhor dos desfechos.

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NÃO FAÇAS MAL

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Tal como o próprio autor refere na sua introdução, o texto não pre-tende minar nos doentes a confiança na Medicina e nos seus médicos. Nem tão pouco me parece, à semelhança do que já foi também comen-tado por outros, que o objetivo principal do autor seja uma abordagem do erro em Medicina. Ainda assim, e sem querer entrar nesta questão, é curioso a este propósito acrescentar que as decisões ou gestos cirúr-gicos que Marsh lamenta como erros seus, e que levaram a consequên-cias dramáticas para os doentes em causa, não são muito diferentes daqueles que escapando a estes reflexos nefastos se viram coroados com o melhor dos resultados, passando assim a figurar na galeria dos grandes feitos cirúrgicos pessoais. A definição do erro nestes casos só se afirma “a posteriori”, ou seja, após se ter completado deter-minado gesto cirúrgico que se entendeu ser necessário no decurso da intervenção. A atuação que permitiu a remoção completa de um tumor, entendida inicialmente como quase impossível (eventualmente permitindo a cura do doente), é a mesma que, ao determinar impre-visivelmente a lesão de uma artéria importante, deixa o doente num estado vegetativo.

Por que razão então escreve Marsh este texto? A realidade que ele descreve é a de tantos outros neurocirurgiões por todo o mundo e, bem assim, a de todos os médicos que mais não fazem no seu quoti-diano do que bater -se com quantas forças e argumentos têm na defesa e proteção dos seus doentes.

O tratamento de doenças como estas, que por afetarem o órgão que em última instância faz de nós o que somos e nos diferencia uns dos outros nos mais pequenos mas não menos importantes pormenores – o cérebro, produz no cirurgião que as trata dúvidas, anseios e um desgaste emocional muito importantes e que se acumulam ao longo dos anos de prática clínica.

Este é o tal cemitério privado onde cada cirurgião vai rezar sistemá-tica e periodicamente ao longo da sua vida, parafraseando a asserção seminal de René Lériche que Marsh cita na introdução e que consti-tui o cerne deste seu livro. De facto é em torno deste pensamento, e de um outro sobre o qual o próprio Marsh elabora na descrição de um dos seus muitos casos clínicos, que todas as reflexões do autor se

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PREFÁCIO À EDIÇÃO PORTUGUESA

produzem, constituindo a matriz para a sua justa e conveniente apre-ciação. Esta segunda formulação refere -se ao desconforto e eventual deselegância que possa acarretar a evocação das suas próprias emoções e angústias quando postas em pano de fundo com a dor e sofrimento de quem realmente padece diretamente da doença, desfocando -as destas últimas.

Este é aliás um risco indissociável da atuação médica quando se pretende que a informação relativa a essa mesma atividade seja vei-culada para o exterior da comunidade médica, por razões que não cumpram desígnios estritamente científicos ou de informação clínica. Marsh tem bem a noção desta insanável fragilidade. Ainda assim prevalece a necessidade que sente de fazer partilhar com os outros a realidade do seu pensamento e ação enquanto neurocirurgião con-frontado com estas temíveis doenças e com o peso e o dilema que não raras vezes o seu tratamento impõe.

Este livro é uma espécie de balanço de vida, um texto que a meu ver ajuda a alijar a carga (e alguma mágoa) que o cirurgião transporta consigo. No entanto, tão importante como a assunção do que Marsh entende como os seus falhanços são as descrições de muitas outras proezas cirúrgicas conseguidas a custo de muito mérito e esforço, um verdadeiro bálsamo para a autoestima do cirurgião e o combus-tível que permite manter acesa a fogueira do seu engenho, arte e perseverança contra a adversidade. Esta é a motivação mais íntima e por vezes menos confessável.

Com o seu livro, Henry Marsh cumpre mais uma das dívidas e obrigações morais a que a sua profissão o cinge: a de trazer algum efeito apaziguador, de alívio ou mesmo de conforto a quantos, encon-trando -se em situações de idêntico dramatismo, o possam ler.

MANUEL CUNHA E SÁ

Neurocirurgião

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PREFÁCIO

Se estivermos doentes, no hospital, temendo pela nossa vida, à espera de uma cirurgia assustadora, temos de confiar no nosso médico – pelo menos tudo se tornará mais difícil se assim não for. Para ultrapassar o nosso medo, não admira que atribuamos qualidades sobre -humanas aos médicos. Se a operação correr bem o cirurgião é um herói, se cor-rer mal é o mau da fita.

Claro que a realidade é bem diferente. Os médicos são humanos, tal como todos nós. Muito do que acontece nos hospitais depende da sorte, ou da falta dela; o sucesso e o fracasso muitas vezes não estão nas mãos do médico. Saber quando não se deve operar é tão impor-tante como saber operar, uma capacidade muito mais difícil de se conquistar.

A vida de um neurocirurgião nunca é aborrecida e pode ser profun-damente gratificante, mas tem um preço. Há erros que se cometem inevitavelmente e há que aprender a viver com as terríveis consequên-cias que podem daí surgir. Deve -se aprender a ser objetivo quanto ao que se vê e, ao mesmo tempo, não deixar de se ser humano. As his-tórias que encontram neste livro são sobre as minhas tentativas, com alguns fracassos pelo meio, de encontrar um equilíbrio entre o neces-sário alienamento e compaixão que a carreira de um cirurgião exige, um equilíbrio entre a esperança e a realidade. Não quero minar a con-fiança que a generalidade das pessoas tem nos neurocirurgiões ou na profissão médica, mas espero que, com o meu livro, elas consigam compreender as dificuldades – muitas vezes de natureza humana e não técnica – que os médicos enfrentam.

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1. PINEOCITOMAs. m. tumor raro e lento da região da glândula pineal.

Tenho de cortar cérebros com frequência e é uma coisa que odeio fazer. Com uma pinça bipolar provoco um coágulo nos maravilhosos e intricados vasos sanguíneos, de cor vermelha, que compõem a super-fície resplandecente do cérebro. Faço a incisão com um pequeno bis-turi e um buraco através do qual abro caminho com um pequeno aspirador – como o cérebro tem consistência gelatinosa, o aspirador é o instrumento principal de um neurocirurgião. Vou olhando pelo microscópio cirúrgico, sentindo -me a descer pela substância macia e branca do cérebro, à procura do tumor. A ideia de que o meu aspi-rador se movimenta por entre os pensamentos, as emoções e a lógica, de que as memórias, sonhos e reflexões são feitos de gelatina, é estra-nha demais para entendermos. Aquilo que vejo à minha frente é ape-nas matéria. No entanto, sei que se deslizar para a zona errada, a que os neurocirurgiões chamam cérebro eloquente, terei de enfrentar um doente incapacitado e com problemas quando fizer a ronda no reco-bro, para observar os resultados.

A cirurgia ao cérebro é perigosa e a tecnologia moderna só reduziu os riscos em certa medida. Posso utilizar uma forma de GPS para neurocirurgias chamada Navegação Computorizada em que, tal como satélites em órbita sobre a Terra, as câmaras de infravermelhos estão viradas para a cabeça do doente. As câmaras conseguem “ver” os ins-trumentos que tenho nas mãos, que têm umas pequenas esferas refle-toras. Um computador que está ligado às câmaras mostra -me depois a posição dos meus instrumentos dentro do cérebro do doente, através de uma imagem captada um pouco antes da operação. Posso operar com anestesia local, com o doente acordado, para conseguir identificar as zonas de eloquência do cérebro, através da estimulação do mesmo com um elétrodo. O anestesista vai dizendo ao doente para executar algumas atividades simples, para vermos se estou a danificar alguma

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NÃO FAÇAS MAL

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zona, à medida que a operação vai avançando. Se estiver a operar a medula espinhal – que é ainda mais vulnerável do que o cérebro – posso utilizar um método de estimulação elétrica, chamado Poten-ciais Evocados, que me avisa se eu estiver prestes a causar paralisia.

Apesar de toda esta tecnologia, a neurocirurgia continua a ser peri-gosa, a destreza e experiência continuam a ser necessárias quando mergulho os instrumentos no cérebro ou na medula espinhal e tenho de saber quando parar. Muitas vezes é preferível deixar que o problema do doente evolua de forma natural e nem sequer operar. E depois há a sorte, ou a falta dela, e, à medida que vou ganhando mais e mais experiência, parece que a sorte é cada vez mais importante.

Tive um doente que teve de ser operado a um tumor na glândula pineal. No século XVII, o filósofo dualista Descartes, que defendia que a mente e o cérebro são duas entidades totalmente independentes, determinou que a alma humana se localizava na glândula pineal. Era aí, dizia ele, que o cérebro composto por matéria comunicava de um modo mágico e misterioso com a mente e com a alma, elemento ima-terial. Não sei o que teria dito se tivesse tido a oportunidade de ver os meus doentes a observarem os seus cérebros através de um moni-tor, como alguns fazem quando os opero com anestesia local.

Os tumores na região da glândula pineal são muito raros. Tanto podem ser benignos como malignos. Os benignos não precisam neces-sariamente de ser tratados. Os malignos podem ser tratados com quimioterapia ou radioterapia, mas ainda assim podem ser fatais. Dantes, pensava -se que eram inoperáveis, mas a neurocirurgia micros-cópica alterou tudo. Hoje em dia, pensa -se que é necessário operar, nem que seja para fazer uma biópsia e confirmar o tipo de tumor, e decidir qual o tratamento adequado. A glândula pineal está localizada bem no interior do centro do cérebro, por isso, a operação, como dizem os cirurgiões, é um desafio. Os neurocirurgiões olham para as TAC de crânio* que revelam tumores na zona pineal ao mesmo tempo com

* Tecnicamente, o termo é TC de crânio uma vez que se trata de uma tomografia computorizada e não de uma tomografia axial computorizada como antigamente. No entanto, continua a ser uma denominação muito usada, mesmo pela classe médica. (N. do R. T.)

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1. PINEOCITOMA

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receio e entusiasmo, como se fossem alpinistas a olhar para o pico de um monte que querem alcançar.

Este doente específico teve muita dificuldade em aceitar que tinha uma doença fatal e que a sua vida não estava nas mãos dele. Era dire-tor de uma empresa e ocupava uma posição de muito poder. Quando começou a ter grandes dores de cabeça que o acordavam de noite, pensou que se deviam à pressão que sentia por ter de despedir mui-tos trabalhadores em consequência da crise financeira de 2008. Acon-tece que tinha um tumor na região da glândula pineal e hidrocefalia grave. O tumor estava a obstruir a circulação normal do líquido cefa-lorraquidiano e a obstrução estava a aumentar a pressão que sentia na cabeça. Sem tratamento ficaria cego e acabaria por morrer em semanas.

Nos dias que antecederam a operação, tive muitas conversas com ele, pautadas por grande ansiedade. Expliquei -lhe que os riscos da cirurgia, que incluíam morte ou AVC grave, eram muito menores do que os riscos de não se operar. Escreveu pormenorizadamente o que lhe disse no smartphone, como se escrever aquelas palavras longas – hidrocefalia obstrutiva, ventriculostomia endoscópica, pineocitoma, pineoblastoma – de algum modo lhe desse de novo a sensação de controlo e lhe pudesse salvar a vida. A ansiedade dele, juntamente com o meu sentimento de profundo fracasso relativamente a uma operação que tinha feito uma semana antes, significavam que eu enfrentava a possibilidade de o operar tomado pelo medo.

Tinha estado com ele na noite antes da operação. Quando converso com os meus doentes na véspera de uma cirurgia, tento não falar sobre os riscos da operação, que já terão sido minuciosamente dis-corridos. Tento tranquilizá -los e diminuir -lhes o medo, mas em con-trapartida sou eu que fico mais ansioso. É mais fácil fazer operações difíceis se antes tivermos advertido os doentes para os perigos das mesmas e para a possibilidade de correrem mal – talvez me sinta menos penosamente culpado se isso acontecer.

A mulher estava sentada ao lado dele com um ar aterrorizado. – Trata -se de uma operação simples – tranquilizei -os, com um falso

otimismo.

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– Mas o tumor pode ser cancerígeno, não pode? – perguntou ela.Um pouco relutante, respondi -lhe que sim. Expliquei que durante

a operação colheria uma amostra – que seria logo examinada por um patologista. Se ele me dissesse que o tumor não era cancerígeno, não teria de retirar o tumor na totalidade. Se fosse um tumor chamado germinoma não teria de o retirar de todo e o marido faria um trata-mento de radioterapia, e provavelmente ficaria curado.

– Então, se não for cancro e se não for um germinoma, a operação é segura – disse ela, mas com uma voz vacilante.

Hesitei, pois não queria assustá -la. Escolhi cuidadosamente as pala-vras.

– Sim, será muito menos perigosa se eu não tiver de retirar o tumor por inteiro.

Falámos mais um pouco, desejei -lhes boa noite e fui para casa.

Bem cedo, na manhã seguinte, estava ainda na cama e só pensava na rapariga que tinha operado na semana anterior. Tinha tido um tumor na medula espinhal, entre a sexta vértebra cervical e a sétima e – embora eu não saiba porquê, pois a operação tinha corrido sem pro-blemas aparentes –, quando acordou da operação, estava paralisada do lado direito, da cintura para baixo. Provavelmente tentei retirar mais tumor do que devia. Devo ter -me sentido demasiado seguro de mim mesmo. Não fui receoso o suficiente. Esperava que a próxima operação, a do tumor pineal, corresse bem – para que houvesse um final feliz, para que todos vivêssemos felizes para sempre, para que eu pudesse ficar em paz comigo outra vez.

Mas eu sabia que, independentemente do meu pesar, e mesmo que a operação corresse bem, não podia fazer nada para apagar o que tinha feito à rapariga. Toda a tristeza que eu sentia não era nada quando comparada com o que ela e a família estariam a passar. Claro que a operação seguinte não tinha de correr bem só porque eu assim o dese-java desesperadamente, ou porque a operação anterior tinha corrido tão mal. O resultado da cirurgia pineal – independentemente de o tumor ser maligno ou não, independentemente de o conseguir extrair

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1. PINEOCITOMA

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ou, pelo contrário, de estar demasiado agarrado ao cérebro e tudo correr mal – em grande medida não estava nas minhas mãos. Eu também sabia que, à medida que o tempo fosse passando, a amargura que sentia pelo que tinha feito à rapariga acabaria por passar. A recor-dação de a ver deitada numa cama de hospital, com uma perna e um braço paralisados, tornar -se -ia uma cicatriz em vez de uma ferida dolorosa. Adicioná -la -ia à minha lista de desastres – mais uma lápide nesse cemitério que todos os médicos carregam dentro deles, como disse um dia o cirurgião francês Leriche.

Assim que uma operação começa, por norma, sinto que qualquer receio mórbido que eu possa ter desaparece. Agarro no bisturi – já não das mãos de um enfermeiro que se desinfetou, mas, seguindo um qualquer protocolo de saúde e segurança, retiro -o de um tabuleiro de metal – e, cheio de confiança, pressiono -o com precisão no couro cabeludo do doente. Quando o sangue emerge da ferida, a adrenalina da caçada apodera -se de mim e sinto -me a dominar a situação. Pelo menos é o que costuma acontecer. Nessa ocasião, a operação desas-trosa da outra semana levou a que fosse para a sala de operações a sofrer terrivelmente de “medo do palco”. Em vez de conversar, como de costume, com a enfermeira e com o Mike, um dos internos de cirurgia que me dá assistência, limpei a pele do doente e ajustei os campos cirúrgicos em silêncio.

O Mike já trabalhava comigo há alguns meses e conhecíamo -nos bem. Devo ter formado muitos internos ao longo dos trinta anos da minha carreira e, gosto de pensar, dei -me bem com a maioria deles. Estou ali para os formar e tenho de assumir a responsabilidade pelo que fazem, mas eles, por sua vez, têm de me dar assistência e apoio e, quando necessário, ânimo. Sei bem que normalmente só dizem o que acham que eu quero ouvir, mas não deixa de haver uma relação muito próxima – talvez um pouco como a que existe entre os soldados numa batalha – e é disto que sentirei mais falta quando me reformar.

– O que se passa, chefe? – perguntou o Mike.Grunhi por debaixo da máscara.– A ideia de que a neurocirurgia é um exercício calmo e racional da

ciência – disse eu – é uma treta. Pelo menos para mim. A operação

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da semana passada deixou -me tão nervoso como quando comecei a trabalhar há trinta anos. Nem parece que estou quase a reformar -me.

– Mal posso esperar – disse o Mike. É uma piada que os meus inter-nos costumam fazer, agora que estou a chegar ao fim da minha car-reira. Hoje em dia há mais internos do que médicos em fim de carreira e os meus formandos temem pelo seu futuro. – De qualquer maneira, o mais certo é ela melhorar – acrescentou. – Ainda é cedo.

– Duvido.– Mas nunca se sabe…– Pois, talvez.Estávamos atrás do doente enquanto falávamos, uma vez que ele,

inconsciente e anestesiado, estava apoiado verticalmente na posição de sentado. O Mike já tinha rapado uma pequena tira de cabelo na parte de trás do pescoço.

– Bisturi – pedi à Agnes, a enfermeira instrumentista. Agarrei no bisturi que se encontrava no tabuleiro que a Agnes me estendeu e rapi-damente fiz uma incisão na parte de trás da cabeça do doente. O Mike usou o aspirador para tirar o sangue e depois eu afastei os músculos do pescoço para que pudéssemos começar a perfurar o osso do crânio.

– Muito bom – disse o Mike.Feita a incisão no crânio do doente, afastados os músculos, execu-

tada a craniotomia, abertas e refletidas as meninges – a medicina tem a sua linguagem antiga –, puxei o microscópio e sentei -me na cadeira operatória. Numa operação à zona pineal, ao contrário do que acontece com outros tumores do cérebro, não é necessário fazer a incisão pelo cérebro para chegar ao tumor; em vez disso, assim que se abrem as meninges, a membrana por debaixo do crânio que cobre o cérebro e a medula espinhal, vê -se uma fenda estreita que separa a parte superior do cérebro – os hemisférios – da parte inferior – o tronco cerebral e o cerebelo. Parece que estamos a rastejar por um túnel comprido. A cerca de oito centímetros de profundidade, embora pareça centenas de vezes mais por causa da ampliação do microscó-pio, encontra -se o tumor.

Estou a observar diretamente o centro do cérebro, uma área secreta e misteriosa onde se encontram todas a funções vitais que nos man-

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têm conscientes e vivos. Em cima, como os grandes arcos do teto de uma catedral, estão as veias profundas do cérebro – as veias cerebrais internas e a veia basal de Rosenthal e, depois, no meio, a grande veia de Galeno, azul -escura e a brilhar à luz do microscópio. Este é o tipo de anatomia que deixa os neurocirurgiões completamente deslum-brados. Estas veias transportam para fora do cérebro enormes quan-tidades de sangue venoso. Se forem danificadas resultam na morte do doente. Perante mim tenho o tumor granular avermelhado e, por baixo dele, a placa quadrigeminal do tronco cerebral, onde uma lesão pode significar o coma permanente. Em ambos os lados estão as arté-rias cerebrais posteriores que fornecem as partes do cérebro respon-sáveis pela visão. À frente, por detrás do tumor, como uma porta que se abre para um longo corredor de paredes brancas quando o tumor tiver sido extraído, está o terceiro ventrículo.

Há uma admirável poesia de rigor nestes nomes que, juntamente com as espantosas lentes de um moderno microscópio cirúrgico, fazem desta intervenção uma das mais maravilhosas operações neu-rocirúrgicas – claro, se tudo correr bem. Quando me aproximei do tumor, havia vários vasos sanguíneos na frente que tinham de ser cortados – é preciso saber quais os que podem ser sacrificados. Foi como se o meu conhecimento e experiência tivessem desaparecido. Sempre que tinha de seccionar um vaso sanguíneo, sentia -me ner-voso, mas quando se é cirurgião aprende -se desde cedo a aceitar a ansiedade intensa como algo que faz parte de um dia normal de tra-balho e a prosseguir independentemente disso.

Ao fim de uma hora e meia de operação cheguei finalmente ao tumor. Retirei um fragmento mínimo para ser enviado para o labo-ratório de patologia e recostei -me na cadeira.

– Agora, temos de esperar – disse ao Mike, com um suspiro. Não é fácil interromper uma operação e eu estava caído na minha cadeira, nervoso e tenso, ansioso por poder continuar a operar, à espera que o meu colega patologista dissesse que o tumor era benigno e operá-vel, desejando que o doente sobrevivesse, desejando poder dizer à mulher que tudo ficaria bem.

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Passaram quarenta e cinco minutos e já não suportava a espera. Saltei da cadeira e dirigi -me ao telefone mais próximo, ainda de bata e luvas esterilizadas. Liguei para o laboratório e exigi falar com o patologista. Esperei um pouco e ele veio ao telefone.

– A amostra! – gritei. – O que se passa?– Ah… – disse o patologista, num tom impassível. – Peço desculpa

pelo atraso. Estava noutra ala do edifício.– Mas, afinal, o que é?– Estou mesmo agora a tratar disso. Ah! Sim, parece -me um pineo-

citoma benigno...– Ótimo! Obrigado!Perdoei -o na hora e voltei para a mesa de operação, onde todos aguar-

davam.– Vamos continuar!Desinfetei -me outra vez e sentei -me, pousei os cotovelos nos braços

da cadeira e voltei ao tumor. Os tumores são todos diferentes. Alguns são duros como uma pedra, outros moles como gelatina. Alguns são completamente secos, outros estão ensopados de sangue – às vezes tão ensopados que o doente pode morrer durante a operação. Alguns soltam -se facilmente como se fossem ervilhas a sair da vagem, outros estão extremamente agarrados ao cérebro e aos vasos sanguíneos. Com uma TAC de crânio nunca se consegue saber exatamente qual o comportamento do tumor, só quando começamos a extraí -lo. O tumor deste doente era, como dizem alguns cirurgiões, cooperante e com um bom plano cirúrgico – por outras palavras, não estava agarrado ao cérebro. Comecei por retirar a parte do meio, fazendo com que se soltasse do cérebro que o circundava. Ao fim de três horas, parecia ter já retirado a maior parte.

Dado que os tumores da região pineal são tão raros, um dos meus colegas deixou a sala de operações onde estava e veio até à minha para ver como estava a correr a operação. Provavelmente sentia uma ponta de inveja.

Espreitou por cima do meu ombro.– Parece OK.– Até agora… – disse eu.

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– As coisas só correm mal quando não estamos à espera – respon-deu ele, ao mesmo tempo que se afastou para regressar à sua sala de operações.

A operação continuou até eu retirar o tumor todo sem danificar qual-quer das partes da arquitetura vital do cérebro. Deixei o Mike a sutu-rar e dirigi -me às enfermarias. Havia poucos doentes internados e um deles era a jovem mãe que tinha deixado paralítica na semana ante-rior. Encontrei -a sozinha num quarto individual. Quando se aborda um doente a quem causámos danos parece que há uma força mag-nética que nos pressiona, que nos impede de abrir a porta atrás da qual se encontra o doente deitado e cuja maçaneta parece ser feita de chumbo, que nos impede de chegar à cama do doente e de esboçar um sorriso hesitante. É difícil saber qual o nosso papel. O cirurgião passou a ser um vilão, um criminoso ou, na melhor das hipóteses, um incompetente, deixou de ser heroico e todo -poderoso. É muito mais fácil passar pelo doente a correr sem dizer nada.

Entrei e sentei -me na cadeira ao lado dela.– Como está? – perguntei num tom desajeitado.Ela olhou para mim e fez uma careta, apontando sem falar, com o

braço esquerdo bom, para o braço direito paralisado, agarrando nele e deixando -o cair sem vida em cima da cama.

– Isto já aconteceu noutras operações e os doentes melhoraram, apesar de ter demorado alguns meses. Sinceramente, acredito que vai ficar muito melhor.

– Confiei em si antes da operação – disse. – Porque haveria de acre-ditar em si agora?

Não tinha resposta imediata para lhe dar e fitei desconfortavelmente os meus pés.

– Mas acredito em si – disse ela, depois de algum tempo, mas tal-vez apenas por compaixão.

Voltei ao bloco operatório. O doente da glândula pineal tinha sido transferido da mesa de operações para uma cama e já estava acordado. Tinha a cabeça sobre a almofada, um ar muito sonolento, e uma das

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enfermeiras limpava -lhe o cabelo do sangue e do pó dos ossos. Os anestesistas e auxiliares conversavam e riam -se à volta do doente, ao mesmo tempo que arranjavam os tubos e cabos ligados a ele, prepa-rando -o para o levarem dali para os Cuidados Intensivos (UCI). Se ele não tivesse acordado tão bem, estariam a trabalhar em silêncio. Os enfermeiros organizavam os instrumentos nos carrinhos e punham os campos cirúrgicos, cabos e tubos em sacos de plástico para o lixo. Um auxiliar de ação médica já estava a limpar o sangue do chão, pre-parando a sala para o próximo doente.

– Ele está bem! – gritou -me o Mike, do outro lado da sala, num tom satisfeito.

Fui à procura da mulher do doente. Estava à espera no corredor, à porta da UCI, com a cara paralisada de aflição e esperança, quando me viu a aproximar -me dela.

– Correu tão bem quanto esperávamos – disse eu, num tom formal e prosaico, desempenhando o papel de um neurocirurgião objetivo e brilhante. Mas, depois, não consegui evitar dar -lhe consolo, pôr as minhas mãos nos seus ombros e, ao mesmo tempo que ela punha as mãos dela nas minhas, olhámo -nos nos olhos e eu vi as suas lágri-mas, tive de me controlar para não chorar também. Permiti -me um pequeno momento de celebração.

– Penso que vai ficar tudo bem – disse eu.

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2. ANEURISMAs. m. dilatação da parede de um vaso sanguíneo,

por norma, de uma artéria.

A neurocirurgia envolve o tratamento de doentes com doenças e lesões do cérebro e medula espinhal. Estes são problemas raros e, por isso, há menos neurocirurgiões e menos departamentos de neurocirurgia em comparação com outros tipos de especialistas e especialidades. Enquanto estava a estudar medicina, nunca assisti a nenhuma neuro-cirurgia. Não nos era permitida a entrada no departamento de neuro-cirurgia do hospital onde estudei – era um departamento considerado demasiado específico e misterioso para um mero aluno de medicina. Uma vez, ao passar pelo corredor do bloco operatório principal, vi pela vigia da porta da sala de operações uma mulher nua, anestesiada, com a cabeça completamente rapada, sentada ereta numa mesa de opera-ções especial. O neurocirurgião, já de idade e imensamente alto, com a cara escondida por detrás da máscara cirúrgica e um foco esquisito na cabeça, estava de pé, atrás dela. Com as suas mãos enormes, estava a pintar o crânio rapado da mulher com uma solução antisséptica escura. Parecia uma cena de um filme de terror.

Três anos mais tarde dei comigo nessa mesma sala de operações a observar o mais novo de dois médicos especialistas, neurocirurgiões, a operar uma doente com um aneurisma cerebral roto. Nessa altura já era médico há um ano e meio e já me sentia desiludido com a ideia de uma carreira em medicina. Na altura era interno de ano comum* na UCI do hospital universitário. Uma das anestesistas que trabalhava na UCI, ao ver que eu parecia aborrecido, sugeriu que fosse com ela ao bloco operatório para preparar um doente para uma neurocirurgia.

* No original, senior house officer. Corresponde ao período entre o final de curso e a entrada na espe-cialidade. Em Portugal esse período tem a duração de um ano, no Reino Unido são quatro anos. Trata -se portanto de um interno numa fase em que ainda pode escolher uma especialidade. (N. do R. T.)

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Foi uma cirurgia diferente de todas a que já tinha assistido, que por norma envolviam incisões longas e sangrentas, e partes do corpo grandes e escorregadias. Esta era uma cirurgia feita ao microscópio, com uma pequena incisão num dos lados da cabeça da doente, utili-zando apenas instrumentos microscópicos delicados com que se mani-pulavam os vasos sanguíneos do seu cérebro.

Os aneurismas são dilatações nas artérias do cérebro semelhantes a pequenos balões, que podem causar – e frequentemente causam – hemorragias catastróficas no cérebro. O objetivo da operação é apli-car um minúsculo clipe de titânio com uma mola, que se coloca na base do aneurisma para evitar a sua rotura. Existe o perigo real de o cirurgião, que trabalha a muitos centímetros de profundidade no centro da cabeça do doente, num espaço muito estreito por baixo do cérebro, fazer rebentar inadvertidamente o aneurisma enquanto o tenta libertar do cérebro e dos vasos sanguíneos que estão à sua volta para fazer a clipagem. Os aneurismas têm paredes finas e frágeis e sangue arterial a alta pressão. Por vezes a parede é tão fina que se conseguem ver os vórtices de sangue vermelho-escuro agitados den-tro do aneurisma, que se torna enorme e sinistro com a ampliação do microscópio. Se o cirurgião causar a rotura do aneurisma antes da clipagem, por norma o doente morre, ou sofre um AVC catastró-fico – algo que facilmente pode ser pior do que a morte.

A equipa da sala de operações estava em silêncio. Não se ouvia o falatório habitual. Os neurocirurgiões comparam muitas vezes a ope-ração a um aneurisma ao desmantelamento de uma bomba, embora o tipo de coragem requerida seja diferente, uma vez que é a vida do doente que está em jogo e não a do neurocirurgião. A operação que eu estava a observar assemelhava -se mais a um desporto sangrento do que a um exercício de técnica tranquilo e calculado, com a extração de um tumor perigoso. Havia a fase da perseguição – com o cirurgião a abrir caminho debaixo do cérebro em direção ao aneurisma bem dentro do cérebro, tentando não o romper. E, depois, dava -se o clímax quando apanhava o aneurisma, o encurralava e o estrangulava com um clipe reluzente de titânio com uma mola, salvando a vida ao doente. Mais do que isso, a operação envolvia o cérebro, o misterioso substrato