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Agnáldo C. Bacàro HERÓI DE SI MESMO 2008

HERÓI DE SI MESMO - AGNÁLDO C. BACÀRO

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Agnáldo C. Bacàro

HERÓI DE SI MESMO

2008

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©Copyright by Agnáldo C. Bacàro

(Proibida a reprodução sem a prévia autorização do autor. Todos os direitos reservados)

Revisão: Haidée Camelo Fonseca

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NOTA DO AUTOR Peço permissão para perguntar a você,

que me está lendo agora: o que o (a) levou a adquirir este livro? Você certamente quer a solução de seus problemas, sofrimentos e angústias mais íntimas.

Pergunto: você está feliz agora com seu modo de vida? Você ama o que faz em sua vida profissional? Você segue a sua vocação? Você já se perguntou por que sofreu miseravelmente em algumas fases de sua vida? Você sabe a causa de tanta dor e miséria no mundo? Por que alguns homens e mulheres parecem felizes, por serem ricos e bonitos, ou por conseguirem tudo o que querem? Será que são realmente felizes?

Provavelmente você já se sentiu terrivelmente envergonhado (a) por invejar as pessoas citadas anteriormente. Confesso: eu também já senti muita inveja pelos que supunha bem sucedidos na vida.

Mas, em presença da dor e da angústia do estar no mundo e não ser plenamente feliz no que fazia, eu resolvi mudar, virar a mesa e ser eu mesmo. Foi assim que nasceram as perguntas feitas a você anteriormente.

Não, este não é um livro banal. É um livro que pulsa, que arde em seu calor sangüíneo e que vivificará quem o ler. Trata-se de um livro revolucionário para sua vida se assim você quiser que seja, e ele o será.

Aqui há vida, sangue, suor e, por que não dizê-lo, lágrimas, muitas lágrimas.

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Lágrimas que lavam as faces, o corpo e, principalmente, a alma.

Aqui não lhe será ensinado nada. Você é quem tirará as conclusões. Porque a vida é assim, aprendemos com nossos erros e acertos, embora mais com os erros; e o bem e o mal são relativos, pois o que gera a dor e o sofrimento é apenas uma palavrinha: ignorância!

Não, por favor, não se ofenda, pois não o estou chamando de ignorante, não, jamais! Quero dizer que às vezes fazemos as coisas pela paixão e ferimos os outros e isto tem um preço chamado sofrimento. Aqui, quando emprego a palavra “paixão”, incluo em seu campo semântico sentimentos como raiva, amargura, orgulho, luxúria e por aí vai.

Mas vivemos em um mundo escola e não poderia deixar de ser assim. As chances para melhorarmos são infinitas. Um dia, você acordará cansado de sofrer, cansado de viver, querendo até deixar de existir, porque está se sentindo vazio e liquidado, e então você terá o insight, a revelação.

Foi o que aconteceu com... Podemos chamá-lo aqui de João.

Bem, talvez você queira saber o motivo de tudo isto, a razão deste livro. Convido-o a prosseguir na leitura, por mais um pouquinho, e você verá que a vida é um eterno milagre...

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I João W.B. Simplesmente João. Um ser com alma, um homem como você,

como todos os seres humanos. Ele sofre, ama, e tem alguma alegria.

Todos os dias, ele caminha pela cidade, empurrando um carrinho de supermercado cheio de tralhas, seus únicos pertences neste mundo. Ele carrega roupas sujas, restos de comida que mendiga, e penduricalhos imprestáveis. Ele cheira mal, suas roupas estão sebentas e esfarrapadas. Seus cabelos, como a barba, são longos, grudentos e amarfanhados. Seus olhos são escuros e encravados em profundas olheiras.

Ele já foi relativamente feliz como a maioria de nós. Ainda traz os traços, no rosto envelhecido prematuramente, de alguém que nasceu em um lar saudável e próspero.

Agora tem 40 anos. Ele caminha, lentamente, pelas ruas,

empurrando seu carrinho. Dois cães vira-latas, seus únicos amigos verdadeiros, seguem-no fielmente. Um, muito magro, com manchas pretas e brancas, que ele nomeou de Esperança. O outro na verdade é outra: uma cadela branca, sarnenta, igualmente magra, que ele chamou ironicamente de Felicidade.

Quarenta anos esta noite e João caminha pelas ruas da cidade com seu séqüito fiel, os dois cãezinhos que ouvem suas angústias, planos e desalentos. Sonhos? Não, sonhos não os têm mais, ficaram perdidos nas ilusões do

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passado. Passado não muito remoto, desde que ele resolvera, há cinco anos, viver nas ruas, largado, sob as estrelas e o frio da noite.

Desse modo, ele chega para dormir, como faz todas as noites ao redor de uma fogueira, onde outros seres como ele, mendigos e mendigas, se recolhem, em um terreno baldio, num canto remoto da cidade.

Mas esta noite é especial. Ele faz aniversário e seu espírito, que há muito não se perturbava, está inquieto. A verdade é que ele está cansado da vida que leva, pedindo de porta em porta, dependendo da caridade de estranhos, recebendo restos, passando frio e fome quase sempre.

Também está cansado das feridas que carrega pelo corpo, escaras ocasionadas pela vida insalubre que leva, pela falta de banho, e pelas doenças que são, quase sempre, sufocadas com muita cachaça e drogas.

Como acontece com os amigos de sofrimento, todas as míseras moedas que ganha vão para o álcool ou as drogas, que consome para fugir de seu destino implacável.

Quando chega ao “acampamento” dos mendigos, logo vai se juntar a eles na fogueira que crepita quase todas as noites, exceto quando chove, pois aí cada qual procura uma marquise sob a qual pode se abrigar. Chega, como sempre, calado. O álcool e as drogas circulam de mão em mão, compartilhadas, sugadas como se todos buscassem nelas um alento de vida.

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Quando exaustos, cada qual pega o seu papelão e o estende no chão, para esquecer a vida no entorpecimento que lembra a morte.

Mas esta noite nem o álcool nem as drogas aliviaram a infelicidade de João. Era seu aniversário e ele não ousava contar a ninguém. A dor pela falta, pela saudade e pelo remorso o consumia. Assim João foi absorvido pelo torpor da dor e da desesperança.

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II João começou a seguir em direção ao

centro da cidade. Uma viatura da polícia passou por ele como se fora por um fantasma.

Era um pouco mais de meia-noite. Por sua mente, passavam em desfile seus

aniversários de outrora, quando ainda se julgava feliz. Via-se rodeado pela bela mulher, Marta, e pelos não menos belos filhos: Paulo, com três anos; Flávia, com cinco e Júlia com sete. Todos à mesa, lindamente decorada com enfeites, o bolo de dois andares ao centro, flores e comes e bebes de todos os tipos.

Uma dor insuportável invadiu-lhe o peito, uma saudade sem remédio ao relembrar que, após cantarem os parabéns, todos vinham abraçá-lo e beijá-lo com amor. As crianças lhe davam belos presentes que a mãe comprava antecipadamente, escolhidos por elas: uma caneta de ouro, um par de gravatas de seda, um lindo relógio prateado e outros objetos luxuosos. Aí então era a vez da mulher, Marta, que, após um beijo e um abraço, entregava-lhe um pacote feito com esmero. Ele sempre adivinhava o que era. Podia ser uma camisa de seda, uma pasta de executivo em couro legítimo ou um terno completo de alguma marca famosa.

João pára o carrinho e enxuga as lágrimas que começam a explodir sem controle nos seus olhos. Agora ele geme na solidão e no frio da madrugada. Ninguém por testemunha, só o coração arrasado. Os

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cãezinhos Felicidade e Esperança sentem o que está acontecendo, mas nada podem fazer, pois se trata da dor de humanos. Eles simulam um latido leve, mas não conseguem tirar João da cadeia de sofrimento que o prende.

Ele empurra o carrinho e tenta afugentar as lembranças, que, de tão felizes, lhe acentuam a tristeza. Tudo o aflige, sua alma se inquieta e ele tenta tomar coragem para uma decisão final.

Percebe que está começando a caminhar sobre o viaduto que corta uma grande avenida da cidade. Ele empurra seu carrinho lentamente, sabendo o que o espera. Felicidade e Esperança pressentem algo, nada bom, no ar.

Agora João pensa na vida de seus colegas de jornada, os miseráveis como ele. Todos, quase todos, escolheram a mendicância por causa de uma dor insuportável que não souberam ou não quiseram aceitar. Uma desilusão amorosa, a perda da fortuna da família ou o vício os empurraram para aquela vida. Todos, sem exceção, carregavam grandes ressentimentos e mágoas. E esses sentimentos os envenenavam no corpo e na alma, provocando a dissolução da vida, a perturbação e a dor. Era como se a natureza gritasse por equilíbrio, provocando o desequilíbrio.

Ao estacionar no ponto mais alto da ponte, uma idéia má amadureceu por completo em João. Na verdade, ela fora incubada nos últimos cinco anos em que ele estava nas ruas.

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João se viu na encruzilhada da vida, do ser ou não ser de que fala a filosofia.

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III

A ponte era alta e formava uma

parabólica. Ele estava no cume da curvatura. Olhou para a esquerda e olhou para a direita. Silêncio e frio. Nenhum carro transitava e nenhuma pessoa circulava. Já era alta a madrugada. João encostou o carrinho de supermercado na mureta, tirou as tralhas de dentro e as jogou no chão, com impaciência. Os cãezinhos olhavam tudo aquilo intrigados. Estando o carrinho vazio, João subiu nele e assim teve acesso à mureta, que era alta. Equilibrou-se, quase caindo, segurando no poste de iluminação. Não queria olhar para baixo e nem abrir os olhos. Sua mente fervia com milhões de pensamentos. As lembranças o instigavam a dar prosseguimento àquele ato supremo.

Felicidade e Esperança se apoiavam apenas nas patas traseiras. Esticavam-se na mureta, como se quisessem escalá-la também num gesto de solidariedade ao dono. Se pudessem, sairiam correndo dali para procurar ajuda.

- Vão embora, saiam daqui! – vociferou João, fazendo um gesto com a mão em direção aos cães.

Os animais nada compreendiam e não arredaram pé dali. Pelo contrário: aninharam-se no chão, decididos a esperar.

Esperar o quê? Felicidade e Esperança ainda não tinham se alimentado naquele dia, suas barriguinhas roncavam e a sarna os fazia se coçarem tenazmente. Para se

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aquecer, os cães se encostaram um no outro, na tentativa de escapar do vento frio que soprava sem parar.

Por um instante, João compadeceu-se do destino cruel dele e daqueles cães indefesos. Até pensou em agarrar os dois e... Não. Os cães talvez conseguissem se virar sem ele, achariam outro mendigo a quem seguir, a quem lamber as feridas...

Bem, era necessário prosseguir. Chega um momento em que o homem que tem dignidade precisa tomar uma decisão, por mais cruel que esta decisão possa parecer. Sempre chega o momento em que nossos brios são tocados e temos que dizer um “chega!”, um “basta!” Do jeito que estava não dava mais para prosseguir, era insuportável.

“Sim, é preciso fazer o que tem que ser feito”, pensou decidido.

Olhou para baixo e um frio percorreu-lhe todo o ser, a barriga gelou. ”Parece fácil, mas não é”, pensou. Naquele momento, recordou-se de quando era criança e sua mãe o levava ao parque e ele brincava na roda-gigante. Agora se sentia como se a roda-gigante tivesse parado e a cadeira em que estava começasse a balançar perigosamente no ponto mais alto. Nos momentos em que isso acontecia, ele se agarrava à mãe, que o acolhia junto ao peito e lhe dizia que papai do céu jamais ia deixá-los cair. “Papai do céu... Quanta besteira!”, pensou num ímpeto de raiva.

Não muito longe, vislumbrou a torre alta de uma igreja com seu grande relógio. 01h15min. ”É uma boa hora para...”. Um carro

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que passava lá embaixo, cheio de jovens bêbados fazendo arruaças e jogando latinhas de cerveja para o alto, mudou o rumo dos seus pensamentos: “Esses aí sim é que são felizes”. Sorriu do absurdo da situação, lembrando-se do tempo em que também fora jovem e fazia exatamente a mesma coisa.

“Então, é agora...” Se não fizesse o que havia decidido fazer não teria mais como viver, se é que aquilo era viver. Não se sentiria mais um homem, ficaria horrivelmente envergonhado e iria se achar inferior a um verme.

“Então está feito... decidido... fiz tudo o que podia nesta vida... e que Deus, se é que existe um, me perdoe...” pensou, já dando o impulso final.

“NÃO FAÇA ISTO!” Ouviu de repente...

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IV

Ouviu a voz forte e aveludada que vinha

não se sabe de onde. Olhou para baixo, para a esquerda e para

a direita do viaduto e não viu ninguém. Resolveu prosseguir, talvez fosse alucinação de sua mente desfragmentada. Fechou os olhos e tomou novo impulso...

“JÁ DISSE: NÃO FAÇA ISTO!” Não, agora era bem real! Era uma ordem

imperativa e dita bem próxima a seus ouvidos. Seu corpo todo se arrepiou, sentiu a presença de alguém atrás de si. Tomou toda a coragem do mundo e, ainda de olhos fechados, virou-se.

- Não tenha medo, pode abrir os olhos agora! – ouviu de alguém que estava na calçada.

João abriu os olhos e então viu. Um homem vestido finamente de branco: terno, calça, camisa, gravata e sapatos - tudo era branco!

João só conseguia ver o que a luz do poste deixava: do pescoço para baixo. Não dava para ver o rosto, que era coberto pela sombra da noite.

- Quem é você? – perguntou João. - Apenas um amigo... – respondeu o

estranho. - Qual é o seu nome? - Me chame simplesmente de “amigo”... - Mas eu não o conheço, nunca o vi nesta

vida. - Certamente que não...

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Silêncio. Esperança e Felicidade acompanhavam o diálogo de João com o “amigo”. Os cãezinhos começaram a abanar o rabo como se farejassem comida.

- O que quer de mim? - O que um amigo pode querer a não ser

ajudar? - Não preciso de ajuda agora... Por

favor, me deixe em paz! – disse João, virando-se como quem toma impulso para se jogar.

- Se quiser fazer o que pretende, faça agora! Mas lembre-se: existem três vidas, três crianças que sofrem pela tua ausência...

Ao ouvir isso, João sentiu a agonia de antes. Seu rosto se afligiu num esgar de dor.

- Como sabe das crianças? Você nem me conhece!

- Não importa! Quero ajudar. - Agora é tarde, agora é tarde... –

respondeu João, as lágrimas sulcando as faces.

- Nunca é tarde para o amor... Um silêncio trágico caiu sobre a ponte. - Palavras! Palavras! – bradou João. - Se acha que são apenas palavras então

faça o que tem que ser feito! Houve um longo silêncio. João agachou-se

sobre a mureta da ponte transfigurado pelo sofrimento.

“O que eu faço, meu Deus?”, pensou. - João... – disse aquele homem estranho.

– Você pode se curar se quiser...

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- Mas por que ela fez aquilo? Por quê?...

- Ela o amava... - Mentira! – vociferou João, levantando-

se e olhando para baixo. “Se pular, será instantâneo, não

sentirei nada.” - Se me amasse, não teria feito

aquilo... - Você a esqueceu, João. - Enquanto eu trabalhava, ela... - Aí está: você a trocou pelo excesso de

trabalho. - Excesso? Mas como eu manteria a casa,

os gastos dela, os carros, os clubes e as escolas caras das crianças?

- Você tinha apego às coisas, isto é diferente de amor.

- Ah é?! Parece que você é o senhor sabe-tudo – disse João com deboche.

- Você era um empresário bem sucedido, não precisava trabalhar tanto.

- Quem é você para ditar regras? De que mundo você é? Você não imagina como é a concorrência, meu amigo, não imagina...

- Você pagou um preço alto demais, não acha?

- Paguei, aqui estou. Mas ela não precisava ter me traído, não precisava! – bradou João, ecoando pela madrugada adentro.

- Temos o livre-arbítrio, João. Você sabe disso, você é uma pessoa culta. Você optou pelo trabalho, ela escolheu o amor e a família.

- Blá, blá, blá!!

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- Ela é feliz agora, vive uma vida mais simples no campo, junto aos filhos, e tem uma pessoa que a ama de verdade.

- Meu Deus! Quem é você para me torturar desse jeito? Quem?! – gritou João. - Deve ser o diabo em pessoa!

Silêncio e frio. O vento balançava os cabelos e a barba de João, que olhava para baixo, hipnotizado.

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V

Na vida, temos que lidar com as

frustrações. Esta era a maior dificuldade de João, que cresceu em um lar abastado, estudou nas melhores escolas e sempre teve tudo o que o dinheiro podia comprar.

Garoto mimado, adolescente bonito, rico e rodeado por garotas. Carros e bons empregos na área do Direito. Até que um dia os pais vieram a falecer num acidente de carro. Foi este o primeiro grande trauma de João: a dor da perda, a solidão.

Com a herança, João montou uma indústria na área da metalurgia. Tudo ia bem, tudo prosperava. Casou-se com uma mulher linda e rica. Teve três filhos maravilhosos, saudáveis e inteligentes, com um futuro brilhante pela frente.

Sua fortuna crescia ano a ano. Ganhar dinheiro era seu maior prazer, aquilo que lhe dava a sensação de estar vivo, de ser “o cara”, de estar no topo.

Trabalho, trabalho e trabalho. A mulher e os filhos sempre postergados a um segundo plano. E então, um belo dia, surpreendeu a bela esposa com seu melhor amigo. Para João, foi a gota d’água. Separou-se da mulher e caiu na vida boêmia. Mulheres, álcool e drogas dilapidaram pouco a pouco seu patrimônio. A mulher casou-se com seu ex-amigo Stanislau, também empresário, que ao casar-se com ela, assumiu os três lindos filhos de João.

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Desiludido, falido e amargurado, João caiu nas ruas. Sem ilusões e sem esperanças, perambulava pelas ruas à espera da morte. Passou a viver como indigente, comendo das sobras do lixo e das esmolas dos transeuntes. Para amenizar o ódio e a mágoa que sentia da ex-mulher e do ex-amigo, encharcava-se com o consolo dos mendigos,a aguardente barata e abundante de todas as esquinas.

Cinco anos perambulando. No rosto, o retrato da amargura, do sofrimento e do ódio. Ansiava pela morte, mas o que o mantinha vivo mesmo era o ódio. Assim se envenenava todos os dias e se punia por ter deixado seu lar se desfazer. Era desse modo que purgava a sua consciência.

Quantos não estão na mesma situação? Quantos violam suas consciências, purgando-se das mais variadas maneiras? Uns geram o câncer em si mesmos pela mágoa que nutrem contra alguém, outros se desequilibram mentalmente e vivem à custa de calmantes, de todos os vícios possíveis. Muitos temem as outras pessoas, os animais, a própria sombra e até a vida. Outros são aleijões mentais, incapazes de amar, de sonhar e de serem felizes.

Assim criamos o inferno. Mas está em nossas mãos o poder para

criarmos o céu...

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VI Felicidade e Esperança aninharam-se

novamente, junto um do outro. Pareciam suspeitar que a conversa entre João e o estranho amigo iria se prolongar muito.

Para se produzir um homem novo, é preciso fazer uma limpeza interna, remover toda dor, mágoa, ressentimentos e demais tendências odiosas, maléficas, paixões e também os vícios. Nem sempre isto é possível, pois a pessoa em questão não tem forças, não quer, ou não deseja uma mudança radical, apegando-se viciosamente ao sofrimento e à dor.

Assim, a raiva gera o ressentimento e o ressentimento gera a autopiedade que, por sua vez, gera a depressão, que volta a ser raiva... É preciso romper o círculo vicioso, perdoar as pessoas que nos ofenderam, eliminar a inveja, o orgulho e a vaidade.

Todos esses sentimentos negativos geram doenças. Isso já está provado pela ciência. Os chineses sabiam disso há mais de cinco mil anos antes de Cristo. Assim chegamos à conclusão de que realmente colhemos o que semeamos. É esta a lei da ação e reação que rege nossa vida e todo o Universo. Deus não castiga ninguém, nós mesmos nos condenamos e geramos para nós mesmos a dor e as doenças, como forma de compensação. É a consciência a nos julgar...

Deste modo, todas as vezes que ferimos alguém, ferimos a nós mesmos... E a lei entra em ação, provocando o desequilíbrio em

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nós na forma de sofrimento, como que para restaurar o equilíbrio.

Foi justamente essa lei que entrou em ação no caso de João. A mágoa e o ódio da ex-esposa e do ex-amigo geraram nele um desequilíbrio – a revolta e o sofrimento insuportável do ego ferido, que o levaram à mendicância. Dessa forma, ele se punia, inconscientemente, pelo fato de ter destruído seu casamento. A esposa, que o amava, ao ser tratada com indiferença, criou as condições para a separação.

Foi assim que João passou a perambular pelas ruas, sujo, cheio de feridas, bêbado e quase sempre alucinado. Vítima dele mesmo. Foi o modo que seu inconsciente encontrou para aliviar a consciência ferida que gritava dentro dele, mas que o ódio e a mágoa não o deixavam perceber, não o deixavam ouvir.

Era necessário curar-lhe a consciência, a alma para resgatar o homem.

Ainda agarrado ao poste de luz do

viaduto, João olhou para baixo, para a avenida onde, de vez em quando, um carro passava em alta velocidade. Calculou que se pulasse logo talvez não fosse esmagado por um carro. Àquela hora, eram poucos os veículos a transitarem. Pensando nisso, olhou para a torre da igreja: 01h45min. “Uma boa hora para morrer”, pensou.

- Seus filhos o amam... – disse de repente aquele ser que ainda estava ali, a observar suas atitudes.

- É... mas ela... ela não me ama mais...

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- Você se sente feliz em se fazer de vítima, não é? Você gosta de achar que é o coitadinho, o prejudicado dessa história toda que foi gerada por você, não é?

João, amargurado, só ouvia. - Pois é – prosseguiu o “amigo”. –

Agindo assim, você joga a culpa de tudo sobre a ex-esposa e seu amigo...

- Não é verdade! - Sim, é a mais pura verdade! – disse o

“amigo” com veemência. – Você é que não quer ver, não quer dar o braço a torcer, como uma criança mimada, que sempre foi!

- Você fala muito! – gritou João. – Não quero ouvir mais! – acrescentou, tentando tapar os ouvidos com uma mão, enquanto a outra o prendia ao poste.

- Mas você vai ouvir até o final. Depois poderá se espatifar lá embaixo como um verme imundo... – Ouça, João, você não é um coitadinho, jamais o foi... Você nasceu saudável, rico, teve alimentos abundantes e nobres, estudou nas melhores escolas e teve o amor de pai e mãe, belas mulheres o cortejaram e você pôde escolher entre todas a que mais lhe interessava... O que você queria mais, MISERÁVEL orgulhoso?!

- Você não sabe o que diz! - Se não sei o que digo, então PULE

AGORA! PULE E SE ESBORRACHE JUNTO AO AMOR DE SEUS FILHOS!

- Meu Deus, você me tortura! – gritou João em soluços, agachando-se e colocando as duas mãos nos ouvidos. – Você deve ser o DEMÔNIO, sim, é verdade, você é o demônio em pessoa!

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- Sim, sou o demônio de sua própria consciência, daquilo em que você se transformou.

O vento soprava feroz agora. Um fogo

devorava-o por dentro como uma vela que queimava lentamente. João estava confuso. A dor, de tão insuportável, transmutava seu rosto numa forma de loucura. Decidiu, em segundos, que tinha que acabar com aquele pesadelo, se livrar daquele demônio que tocava as suas mais profundas feridas.

João levantou-se resoluto e encarou o “amigo” que ainda estava ali, como um demônio a tentá-lo. Olhou para os dois cães que dormiam encolhidos, tremendo de frio. Pensou que alguém os acharia e cuidaria deles, assim como alguém cuida de seus três filhos.

João encarou o vazio, levantou-se com um gesto brusco e fitou o céu. Seu rosto todo sorriu na contorção de um riso insano, desesperado.

- Se pular, sua dor será quase eterna... - Mentira... Os mortos não sentem dor! - Mas sua dor... João... não está no

corpo... está na alma... e esta é imortal... – disse o estranho com extrema doçura.

- É o que vou ver! – foram as últimas palavras de João.

Na torre da igreja, o relógio cravava 02h57min.

- VOCÊ PODE, SE QUISER, SER O HERÓI DE

SI MESMO!

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João não compreendeu o que o estranho queria lhe dizer, gritando aquilo, pois já dava o impulso fatal...

Segundos que são eternidades. O corpo de João voou no frio da escuridão. Parecia que jamais chegaria ao chão. Já imaginava a dor do corpo estatelando-se contra o asfalto duro, o sangue a sair-lhe pelos ouvidos, pelos olhos e pelo crânio esfacelado. Seriam segundos ou seria a eternidade? Num flash, sua vida passou por ele. Viu a criança e o jovem mimado que fora um dia; seus amados pais a cercá-lo com cuidados excessivos; seus filhos sorrindo no aniversário, a mulher abraçando-o. Queria voltar ao viaduto, não morrer, não se esmagar contra o chão. Daria tudo para voltar, para não realizar aquele ato louco, daria tudo, tudo para isso! Mas a sensação de que era impossível voltar o esmagou por completo. Se pudesse voltar... Amaria a vida... Deixaria os vícios... a rua... e voltaria a trabalhar, ser alguém...Iria ver os filhos mensalmente, e desejaria toda a felicidade do mundo para a ex-esposa que tanto amara e a seu marido, seu antigo amigo. Amaria com todo o seu coração a todos os seres deste mundo, desde a formiguinha mais insignificante a seu pior inimigo... Faria tudo para ajudar aos sofredores, aos deserdados da sorte e a seus amigos de infortúnio e mendicância. Mas infelizmente era tarde... Ao concluir isso, ouviu um estrondo horrível e então ele apagou... Fez-se a mais tenebrosa escuridão no meio do silêncio.

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VII O sol brilhava na manhã azul e sem

nuvens. Vários mendigos saíam à procura do que comer, do que beber e do que fumar. No terreno baldio, uma fumacinha saía das brasas semimortas do que antes fora uma fogueira.

- Ei, cara, acorde! – disse alguém. – Já passa das nove...

Confuso, João abriu os olhos, pouco a pouco, triste por não ter morrido, mas feliz por ser-lhe dada uma nova chance...

- Cadê o homem de terno branco? – perguntou, olhando para os lados.

- Você está louco, cara! O que andou fumando, hein? Não tem ninguém assim por aqui.

- Meu Deus, acho que tive um pesadelo... – disse, olhando e apalpando o chão ao lado em busca dos cãezinhos.

Felicidade e Esperança estavam atrás dele e vieram imediatamente a lamber-lhe o rosto, festejando-o.

João acariciou os cães e disse: “Vocês estavam lá, não? Vocês viram aquele homem, não viram?”.

O mendigo que o acordara saiu balançando a cabeça. “Está cada dia mais pirado!”, murmurou.

Sentado no chão, ao lado do que antes fora uma fogueira, João ainda tentava assimilar o que teria acontecido. Tudo era tão incrível e ao mesmo tempo tão real! Lembrava-se vividamente de suas sensações de

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horror enquanto caía da ponte, daqueles segundos que antecederam a queda, que lhe pareceram eternos. Sentia um alívio fenomenal, uma força crescia dentro dele como se fosse uma semente ao romper a casca na escuridão da terra, prestes a desabrochar.

“O que ele disse mesmo?” pensou. “VOCÊ PODE SER O HERÓI DE SI MESMO!”,

lembrou João, passando as mãos pelos cabelos ensebados.

“Sim, é isto!” A “ficha” finalmente caiu.

João levantou-se ligeiro, uma vida nova queria manifestar-se nele, ainda mais agora que renascera, embora tudo não tivesse passado de um sonho. Um sonho bem real! Ainda sentia a angústia de não ter podido voltar atrás enquanto seu corpo em queda livre se dirigia ao asfalto. Mas agora... estava vivo, bem vivo, e iria cumprir o que prometera a si mesmo durante aquela queda para o nada.

Levantou-se e deu vários pulos para o alto, batendo com os calcanhares um no outro.

- Vou ser o herói de mim mesmo! Vou ser o herói de mim mesmo! – gritava, pulando no ar de alegria.

Alguns mendigos que estavam por ali caçoavam dele, girando o dedo ao redor dos ouvidos para dizer que ele havia pirado de vez.

Felicidade e Esperança pulavam junto com ele, tentando abocanhar o tecido de suas roupas em frangalhos.

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- Eu não morri! Estou vivo, vivo, vivinho da silva! – berrava ele pelas ruas, seguindo em direção ao centro.

Largou o carrinho de supermercado com suas tralhas para trás, não iria mais precisar delas, não, nunca mais! Quando chegou a um mercado da cidade, sem pedir, começou a ajudar um servente a descarregar um caminhão com caixas de frutas. Em pagamento, o motorista deu-lhe dez reais. João agradeceu, beijou a nota com grande amor e foi direto para uma barbearia. Gastou os dez reais no corte do cabelo e da barba. Estava com fome agora, não havia feito o desjejum ainda. Decidiu que tomaria um banho, e conseguiria roupas novas.

“Mas onde?” pensou. Viu uma igreja e entrou pela porta

principal, pediu ao padre que o deixasse se banhar, mas o pároco o expulsou, ameaçando chamar a polícia. João não se abalou. Depois do sonho, sentia que nada mais poderia abalá-lo. Sorriu, fez um gesto de reverência para o padre, agradecendo a recusa, e saiu, feliz como havia entrado.

“Tomar banho”, pensou. ”Preciso tomar um banho”.

Caminhou mais um pouco. Felicidade e Esperança seguiam-no e, de vez em quando, enroscavam-se entre suas pernas.

Estava disposto a trabalhar, nem que fosse limpando esgotos. Aspirava ardentemente a reconstruir a sua dignidade perdida. Foi até a prefeitura para ver se conseguia alguma coisa. Como tinha formação superior, disseram-lhe que não servia. Ele

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disse-lhes que não tinha problema, que trabalharia em qualquer coisa, mesmo que fosse na coleta de lixo, mas insistiram em lhe dizer que não seria possível.

Depois que “ressuscitara”, ao acordar do sonho em que cometera suicídio, as coisas, por mais difíceis que fossem, pareciam-lhe quase nada. Sentia grande força e acreditava que havia sido privilegiado por Deus, que lhe concedera aquele sonho. Passou a agradecer por tudo o que tinha de bom e de mau. Agradecia por amanhecer com o coração batendo, pelo ar entrando em seus pulmões, pelas roupas sujas e esfarrapadas, pelos cãezinhos amorosos que o acompanhavam, pela vida de mendigo, por todas as coisas que lhe aconteceram até ali, pela alegria e pela tristeza, pelo fato de ter cortado o cabelo e a barba e, principalmente, pelo fato de ter tido aquele sonho restaurador.

Por volta das duas da tarde, sem ter conseguido ainda tomar o banho que tanto almejava, foi até uma feira livre para ver se conseguia algo para comer, pois não agüentava mais de fome. Sentia tremor nas mãos devido à falta de álcool e drogas. Normalmente, àquela hora, já estaria, no mínimo, totalmente bêbado. Mas como queria ser o “herói de si mesmo”, como queria honrar o sonho que tivera, determinou a si mesmo que jamais voltaria a consumir álcool ou qualquer outra droga. Assim ia resistindo, embora a abstinência lhe causasse um grande sofrimento no corpo e, principalmente, na alma.

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Revolveu o lixo do final de feira e encontrou algumas frutas semi-apodrecidas, que comeu, tirando as partes estragadas. Para os cãezinhos conseguiu algum resto de peixe e alguns tomates amassados que eles adoravam. Saindo da feira, caminharam a esmo. Em seu delírio, João ia martelando: “Ó Deus, dai-me forças!”, “Ó Deus, não me abandone, por favor!”.

Quando passava defronte a algum bar, sofria dobrado, pois suas pernas queriam entrar, mas sua cabeça queria fugir para o mais longe possível dali. Uma luta tenaz se travava dentro dele, sem piedade, uma luta desigual e atroz. Mas ele, lembrando-se sempre da angústia que antecedera a queda no sonho, adquiria novas forças. Suspirava suando muito e saía dali, mais forte do que nunca, mais duro que o aço.

Veio-lhe a tentação de mendigar, pedir dinheiro como fazia antes do sonho, mas achou esta idéia horrível, pior do que a morte.

“Não, eu agüento tudo agora, nem que eu tenha que morrer de fome, mas esmola eu não peço mais, NUNCA mais!”, pensou.

E foi assim, nessa luta, trôpego, abatido, cansado, esfomeado, sujo, e sem ter conseguido tomar aquele banho tão almejado, que a noite o alcançou.

Ainda assim, agradeceu aos céus por mais aquele dia que findava.

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VIII

Debaixo da marquise de uma loja, João e

os dois cãezinhos se aninharam para dormir. Forrou o chão com algumas caixas de papelão que foram desmanchadas com este fim. Para se cobrir, juntara alguns jornais velhos. Como não havia ingerido álcool, sentiu grande dificuldade em conciliar o sono. Quando bebia, tudo lhe era mais fácil. Ao deitar-se, “desmaiava”. Agora não, apesar de ser quase uma hora da manhã, sentia grande vergonha pelo fato de estar ali, deitado naquele chão imundo e exposto aos olhares dos transeuntes. O que mais o afligia era o receio de que algum conhecido o visse e fosse tomar satisfações. Agradecia a Deus todas as vezes que isto não acontecia, pois a situação de morador de rua já é muito humilhante por si mesma.

Eram meados do outono e o frio começava a chegar, lentamente, com seu chicote em riste, o terror de todos os mendigos. De repente, sentiu a ausência dos antigos companheiros, que andavam em bandos para se sentirem mais fortes. Agora, era ele só, ou melhor, era “eu e Deus” como se habituou a pensar. Não queria voltar para os antigos companheiros por um motivo óbvio: com eles certamente voltaria a beber e a usar drogas. Se quisesse mudar para sempre, teria que ser radical. Modificaria os hábitos nocivos, arrumaria algum trabalho e, quem sabe, formaria uma outra família... Este era seu

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sonho no momento. Primeiro, o trabalho para se reerguer e, com sorte, a família!

Pensando assim, sonhando acordado, conseguiu conciliar o sono. Não se tratava de um sono profundo, mas sim de um torpor entre o frio, a tremedeira da abstinência e o medo de ser reconhecido por alguém.

De repente, sentiu algo duro e forte a ferir-lhe as costas num estrondo feroz, algo que certamente teria rasgado suas carnes. Vozes abafadas de homens raivosos que começaram a falar, primeiro baixo e devagar, mas depois alto, rápido e violento.

- Acorda vagabundo! – gritaram, ao mesmo tempo em que um segundo golpe acertava-lhe a cabeça, fazendo o sangue escorrer-lhe pelas faces.

Felicidade e Esperança também apanharam e saíram pelo meio da rua, sem destino, ganindo. João ergueu a cabeça, mas não conseguiu ver nada, pois o sangue ocultava seus olhos com respingos grossos. Tentou pela segunda vez ver quem o agredia, mas um golpe forte acertou-o em cheio entre os olhos e ele apagou. Tudo ficou escuro e esquecido, como daquela vez em sonhos no momento em que estatelara no chão.

* * *

Marta preparava o café enquanto João lia

os jornais. As crianças preparavam-se para ir à escola, uniformizadas e felizes. Estava próximo o natal e Marta queria saber se comprariam uma árvore natural, um cipreste,

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ou se usariam a mesma árvore que fora montada no ano anterior.

- Acho melhor trocarmos tudo – disse João.

- Bem, então vou encomendar uma ainda hoje – respondeu Marta, feliz.

- Papai, o que vou ganhar de presente? – perguntou Paulinho, o garoto de três anos, a puxar-lhe a gravata.

- Algo maravilhoso! - E eu? – perguntou Flávia, a garotinha

linda de cinco anos. - Algo mais que maravilhoso! - Eu também quero saber o que vou ganhar

– disse, por fim, Júlia, a garota mais velha, de sete anos.

- Algo bem mais que grandioso! Cada vez que respondia, João fazia

gestos grandiloqüentes com as mãos. - Ah, assim não vale, papai! –

protestaram em coro todas as crianças. - Bem, vão para o carro todos vocês, que

mamãe já vai levá-los. João abraçou e beijou cada criança e

todos saíram rumo à escola. Por fim, foi a esposa, Marta, que o abraçou e lhe deu um beijo longo na boca, saindo em seguida, toda atarefada.

Sim, era uma família feliz, muito feliz.

* * * Era uma recordação viva, bem real,

situada entre o sonho e a realidade na mente semiconsciente de João. Uma imitação de sorriso estampava-se em sua boca fechada,

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num misto de sofrimento e alegria. A cabeça estava enfaixada, via-se um pouco de sangue coagulado nas orelhas.

- Se a polícia não tivesse chegado a tempo, eles iriam matá-lo! – disse um homem de jaleco branco ao lado da cama.

- É, doutor. Já se tem idéia de quem possa ter feito isto? – perguntou outro médico, da mesma equipe.

- Alguns jovens baderneiros... - É um absurdo fazer o que fizeram com

uma pessoa indefesa, como este mendigo... - Sim, absolutamente inaceitável –

respondeu o outro médico, chefe da equipe que cuidava de João.

- Ele vai sobreviver, doutor? – perguntou uma estagiária.

- Acredito que sim, mas talvez fiquem algumas seqüelas – respondeu o médico responsável.

- É uma pena, pois se trata de um homem ainda jovem... – respondeu a estagiária, que anotava tudo numa prancheta.

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IX

Após um mês, João teve alta do hospital.

Devido às pancadas na cabeça, ficou com todo o lado esquerdo do corpo paralisado, passando a se locomover com uma bengala, na qual se apoiava para caminhar.

Ganhara a bengala da direção do hospital, bem como uma calça jeans, uma camisa branca, uma jaqueta e um par de sapatos usados. João agradeceu aos médicos e funcionários pelo tratamento recebido. Aquele hospital, apesar de público, era um lugar onde os pacientes eram tratados com dignidade. Agradeceu especialmente à equipe médica, pela bengala e pelas roupas que, agora, o vestiam. Com as novas roupas e os cabelos e a barba cortados, já não parecia mais um mendigo. Agradeceu a Deus pelo fato de estar vivo e com saúde, apesar da dificuldade que tinha ao se locomover.

João tinha que recomeçar. “Mas por onde? Meu Deus, dai-me uma luz!”, pensava, enquanto caminhava a esmo à procura de trabalho. Em uma loja, viu a plaqueta: “Precisa-se de ajudante geral”. Seu sorriso reacendeu no rosto sofrido, mas só até o momento em que lhe disseram que “não podiam empregar aleijados, pois o trabalho era duro, tinha-se que carregar coisas pesadas...”. João agradeceu, como sempre, e saiu dali, pensando, como advogado atuante que já fora um dia, que poderia processar aquela empresa. Riu de si mesmo, pois já não era mais aquele João do tempo em que

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advogava e, muito menos, o João mendigo bêbado e drogado. Jamais seria aquelas pessoas novamente. Disso ele tinha certeza.

Voltou a caminhar pelas ruas centrais da cidade. Lembrou-se de que suas mãos já não tremiam mais. Embora a mão esquerda estivesse inutilizada, a direita não tremia com a falta de álcool e drogas. Os trinta dias de hospital fizeram-no passar pela síndrome da abstinência sem muitos solavancos.

Viu, do outro lado de uma praça, uma enorme biblioteca. Em cima do prédio em estilo rococó, estava escrito: “Biblioteca Municipal”. João resolveu entrar, pois poderia ler alguns jornais e revistas e até livros gratuitamente. Assim o fez, entrou e sentou-se a uma mesa. Mal começou a ler um jornal, uma funcionária o abordou:

- Senhor, preciso saber se tem o cadastro da biblioteca...

- Cadastro? Não, não tenho... - Então preciso de seu CPF, RG, três

fotos 3x4 e comprovante de residência para fazer um.

- Só tenho o RG... - disse constrangido. - E o comprovante de residência, as

fotos e o CPF? - Só o RG. Sou morador de rua... - Ah... entendo... Um mendigo... Um

mendigo que sabe ler... João sentiu o sangue ferver. Fazia muito

tempo que não sentia raiva. Aquela mulher o estava humilhando...

- Um ex-mendigo, estou tentando arrumar um trabalho e sair das ruas...

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- Ah, e aqui na biblioteca o senhor acha que vai encontrar um trabalho? – perguntou a mulher num tom de desprezo.

- Sim, lendo os jornais, talvez eu o encontre...

- Lamento, mas... Neste momento, um senhor distinto, que

ouvia toda a conversa, interferiu: - Rose – disse para a mulher –, pode

deixar, faça o cadastro dele usando só o RG...

- Tudo bem, já que o senhor quer assim... – disse a funcionária, a contragosto, pegando o RG de João para elaborar o cadastro.

João sorriu para o homem, que retribuiu o sorriso e, antes de afastar-se, apontou uma plaqueta afixada na parede. João ergueu os olhos e leu: “O Universo é um eco de nossas ações e pensamentos”.

Minutos depois, Rose, a funcionária, entregou-lhe o RG, dizendo-lhe que ele poderia usufruir da biblioteca, desde que zelasse por ela, mas que não poderia fornecer a carteirinha por ele não ter as fotos.

João sorriu amavelmente, dissipando a raiva que havia sentido, e agradeceu.

Deste modo, começou a ler o jornal tranquilamente, acreditando que uma enorme porta começaria a se abrir para ele. Agradeceu a Deus por isso. Desfilando os olhos pela seção de empregos, observou que todos pediam dois anos de experiência. Tinha uma relativa experiência no ramo do Direito, mas não estava de posse do diploma, pois

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quando se separara da mulher, num acesso de raiva, jogara o diploma num rio junto com outros documentos, restando-lhe somente o RG. Portanto, se quisesse militar em sua área, teria que solicitar uma segunda via na faculdade onde se formara. Essa faculdade ficava em outra cidade e ir até lá para conseguir o documento lhe custaria dinheiro.

Sentiu uma pontada de desânimo pela loucura que fizera ao jogar o diploma no rio, e pelo fato de não ter uma mísera moeda para tomar um café. Resolveu recomeçar de baixo, tentar algo para ir se arrumando aos poucos, para poder comer, se vestir e dormir em algum quarto alugado. Se conseguisse isso, já seria uma vitória.

“Se você pensa que pode ou sonha que pode, comece. Ousadia tem genialidade, poder e mágica. Ouse fazer e o poder lhe será dado”.

Este pensamento, de Goethe, que João leu num canto do jornal, iluminou seu espírito.

Ao virar a página do jornal, uma foto colorida chamou-lhe a atenção. Era uma foto das colunas sociais. Nela, uma mulher muito bonita e bem vestida, ao lado de um homem de terno e gravata, ladeados por três crianças igualmente lindas, sorriam como se estivessem no próprio paraíso. Como título da coluna estava escrito:

“CHÁ BENEFICENTE REÚNE A NATA DA SOCIEDADE”.

Abaixo da foto, em letras menores, João leu: “Dr.Stanislau, a bela esposa Marta e os três lindos filhos: Paulinho, Flávia e Júlia”.

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Como se um prédio desabasse sobre ele, assim sucedeu com João. Ficou alguns minutos parado, olhos perdidos ao longe, fixos. Grossos fios de lágrimas espocaram de seus olhos, respingando sobre a foto de sua ex-esposa, do ex-amigo e dos filhos estampados no jornal. Um ressentimento atroz brotou em seu peito, um misto de ciúme, ódio, inveja, e compaixão por si mesmo. Fez um esforço hercúleo para controlar a fúria e não sair destruindo tudo: mesas, armários, estantes, livros, revistas e jornais.

Olhou para os lados para ver se alguém o estava observando e recortou aquela foto, onde estava a imagem de sua querida família de antes, de seus filhos e da esposa que ainda amava. Saiu dali apressadamente, mordendo os dentes, os olhos ainda anuviados pelas lágrimas que salgavam a sua boca. Uma angústia insuportável apossou-se dele, semelhante àquela de quando sonhou que pulara da ponte.

Teve um ímpeto medonho de entrar no primeiro bar e beber, beber até anular-se. Lembrou que não tinha um tostão sequer, e isto o revoltou ainda mais. “Isto não é vida, meu Deus!” Um pensamento mais louco apossou-se dele, sugerindo-lhe que se atirasse debaixo de algum carro, de algum ônibus. Mas o tormento que sentira ao cair da ponte durante o sonho anulou por completo este intento. “Não. Isso não. Será que não há outra solução? Meu Deus, não agüento mais sofrer!”, pensou.

Aproximou-se de um banco de praça e sentou-se. Era quase meio-dia. Tirou a foto

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amassada do bolso e a fitou. Passou as mãos pelo rosto e pelos cabelos. Respirou fundo. As lágrimas cessaram. Guardou a foto no bolso. Alguns pombos comiam milho no chão e as pessoas iam e vinham num afã desesperado pela vida.

“É PRECISO SER O HERÓI DE SI MESMO,

ENFRENTAR SEUS MEDOS, ANGÚSTIAS, VENCER AS FRAQUEZAS E NÃO TER MEDO DE ENCARAR SEU LADO SOMBRA.”

“Meu Deus, é isto!”

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X

A fome começou a apertar. Durante um

mês, se alimentara no hospital. A comida era insossa, mas pelo menos o mantivera vivo. Agora, precisava batalhar pela sobrevivência, “ser o herói de si mesmo”, crescer em todos os aspectos da vida.

12h46min. A fome nocauteia seu estômago. Uma senhora distinta, bem vestida, lábios vermelhos de batom, bem maquiada, magra, cabelos nevados ao estilo chanel, senta-se no banco com dois sacos de pipocas.

- Para você – disse a senhora, estendendo um saco de pipocas para João.

- Ah, não, obrigado, muito obrigado! – respondeu João, engolindo em seco.

- Olha, o orgulho mata, sabia? – continuou a senhora. – Se não quiser, vou jogar aos pombos...

- Neste caso... – constrangido, João pegou as pipocas.

- Pode me chamar Órion – disse a senhora, estendendo-lhe a mão.

- Prazer, João. Grato pelas pipocas. - Nada! Adoro comer pipocas junto de

alguém. João fazia um esforço enorme para comer

as pipocas devagar, educadamente. Encarou os olhinhos azuis pálidos da senhora e perguntou:

- Órion? Mas que nome diferente... - Sim... papai era astrônomo e em

homenagem à grande constelação me colocou este nome... Papai era um grande homem... o

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mais sábio que já conheci... O que você faz, meu rapaz, sentado perdido aqui neste banco? Além de descansar, é claro – perguntou Órion sorrindo, um dente dourado na boca.

- Eu!?... Bem, eu na verdade não faço nada, procuro o que fazer, procuro pôr as idéias em ordem...

- Bingo! – respondeu a velhinha. - Já é um bom sinal.

João devorou seu saco de pipocas e continuou com muita fome.

- Sabe de uma coisa? – falou a velhinha amavelmente, encarando-o. – Papai, além de sábio, era muito rico... na verdade, riquíssimo!

- É... ganhou muito dinheiro com astronomia?

A velhinha sorriu. - Não, meu filho, não foi com

astronomia... Na verdade, ele era um astrônomo amador.

- Ah sim... Com que então ele fez fortuna?

- Na verdade ele não fez fortuna... Já nasceu rico...

- Certo, herdou da família, que já era rica.

- Pelo contrário, a família de papai foi muito pobrezinha.

- Eu não compreendo... - É simples, meu rapaz... Está tudo aqui

na cachola... – disse a velhinha, apontando a cabeça e rindo.

- Sim, ele era inteligente e usou a inteligência para ganhar dinheiro.

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- Quase isto – meu filho –, quase isto! Olha, eu tenho o segredo de como ele conquistou tudo de bom na vida, aqui num destes envelopes – Órion abriu a bolsinha ricamente enfeitada que trazia, em couro preto e dourado, e retirou dois envelopes.

- Aqui está! – disse, mostrando os envelopes.

Um dos envelopes estava lacrado com cera vermelha, no formato de um trevo de quatro folhas. Nele, lia-se, impresso em baixo relevo: “Amor Omnia Vincit”.

- “O amor vence tudo” – traduziu João a inscrição em latim, pois como advogado havia estudado essa língua.

O outro envelope estava mais grosso, recheado, também lacrado com cera vermelha, igual ao outro. Neste, lia-se, também em latim: “Audaces Fortuna Juvat”.

- “A sorte ajuda os audazes” – traduziu mais uma vez João.

- Pois então, meu jovem, só quem pode captar o sentido profundo destas frases é digno do envelope...

Houve um pequeno silêncio. - Muito bem. Agora vamos ao meu

propósito, ou melhor, ao de papai. Antes de partir, papai pediu que eu procurasse a primeira pessoa abatida que encontrasse, e oferecesse a ela a oportunidade de escolher.

Órion estendeu os dois envelopes para que João escolhesse um. Só um. Disse que seu pai, há muitos anos, teve também a oportunidade de escolher. E agora, caso João fizesse a escolha correta, como seu pai

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havia feito, teria a oportunidade de ser feliz e construir grande fortuna na vida.

João, perplexo, perguntou o que havia no interior dos envelopes.

- Surpresa! – respondeu Órion. – Nem eu sei o que tem dentro, só papai.

João olhou para os envelopes ainda achando absurda a aparição de Órion e toda aquela encenação. Em meio a tanto sofrimento pelos quais passara e ainda estava passando, não saberia diferenciar o que era loucura e o que era realidade.

João agradeceu a Órion pelo saquinho de pipocas e pela oportunidade que seu pai, por meio dela, estava lhe proporcionando.

Respirou fundo, fechou os olhos e, finalmente, pegou um envelope.

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XI

- Abra! – ordenou Órion, fitando-o. João olhou o envelope. Era aquele em

cujo selo estava escrito: “Amor Omnia Vincit”.

João abriu o envelope e, perplexo, viu que, no interior, só havia um pedaço de papel branco, sem linhas, onde estava escrito, a mão, o seguinte:

PEÇA TUDO A DEUS. ORE E TRABALHE. SEJA

O HERÓI DE SI MESMO. - É muito bonito o que está escrito

aqui... – disse João, olhando para Órion. – Até parece que já ouvi isso antes...

- O quê? – perguntou a velhinha, tirando o papel das mãos de João. – Sim, é muito bonito – continuou após ler. - E tem muita profundidade o que está aqui.

Em silêncio, João se lembrou. - Há algum problema? – perguntou a

velhinha, ao ver João entregue aos próprios pensamentos.

- Não... é que... há um mês atrás eu atentei contra a minha vida, mas foi tudo um sonho...

- Ah bom! – exclamou Órion, aliviada.- E aí...?

- Mas foi tão real! No sonho, antes que eu pulasse da ponte, um homem de branco, que conversava comigo, disse que, se eu quisesse, poderia ser o herói de mim mesmo.

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- Nossa, João! É mais ou menos o que está aqui, não é mesmo? – disse a velhinha, lendo novamente o papel. – Aqui diz claramente: Seja o herói de si mesmo!

- Sim! É a mesma coisa – afirmou João. - Bem... – disse a velhinha. – Agora, o

que será que tem neste outro envelope? Órion abriu o outro envelope, aquele

onde se lia “Audaces Fortuna Juvat”. No interior, para o assombro de ambos, havia uma grande quantidade em dinheiro e uma carta dirigida a Órion.

Órion pediu para que João contasse o dinheiro. João contou e havia cem mil reais em notas de cem. Órion desdobrou o bilhete e o leu para que João ouvisse:

“Pague um almoço e um jantar para a pessoa que pegou o outro envelope, e o restante doe para uma instituição de caridade”.

João pareceu desanimado... Acreditava que havia escolhido o envelope errado. Bem que poderia ter escolhido o outro! Teria agora cem mil reais para recomeçar a vida com um grande impulso!

“Realmente eu nasci para sofrer”, pensou. “Que idiota eu sou, sempre fui, enfim, sou um perdedor!”

- Bem, quanto vale um almoço e um jantar? – perguntou Órion.

Vendo o desânimo estampado no semblante de João, ela disse:

- Ei, rapaz, não fique assim... Existem muitas coisas disfarçadas... que só conseguimos perceber lá na frente!

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- Faz tempo que não almoço e muito menos janto...

- Bem, então, fica assim, tome. Órion tirou uma nota de cem reais do

envelope e a entregou a João, que agradeceu, pois sabia que com aquele valor dava para se almoçar e jantar algumas vezes, desde que escolhesse um restaurante barato.

- Bem, preciso ir. Papai ficará contente, pois fiz, finalmente, o que me pediu. Ele partiu no mês passado, com noventa e oito anos! Estava forte e lúcido até o final. Só agora tive a oportunidade de fazer o que me pediu. Você, João, me pareceu ser a pessoa indicada.

Ela levantou-se, e eles se abraçaram. Órion beijou-lhe a face e ele retribuiu. João colocou o envelope no bolso, e a velhinha sumiu no meio da multidão.

Esfomeado, saiu dali e foi procurar um lugar para almoçar, coisa que não fazia há muito tempo.

Achou um restaurante popular e entrou, sentou-se à mesa e pediu o prato do dia: arroz, feijão, salada de alface e tomate, batatas fritas e bife acebolado. Para beber, pediu um suco de laranja bem gelado.

Enquanto comia, pensou em como as coisas simples da vida são as que trazem grande satisfação: comer quando se está com fome, saciar a sede quando se está sedento e... amar, quando se tem alguém que nos ama.

Após comer, chamou o garçom, pediu um cafezinho e a conta. Tomou o cafezinho e sentiu uma vontade louca de fumar. Expulsou esta idéia imediatamente, pois resolvera ser

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o herói de si mesmo, descartando todos os vícios. Pegou a conta que estava sobre a mesa e olhou: nove reais e noventa centavos. Bem, ainda teria noventa reais e dez centavos para comer até que encontrasse uma ocupação. Nada mal, Deus é bom. Fechou os olhos e agradeceu por aquela refeição, a mais saborosa dos últimos cinco anos!

Enfiou a mão no bolso da calça e pegou aquela foto das colunas sociais. Seus olhos marejaram e ele levou a foto dos filhos aos lábios e a beijou, três vezes. Depois, pegou a carta que tinha tirado das mãos de Órion e releu o pedaço de papel escrito a mão, várias vezes:

PEÇA TUDO A DEUS. ORE E TRABALHE. SEJA O

HERÓI DE SI MESMO. “Sim, eu serei!” – pensou. – “Serei o

herói de mim mesmo, nem que seja a última coisa que eu faça nesta vida!”

Guardou a foto e a carta no bolso, pagou a conta e saiu do restaurante. Era preciso achar um trabalho, algo que o sustentasse, que lhe desse um lugar para dormir e as bases para recomeçar.

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XII

Enquanto caminhava pela cidade, pensou

no que teria acontecido caso tivesse escolhido aquele envelope, onde havia cem mil reais...

“Melhor nem pensar”, concluiu. “O que tem que ser será!” Nada melhor do que caminhar, mesmo com

bengala, com a barriga cheia, satisfeitas as necessidades primárias.

Enquanto andava, ia lendo as plaquetas dos estabelecimentos comerciais: “Precisa-se de Costureiras”; “Precisa-se de Vendedores”; “Precisa-se de Ajudante Geral”; “Precisa-se de Faxineiros” etc.

Com o lado esquerdo do corpo paralisado, seria difícil conseguir algo que demandasse esforço físico. Teria que conseguir algo mais técnico, que necessitasse mais do intelecto que dos braços.

Pensando assim, entrou em uma loja que precisava de vendedores. Foi informado de que as vagas já tinham sido preenchidas e que, além do mais, os candidatos precisariam estar com a “saúde perfeita”. Em outra loja, disseram-lhe o mesmo, com outras palavras; e em outra e em outra... João sabia o que “saúde perfeita” queria dizer. Mesmo assim, agradecia, e saía com a cabeça erguida, determinado a ser o “herói de si mesmo”.

A noite chegava junto com o frio. Precisava achar um local para dormir, não queria ficar nas ruas, pois tinha uma amarga

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lembrança da última vez em que dormira sob uma marquise.

“Mas onde, meu Deus, onde passarei esta noite?”, pensou. Enquanto prosseguia, olhava as plaquetas dos hotéis baratos. Havia preços desde vinte e cinco reais até os mais altos, de cinqüenta reais para pernoitar, sem café da manhã.

Para João, os preços cobrados, naquela situação, eram uma fortuna. Não sabia como e quando acharia algo, um trabalho que lhe garantisse ao menos o básico para sobreviver. Teria que economizar ao máximo aqueles noventa reais e dez centavos que lhe restavam.

Foi então que teve uma idéia: passaria a noite num velório da cidade, dormiria sentado em uma cadeira qualquer. Ali ninguém o incomodaria, passaria despercebido como parente ou amigo de algum morto.

Chegou ao velório mais perto dali, na parte central da cidade, e aproximou-se dos caixões. Um de cada vez, discretamente, para não dar na cara a sua intenção de apenas estar ali para dormir. Em um caixão havia um homem de meia-idade, deveria ter uns cinqüenta e cinco anos, num outro, um homem de uns setenta anos, e em outro, uma bonita jovem de uns vinte anos.

“Para morrer basta estar vivo. No cemitério há pessoas de todas as idades”, pensou.

A um canto do velório, havia grande movimentação de pessoas, com flashes de máquinas fotográficas, luzes de câmeras de tevê e muitos jornalistas. João se aproximou

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e fez um grande esforço para furar a multidão que ali estava, cercando a urna funerária ricamente adornada, juntamente com as muitas coroas de flores ali dispostas.

Ao olhar para o caixão, João teve um calafrio. “Não, não é possível!”, pensou.

Tratava-se da velhinha, Órion, que jazia na urna mortuária com uma expressão plácida e feliz, de missão cumprida. Ao encará-la, foi quase que cegado pelos flashes das câmeras que espocavam por todos os lados, a todo momento. Uma luz forte de refletor foi acesa e João tentou tapar os olhos com o braço.

- O senhor a conhece, tem algo a dizer sobre ela? – perguntou uma jornalista loura, bonita, de uma grande emissora de TV, que quase introduziu o microfone em sua boca.

- Conheço, conversei com ela esta manhã... – respondeu João.

- Como? Esta manhã? O senhor tem certeza? – novamente perguntou a jornalista com grande afã, espremidos que estavam pela multidão.

- Sim, Órion me deu um envelope, quer dizer, pediu que eu escolhesse entre dois envelopes...

- Este cara é louco, tirem ele daqui! – gritou um jovem engravatado que ouvia tudo em silêncio.

João foi arrastado por dois homens de terno e gravata, que mais pareciam dois gorilas de zoológico. Empurraram-no para fora e, em seguida, jogaram em sua cabeça a bengala.

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- Meu Deus, as pessoas não têm mais respeito nem por aleijados! – disse a jornalista que correra para acudi-lo, erguendo-o pelos braços. – O senhor está bem?

- Estou! – respondeu João, pegando a bengala e passando as mãos pela roupa, para sacudir a sujeira.

- Por favor, me acompanhe, preciso conversar com o senhor... – convidou a jornalista, cortando a multidão que aumentara significativamente.

Acharam duas cadeiras ao fundo e sentaram-se. A jornalista perguntou a João se tinha certeza de que a senhora Constância de Guignard, este era o seu verdadeiro nome, conversara com ele aquela manhã. Ele disse que sim, que ela se apresentara como senhora Órion, e dera-lhe dois envelopes para que escolhesse um, pois assim pedira seu pai antes de falecer. Para provar, João tirou o envelope do bolso e o mostrou à jornalista, que o leu intrigada. Ela deu-lhe seu cartão e perguntou onde ele morava, pois pretendia ouvir a sua história. Ao saber que ele era um ex-morador de rua, ex-advogado bem-sucedido, a jornalista interessou-se mais ainda por entrevistá-lo.

- Ah, deixe me apresentar, sou Aymara, e posso conseguir algum dinheiro por sua história...

- Verdade? - Sim, verdade. Diga-me – prosseguiu

Aymara -, onde vai passar esta noite? - Aqui! - Aqui, onde?

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- Neste Velório... Aymara riu desbragadamente. As pessoas

voltaram-se para ela com ares de censura. - Ah, meu Deus, esqueci onde estou...

Mas, João, você não existe, não é deste mundo! – disse Aymara, agora controlando o riso.

- Tome, dá para dormir em algum local melhor... – disse Aymara, abrindo a bolsa e dando-lhe cem reais.

- Não posso aceitar! - Não seja orgulhoso! – considere como

parte do pagamento por sua história, sim? - Se for assim, tudo bem! - Combinado então! Me ligue amanhã para

combinarmos o encontro, sim? Agora tenho muito que fazer – completou a jornalista, correndo em direção ao local onde estava o caixão de Órion, ou Constância de Guignard.

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XIII

Ao acordar, João não tinha a noção da

proporção do que estava acontecendo. Dormira num hotel barato, a vinte e cinco reais o pernoite. O hotel era mal afamado, freqüentado por prostitutas, travestis e punguistas em geral.

Apesar disso, agradeceu aos céus por aquela cama suja, mas macia, onde pôde dormir sem medo de ser agredido. Agradeceu também pelo dinheiro que Aymara lhe dera, pois assim teria mais refeições, e mais tempo e tranqüilidade para procurar um emprego.

Saiu do hotel e procurou um local para o desjejum matinal. Entrou em uma padaria e pediu um copo de café com leite e pão com manteiga esquentado na chapa. Satisfeito, tirou o cartão da jornalista do bolso da camisa e leu: Aymara S. Cohen, jornalista, redatora-chefe da TV...Fone...

“Humm, esta menina não é fraca não...” pensou, enquanto se dirigia ao caixa para pagar a conta e comprar fichas de telefone.

Dirigiu-se a um orelhão do outro lado da rua e discou. Eram dez da manhã.

- Aymara, jornalista, pois não? – atendeu do outro lado, com uma voz ainda sonolenta.

- Aqui é o João, lembra? - João!?... Ah, sim, me perdoe... Tudo

bem com você? - Caminhando... Então, liguei porque

você pediu...

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- Certo, onde você está agora? - Aqui no centro, defronte à padaria

N... - Ok, me espere aí. Não demoro muito.

Vamos almoçar juntos... - Então estou aguardando... - Em trinta minutos, estarei aí! - Combinado! Quando Aymara chegou, eram onze horas.

Pediu desculpas a João, justificando o atraso: teve que passar na emissora de TV. João disse-lhe para não se preocupar. Entraram no carro da emissora e, meia hora depois, estavam em um fino restaurante da cidade.

Acompanhados pelo garçom, sentaram-se em uma mesa ao fundo, iluminada sutilmente, quase uma penumbra.

- Eu sempre sento aqui nesta mesa – disse Aymara.

Aymara pediu um suco de laranja e João decidiu pedir o mesmo. O prato, João pediu para que Aymara o escolhesse.

- Mário, nos sirva daqui a uma hora, tudo bem? – falou Aymara, dirigindo-se ao garçom.

- Tudo bem! E qual será o prato, madame? - Estrogonofe, no capricho! O garçom fez uma mesura, inclinando-se,

e saiu todo apressado. - Ainda é cedo – disse Aymara, olhando

para o relógio. – Até ficar pronto, a gente conversa...

Aymara ligou um mini gravador, colocou-o sobre a mesa e pediu para que João contasse sua história desde o começo, o motivo de ele

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virar um morador de rua, e os fatos principais de sua vida até a noite anterior, no velório da senhora Constância. Quando João disse que havia visto a sra. Órion na manhã anterior, num banco de praça, onde conversaram e onde ela pedira para que optasse entre um dos envelopes, houve silêncio.

- Você tem certeza de que a viu ontem de manhã? – perguntou Aymara, intrigada.

- Bem... – respondeu João pensativo. – Não era bem de manhã, passava um pouco do meio dia.

- Isto não muda nada! Melhor, muda tudo! - Não estou entendendo. - Você sabe a que horas a senhora

Constância, ou Órion, morreu? João balançou a cabeça negativamente. - Pois é... se segura então! Ela faleceu

às seis horas da manhã de ontem... - Não acredito! Não pode ser... - Então como ela pôde aparecer a mim,

oferecer pipoca e fazer com que eu escolhesse um dos envelopes?

- Não sei, é um mistério. Só se for uma pessoa muito parecida com ela...

- Impossível! Houve um breve silêncio que foi quebrado

por João: - Aymara, diga-me, quem era a senhora

Constância? - Uma mulher muito rica, dona de um

verdadeiro império econômico... Ela era a acionista maior de um grupo que tem indústrias, lojas, fazendas etc. Sua família emigrou para o Brasil, vindo da França,

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quando ela era ainda uma criança. Seu pai era muito pobre, e fez fortuna por aqui.

- É verdade, antes de me fazer escolher um dos envelopes, ela disse que seu pai era pobre e que o segredo da sua fortuna e felicidade estava num deles.

Aymara pediu para olhar novamente o envelope que ele escolhera. Ela leu, primeiro, o selo de cera, soletrando: “Amor Omnia Vincit”, “O amor vence tudo”.

Depois, abriu o envelope, pegou o papel e leu, soletrando:

PEÇA TUDO A DEUS. ORE E TRABALHE. SEJA O

HERÓI DE SI MESMO. Após um momento, ela perguntou: - Você disse que havia dois envelopes? - Sim... - E o que estava escrito no outro? - Por fora, no selo de cera, “Audaces

Fortuna Juvat”. Estava cheio de dinheiro, cem mil reais em notas de cem.

- “A sorte ajuda os audazes”. Bem, acredito que você pegou o envelope certo!

- O que quer dizer? - Se houver algum segredo da fortuna e

da felicidade, ele está no envelope que você tirou... Que segredo pode haver no outro envelope, em cem mil reais? Nada, nenhum, pense bem... Está na cara que a sorte ajuda os audazes.

- Pode ser! - “Amor Omnia Vincit” – disse Ayamara. –

Meu Deus, esta frase é muito profunda! E

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seja o “herói de si mesmo”, também não fica atrás...

Conversaram mais um pouco e, na hora acertada, o almoço foi servido. João comeu galhardamente, como há muito tempo não fazia. Ao terminarem, Aymara pagou a conta e saíram. A jornalista deixou João próximo ao hotel onde passara a noite e disse para ele telefonar no dia seguinte, pois iria tentar “vender” sua história ao dono da TV, o que lhe garantiria um bom dinheiro...

Despediram-se com um abraço, João agradeceu pelo almoço e por tudo que Aymara estava fazendo por ele.

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XIV

João passou a tarde toda perambulando

pela cidade à procura de trabalho. Nada, ninguém queria dar trabalho para alguém diferente, um ex-morador de rua com um lado do corpo paralisado.

Resolveu voltar para o hotel. Estava exausto e passaria a noite ali. Havia um chuveiro no banheiro do quarto e um bom banho seria ótimo àquela altura. Gastaria mais vinte e cinco reais, mas acalmou-se ao pensar que Aymara poderia lhe trazer mais dinheiro com a venda de sua história. Feliz com este pensamento, entrou na padaria e comprou seis pães e um tablete de manteiga. Ao menos economizaria no jantar.

Já no quarto, comendo pão com manteiga como se fosse um banquete, sentiu saudades de Felicidade e Esperança. “Onde andariam eles, estariam vivos ainda?”. Lembrou-se do dia em que fora espancado, os cachorrinhos também apanharam e saíram ganindo pela escuridão. Deveriam ter voltado ao terreno baldio, para junto dos ex-companheiros mendigos. “Tomara que isto realmente tenha acontecido”.

Após comer, João tomou banho. Como não tinha toalha, ficou se esfregando com as mãos, nu, até que seu corpo secasse. Em seguida, vestiu seu calção e deitou-se sob as cobertas, pois estava no finalzinho de maio e o frio chegava de mansinho. Ao lado da cama, havia um criado-mudo e João abriu a gavetinha. Havia algumas páginas esparsas de

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uma revista pornográfica e uma minibíblia, toda suja e amarfanhada. Pegou aquela bíblia e a abriu aleatoriamente. Colocou o dedo em um versículo, e leu:

“O senhor, que ama a prosperidade de seu servo, seja engrandecido”. (Salmos 35:27)

Pôs de novo a bíblia na gaveta, apagou a luz e ficou quieto na escuridão total. Nunca fora religioso, nunca lera a bíblia, aquela fora a primeira vez que abria uma. “A vida é estranha, coisas inesperadas acontecem. Era para eu estar morto e enterrado”, pensou.

Lembrou-se dos filhos, da ex-mulher, do ex-amigo e agradeceu por eles existirem, pedindo perdão a eles em pensamento, por tudo de mal que lhes desejara um dia. Vibrou para que eles fossem muito felizes, pois a felicidade deles seria a sua felicidade.

A noite caiu como desce o véu escuro da solidão. João dormiu profundamente, e não se lembrou dos sonhos.

Ao acordar, lavou o rosto, vestiu-se e comeu pão com manteiga.

Às onze horas, foi a um orelhão e telefonou para Aymara. Esta o atendeu, e disse que contou a seu chefe toda a sua história, mas que ele a achou impublicável, pois envolvia a família da senhora Constância, cujas empresas investiam altas somas em publicidade na TV... Portanto, com a história vindo a público eles poderiam perder as verbas de publicidade, além do que achava a história dele muito inverossímil e fantasiosa. Disse-lhe que não ligasse para o que o seu chefe dissera, e que ela lamentava muito... Disse também que ele não precisava

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devolver os cem reais, que lhe adiantara pela história.

Bem, a vida é assim, nem tudo acontece como esperamos. João agradeceu pelo empenho de Aymara, pelo almoço do dia anterior e por tudo o mais. Aymara pediu que ele ligasse sempre que desejasse, que seria muito bom se pudessem manter aquele contato. João se despediu, dizendo que assim o faria.

João largou o fone e saiu para espairecer, olhando as plaquetas das lojas e empresas que encontrava pela frente. Uma plaqueta chamou-lhe a atenção. Ficava em um prédio simples e antigo, sobre uma porta onde se iniciava uma longa escadaria.

João leu o que havia na placa: “O Cenáculo da Verdade”.

Embaixo desta frase, em letras menores, ele leu:

“Que todos os seres sejam felizes; que todos os seres alcancem a paz!”

João subiu as longas escadarias, e ao chegar ao final avistou um corredor comprido, com salas de ambos os lados. Sobre a sala número vinte e um, lia-se: “O Cenáculo da Verdade”. Na porta, que estava fechada, estava escrito: “Entre sem bater”.

João abriu a maçaneta e entrou. Era uma sala de dez metros quadrados,

uma janela ao fundo, uma mesa, uma lousa móvel e quatro fileiras de cadeiras. Um homem em pé, à frente da mesa, palestrava. Umas vinte pessoas estavam ali, sentadas, e João sentou-se também, discretamente, na última cadeira da fileira do corredor.

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- Aproxime-se! – disse o senhor que estava à frente, dirigindo-se a João.

João aproximou-se e sentou mais à frente, na terceira cadeira da mesma fileira onde estava. As pessoas viraram a cabeça para vê-lo melhor.

O homem que palestrava tinha quarenta e sete anos, cabelos curtos, olhos castanhos. Usava óculos e tinha bigode e cavanhaque. Trajava um blazer cinza sobre uma camisa azul clara, calça de sarja bege, sapatos marrons.

- Meu nome é Hermes, posso saber o seu? - João. - Seja bem-vindo, João, aqui ao nosso

Cenáculo da Verdade! Todos que estavam ali se apresentaram,

um a um, para que João os conhecesse. Havia homens e mulheres, pessoas de todas as classes sociais. Alguns João reconheceu como ex-moradores de rua, como ele fora um dia.

- Por que Cenáculo da Verdade? – prosseguiu o palestrante. – Porque aqui cada um encontra a verdade dentro de si mesmo, sem dogmas, sem fanatismos. Somos ecléticos e respeitamos todas as religiões e filosofias. O Cenáculo é universalista, e aprendemos com todos os mestres do passado e do presente, inclusive com os cientistas. Também usamos em nossos rituais a bebida sagrada Ayahuasca, que desperta Deus em nós. Nossa missão? A reconexão com Deus ou Universo, a origem de tudo. Para isso, temos que reconstruir o homem, fazê-lo ter contato com a origem, para que ele possa descer novamente em nosso mundo, tomar o seu fardo

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e espalhar a compaixão e o amor por todos os seres...

Assim, o palestrante prosseguiu por mais uma hora, falando da vida, dos problemas inerentes a ela e das soluções possíveis para que o homem encontre, finalmente, a felicidade a que estava destinado.

- Então, meus amigos, irmãos e irmãs, nos veremos na fazenda, tudo bem?

- Tudo bem! – responderam todos, menos João, em uníssono.

Ao terminar, todos foram cumprimentar Hermes, que era muito querido. Quando a sala estava totalmente vazia, Hermes aproximou-se de João, que ainda estava sentado e, dando-lhe um forte abraço, disse:

- Meu irmão João! É muito bom você estar aqui!

João contou sua história, e Hermes também contou a dele. Falou de como se envolvera com o crime, o álcool, as drogas e de como sua vida tinha chegado próximo da loucura, quando chegou a pensar em dar cabo de tudo.

- Vê, meu irmão, como nossas histórias são semelhantes? – disse Hermes. – Somos feitos todos, ricos e pobres, saudáveis e doentes, feios e bonitos, todos somos feitos do mesmo barro...

Ao saber que João procurava trabalho, Hermes disse-lhe que poderia trabalhar na fazenda do Cenáculo da Verdade, ajudando aos outros iguais a ele a se recuperarem das drogas, do álcool, e da loucura. Disse-lhe que teria roupas, sapatos, cama quentinha, amor, e comida para o corpo e o espírito.

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Não teria salário. Mas Hermes lhe disse que, quando reencontramos Deus, tudo o mais será acrescentado.

- Vou tentar – disse João. - E quando posso começar?

- Hoje mesmo! Pois só somos donos do agora – acrescentou Hermes. – Ontem já foi, e o amanhã não pertence a nós.

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XV

João dormiu na sala do Cenáculo naquela

noite. Pela manhã, por volta das seis horas, Hermes chegou para irem à fazenda. Subiram na Van umas dez pessoas além de João. Hermes deu a partida e, uma hora depois, já chegavam ao local.

À entrada da fazenda, pendurada, havia uma placa em madeira entalhada, onde se lia: “Fazenda-Colônia Cenáculo da Verdade”. Era uma fazenda de cem alqueires, cercada por montanhas e planícies. Havia muita mata virgem, rios, cachoeiras, lagos e animais silvestres. Tudo ali era respeitado, cada animal, cada árvore, cada ser vivente, sementes do Criador.

Desceram da Van e foram para a sede, uma casa simples de quatro cômodos. Perto da casa, havia um salão grande, de uns trezentos metros quadrados, construído com madeiras nativas. Dois galpões, também muito simples, afastados do salão, serviam como dormitórios. Em cada um deles, havia camas rústicas enfileiradas, quinze beliches de cada lado. Um dormitório era masculino e o outro, feminino.

Hermes sentou-se à mesa da sala da casa sede, e pediu para que João e os outros homens se sentassem nas cadeiras à sua frente, para explicar o funcionamento da fazenda.

Disse-lhes que se levantavam às cinco horas da manhã, todos os dias, menos aos domingos, que era de folga para todos. Ao

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acordar, faziam o desjejum todos juntos no salão, praticavam meditação por uma hora e, em seguida, faziam meia hora de exercícios físicos, entre os quais caminhadas e corridas pela fazenda. Depois tomavam banho frio, que era para “fazer o sangue circular” e, por volta das sete horas, iam para os trabalhos na horta e na lavoura. Ao meio-dia, paravam para o almoço, que também era realizado no salão. A uma e meia da tarde, voltavam para o trabalho que se encerrava às cinco horas. Tomavam banho frio, e às seis horas voltavam para o salão, onde jantavam todos juntos. Após o jantar, aqueles que não tinham ensino fundamental ou médio eram levados até a cidade para concluírem estes cursos. Os demais iam para a casa sede, onde há uma biblioteca, ou então se dirigiam ao salão, para as aulas que eram oferecidas. As mulheres aprendiam a costurar, a cozinhar, a serem boas esposas e a educar os filhos. Os homens aprendiam marcenaria, agricultura orgânica e formas de serem bons pais e de educar os filhos. Depois todos, homens e mulheres, tinham aulas de Literatura, Pintura, Filosofia, Informática, História do Brasil e Universal, Matemática, Economia, formação política para a cidadania e de estudo das religiões. A noite era encerrada pela meditação coletiva no salão, e às vinte e três e trinta, impreterivelmente todos, inclusive os que foram estudar na cidade, deveriam estar em seus dormitórios. Aos sábados à tarde, havia um baile no salão que era encerrado às dez da noite quando, alguns voluntários, iam para o centro da cidade

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para a distribuição de sopas e lanches aos moradores de rua. Aqueles que quisessem eram incentivados a virem para a fazenda, onde teriam a oportunidade de se livrarem do vício e resgatarem a sua dignidade de ser humano. Os vícios como o do álcool, fumo e drogas eram proibidos na fazenda. Ninguém era obrigado a permanecer ali, e poderiam ir embora quando quisessem. Os que saíssem e quisessem voltar poderiam fazê-lo. As aulas eram dadas por professores voluntários que vinham da cidade. Uma vez por mês, faziam a reunião naquela sala do Cenáculo do centro da cidade, onde compareciam os moradores de rua e outros interessados em virem para a fazenda, aprenderem conosco a ser mais felizes. Duas vezes ao mês, faziam o ritual com a bebida indígena Ayahuasca, para o autoconhecimento e a desintoxicação do organismo e a conexão com Deus e/ou Universo.

- Por fim – concluiu Hermes, dirigindo-se a João –, o Cenáculo é uma instituição religiosa sem dogmas e sem fins lucrativos.

- Estou achando maravilhosa a proposta! – respondeu João. – Nunca vi nada igual!

- Aqui ninguém paga nada, aceitamos moradores de rua, prostitutas, ex-marginais, viciados em todos os tipos de drogas, filhos e filhas de papai, entediados com tanto dinheiro, suicidas em potencial, enfim, os “náufragos da vida”.

Houve um silêncio. João e todos os outros tentavam absorver todas as informações.

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- Hoje vocês apenas conhecerão a fazenda e seus moradores. Tudo que consumimos aqui, a maior parte, é produzida por nós mesmos. Alguns ex-moradores daqui, que se tornaram pessoas bem-sucedidas no mundo dos negócios, acabam fazendo doações mensais, dinheiro que usamos para pagar médicos especialistas, comprar material didático como livros, computadores, cadernos e também roupas, calçados etc.

- E caso um dia eu queira sair, não vai haver problema? – perguntou João.

- Nenhum problema, você vem para cá quando quiser e vai embora quando quiser. Enquanto estiver aqui, é só seguir a disciplina da casa e tudo sairá bem.

- Me parece muito bom, justo. - Ah, tem uma coisa: só vem para cá quem

REALMENTE quer melhorar em todos os aspectos, quem quer parar de sofrer com qualquer coisa que seja. Vocês podem perguntar o que nos faz sofrer e eu lhes digo que é a vaidade, a ilusão, o apego, as paixões como o ódio, a mágoa, os ressentimentos, os vícios etc.

- Eu que o diga! – respondeu João. - Nunca se esqueçam – concluiu Hermes. A

vaidade traz a ilusão, esta provoca e desilusão, e a desilusão é a mãe do sofrimento e da dor.

Levantaram-se todos, e Hermes levou-os para conhecerem a fazenda e seus moradores.

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XVI “Que todos os seres sejam felizes; que

todos os seres alcancem a paz!” Era a inscrição bem no alto da porta de

entrada do salão. Neste salão, que também funcionava como templo, se realizavam os rituais com a Ayahuasca. Três dias após ter chegado, João comungou da bebida sagrada. Fora a experiência mais marcante de sua vida, com recordações e insights que levou um bom tempo para assimilar. Fez também a famosa “limpeza” de seu corpo físico, mental, emocional e espiritual. Seus canais foram desbloqueados, a sua aura totalmente limpa. Alguns dos viciados que ali chegavam, após uma primeira sessão com o chá, deixavam totalmente as drogas. Pessoas, que haviam tentado de tudo, com a bebida sagrada ficavam limpas de todas as drogas.

Algumas pessoas que estavam ali já lhe eram conhecidas, pois eram moradores de rua como ele mesmo fora, por longos cinco anos; outros, a maioria, desconhecia por completo.

No início, fora-lhe difícil se adaptar à rotina da fazenda, mas, pouco a pouco, foi se acostumando ao banho frio, mesmo nos dias mais gelados de junho, à meditação e ao trabalho na horta. Mas o que mais gostava mesmo era das aulas de Literatura que o próprio Hermes ministrava à noite.

Uma noite, depois que ganhara um caderno e um lápis de Hermes, João começou a rascunhar a sua história, suas percepções como morador de rua. A princípio, quando

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Hermes percebeu que João estava escrevendo a sua autobiografia, resolvera que ele podia terminar o trabalho na horta duas horas mais cedo, dando-lhe tempo para escrever, antes que fosse para as aulas do salão.

Para João, fora um presente. Ele agradeceu e empenhou-se o mais que pôde em recordar a sua vida e pô-la no papel.

Nas noites de sábado, João e mais alguns irmãos e irmãs do Cenáculo iam até a cidade para a distribuição de sopas e lanches aos moradores de rua. Hermes, para este trabalho, gostava de levar quem já morara nas ruas como João, pois ao ver que as pessoas mudavam, alguns daqueles mendigos sentiam que podiam mudar também, pelo exemplo. E, quando manifestavam desejos de mudar, Hermes os convidava para a fazenda, para que pudessem curar o corpo, a mente e o espírito. Alguns, não muitos, realmente vinham para a fazenda, se recuperavam, mas outros, nem queriam saber. Muitos vinham e, saciada a fome e sede, voltavam aos vícios e às ruas. A maioria, não suportando a abstinência das drogas, voltava para o vício. Aqueles que conseguiam se recuperar recebiam do Cenáculo um título, em forma de uma medalha de ouro, onde se lia: “Herói de Si Mesmo”.

João, como chegou à fazenda praticamente sem vícios, pois graças ao sonho resolvera mudar, ser o herói de si mesmo, também recebeu a medalha e a ostentava no pescoço, principalmente, quando saía às ruas para distribuição de sopas.

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Certa tarde, na biblioteca, enquanto escrevia sua história no caderno, viu uma pessoa a colocar um quadro na parede. Aquilo chamou-lhe a atenção. Aproximou-se, e começou a admirar a tela, que fora pintada por um hábil pintor. Perguntou à moça que pendurava a tela quem era aquela pessoa, e quem a havia pintado. A moça respondeu que não sabia quem era e nem quem a pintara, mas que se tratava de um óleo muito bonito. Disse também que foi o senhor Hermes quem mandara pendurar.

Para João, não havia dúvida: tratava-se de Órion ou Constância, aquela velhinha que o fizera escolher um dos envelopes naquela manhã na praça da cidade. “Mas por que o seu retrato fora parar ali?”, pensava consigo mesmo.

Na manhã seguinte, um pouco antes da meditação, João interpelou Hermes:

- Você pode me dizer uma coisa? - Claro. Prossiga. - De quem é aquele retrato na parede da

biblioteca e porque ele foi afixado ali? - Ah João... Esta é uma longa

história... Hermes explicou que aquele retrato fora

pintado por um ex-alcoólatra, que residiu na fazenda durante alguns anos e que, agradecido, fizera o retrato daquela que o ajudara. Tratava-se da senhora Constância de Guignard, uma das mulheres mais ricas do Brasil, dona de um enorme coração cheio de amor. Ela não gostava que falassem muito dela, gostava de agir às escondidas e, apesar de ser uma pessoa de posses, era a

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alma mais desapegada que já conhecera. Uma espécie de Jó de saias. Não permitia que colocássemos nem um quadro dela enquanto fosse viva. Falecera recentemente, e como dizia que, após a sua morte, não “poderia apitar nada”, resolvi fazer-lhe uma sincera homenagem, colocando a tela que você viu na biblioteca.

- Além do mais – prosseguiu Hermes -, esta fazenda existe somente porque ela era totalmente desapegada. João, meu irmão, esta enorme fazenda foi um presente da senhora Constância ao Cenáculo, ao trabalho de resgate que fazemos com as pessoas. Até hoje, eu não sei quanto ela pagou, mas acredito que foi uma pequena fortuna...

João contou do seu encontro na praça com a senhora Constância, dos envelopes e de como sua vida começara a mudar desde então.

- Só uma coisa eu não entendi até hoje...

- O quê? – perguntou Hermes, curioso. - É que ela se apresentou a mim como

senhora Órion... e, pelo que eu fiquei sabendo, quando nos encontramos na praça, por volta das 12h30min, ela já estava morta há algumas horas...

- Ah, entendi! Realmente ela morreu às seis horas da manhã! Pessoas como a senhora Constância não morrem, simplesmente fazem a “passagem”... Mas não se preocupe com isso, João. Ela era uma pessoa reservada e este nome, certamente, era o seu nome “de guerra”.

- Nome de guerra?

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- Sim, existem algumas sociedades que não aparecem ao mundo, estão escondidas, entende? Isto acontece porque o mundo não está preparado para conhecê-las... Eles conhecem muitos segredos... principalmente os da vida e da morte...

- Sociedades secretas você quer dizer? - Sim. Certamente Órion era o nome da

senhora Constância em alguma sociedade destas... E antes de partir para o outro lado apareceu a você, porque tinha coisas a fazer ainda... Mas isto não é importante. O importante é o que ela deixou como obra, como um rastro de amor, paz e felicidade por onde passou... A memória dela estará para sempre gravada com o fogo do amor no coração de todos aqueles que ela ajudou a resgatar da dor, do “inferno” que as pessoas criam para si mesmas e, depois, não conseguem sair sozinhas...

- É verdade... O inferno que o ego cria, que nos prende como uma teia. Uma vez enredados nela, o preço é a dor e o sofrimento.

- Perfeitamente, João. E digo mais: “O ego é o pai da dor e do sofrimento”.

Ao concluir a conversa, João mostrou a Hermes o envelope que retirou das mãos de Órion. Hermes pegou o pedaço de papel, e leu a inscrição feita à mão:

PEÇA TUDO A DEUS. ORE E TRABALHE. SEJA O

HERÓI DE SI MESMO.

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- Meu Deus! – exclamou Hermes. – Aqui está a filosofia do Cenáculo, e toda a obra da senhora Órion.

Conversaram mais um pouco e logo em seguida João foi para o trabalho na horta orgânica, cujas verduras e legumes enriqueciam as refeições do Cenáculo.

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XVII Após três meses na fazenda, num domingo

pela manhã, quando João ainda dormia, Hermes veio acordá-lo.

- João, há uma pessoa querendo falar com você. Está lá na biblioteca da casa sede.

João lavou o rosto e vestiu-se com a melhor roupa que tinha, doação da fazenda: sapato social preto, meias brancas, camisa azul, calça de sarja bege e um blazer cinza.

Uma mulher elegante, trajando um belo vestido até os joelhos, o aguardava. Três crianças, duas meninas e um menino, estavam com ela. As meninas trajavam vestidos sóbrios, mas com estampas alegres, e o menino calçava sapatos pretos, vestia camisa branca e calça social azul-marinho, seguras por suspensórios.

- João? É você mesmo?! - Marta! A ex-mulher correu para abraçá-lo, bem

como os três filhos. Hermes, que até então observava a cena, saiu e fechou a porta, deixando-os a sós. Sorrisos e lágrimas, dores e alegrias de uma saudade imensa, forte e antiga.

João abaixou-se um pouco e abraçou carinhosamente o menino, que agora estava com oito anos.

- Ah, você deve ser o Paulinho! Meu Deus, como está forte e crescidinho, hein! A cara do pai, os mesmos olhos castanhos, o mesmo nariz!

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Em seguida, abraçou a filha Flávia, que estava com dez anos.

- Você é a Flávia. Meu Deus, que moça linda! Os olhos azuis e os cabelos loiros da mãe, hein! – disse sorrindo, encarando Marta. - Quer casar comigo? – brincou, sorrindo.

Júlia, que agora tinha doze anos, já era quase da altura do pai.

- E esta aqui com certeza é Júlia! Que olhos pretos enigmáticos são estes, hein?! E que cabelos negros! Parecem de piche, hein?! E esta boquinha perfeita, hein?! Quer casar comigo?!

- Papai – respondeu Júlia -, você já disse que quer se casar com a Flávia!

Todos riram. João não se cansava de abraçá-los, de beijá-los, de apertar as suas bochechas, mimando-os. Como estava paralisado do lado esquerdo, abraçava-os usando somente o braço direito.

- O que aconteceu com o seu braço esquerdo, papai? – perguntou Paulinho, preocupado.

- Ah, esta é uma longa história Paulinho, depois mamãe te conta, agora não, agora é só alegria...

- Ouvi dizer que você virou escritor! – disse Marta entusiasmada.

- Escritor? Eu?! Quem disse esta “mentira”, hein?! Apenas estou rabiscando alguma coisa sobre mim, mais nada...

- Não importa. Quando terminar, quero ser a primeira a ler. Você promete?

João fez uma careta, olhou para cima, como se estivesse em dúvida, e acrescentou:

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- Hum... não sei, vamos ver! - Eu também quero ler, papai! – disse

Júlia. - Eu também! – repetiram em coro,

simultaneamente, Paulinho e Flávia. - Está vendo, João? Você já tem quatro

leitores em potencial! – disse Marta, estimulando-o a prosseguir.

Houve um pequeno silêncio. - Diga-me – falou João, dirigindo-se à

ex-esposa. – Como soube que eu estava aqui? Marta disse-lhe que ficara sabendo por

meio da jornalista Aymara. No dia seguinte à morte da senhora Constância, ele havia aparecido num telejornal. Então, ela entrara em contato com Aymara, pois já a conhecia, e começou a seguir seus passos.

Após certo silêncio, João perguntou pelo ex-amigo, o atual marido de Marta, Stanislau. Ela disse que ele ficara no carro, lá fora, pois não queria causar constrangimentos e nem fazer cena. João fez questão de vê-lo, pois agora já era outra pessoa, outro homem, e o demônio do ciúme já não o incomodava mais. Desapegara-se de pessoas e coisas, pois aprendera a amar incondicionalmente.

Marta foi até o BMW preto e chamou Stanislau. Este relutou um pouco em sair do carro, mas ao ouvir que João era outro agora, resolveu certificar-se com os próprios olhos.

Stanislau era um homem de cinqüenta anos, forte, com quase dois metros de altura, semi-calvo, rosto quadrado, olhos pequenos, pretos e compenetrados. Trajava

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sempre terno e gravata, inclusive aos domingos. Nessa ocasião, usava um costume preto, bem talhado, de uma grife conhecida internacionalmente.

Assim que ele entrou na biblioteca, João apertou-lhe a mão e deu-lhe um forte abraço. O braço direito mal conseguiu abarcar o largo tronco de Stanislau, que correspondeu timidamente, espreitando a reação de Marta. Esta esboçou um sorriso e fez um sinal de aprovação com a cabeça, seus olhos marejaram e ela foi até a janela, fungou o nariz num lenço, fitando o horizonte infinito. As crianças observavam tudo, sentadas no sofá, em silêncio, mas igualmente emocionadas. Para elas, era como se seus “dois pais” se reconciliassem naquele momento. O pai biológico e o pai “adotivo”, que os amava igualmente.

- Agradeço por tudo o que tem feito por minha família, Stanislau – disse João, mal ocultando as lágrimas. – Agradeço de coração, meu irmão!

- Não precisa agradecer, João! Fiz por eles e por você também...

Marta saiu da janela e sentou-se no sofá. João desvencilhou-se do abraço e foi até a janela onde chorou copiosamente, por um longo tempo. Stanislau sentou-se ao lado de Marta, emocionado.

João lavou a alma. Todas as mágoas e todos os ressentimentos saíram de seu âmago, como um rio quente que nasce das entranhas de um vulcão de dor. Os sentimentos antigos de posse e ciúme desvaneceram-se como o seu passado de erros e aprendizados. Um novo ser

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começava a brotar dentro dele, pleno de humildade, amor, paz, sabedoria e harmonia. O nó do passado, que o levara aos desatinos e à mendicância, desfazia-se ali, e João sabia que pagara por tudo aquilo, por toda aquela transformação. O preço fora bastante alto, mas valeu a pena. Agora podia passar tudo aquilo adiante, compartilhar com os outros a sua experiência, para que, se possível, evitassem sofrimento semelhante ao que passara.

Marta, vendo que João demorava-se na janela, foi até lá e, abraçando-o carinhosamente, fez com que se sentasse ao lado das crianças e de Stanislau. Ela se sentou no meio deles, tendo as crianças e João de um lado e Stanislau do outro. Depois, estendeu os braços por trás e os chamou a si, aproximando a cabeça de todos num gesto de cumplicidade e amor fraternos.

- Bem – disse João, quebrando o silêncio que não durara muito. – Chega de tristeza e choro! Vamos conhecer a fazenda...

Dito isso, desvencilhou-se num pulo do abraço de todos e saltou do sofá.

- Vamos! – repetiu. Todos se levantaram do sofá como se

estivessem imersos em uma outra dimensão, num outro tempo, em que só o amor é real. Hermes já os aguardava solícito para, junto com João, mostrar-lhes a fazenda do Cenáculo.

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XVIII

O tempo engatinhava sorrateiro como um

rio, lento, mas inexorável. Marta e os filhos passaram a visitar a fazenda mensalmente. Sempre que chegavam, perguntavam a João se já tinha terminado o livro, o relato de sua história. João pedia para que ela tivesse calma, pois só escrevia em seus horários de folga, e aos domingos.

Foi numa bela manhã de domingo, após oito meses de fazenda, que João colocou o ponto final em seu relato. Quando Marta chegou para a visita mensal, João entregou-lhe o caderno de duzentas folhas, manuscrito a lápis, e disse-lhe:

- Aí está, querida, o original. - Tomarei cuidado para não perdê-lo –

respondeu Marta, aconchegando o caderno junto ao peito. – Mas não tem título ainda? – perguntou, olhando a capa.

- Pois é... Estou com dificuldades para achar um título bom... Vou deixar para depois, para mais tarde.

Marta sorriu e disse que ele precisava encontrar um título realmente condizente. João disse que ao menos tentaria.

- Bem, assim que terminar de ler, emito minha opinião.

- Tudo bem, Marta, mas não fique muito empolgada.

- Não, não ficarei, pode ter certeza! João abraçou e beijou as crianças, não

conseguindo conter a emoção, e depois se despediu de Marta. Pediu que desse um abraço

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em Stanislau, que não pôde comparecer naquela ocasião.

O domingo ainda reservava surpresas agradáveis a João. Era como se estivesse na colheita, após ter trabalhado arduamente a terra e, após as chuvas, tudo houvesse brotado e prosperado. Agora, depois de um tempo, sob o sol dourado, começava a colher os frutos doces de seus esforços.

Estava na biblioteca à noite, quando Hermes entrou com Aymara e um belo rapaz,em seus vinte e cinco anos, trajando um costume elegante. Hermes se despediu deles e saiu, deixando-os à vontade.

Sentaram-se no sofá e Aymara apresentou-lhe Jacques Guignard, neto da senhora Constância Guignard, ou senhora Órion. O rapaz tinha grandes olhos azuis, cabelos negros, e um rosto bem delineado. Os cabelos, quase compridos, eram ondulados, repartidos ao meio, no centro da cabeça. Tinha um porte atlético e aproximadamente 1,85m de altura. Era uma figura imponente em seu terno azul turquesa e em seus sapatos de três cores.

Ao cumprimentá-lo, João o reconheceu. Era o rapaz que o expulsara do velório da senhora Constância.

- Me perdoe por aquela noite – disse Jacques.

- Tudo bem! - Minha avó era uma pessoa com o coração

imenso – prosseguiu Jacques – e muitos tentavam se aproveitar de sua bondade...

- Compreendo...

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- Bem, vamos ao assunto. O motivo de eu estar aqui é...

Jacques, tirando uma carta do bolso do paletó, explicou-lhe que, ao fazerem o inventário da senhora Constância, encontraram, entre seus papéis, a determinação de entregar aquele envelope ao senhor João, ex-morador de rua. Se isso não fosse feito, a herança não poderia ser partilhada...

Disse também que, na determinação da senhora Constância, estava escrito que João era aquele que escolhera o envelope onde se lia “Amor Omnia Vincit” no selo de cera... Como Aymara me disse que o conhecia e que tinha visto o envelope, aqui estamos para nos certificarmos da veracidade dos fatos. Para não haver dúvidas a respeito da sua identidade, minha avó determinou que solicitássemos, ao encontrá-lo, que apresentasse o envelope com os dizeres em latim. Desse modo, não haveria dúvidas. Ela determinou ainda que, após a apresentação do envelope, esta carta fosse aberta em sua presença, e na de mais uma testemunha.

- Você tem o envelope com a inscrição em latim? – perguntou Jacques.

João enfiou a mão no bolso do blazer e tirou o envelope, pois sempre andava com ele. Jacques e Aymara conferiram a inscrição.

- Ok. A inscrição confere... – prosseguiu Jacques. – Então, na presença aqui da testemunha, vamos abrir a carta...

Jacques abriu a carta e retirou um papel branco, onde se lia escrito a mão:

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PEÇA TUDO A DEUS. ORE E TRABALHE. SEJA O

HERÓI DE SI MESMO. Os três se entreolharam e João mostrou-

lhes os dizeres que estavam em seu envelope, onde se lia a mesma coisa. Mas... na carta Jacques observou que havia ainda um pedaço de papel, dobrado, azul claro. Ele o pegou, e com os olhos arregalados mostrou a João e a Ayamara que, ao verem do que se tratava, também ficaram maravilhados.

Era um cheque nominal a João W.B. no valor de um milhão de reais!

- Vovó realmente gostava do senhor! – exclamou Jacques.

- Como ela descobriu meu nome? – perguntou João.

- Você não conhecia vovó... Ela conseguia tudo o que queria... Nunca vi nada igual!

- Bem, agora a partilha da herança pode ser realizada. Aymara está aqui como testemunha de que a carta foi entregue ao seu destinatário...

- Pode contar comigo! – respondeu Aymara.

- João – perguntou Aymara amavelmente.- Você já sabe o que fará com este dinheiro?

João balançou a cabeça negativamente, como se ainda flutuasse nas nuvens.

- Não, sinceramente, ainda não! – respondeu.

- João, acredite – disse Aymara num sorriso. – Você merece tudo isto e muito mais!

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Ao se levantarem, Jacques viu o retrato da senhora Constância, afixado na parede.

- Meu Deus! – disse. – É a cara da vovó... A pessoa que a pintou tem muito talento!

Pensativo, Jacques acrescentou: - Ouvi dizer que esta fazenda foi doação

de vovó ao Cenác... como é mesmo o nome? - Cenáculo – completou João. - Isto! Cenáculo... - Sim, a fazenda foi doação de sua avó -

confirmou João. - Bem, fico feliz que ela esteja sendo

usada para um bom propósito... – concluiu Jacques.

Ao se despedirem, Aymara pediu para que João mandasse notícias, sempre, que jamais perdessem o contato.

- Fique tranqüila! Você sempre saberá de meus passos...

Ayamara sorriu, entrou na Mercedes de Jacques, e partiram.

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XIX João ainda estava sem saber o que fazer,

que rumo tomar. Sua vida melhorara e muito, agradecia constantemente a Deus e à senhora Constância, a Hermes e a todos por ter conseguido chegar até ali.

Queria retribuir, ser útil, ajudar pessoas em estado de sofrimento e desamparo, reconstruir vidas como a dele fora totalmente reconstruída, vivificada.

Era sábado à noite. Feliz, saiu com Hermes e mais três irmãos do Cenáculo para a distribuição de sopas e lanches. Foi àquele terreno baldio onde dormia outrora, junto aos amigos de infortúnio. Ao vê-lo, alguns não o reconheceram como sendo João, o ex-mendigo. Alguns eram novos moradores de rua, geralmente jovens viciados em drogas pesadas, que, expulsos de casa, não encontravam outra opção, senão a mendicância ou a criminalidade. Convidou todos para o Cenáculo e alguns se prontificaram em comparecer na próxima reunião. Sentiu falta de alguns amigos e indagou sobre eles. Ficou sabendo, desolado, que alguns morreram assassinados por dívidas com o tráfico; outros se suicidaram; alguns estavam presos; e muitos deles morreram consumidos pelo vício do álcool e das drogas. A maioria deles entre dezessete e trinta e cinco anos!

Voltou para a fazenda, abatido pelo destino cruel dos seus amigos, moradores de rua que não tiveram a mesma “sorte” que ele. Hermes disse-lhe que ele fizera a parte

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dele, que se estava ali, vivo e forte, era porque fez por merecer. Que só muda quem quer mudar! Pois neste mundo-escola, a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória para todos, pretos ou brancos, ricos ou pobres!

A Van começou a transpor uma ponte e João se recordou de que era a mesma ponte onde passara tantas vezes, a ponte de onde se jogara durante um sonho. Foi a partir daquele sonho que sua vida começara a mudar, a ganhar sentido.

Ao terminar de cruzar a ponte, observou um bando de cachorros vira-latas a vadiar. Alguns fuçavam em uma lixeira. Sentiu um aperto no coração, e pediu para que Hermes parasse. Desceu da Van e se dirigiu ao grupo de cães que farejavam o lixo. Dois deles lhe chamaram a atenção. Estavam magros, com algumas feridas. Um deles mancava de uma perna. Resolveu arriscar e chamou:

- Felicidade! Esperança! Surpreso, verificou que os cães ergueram

as orelhas e se dirigiram em sua direção, abanando o rabo.

- Não pode ser! É Felicidade e Esperança! – disse todo feliz, fazendo festa nos cachorros.

Era três e meia da madrugada. Hermes desceu da Van para ver o que ocorria. João pediu permissão para levá-los para a fazenda, pois tinha encontrado dois grandes amigos fiéis. Hermes não se opôs e, assim, Felicidade e Esperança encontraram seu antigo dono e, o mais importante, um lar onde seriam cuidadas as suas feridas, onde

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tomariam banho, teriam uma “caminha” quente e comida abundante.

Felicidade - que mancava da perninha, desde aquela vez em que foram surrados sob a marquise – e Esperança foram colocados amorosamente por João atrás da Van. Rumaram todos em direção à fazenda. João, que estivera abatido até então devido ao destino triste dos ex-amigos, voltou a sorrir, a ficar alegre.

- Nada como encontrar velhos amigos! – disse Hermes, dando partida no veículo, feliz com a alegria de João.

- Agora já sei o que vou fazer – disse João. – Vou doar metade do dinheiro que ganhei à fazenda, para o resgate de pessoas e animais que estejam pelas ruas a passar fome, frio e todo tipo de sofrimento...

- João! Você tem certeza de que é isto mesmo o que você quer? – interpelou Hermes.

- Certeza absoluta! Todos na Van urraram de alegria e

bateram palmas. Felicidade e Esperança, assustados, começaram a latir. João riu e disse, voltando-se para trás e fitando os cãezinhos, que eles estavam voltando para casa e que jamais iriam passar frio, fome, e que ninguém os espancaria novamente.

Com a doação de João, uma grande área da fazenda seria destinada aos cãezinhos e gatos abandonados. Ali eles teriam assistência veterinária, comida, banhos, tosa e tudo que pudesse contribuir para o seu bem-estar.

Claro que o foco continuaria a ser os moradores de rua, os viciados, os suicidas

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em potencial, ou náufragos da vida e todos aqueles que quisessem se livrar de suas mazelas e sofrimentos físicos, mentais e espirituais.

Afinal, O Cenáculo era uma instituição religiosa não dogmática, universalista, espiritualista, eclética e holística, voltada para o bem-estar do ser humano como um todo.

Enfim, uma Escola de Mistérios, cujas bases estavam na Arte, na Filosofia, na Ciência e na Religião.

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XX

No dia seguinte ao reencontro de

Felicidade e Esperança, Marta telefonou. Disse a João que lera o manuscrito e que se emocionara bastante, pois fazia parte da história. João disse que alguns fatos novos, como a doação da senhora Constância e o reencontro de Felicidade e Esperança, teriam que ser adicionados ao texto original. Pediu para que Marta, quando viesse vê-lo, trouxesse o caderno para os acréscimos. Assim foi feito. Marta digitou o texto e, com as indicações de Aymara, enviou-o a vários editores conhecidos.

Os dias passavam alegremente para João. Com metade do dinheiro que recebera, podia adquirir uma casa na cidade, voltar a advogar e continuar ajudando voluntariamente o Cenáculo. Hermes, por sua vez, apoiaria qualquer decisão que fosse tomada por João.

Resolvera ficar mais um mês na fazenda antes de mudar-se para a cidade. Todos os dias, seguia a rotina dos outros irmãos (ãs): fazia a meditação no salão, tomava seu banho frio e ia trabalhar nas hortas orgânicas. Sentia-se feliz, útil e era admirado e amado por todos.

Faltava uma semana para que ele se mudasse, quando Marta telefonou novamente, dizendo que um grande editor resolvera editar seu texto, mas que havia um problema, pois o livro não tinha título. João olhou pela janela, e de seu íntimo brotou num insight: “Seja o herói de si mesmo”. Foi aí

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que nasceu a idéia do título, e João disse: “Herói de si mesmo”. Marta disse que gostava do título e que o passaria para o editor. Assim ficou combinado, e não se falou mais nisso.

Ao fim de uma semana, ajudado por Aymara, João já havia mobiliado a casa. Só faltava mudar. Ficou decidido que, a partir do momento de sua mudança, passaria a ajudar Hermes nas palestras do Cenáculo no centro da cidade, onde ele o conhecera.

Com sua experiência de ex-morador de rua, seria mais persuasivo junto àqueles que achavam impossível a mudança. E assim foi feito. Pelo menos uma vez por mês, João ia até aquela sala do centro da cidade e falava de sua experiência, de como caíra na mendicância, e de como conseguira se reconstituir.

A vida é um dom supremo e, de modo

algum, podemos jogá-la na lata do lixo do desprezo, da dor e da agonia. Cada ser humano é um, cada ser é um Ser supremo, único e formidável.

Nas noites em que estou na fazenda e olho para o céu, eu vejo como somos pequenos e, ao mesmo tempo, como somos grandes! Meu Deus, eu digo, é formidável respirar, tomar água límpida das fontes, comer frutas e legumes puros, e amar as pessoas como elas são, sem julgamentos.

Meu maior sofrimento é ver as pessoas sendo tratadas como objetos, como gado, como seres lucrativos. Não somos nada disso!

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Somos feitos do mesmo material dos sóis, e dos planetas do universo infinito.

Vocês sabem o que gera a doença, a dor, o sofrimento, o desespero e o inferno? Pois então fiquem boquiabertos, porque tudo isso é provocado por nossa ignorância. Sim, ignorância em saber que todos somos irmãos e irmãs e que a única realidade é o AMOR!

Dirão alguns que estou sendo infantil, simplório e bobo com esta história de amor... Pois então, façam o caminho mais difícil e depois de muito sofrerem, também chegarão a esta conclusão, a que também cheguei, a que todos os mestres chegaram, desde Jesus, Buda, Krishna ou Maomé...

O ego, meus irmãos, minhas irmãs, é o pai de toda a dor e sofrimento. Quantas guerras e mortes desnecessárias não foram provocadas pela cobiça desmedida? Quanta dor e quantos lares não foram desfeitos pelo ciúme, pela luxúria? Quantos cânceres não são gerados neste exato momento pela mágoa e pelo ressentimento? Quantos não vão para o túmulo gemendo sem ao menos se darem a chance de perdoar? E a inveja então? Quantas mortes não provocou? Quantas intrigas não gerou? Quantos ambientes não envenenou? E a ira, quantos assassinatos não provocou? E a avareza, quantas favelas não gera em nosso país? E a corrupção, quantos estragos não tem feito?

Meus irmãos, o planeta Terra é rico e abundante, o Universo é rico e abundante, Deus é rico e abundante. Pergunto, então: quem gera a dor e a miséria a não ser o próprio homem? E ainda, não satisfeito em

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gerar tanto sofrimento, o homem põe a culpa fora dele, num hipotético diabo, inventado por sua consciência pesada...

É desse modo que o homem tenta amenizar a sua culpa: dizendo que o diabo ou o demônio são os culpados pela miséria e pela dor do mundo, pela queda do homem, etc. Assim fica mais fácil roubar, matar e explorar o seu irmão, a sua irmã, pois foi o diabo quem tentou... E depois de tanto cometer esses desatinos, esses “pecados”, como chamam, pedem perdão para que seus crimes passem em brancas nuvens e tudo bem... Mas com Deus não se negocia... E o que plantarmos, certamente, colheremos...

Então, meus irmãos e minhas irmãs, cuidado, cuidado com aqueles que criam dificuldades para venderem facilidades. Cuidado com os vendilhões do templo. Cuidado com os intermediários do poder que está dentro de vocês mesmos e não fora...

Se eu consegui, com a ajuda de nosso Pai/Mãe Divinos, qualquer um de vocês, que realmente quiserem e determinarem, o conseguirão também!

Há cem milhões de planetas aptos à vida só em nossa Via Láctea! E pasmem, há bilhões de galáxias no universo, com bilhões de sistemas solares como o nosso! Ninguém pode monopolizar a riqueza de Deus, ninguém! Quem tentar fazê-lo pagará um alto preço por isso! O dinheiro não é bom e nem mau, mas foi feito para circular, é energia de Deus para promover o crescimento e a vida de todos os seres deste planeta, e não para ficar amontoado em bancos. Os bancos existem

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para espalhar riqueza e não para espoliar o pobre com juros de agiotagem!

Não se iludam, irmãos e irmãs, pois o céu ou o inferno é aqui mesmo, pelo menos é aqui que começa. O que vocês construírem aqui é o que levarão para o outro lado. Se esperarem para serem felizes após a morte, estão totalmente enganados! Se esperarem encontrar o céu ou o inferno só após a morte, vocês estão totalmente enganados! É só olharem do lado e verão que não estou mentindo... Pois o que semearmos iremos colher aqui e agora!

Eu plantei espinhos e colhi espinhos maiores e mais pontiagudos ainda! Quando comecei a preparar melhor a minha terra interior, a plantar sementes melhores, comecei a colher frutos melhores e mais doces... Mas antes disso tive que colher a semeadura má... grão por grão, pois não se iludam, esta é a Lei!

Eu mudei, porque quis mudar, cansei de sofrer. Saibam que o sofrimento é um vício também, como o é o álcool, o cigarro e as drogas... Determinem mudar, cuidem de sua terra interior, plantem paz, amor, harmonia, caridade e vocês verão o que colherão brevemente...

Vocês podem, se quiserem, se lapidar, transformar-se totalmente. Para isto é preciso querer, determinar.

Para encerrar, eu peço para que SEJAM OS HERÓIS DE SI MESMOS!

Só assim, vocês construirão desde já o céu, e o mundo de paz e amor que tanto almejam.

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Prezado leitor (a): a “Fazenda-Colônia Cenáculo da Verdade” é um sonho em permanente construção. Se quiser, você pode nos ajudar a construí-lo.

Saiba mais acessando o site ou telefonando: (11) 4812-4943 – cel. 8641-6634

Site: www.ocenaculo.com.br Perfil do autor no Orkut:

http://www.orkut.com.br/Profile.aspx?uid=4319938924493200703 Entre para o grupo de discuções do Cenáculo do Yahoo:

[email protected]

Entre para a Comunidade do Cenáculo no Orkut:

http://www.orkut.com.br/Community.aspx?cmm=36676988 “Que todos os seres sejam felizes; que todos os seres

alcancem a paz!” Paz, luz, Amor, Equilíbrio, Saúde, Harmonia,

Abundância e Justiça!

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OUTRAS OBRAS DO AUTOR:

- Os Iluminados do Apocalipse – Editora Secortecci, 1999

(romance)- Versão impressa e digital – ebook

- Introjetando a Prosperidade: como conquistar seus

objetivos com o uso das imagens mentais - Editora

LivroRápido, 2006 (auto-ajuda) – Versão digital – ebook

- Imaginação é Poder – ebook GRÁTIS.

- As Símiles como manifestação da Epifania e do Estilo

Narrativo nos Contos de Clarice Lispector – (Inédito)

- Mudez (poemas) - Inédito

- Cassiopea - (antologia poética)

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AGNÁLDO C. BACÀRO é o presidente/fundador do Cenáculo da Verdade, instituição religiosa universalista e eclética, não dogmática, fundamentada na Filosofia, Arte, Religião e Ciência, que faz uso ritualístico da bebida enteógena Ayahuasca, para conexão e introjeção da Inteligência Infinita ou Grande Foco. Escritor, poeta, palestrante, professor e livre-pensador, autor do romance iniciático gnóstico, entre sacerdote e sacerdotisa, Os Iluminados do Apocalipse. Criador da RMI® (reprogramação mental introjectiva) para reprogramação da mente com a consciência expandida, cujos fundamentos estão no seu livro Introjetando a Prosperidade: como conquistar seus objetivos com o uso das imagens mentais.

Faço palestras GRÁTIS sobre meus livros, Reprogramação Mental Introjectiva (RMI) e sobre a bebida sagrada Ayahuasca. Se quiser uma Sessão de RMI® com expansão da consciência em sua cidade entre em contato. Site do Cenáculo: www.ocenaculo.com.br Site do Autor: www.imagemental.com Minha página no ORKUT: http://www.orkut.com/Profile.aspx?uid=4319938924493200703