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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016 Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento Filipe Alberto da Silva Universidade Nova de Lisboa Resumo Este trabalho pretende entender o alcance que a figura de Hermes Trismegistos teve no contexto do imaginário do Renascimento italiano e a sua influência no humanista português Francisco de Holanda (1517-1585). Palavras-chave Hermetismo, imaginário, Renascimento, Francisco de Holanda Filipe Alberto da Silva é doutorando em História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa. Mestre em Desenho pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e Investigador da Linha de Investigação da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona: Núcleo de Estudos de Filosofia, Simbólica e História das Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.

Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

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Page 1: Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016

Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

Filipe Alberto da Silva

Universidade Nova de Lisboa

Resumo

Este trabalho pretende entender o alcance que a figura de Hermes Trismegistos teve no contexto do

imaginário do Renascimento italiano e a sua influência no humanista português Francisco de

Holanda (1517-1585).

Palavras-chave

Hermetismo, imaginário, Renascimento, Francisco de Holanda

Filipe Alberto da Silva é doutorando em História de Arte pela Universidade Nova de Lisboa.

Mestre em Desenho pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa e Investigador da Linha de

Investigação da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona: Núcleo de Estudos de

Filosofia, Simbólica e História das Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.

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MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016

Hermes Trismegistos in the Renaissance imaginary

Filipe Alberto da Silva

Universidade Nova de Lisboa

Abstract

This article aims to understand the reach and influence of Hermes Trismegistos figure in the

imaginary of the Italian Renaissance and its relation with the Portuguese humanist Francisco de

Holanda (1517-1585).

Keywords

Hermetism, imaginary, Renaissance, Francisco de Holanda

Filipe Alberto da Silva is a PhD student in History of Art at Universidade Nova de Lisboa. He have

master’s in Drawing by Faculdade de Belas Artes de Lisboa and he is a researcher of Science of

Religion field at Universidade Lusófona, in the Philosophy, Symbols and History of Ideas Gnostic,

Hermetic and Esoteric study group - Núcleo de Estudos de Filosofia, Simbólica e História das

Ideias Gnósticas, Herméticas e Esotéricas.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

233 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016

As obras de Arte são como metáforas

Anne Sheppard

1. Figura de Hermes Trismegistos no Renascimento Italiano

Quem era Hermes Trismegistos para os intelectuais italianos? Para Marsílio

Ficino (1433-1499), eminente figura do Quattrocento italiano, responsável pela

tradução do Corpus Hermeticum1, ele é “o primeiro dos filósofos que passou pela física

e pelas matemáticas para a contemplação do divino, o primeiro a tratar da majestade de

Deus, da hierarquia dos demónios, das metamorfoses da alma2”. Hermes é para Ficino e

os seus contemporâneos o primeiro sábio, o primeiro teólogo, o primeiro a receber a

revelação divina no mundo pagão.

Como pode uma figura pagã ser objecto de tamanho prestígio no seio da

cristandade? A autoridade dos escritos herméticos provém das reflexões dos Padres da

Igreja, nomeadamente Clemente de Alexandria (150 – 215), Lactâncio (240 – 320) e

Santo Agostinho (354 – 430). Todos estes autores concordavam com o facto de Hermes

ser contemporâneo ou anterior ao próprio Moisés. No imaginário dos intelectuais do

Renascimento, a doutrina hermética era muitíssima antiga, e portanto mais próxima da

fonte da Revelação divina3.

Foi essencialmente através das obras de Clemente de Alexandria e Lactâncio que

os pensadores renascentistas desenvolveram a sua visão do hermetismo. Para Lactâncio,

Hermes era o anunciador do cristianismo:

Juntou nele [Hermes] tudo o que a natureza e a arte podem produzir

de luminoso, possuía em grau tão elevado os conhecimentos

adquiridos e infusos, que lhe mereceram o glorioso nome de

Trismegistos [três vezes grande]. Escreveu vários livros sobre

1 Conjunto dos textos atribuídos a Hermes Trismegistos.

2 Na época onde nasce Moisés brilhara Atlas o astrólogo, irmão de Prometeu o físico, avô materno de

Mercúrio o Antigo, cujo neto foi Mercúrio Trismegistos. Este foi o primeiro dos filósofos que passou pela

física e pelas matemáticas para a contemplação do divino, o primeiro a tratar da majestade de Deus, da

hierarquia dos demónios, das metamorfoses da alma. Ele é portanto o primeiro teólogo; depois dele,

Orfeu obteve o segundo lugar na teologia antiga; Aglaephemus foi iniciado no culto de Orfeu; o teólogo

seguinte foi Pitágoras cujo discípulo foi Filolau, mestre do nosso divino Platão. Assim, uma única seita

unânime da antiga teologia foi formada pela ordem admirável destes seis teólogos, começando por

Mercúrio e terminando no divino Platão. Ficino apud André Chastel, 1996, p. 170. 3 Cfr. Yates, 1996, p. 19-37.

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Filipe Alberto da Silva

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n.1, 2016 234

assuntos religiosos. Estabeleceu a grandeza, o soberano poder e

unidade de Deus, e deu-lhe como nós, o nome de Deus e Pai4.

Lactâncio vê numa passagem do Asclépio5 um paralelo com a doutrina cristã de

Cristo enquanto Filho de Deus. Com o apoio da autoridade de Lactâncio, Hermes

Trismegisto é acolhido no Renascimento enquanto profeta pagão anunciador do

cristianismo. Para figuras como o helenista Guilherme Budé (1467-1540), Hermes

personifica os princípios do Humanismo, enquanto mediador entre os Homens e os

deuses. Ele é semelhante a Cristo6, na medida em que também é filho de um pai divino,

como refere Lactâncio.

2. Hermes Trismegistos no Mosaico da Catedral de Siena

Quando adentramos pela Catedral de Siena, deparamo-nos logo à entrada com

um pavimento muito peculiar: trata-se do pavimento de Hermes Trismegistos (Fig.1).

Este é composto por três figuras, onde Hermes se encontra numa posição de relevo, quer

pelo seu lugar central, por um lado, quer pela sua maior estatura, por outro. Toda a

composição denota assim uma glorificação da personagem mítica central – Hermes. Ele

surge representado conforme o tipo do ancião: de longa barba e cabelo branco. Na sua

cabeça, usa um chapéu exótico, elemento que ajuda a personificar a imagem do sábio

vindo do Egipto. Para Carl Gustav Jung (1875 – 1961), Hermes Trismegistos é uma das

representações do arquétipo do ancião7. O velho sábio é a figura que aparece nos sonhos

quando o consciente não consegue por si só tomar decisões e seguir um caminho8.

Reveste deste modo o carácter de psicopompo e o modelo de perfeição da condição

humana que devemos seguir.

A sua mão esquerda está pousada em cima de uma placa onde se lê “Deus

Omnium Creator Secum Deum Fecit Visibilem Et Hunc Fecit Primum. Et. Solum Quo

4 Lactâncio, 1986, Cap. VI, 2-5, p. 75. Trad. Filipe Alberto da Silva.

5 O Asclépio é o segundo diálogo pertencente ao Corpus Hermeticum onde se discute a diferença entre o

mundo físico e metafisico. Passagem do Corpus na obra de Lactâncio: O Senhor e Criador do universo,

que nós costumamos chamar de Deus, fez um Deus visível e tangível. Quando chamo-o de visível e

sensível, não tenho a intenção de fazer acreditar que cai sob os sentidos, apenas quero ressaltar que é

dele que provém o sentimento e a inteligência. Deus produziu-o em primeiro como seu filho único, deu ao

nosso entendimento como o maior de todos os bens e o amou como a sua amada produção. Lactâncio,

1992, Cap. VI, 1-5, p. 63-65. Trad. Filipe Alberto da Silva. 6 Faivre, 1995, p. 31.

7 Jung, 1990, p. 37.

8 Cfr. Jung, op.cit., p. 31- 41.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

235 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016

Oblectatus Est. Et Valde Amavit Proprium Filium Qui Appellatur Sanctum Verbum9”

sustendada por duas esfinges. Esta comunicação em latim é muito semelhante à

passagem de Lâctancio (ver nota 5) onde este cita o Corpus Hermeticum e observa uma

grande similitude com a doutrina cristã de Cristo enquanto filho de Deus.

Com a sua mão direita entrega um livro, símbolo do conhecimento, com as

inscrições “Suscipite o licteras et leges Egiptii10

”. Recebe-o um egípcio, que será com

grande probabilidade o próprio Moisés, se dermos conta da inscrição definidora do

mosaico: “Hermes Mercurius Trismegistus Contemporaneus Moyse”. Todo este

trabalho indica a necessidade de conciliar a doutrina pagã com os dogmas da fé cristã.

Difundir a mensagem de um Deus supremo que gerou um Filho Divino que a própria

filosofia pagã reconhece, essa parece ser a função deste mosaico de Hermes

Trismegistos na catedral de Siena.

3. Para uma hermenêutica do Mosaico hermético na Catedral de Siena

Anne Sheppard (1951-), citada no início deste trabalho, observou que as obras

de arte são como metáforas; estas são assim para a autora um convite para a

interpretação, dizem e mostram algo que vai para além da presença do artista11

. Que

leituras podemos tirar do mosaico à entrada da Catedral de Siena? Que valor simbólico

transporta?

Para Gilbert Durand (1921-2012), no que diz respeito à consciência humana,

“nada é apresentado, mas tudo é representado12

”. As coisas só existem e tem um real

valor quando lhe damos um sentido. É através desse exercício de construção de sentido

do objecto que chegamos ao símbolo. Para Umberto Eco (1932-), a multiplicidade do

sentido – e por conseguinte da interpretação – é uma característica intrínseca do mundo

simbólico. “O símbolo permanece vivaz quando indecifrável (…) para que haja símbolo

deve haver analogia, mas sobretudo nebulosidade de conteúdo. Sem uma ontologia e

9 Deus o criador de tudo fez para si um [outro] Deus visível, e foi com este que apenas e pela primeira

vez Ele se deleitou, e amou-o como o seu próprio filho que se chama Verbo Santo. Trad. Filipe Alberto da

Silva. 10

Recebe, oh Egipcios as letras e as leis. Esta inscrição virá de uma afirmação de Cícero acrescentando

que Hermes é o responsável pela fundação da cidade de Hermópolis. Yates. op. cit., 1996, p. 33. 11

Cfr. Sheppard, 1987, p. 114-134. 12

Durand, 2000, p. 55.

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Filipe Alberto da Silva

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n.1, 2016 236

uma metafísica do Sagrado, do Divino, não há simbolismo e não há infinitude de

interpretação13

”. O símbolo e o sagrado aparecem desta forma indissociáveis.

Hermes Trismegisto, associado pelos gregos à divindade egípcia Thot14

, indica

uma tripla natureza e uma tripla acção no tempo. A etimologia do termo egípcio

“Hermes”, “Thot” ou “Toout”, teria por origem o significado de misturar, de amolecer

pela mistura, em suma, criar uma só totalidade através de vários elementos15

.

Representa para Durand a totalidade, isto é, a soma das fases em devir: o passado, o

presente e o futuro. Não podemos deixar de ver um paralelo com a tríade de São Paulo16

ou da Santíssima Trindade, por um lado, e as especulações neopitagóricas atribuídas à

Jâmblico e retomadas um século depois por Santo Agostinho17

, por outro. A tríade era

considerada o primeiro número impar e chamado de perfeito, pois era o primeiro

número para designar a totalidade; nele estavam contidos o princípio, o meio e o fim18

.

Evocamos a importância da tríade porque a figura denomina-se de “Trismegistos”, isto

é, três vezes grande. O carácter trinitário da figura hermética é, em si, um símbolo da

completude do ciclo: Pai, Mãe e Filho, Osíris, Isis e Hórus, o passado, o presente e o

futuro.

No seguimento do exposto, vou-me permitir uma interpretação deste mosaico,

que considero um símbolo do Hermetismo do Renascimento, quer pelo seu lugar de

destaque em contexto cristão, quer pelas diversas leituras que a figura permite.

É interessante o papel central e mediador que ocupa a figura de Hermes

Trismegistos. À sua esquerda, uma passagem de Lactâncio inspirada do Corpus

Hermeticum representa a sabedoria oriunda do Antigo Egipto. À sua direita, segura o

livro da lei e das letras que entregue a um sábio egípcio que podemos legitimamente

associar a Moisés. Deste modo, Hermes, associado pelos gregos ao deus egípcio Thot,

13

Eco, 1991, p. 220. 14

Mal os gregos entraram em contacto com o Egipto, quiseram conhecer e compreender a sua religião. O

fruto dessa curiosidade fez com que criassem equivalências entre as divindades egípcias e as divindades

gregas. É deste modo que Thot foi identificado com Hermes, assimilação anterior ao historiador

Heródoto, ou então devida ao próprio historiador. Festugière, 1944, p. 69. 15

Cfr. Durand, 1969, p. 347-349. 16

Nas suas cartas aos coríntios, o apóstolo associa a tríade aos dons da fé, da esperança e do amor, sendo

o maior o amor. I Cor. 13. 13. Agora estas três coisas permanecem: a fé, a esperança, o amor, mas a

maior é o amor. 17

De música I. 12.20. Assim, vê que no número três existe uma certa perfeição, pois tem um começo, um

meio e um fim. Thénard; Citoleux. Oeuvres complètes de Saint Augustin, em: http://abbaye-saint-

benoit.ch/saints/augustin/musique/livre1.htm > Acesso em 9 de Junho 2015. Trad. Filipe Alberto da

Silva. 18

Iamblichus (attributed). The Theology of Arithmetic: On the Mystical, Mathematical and Cosmological

Symbolism of the First Ten Numbers. Trad. Robin Waterfield, Phanes Press, Michigan, 1988, p. 51.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

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deus psicopompo, é-nos apresentado enquanto eixo central, o ponto de equilíbrio entre

os Homens (à esquerda) e a lei divina (à direita). De facto, recordando a origem do

termo “Thot” ao qual Hermes é associado, não podemos deixar de ver nele a figura que

procura a mistura de vários elementos para chegar a Unidade divina. Esta ideia é bem

expressa na Tábua Esmeralda: “o que está em baixo é como o que está em cima, e o que está

em cima é como o que está em baixo, para que os milagres do Uno se realizem19

”. Por

conseguinte, Hermes representa a figura intermédia entre os homens e a Lei Divina - a união

do Homem com Deus, do terrestre com o celeste; em resumo, a união dos opostos e o

seu regresso a Unidade.

4. Hermes Trismegistos e o ciclo Lunar

Vimos como, para Gilbert Durand, Hermes representa a totalidade pela união

dos três tempos: passado, presente e futuro. Detenhamo-nos agora um pouco sobre a sua

relação com o ciclo lunar.

A lua aparece como a primeira medida do tempo; a etimologia da palavra lua é,

tanto nas línguas indo-europeias como semíticas, uma série de variações do significado

para medir20

. A maior parte dos termos que designam o mês e a lua derivam dos termos

da raiz me-, que em latim deu mensis e metior, isto é, “medir”21

. Mircea Eliade (1907-

1986) esclarece a relação tempo-lua da seguinte forma: “as fases da lua - aparecimento,

crescimento, decrescimento, desaparição, seguido de reaparição ao fim de três noites de

trevas - desempenharam um papel importante na elaboração das concepções cíclicas”22

,

isto é, naquilo que Eliade denomina de “mito do eterno retorno”: nascimento, morte e

renascimento, do qual a doutrina crista é subsidiária.

Desde a mais alta Antiguidade que Thot foi identificado com o deus da Lua,

Ioh, adorado no Alto e no Baixo Egipto. É muito provavelmente em virtude desta

assimilação à Lua que Thot foi considerado o inventador da cronografia. Ele calculava

os dias, os meses e os anos, era o medidor do tempo. As suas funções não se ficavam no

19

Tábua de Esmeralda. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão do Corpus de Copenhaver. Cfr.

Copenhaver, 1992. 20

Cf. Courdec, 1946, p. 110; Cf. Berthelot, 1949, p. 58. Cité dans: Durand, op. cit., p. 326. 21

Eliade, 1978, p. 101. 22

Eliade, op. cit., 1969, p. 101.

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Filipe Alberto da Silva

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entanto por aqui: traçava o destino dos Homens, determinava o tempo de vida de cada

um, e era, por essa razão, considerado o Senhor do Destino23

.

Deste modo, Hermes, que, não esqueçamos, foi associado ao deus egípcio Thot,

contém em si vestígios do ciclo lunar, que podemos associar à morte e à ressurreição, tal

como veremos nos parágrafos seguintes.

5. Hermes Trismegistos, senhor da interpretação e da linguagem

No período helenístico, a especulação sobre o “Logos” destacou outro aspecto

da figura mítica de Hermes, aproximando-a do deus egípcio Thot. Na Antiguidade

grega, Hermes era considerado um arauto, um mensageiro dos deuses, o intérprete da

palavra divina24

. Em consequência disso, temos o exemplo do próprio Platão (428/427 -

348/347 a. C.), que associa o vocábulo “Hermes” ao do grego “Hermeneus”, isto é,

“intérprete” no Crátilo25

. Hermes usufruía do estatuto de deus da hermenêutica, do

mistério e da arte de o decifrar26

.

No início da era Cristã, Hermes, utilizado enquanto sinónimo de “porta-voz” era

uma expressão popular27

. Basta recordar uma passagem bíblica dos Actos dos

Apóstolos em que os habitantes de Listra tomam Paulo por Hermes, porque ele é o

senhor da palavra: “Vendo o que Paulo fizera, as multidões levantaram a sua voz,

dizendo em língua Licaónia: fizeram-se os deuses semelhantes aos homens e desceram

até nós! Denominaram Barnabé Zeus e Paulo Hermes, porque ele era o porta-voz28

”. O

neoplatónico Jâmblico (245-325), no De Mysteriis (I,1) emprega uma expressão

similar: “Hermes é o senhor da língua29

”.

23

Festugière, 1944, p. 67. 24

Festugière, op. cit., p. 71. 25

Hermógenses. (…) Tentemos, pois, examinar o significado do nome de Hermes, a fim de sabermos se o

que ele diz é razoável.

Sócrates. O nome de Hermes parece relacionar-se com o discurso. Com efeito, ser intérprete,

mensageiro, cleptomaníaco, embusteiro e dado ao negócio são actividades referentes ao poder

discursivo. Ora, como dissemos antes, éirein é servir-se do discurso, ao passo que a palavra empregada

por Homero, em muitos lugares-emésato, diz ele-essa equivale a maquinar. Portanto, devido a estes dois

elementos, é que o legislador, acerca do deus que imaginou a linguagem e o discurso, nos ordena, por

assim dizer, que digamos: Ó homens, com razão deveríeis chamar “Eirémes” àquele que “imaginou a

palavra”; nós, porém, chamamos-lhe Hermes, embelezando-lhe assim o nome, em nossa opinião. Platão,

1963, p. 72-73. 26

Chevalier; Gheerbrant, 1994, p. 365. 27

Festugière, op. cit., p. 72-73. 28

Actos 14:11,12 29

Festugière, idem.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

239 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016

Umberto Eco, pelo seu lado, vê na ambiguidade da linguagem hermética uma

condição para dizer o indizível: “o pensamento hermético adianta que quanto mais

ambígua e polivalente é a nossa linguagem, mais ela utiliza os símbolos, a metáfora, e

fica mais apta a nomear o Uno, lugar onde se realiza a coincidência dos opostos30

”. A

necessidade de construção do sentido dos diversos enunciados e símbolos que a

doutrina hermética transporta é assim muito propícia à multiplicidade de interpretações

e diferentes níveis de leitura.

6. Para uma hermenêutica de Hermes Trismegistos em Francisco de Holanda

O códice De Aetatibus Mundi Imagines, elaborado entre 1545 e 1580 por

Francisco de Holanda, contém uma representação do nosso Hermes, no fólio intitulado

“a Morte de Moisés” (Fig. 2). Segundo Sylvie Deswartes (1945 - ), o artista português

procurou a sua inspiração em três obras distintas para elaborar o seu códice: o Timeu, o

Génesis e o primeiro livro do Corpus Hermeticum, o Poimandres31

.

A primeira curiosidade que devemos salientar é o facto de Hermes aparecer

única e exclusivamente no episódio do sepultamento de Moisés levado por dois anjos. A

segunda, é que ele se apresenta com o indicador nos lábios, em sinal de silêncio ou de

segredo. Por último, ele é representado de forma muito similar ao ancião de barba

branca e cabelo comprido da Catedral de Siena32

. Encontramos elementos comuns entre

a representação de Siena e de Francisco de Holanda: Moisés e a figura do ancião.

Contudo, o sinal de silêncio para o deus da eloquência e da interpretação não deixa de

ser enigmático. Holanda parece convidar-nos a uma hermenêutica deste desenho.

Segundo Gilbert Durand, Hermes é o paradigma do mediador; ele é para os

renascentistas a razão de ser para explicar a ordem das coisas33

. Estará aqui Hermes a

vestir o seu papel de psicopompo? Guardando o segredo do lugar para onde irá conduzir

a alma de Moisés?

Numa tentativa de resposta a esta pergunta, já vimos que Hermes simboliza,

entre outros elementos, o ciclo, isto é, o regresso à causa primeira. Ele é ao mesmo

tempo o Pai, a Mãe e o Filho. Assemelha-se também ao Cristo, que é ao mesmo tempo

30

Eco, 1992, p. 55. 31

Deswarte, 1987, p. 18. 32

Não existem razões para crer que Francisco de Holanda não tivesse visitado a Catedral de Siena durante

a sua estadia em Itália entre os anos 1538 e 1540, apesar de não termos, ao nosso conhecimento, algum

testemunho do humanista sobre essa visita. 33

Cfr. Durand, op. cit., p.153.

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Filipe Alberto da Silva

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n.1, 2016 240

filho de Deus e o próprio Deus34

. Ele representa o eterno regresso à Unidade, imagem

simbolicamente representada na Crisopeia atribuída a Cleópatra (Fig. 3).

No primeiro livro do Corpus Hermeticum, no episódio em que Hermes medita

sobre as coisas essenciais e todos os seus sentidos corporais adormecem vencido por um

profundo cansaço, eis que lhe aparece uma figura misteriosa: “um ser impressionante,

de contornos indeterminados”35

, cujo nome é Poimandres, figura esta que o instruirá

sobre os mistérios do mundo e do Homem. Faço este parêntese da passagem do Corpus

porque este episódio indica, de acordo com as teorias de Jung, um processo da

imaginação activa, espécie de forma meditativa que utiliza o auxílio da imaginação para

entrar deliberadamente em contacto com o inconsciente36

. Este esforço meditativo é

comparável ao processo junguiano de individuação37

, de união entre o consciente e o

inconsciente, uma leitura da união dos contrários herméticos que só é resolvida pelo

sentido que a mensagem da aparição do arquétipo do “velho sábio”, aqui representado

por Poimandres.

O velho sábio, personificação simbólica, segundo Jung, do centro da

consciência, é o centro psíquico vital que aparece ao individuo de modo a vencer as suas

dificuldades. Ele é o guia, o conselheiro, o oráculo, em suma, o velho sábio é o

arquétipo do condutor de almas. Uma das suas incumbências é retirar a angústia

existencial do individuo para levá-lo de volta à totalidade da sua psique. Contudo, só

poderá realizá-lo quando o homem o reconhecer como tal e acordar do seu sono para

segui-lo38

. É novamente a ideia de ciclo que regressa, a unidade que o velho sábio

Hermes-Poimandres representa.

Deste modo, quisemos salientar o arquétipo do velho sábio que aparece no

desenho de Holanda sob a figura de Hermes Trismegistos. A representação da morte de

Moisés pode ser tanto simbólica como real; isso não muda o nosso propósito, pois a

morte é sempre um rito de passagem, uma morte simbólica de um antigo estado

psicológico para um novo estado: o da totalidade da consciência. Nos povos primitivos, a

iniciação tem o objectivo de ritualizar a morte da criança para abrir as portas da vida adulta. O

individuo deixa de se identificar exclusivamente com os seus progenitores e familiares mais

34

Cfr. Durand, op. cit., p. 330. 35

Primeiro Livro: Poimandres a Hermes. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão de Copenhaver.

Trad. Filipe Alberto da Silva. 36

Jung, [s.d.], p. 206. 37

Processo pelo qual o consciente e o inconsciente do indivíduo aprendem a conhecer, a respeitar e

acomodar-se um ao outro. Jung, op. cit., 1964, p. 14. 38

Cfr. Jung, op. cit., p. 200 - 202.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

241 MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n. 1, 2016

próximos para se identificar com toda a tribo. Por outras palavras, a sua identidade é

temporariamente destruída ou dissolvida no inconsciente coletivo. É então salvo solenemente

deste estado pelo rito de um novo nascimento39

. Talvez a morte de Moisés seja uma

representação dessa passagem - da morte da condição mortal de Moisés, para integrar uma nova

vida nos braços da Eternidade Celeste simbolizada pelos dois anjos que o carregam. Uma forma

de unir o inconsciente individual com o inconsciente colectivo, segundo as teorias de Jung, ou,

segundo a tradição hermética, a união dos opostos simbolizada pela morte de um estado anterior

para renascer num novo estado existencial; novamente o mito do ciclo, da ressurreição de

Cristo, o regresso à Unidade da totalidade da consciência.

Podemos encontrar nos Adágios de Erasmo de Roterdão (1466-1538) outra

leitura sobre o enigmático sinal de silêncio do Trismegistos de Holanda. Num

comentário à expressão latina “Mercurius venit”, que hoje seria traduzida por “um anjo

passou”, Erasmo associa esta expressão à necessidade de um momento e lugar de

silêncio para a reflexão40

. Hermes parece assim convidar-nos para um momento de

meditação sobre o mistério da morte de Moisés. O seu silêncio convida ao segredo, à

profunda reflexão sobre os mistérios da morte e da ressurreição, ao mito do ciclo e do

regresso à Unidade que Hermes, Senhor do destino dos Homens e condutor de almas,

parece guardar.

7. Considerações Finais

No decorrer deste trabalho, enunciámos a função e o aspecto da figura mítica de

Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento. A forma do velho de barbas

brancas e cabelo comprido adequa-se em justa medida à sua função de ancião: ao

detentor da sabedoria e mediador entre os deuses e os homens. No Apocalipse de João,

encontramos a figura do ancião em pé de igualdade, se não num estatuto superior ao dos

anjos. “Todos os anjos que se encontravam em pé ao redor do trono dos anciãos e dos

quatro seres viventes prostraram-se diante do trono com o rosto em terra e adoraram a

Deus41

”. Evocamos esta passagem do Apocalipse para salientar vários aspectos da

figura hermética do ancião.

Em primeiro lugar, é um Homem com um estatuto muito próximo do divino, tal

como os vinte e quatro anciões do Apocalipse; em segundo, a filosofia hermética é um

39

Cfr. Jung, op. cit., 1964, p. 128 -136. 40

Faivre, op. cit., 1995, p. 31. 41

Apocalipse 7:11.

Page 12: Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

Filipe Alberto da Silva

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n.1, 2016 242

processo de divinização do Homem, uma procura de união com Deus42

, demanda essa

que Hermes Trismegistos simboliza. Por último, Hermes Trismegistos é um Homem e

não um anjo; simboliza o paradigma do Homem que se quer semelhante e próximo de

Deus. Apesar da sua condição humana, tanto Hermes como o ancião do Apocalipse, não

deixam de usufruir da mesma proximidade atribuída aos anjos com a divindade.

Fig. 1 - Hermes Trismegistos no pavimento da catedral de Siena. Muito provavelmente vista por

Francisco de Holanda durante a sua estadia em Itália entre 1538 e 1540.

42

Se não te fizeres igual a Deus, não poderás compreendê-lo: porque apenas o semelhante compreende o

semelhante. Segundo Livro: Poimandres a Hermes. Trad. Filipe Alberto da Silva a partir da versão de

Copenhaver.

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Hermes Trismegistos no imaginário do Renascimento

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Fig. 2 – « A Morte de Moisés », fólio 27.

Fonte: Francisco de Holanda. De Aetatibus Mundi Imagines Livro das Idades: Edição fac-similada com

estudo de Jorge Segurado. Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa,1983.

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Filipe Alberto da Silva

MORUS – Utopia e Renascimento, v. 11, n.1, 2016 244

Fig. 2b – Pormenor da “Morte de Moisés”: Hermes Trismegistos em sinal de silêncio, fólio 27.

Fonte: Francisco de Holanda. De Aetatibus Mundi Imagines Livro das Idades: Edição fac-similada com

estudo de Jorge Segurado. Academia Nacional de Belas-Artes, Lisboa,1983.

Fig. 3 - “Ouroboros” Pormenor da figura dita de « Crisopeia » [fabricação do ouro] atribuído a Cléopatra,

no manuscrito alquímico 2325 da BNF, datado do século XIII. A inscrição grega “Ἓν τὸ πᾶν” no centro

significa «O Todo é Um ».  Fonte: livro on-line de Marcellin Berthelot (1827 - 1907). Collection des

anciens alchimistes grecs. Georges Steinheil Éditeur, Paris, 1887, in

http://remacle.org/bloodwolf/alchimie/intro1b.htm > acesso em 14 de Maio 2015.

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